um modelo de escola na frança

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  • Histria da Educao, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 23-50, jan/abr 2007 Disponvel em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe

    UM MODELO DE ESCOLA NA FRANA EM TORNO DE 1660-1740: A ESCOLA CRIST1

    Marcel Grandire Traduo Sabina Ferreira Alexandre Luz Reviso Maria Helena Camara Bastos

    Resumo A Igreja ajuda a construir um modelo de escola crist, na segunda metade do sculo XVII, na Frana: uma escola contra a desordem da sociedade. Este texto destaca como a organizao da escola, a maneira de ensinar, os gestos e hbitos de vidas impostos, e os contedos de ensino, participam para essa finalidade de instruo das crianas pobres. Palavras-chave: Regulao social, religio, maneira de ensinar, ordem do tempo, habitus, contedo de ensino.

    A SCHOOL MODEL IN FRANCE AROUND 1660-1740: THE CHRISTIAN SCHOOL

    Abstract In the second half of seventeenth century, the Catholic Church helps to build a Christian school model in France: a school against society disorder. This text underlines how school organization, teaching methods, imposed gestures, life habits, and subjects taught contribute to the purpose of instructing poor children. Keywords: Social regulation, religion, teaching methods, time ordering, habitus, teaching contents UN MODELO DE ESCUELA EN FRANCIA ALREDEDOR

    DE 1660-1740: LA ESCUELA CRISTIANA Resumen La Iglesia ayuda a construir un modelo de escuela cristiana, en la segunda mitad del siglo XVII, en Francia: una escuela contra el desorden de la sociedad. Este texto destaca como la organizacin de la escuela, la manera de ensear, los gestos y hbitos de vidas

    1 Do original: Un modle dcole en France vers 1660-1740: lcole chrtienne. IN: GRANDIRE, Marcel; LAHALLE, Agns (Dir.) Linnovation dans lenseignement franais (XVI XX sicle). Lyon: INRP; Nantes: CRDP de Pays de Loire, 2004. p.35-51. Autorizado pelo autor para publicao na revista Histria da Educao/ASPHE-UFPel.

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    impuestos, y los contenidos de enseanza, participan para esa finalidad de instruccin de los nios pobres. Palabras-clave: regulacin social, religin, manera de ensear, orden del tiempo, habitus, contenido de enseanza

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    Um modelo de escola se constri, na segunda metade do sculo XVIII, na Frana: uma escola contra a desordem da sociedade. essa desordem que preocupa as elites, com seu cortejo de misrias, de mortalidades e de violncias. Os pobres e os protestantes so considerados responsveis por esta situao.

    A imagem de pobre no nada favorvel. A ignorncia popular inquieta os membros da Companhia do Santo Sacramento, particularmente a ignorncia religiosa2. O bispo de Vence, Antoine Godeau, no seu Discours sur ltablissement de lhpital gnral fond Paris [...] publicado em 1657, chama a eminente dignidade dos pobres, que todos devem venerar, mas aponta igualmente sua ignorncia das verdades da religio, sua natureza desregrada, que os leva a roubar, pilhar e mendigar. A privao da liberdade, que organiza o hospital geral, tem por objetivo restabelecer "o status mais santo da pobreza em sua primeira reputao"3.

    O modelo de escola, do fim do sculo XVII e incio do sculo XVIII, participa dessa complexa atitude diante dos pobres e da plebe. O movimento que impe a criao de escolas acompanha o esforo da instituio das casas de caridade, dos hospitais gerais, para aprisionar e reerguer os pobres. A escola aparece como uma resposta, entre outras, aos males da sociedade. O grande professor primrio das escolas de Lyon, Charles Dmia, tambm da Companhia do Santo Sacramento, faz a ligao entre a pobreza, a "profunda ignorncia" e "a ltima libertinagem" da juventude das cidades4. A luta contra a pobreza passa ento por uma reforma 2 A Companhia foi fundada em 1629 por um laico, o Duque de Ventadour; um oratoriano, o padre de Condren; um jesuta, o padre Suffren; e um capuchinho, Philippe dAngoumois. Seu objetivo era unir as foras catlicas para agir na sociedade e cristianizar o corpus social. Ver Alain Tallon, La Compagnie du Saint Sacrement. Paris, ditions du Cerf, 1990. 3 Alain Tallon, Ibid., p.145. 4 Charles Dmia, Rglemens pour les coles de la ville et diocse de Lyon [...]. A. Olyer, (s.d), avis au lecteur .

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    moral. tambm a que praticam as irms de Saint-Charles dAngers, cujo ato de estabelecimento data de 1714: quando visitam os doentes, os inquirem sobre os conhecimentos de religio das famlias, do cuidado dispensado com a educao das crianas, das ocasies de excesso5. O pobre por sua vez figura de Cristo, "templo animado", natureza desregrada e ameaa social.

    Essa imagem complexa se observa particularmente naquelas crianas mais miserveis. So os rejeitados que so deformados pelos maus costumes e que, em conseqncia, devem ser reerguidos. Dmia, no seu Remontrances para as autoridades das cidades6, escreve a propsito dos jovens maus alunos: eles "caem ordinariamente na preguia; s fazem levar uma vida de libertinos e a vadiar, os vemos em grupos, conversando sobre assuntos devassos, se tornam indceis, libertinos, jogadores, blasfemos, briges, entregam-se imoralidade, ao furto e ao banditismo [...]". Ento, deve-se cortar aquilo que ruim, fazer crescer as sementes de Deus asfixiadas pela desordem. o que deve ser feito com o pobre de Deus, reergu-lo, o liberar dos seus entraves, extirpar o vcio que ativo nele.

    Que papel a escola pode ter para levar as crianas no caminho correto.

    A organizao da escola

    A escola uma organizadora de ordem: ela procura materializ-la no espao onde as crianas evoluem. Existe toda uma construo modelada do espao escolar. Parece que a ordem, assim como o tempo, exige a materializao espacial.

    5 Rglement pour les coles de charit gouvernes par Mademoiselle Jallot, (s.d), archives de la communaut. 6 Remontrances [...] aux prvosts des marchands, eschevins [...], Lyon, 1666.

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    O espao da sala de aula

    Podemos representar o espao modelo da sala de aula segundo Lcole paroissiale de Jacques de Batencourt7. O prdio, em primeiro lugar, deve estar preferencialmente situado perto da igreja paroquial, mas em um canto, longe da agitao da rua. Batencourt prev salas grandes, para cem a cento e cinqenta crianas, iluminadas de cada lado por grandes janelas, e aquecidas por lareiras. Uma pia de gua benta permite que as crianas se benzam ao entrarem na sala: a escola , de fato, segundo lEssai dune cole chrtienne, publicado em Paris em 1724, "a igreja das crianas".

    O centro da sala o lugar escolhido para receber a imagem do crucifixo: trata-se, em Paris, de uma imagem de papel em talho-doce, de dois ps e meio de altura (ou seja, 81 cm); essa imagem acompanhada de outras, como da Virgem e dos santos, e de um grande retbulo representando o julgamento final. A imagem do Cristo a referncia da sala, o centro simblico da escola. Por isso, esse lugar protegido, desprendido, as carteiras dos alunos encontrando-se afastadas dele. Ele constitui-se at mesmo em pequeno oratrio para as freiras do padre Barr em Rouen. Todos os alunos viram-se, individualmente, na direo dessa imagem ao entrarem na sala e todos, de joelhos, ao menos quatro vezes por dia, na direo do mestre.

    Cada um e cada coisa em seu lugar!8 A regra que cada um esteja exatamente no lugar marcado, e que os diversos materiais escolares estejam "encerrados" em um lugar apropriado. O mestre encontra-se em sua cadeira com braos, as crianas

    7 Lescole paroissiale ou la manire de bien instruire les enfans dans les petites escoles, Em Pierre Targe, livreiro do arcebispo de Paris, 1654. Utilizamos nesse texto (p. 48 a 50) a edio de 1669: Instruction mthodique pour lcole paroissiale, dresse en faveur des petites coles, par MIDB, prestre, Paris, Pierre Trichard. 8 "Chacun et chaque chose sa place!". Nota do tradutor.

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    sentam-se nos bancos que ocupam toda a extenso das paredes, reagrupados em pequenos grupos de nvel, chamados de "classes", "bancos" ou "bandas", dirigidas por oficiais9. Os bancos podem ter alturas diferentes segundo o nvel de leitura que comanda geralmente a organizao pedaggica da sala. Existem lugares reservados aos novos alunos, para que sejam reconhecidos pelo mestre e "enquadrados nas prticas da escola" 10 pelas crianas mais avanadas. Quando h mesas para escrever, elas so colocadas perto das janelas; ou seno, a sala possui escrivaninhas quadradas para duas pessoas utilizadas na hora do exerccio.

    Tudo deve ser posto em seu lugar. As cestas do almoo sobre uma prateleira, com um pequeno cesto para recolher as esmolas, os objetos pessoais sobre ponteiras ou portas-casaco; existe tambm um armrio que fechado chave para guardar os livros atribudos aos pobres, cada um sendo estritamente individualizado, os do mestre, a cesta dos teros levada todo dia para a missa pelo oficial nomeado para isto, os registros e os catlogos da sala, as imagens dos santos. Existe ainda uma estante para receber a cesta de papel e o necessrio para a escrita, ou seja, a tinta, os tinteiros portteis, o p para secar e as plumas. Essas questes materiais no so apenas detalhes: podemos contar uma

    9 "O mestre dividir sua Escola em quatro ou cinco bancos, segundo a quantidade e capacidade de seus alunos; colocando no primeiro os mais capazes, como so os que aprendem a ler em francs, e nas Letras, a escrever, e a aritmtica. No segundo, os que lem razoavelmente no livro de oraes. No terceiro, os que sabem soletrar e associar as palavras. E no quarto, os que aprendem a conhecer suas letras e a juntar as slabas.", Em Lettre pastorale de Monseigneur lvque de Bayeux touchant les petites coles, avec une mthode pour apprendre en peu de temps lire, crire, faire la catchisme, et chanter, Caen, 1690, "Manire de conduire une cole", p. 59-60. Segundo os Rglements de Charles Dmia, op. cit., p. 19, "o mestre dividir sua Escola em salas diferentes, com relao capacidade dos Estudantes [...]. Quando a Escola for numerosa, pode-se subdividir cada uma dessas salas em diversas bandas [...]". 10 Jacques de Batencourt, op. cit., chap. II, art. 3.

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    pinta11 de tinta por ms em Moulins, e uma centena de pincis por ano!12

    At mesmo as crianas so cuidadosamente registradas na escola crist. Trata-se de pr em ordem as inscries, ou seja, impedir as mudanas descontroladas de escola, verificar que os mestres no se encarregam de mais estudantes do que o possvel para ganhar mais dinheiro (em Paris, a escola paroquial limita a cem o nmero de estudantes por sala quando o mestre ajudado por um assistente, e a sessenta quando no o )13; em Moulins, em Poitiers, a previso era de cem para o grupo dos grandes, cento e cinqenta para os pequenos. O registro rigoroso dos estudantes visa ainda o controle das entradas nas escolas de caridade reservadas aos pobres, ou mais pedagogicamente, a classific-los em grupos de capacidades diferentes que estruturam a escola.

    O registro existe em todos os lugares: nele esto inscritos, segundo a data de chegada devidamente estabelecida, os nomes e sobrenomes das crianas, os dados dos pais e mes, do parente que representa a criana rf, o nome da rua, do pavilho, da parquia onde mora a famlia; algumas informaes mais detalhadas prprias para guiar a ao do mestre tambm so registradas: hbitos e carter das crianas, sacramentos recebidos (o registro dos Lasallistas marca uma cruz para as crianas que

    11 Medida antiga. Nota do tradutor. 12 Rglement concernant la conduite et la direction des coles charitables tablies dans la ville de Moulins, sous le titre et la protection du Saint Enfant Jsus, manuscrito, p. 34, Arch. dpart de lAllier, D. 145. 13 Segundo Batencourt, op. cit., chap. III, "Sobre a admisso das crianas na escola", " preciso que o mestre seja prudente na admisso das crianas afim de no se sobrecarregar alm de suas foras, o que traria um grande prejuzo s crianas [...]", p. 62. As medidas efetuadas por Martine Sonnet, Lducation des filles au temps des Lumires, Paris, ditions du Cerf, 1987, nos levam a pensar que as turmas das escolas de caridade de moas em Paris acolhiam efetivamente 60 a 70 alunos, enquanto que os professores e professoras de canto ensinavam menos de 20 crianas.

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    comungaram, e um "c" para aquelas que foram confirmadas), incmodos e enfermidades que podem justificar as ausncias, se eles sabem ler e escrever... Como a criana registrada pelos pais, ou o adulto a quem ela foi confiada, o mestre deve aproveitar esse momento para saber se outra escola j foi freqentada por ela, se a criana mimada pela famlia, ou, ao contrrio, tratada de forma muito rude, se convive com ms companhias. A este primeiro livro pode ser adicionado outro, renovado cada ms, para anotar o pagamento da escolaridade, quando esse ltimo praticado.

    Os Lasallistas so os mais rigorosos na preciso da inscrio: ao catlogo habitual dos alunos admitidos na escola, se acrescentam outros dois: um "catlogo das ordens da lio", onde cada criana inscrita em seu nvel, com a data precisa de sua entrada, e tambm com uma contagem precisa dos atrasos, das faltas justificadas e o nmero de vezes que a criana no soube seu catecismo, e enfim o "catlogo para servir troca de lio dos estudantes da escola" destinado aos inspetores, para lhes dar as indicaes necessrias ao controle das mudanas das lies. Fora das escolas Lasallistas, h um sistema de catlogo (diferente do registro) que permite uma rpida visualizao dos presentes e dos ausentes: em Paris, murais de madeira para colocar o nome dos oficiais e de todos os alunos sobre pequenas cartolinas amarradas com cordinhas e, portanto, facilmente desamarradas. Em Moulins, um mural com furos (seis diante de cada nome, um para cada dia da semana) permite o mesmo controle das faltas.

    A organizao do tempo

    A ordem da escola necessita ainda da tomada de conscincia da passagem do tempo pelas crianas para que elas tenham um bom domnio sobre ele. Aprender a se situar no tempo cotidiano, semanal e anual, ser capaz de compreender e de ter percepo da durao, essas so aquisies essenciais realizadas na escola. Elas so suscetveis de evitar a desordem da vida habitual aos pobres, segundo uma imagem frequentemente retomada. A

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    no-ocupao, o cio, na realidade a desordem temporal, conduzem ao vcio, libertinagem e violncia.

    Da a vontade de organizar bem o tempo na escola, ritmado pelo sininho do mestre, o sinal do irmo lasallista, o batimento de suas mos, o lanamento de curtas invocaes religiosas. Chegar "na hora marcada" uma exigncia repetida dos mtodos. As aulas duram quatro/cinco horas, s quais preciso acrescentar um tempo de repetio antes da chegada do mestre de manh e tarde, mais o tempo de celebrao do sacrifcio da missa, obrigatria.

    Eis uma "disciplina das escolas" tipo, segundo a expresso da Lettre pastorale de Bayeux: suponhamos que as escolas abram s 7 e meia, sabendo que existe praticamente em todos os lugares uma diferena de meia hora entre o inverno (entre o dia de todos os Santos e a Pscoa) e o vero. Os oficiais, sob a direo dos intendentes, dirigem, ento, a escola. A chegada do mestre s 8 horas marcada pela recitao das preces da manh, de joelhos, a classe inteira virada para o crucifixo. o primeiro exerccio da turma, j que ele permite a memorizao de todas as preces que ritmaro sua vida de adulto. At s nove horas so feitas as lies de leitura, graas a uma hbil organizao na qual os alunos mais adiantados fazem os outros estudarem. Quando terminam a lio, continuam a repetir sozinhos, sem barulho, ou podem pegar seus trabalhos manuais, como as meninas de Rouen. s 9 horas, as leituras esto globalmente terminadas, ao menos para os mais avanados. Preces rpidas marcam a hora: o tempo pertence a Deus e bom que as crianas construam o tempo cotidiano em referncia a ele. Tambm o tempo do almoo para todos, inclusive para os mais pobres que recebem uma esmola de seus companheiros. Na volta, os exemplos de escrita preparados pelo professor ou o professor assistente, so distribudos, assim como as plumas rigorosamente arrumadas em um catlogo especfico que pode ser uma tbua pequena com furos onde so inscritos os nomes daqueles que escrevem. Os menos adiantados que ainda no tinham lido, podem faz-lo agora. A manh

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    termina s 10 horas com preces: as crianas so to logo conduzidas em filas, duas a duas, igreja para a missa.

    Depois do jantar, a aula conduzida da mesma forma: preces, leituras, depois escrita. H, no entanto, na segunda hora, uma meia-hora consagrada ao clculo com a pluma ou com o "jet"14 para os mais avanados, e o ltimo quarto de hora reservado ao pequeno catecismo, que feito todos os dias no final da tarde.

    A construo do tempo da semana adquirida graas a alguns momentos especficos que a ritmam: o dia ou meio-dia de folga nas quintas geralmente, os dois grandes catecismos das quartas e dos sbados, a partir de quinze para as trs da tarde. A escola tambm procura situar as crianas no tempo do ano, graas a preparao dos mistrios de cada festa dominical ou de obrigao, com momentos mais marcados correspondendo s grandes festas religiosas do calendrio litrgico. As frias se situam em torno do ms de outubro. A ordem da escola tende, dessa forma, a garantir uma formao completa das crianas, uma educao total, onde o espao, o tempo, a ordem das coisas so rigorosamente organizados. A ambio da escola a de ensinar as crianas a regularem suas vidas.

    A maneira de ensinar

    A maneira de ensinar mostra igualmente essa busca pela ordem que caracteriza o perodo 1660-1740. O modelo de escola que construdo ento pode ser caracterizado segundo trs pontos essenciais: a seqncia da aprendizagem, a organizao dos alunos em classes, a disciplina exigida das crianas.

    14 Pea chata e geralmente redonda que servia antigamente para fazer clculos. Nota do Tradutor.

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    Organizao em seqncia da aprendizagem

    Os pedagogos querem impor a organizao em seqncia da aprendizagem, a ordenao meticulosa dos gestos para aprender, e fazem uma anlise to precisa quanto o possvel de todas as etapas dessa operao. Procuram estabelecer uma verdadeira estratgia que pode se assemelhar taxionomia moderna, com seus numerosos itens.

    Vamos pegar o exemplo da escrita, particularmente significativo. O mtodo supe primeiramente uma organizao sria. Os alunos oficiais ou "intendentes da escrita" so encarregados da gesto dos montes de papel apertados em um armrio ou em uma caixa, da distribuio das folhas do dia e dos exemplos preparados pelo mestre, ou comprados na cidade na casa de um mestre da escrita. Quanto a maneira de aprender a escrita, ela , segundo os mtodos, muito rigorosa. Trata-se de pr em harmonia os dedos, o punho, o brao e o conjunto do corpo. Tudo deve ser perfeitamente controlado, ou seno corre-se o risco de ter borres de tinta, bicos de pluma esmagados, "orelhas" que destroem os cantos das folhas! Escrever uma tcnica do corpo que s aprendida com muito mtodo, exerccios e correes.

    A primeira dificuldade a ser vencida a de segurar a pluma, ou seja, de aprender a posio do polegar ( esquerda), do indicador e do dedo mdio ( direita). Soltar a mo uma operao to delicada que os Lasallistas propem, no comeo, dar s crianas bastonetes marcados com trs cavidades para elas aprendam a posicionar corretamente os dedos. A harmonia dos dedos depende tambm da maneira como as falanges esto dobradas. Quanto ao punho, ele no deve encostar-se mesa, mas deve ser mantido ligeiramente alto pelos outros dedos. O brao esquerdo, ao contrrio, fica sobre a mesa e sustenta o corpo. At mesmo o porte do corpo imposto: "nem muito inclinado sobre o papel, nem muito reto, mas numa agradvel mdia" segundo

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    Batencourt15. Ele aconselha ainda de "baixar medianamente a cabea e os ombros em direo escrita" e de no apoiar seu estmago sobre a mesa.

    Evidentemente, isso no tudo! Pois, quando o corpo endireitado, preciso pensar no movimento da pluma. Isto significa que necessrio ser capaz de escrever direito sobre as folhas. Os mestres utilizam para isso transparentes, ou folhas que "endireitam-se" elas mesmas, a primeira linha somente para as crianas que comeam a manter corretamente suas mos. Quanto ao movimento circular, as crianas normalmente o adquirem exercitando com o o e o i (ou o c), aprendidas as primeiras letras, absorvendo assim os modelos que o mestre fez e que eles tm sob os olhos. O mtodo de Bayeux prope uma espcie de transparente feito de osso desengordurado aplicado sobre o exemplo, e sobre o qual eles podem traar e apagar as letras do alfabeto16. Depois do o e do i, as crianas das escolas de Bayeux passam ao a (feito de um o e de um i), ao f, m e n, que so todas consideradas "letras iniciais" que preparam a escrita das outras letras.

    Durante a aprendizagem comea a difcil operao de talho da pluma. Trata-se aqui tambm de um conjunto de gestos extremamente tcnicos e delicados, pois eles dependem tanto da escrita que queremos praticar (redonda, bastarda) quanto do material (pluma mais ou menos seca). preciso abrir a ponta do tubo, o talhar bem levemente, e fazer um bico17. Podemos ver toda a arte de controlar a si mesmo que supe a aprendizagem da escrita.

    15 Jacques de Batencourt, Lcole paroissiale, op. cit., p. 199. 16 Lettre pastorale de Monseigneur lvque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680, p. 69. 17 Para saber "como preciso talhar a pluma", ver o Livre dcriture [...] escrit et grav par Louis Senault, Paris, 1668.

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    A pedagogia do monitorado

    As crianas so organizadas em "classes", segundo seu nvel, sobre a responsabilidade de um oficial. Sua fileira no grupo depende tambm do seu progresso e mrito. O lugar ocupado na sociedade da escola adquirido, mas preciso defend-lo a todo instante contra as pretenses dos colegas. Quando o mestre, ou o oficial encarregado da leitura, rene mais ou menos dez crianas diante do alfabeto18 pendurado em uma prateleira de madeira, ele comea sempre interrogando o primeiro da "classe", ou seja, o mais avanado. Ele pratica da mesma forma com os grupos que chegaram leitura de um livro: determina todas as mudanas de leitores, do mais avanado ao ltimo, com uma vareta ou o toque de um sininho, tendo confirmado no incio que todas as crianas possuem a mesma obra, com a mesma impresso. Todos devem manter o dedo sobre a palavra lida, dizendo baixo o que o leitor pronuncia em voz alta.

    A organizao da escola pela nomeao de oficiais uma das caractersticas principais da pedagogia das pequenas escolas. Eles atendem sob o ttulo de mestres, intendentes, capeles, visitantes, porteiros, decuries, "dizainires"...19 Esses oficiais so numerosos: vinte "dizainires" nas escolas do padre Barr, aproximadamente o mesmo em Lyon quando se conta os decuries, encarregados de um "grupo" de crianas. E visto que eles mudam muito (segundo os mtodos e as tarefas, a cada quinze dias, a cada ms ou de outra forma), podemos pensar que a maioria das crianas, durante os trs ou quatro anos que passam na escola, tem acesso a essa honra de receber um cargo do mestre.

    Esses oficiais no fazem figurao: eles exercem o cargo na escola de manh e tarde, antes da chegada do mestre, e o

    18 Lettres pastorales de Monseigneur l'vque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680, p. 69. 19 Dizainire: pessoa encarregada de uma quantidade de crianas. um ofcio, uma funo confiada a uma aluna que chamada "dizainire".

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    ajudam em seguida na atividade pedaggica da turma. Dessa forma, so os mestres assistentes ou intendentes que fazem reinar a ordem no comeo de cada meio-dia, que vigiam o resto de seus colegas, inclusive os outros oficiais, garantem que cada um faz sua tarefa, que as crianas se dirigem aos seus lugares e que no conversam. Eles anotam os culpados para que sejam punidos. O mestre os utiliza ainda durante a aula para os exerccios de leitura e de escrita de maneira a atenuar a sobrecarga das crianas. O porteiro tem autoridade para impedir a entrada na sala daqueles que no esto vestidos de maneira correta. Quanto aos decuries, seu papel importante, pois so eles que fazem recitar as lies e dirigem em seguida o pequeno grupo do qual so responsveis. Existe at oficiais visitantes que investigam as condutas domsticas nas famlias: a obedincia e o respeito devido aos pais, assim como a saudao de manh e noite, as relaes entre meninos e meninas, a prece comum que deve ser dita todos os dias. , portanto, pela prtica que a desordem inerente s crianas controlada na escola.

    As relaes na classe. Os castigos

    As relaes entre o mestre e os alunos so marcadas por uma grande reserva. A familiaridade no existe, nos regulamentos pelo menos: no se pode brincar. Existe uma ordem nas relaes que no se deve romper. Se a escola a igreja das crianas, ela deve ensinar o respeito e a dignidade do porte.

    As comunicaes so as mais breves possveis. Sinais sonoros, pequenas preces ou exortaes anunciam as diferentes atividades da escola. O mestre deve manter-se distante em qualquer ocasio. Tambm recomendado aos mestres que fiquem afastados da vida social, que se divirtam longe da viso dos pais e das crianas.

    As crianas, que no se comovem com o silncio do mestre e que infringem as regras, devem ser punidas. A obrigao de proceder dessa maneira, a menos que o mestre tenha cometido

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    um erro grave, mas tambm a prudncia que requer o castigo, so consideraes importantes que fazem parte do modelo de escola. Trata-se de endireitar naturezas marcadas pelo pecado original e permitir que as graas depositadas por Deus desabrochem. Os textos das Escrituras so sem nenhuma ambigidade sobre a necessidade de endireitar as crianas. Mas se os princpios so sem falha, a prtica no o e necessita muitas precaues: preciso faz-los reconhecer seus erros, evitar de castigar sem razo, evitar tambm de faz-lo em um momento de raiva e de exaltao. preciso ainda impedi-los de gritar durante o castigo, de murmurar depois. Um bom castigo aceito pela criana castigada. Os mestres devem evitar tocar na cabea da criana e ter ateno de nunca bater com as mos; eles aplicam a sentena, sobretudo, nas mos (palmatria) ou nas ndegas quando usam o chicote. Por isso a precauo de aplic-la em um lugar separado, ou atrs de uma cortina, para o exemplo de todos, preservando, no entanto, o pudor: pode ser perigoso mostrar uma criana em uma posio impudica, mesmo que para castig-la.

    O ensino

    A noo de ordem prevalece sempre no que concerne o ensino dado. O que deve saber uma criana que sai da escola depois de somente alguns anos de presena mais ou menos regular? Ler sem dvida, escrever, e no melhor caso, contar. Isto clssico, mas preciso ir mais longe.

    A hierarquia da sociedade

    A criana aprende a se situar em relao s outras pessoas que a cercam. A primeira preocupao dos mtodos de construir uma hierarquia de pessoas, de conscientizar, particularmente as crianas pobres, que existe uma ordem de relaes na qual elas devem se inserir. , sem dvida, um dos primeiros benefcios da escola, o que define melhor seu papel

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    simblico em uma sociedade vista como profundamente perturbada.

    A criana deve dominar a ordem de relaes entre as pessoas com as quais vive. A ordem de sua vida depende dessa conscientizao. A relao com Jesus, filho de Deus, , evidentemente, a primeira, j que ele o corao da escola. ele que saudamos ao entrar na sala, retirando o chapu, pegando gua benta na pia batismal, ajoelhando-nos diante do crucifixo, ou fazendo uma reverncia, como as meninas de Rouen nas escolas de Nicolas Barr20. Os exerccios de leitura comeam pelo sinal da cruz21. Todo dia h missa, ou na parte da manh antes das aulas, ou em torno de 10-11 horas, depois de duas ou trs horas de trabalho. com Cristo que falamos na escola, atravs das preces da manh, das oraes recitadas a cada hora, das preces do fim da aula. Alis, a criana s fala praticamente com ele, acrescentando tambm a Virgem e os Santos, j que ela deve ficar em silncio durante toda a aula, s falar com o mestre caso seja necessrio, a comunicao na sala se faz principalmente atravs de sinais. E para que as crianas compreendam bem a preeminncia absoluta do Cristo na hierarquia social, as faltas de ateno e os barulhos feitos na relao com ele no merecem o perdo e so punidos com o castigo do chicote22. 20 Sobre a obra de R.P. Barr, ver: Nicolas Barr, Oeuvres compltes, Paris 1994, et Nicolas Barr, Lducation des pauvres aux XVIIe et XVIIIe sicles, Actes du colloque Nicolas Barr, religieux minime, 1621-1686, Cahiers scientifiques de luniversit dArtois, 1998, estudos reunidos por Marie-Claude Dinet e Marie-Thrse Flourez. 21 Segundo Lcole paroissiale, "De la mthode montrer les lettres", p. 173, "para mostrar bem as letras, preciso que eles comecem fazendo bem o sinal da cruz". 22 Na Conduite des coles chrtiennes, de Jean-Baptiste de La Salle, chap. V, "Des corrections en general", p. 147-149, a correo por varas, e at a expulso da escola, so aplicadas s crianas desobedientes, pouco estudiosas, brigonas, as que no rezam na igreja e as que se mostraram "imodestas" na missa e no catecismo.

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    As outras imagens da escola so a Virgem, So Jos, o anjo guardio, os santos da diocese e da parquia, todos representados por imagens. Os santos principais do calendrio cristo s so colocados em uma prateleira de madeira na ocasio de sua festa para que se conhea o mistrio de cada um deles. A hierarquia entre eles manifestada pelo tempo durante o qual permanecem na dita prateleira e pelo tamanho dos cartazes23. A ordem de relaes se estende evidentemente s pessoas com autoridade que cercam a escola, ou seja, primeiramente ao padre cuja autoridade sempre afirmada, depois aos diretores que tem a seu cargo a gesto das aulas, quando um bureau das escolas foi constitudo, segundo o modelo de Lyon de Charles Dmia24. o caso, por exemplo, em Moulins, em Poitiers, em Bayeux e em Toul25.

    A criana tambm deve situar o mestre na ordem de relaes: sua imagem claramente desenhada pelos mtodos. O esforo para coloc-lo em evidncia considervel. Em primeiro lugar fisicamente, pois ele se instala sobre um estrado em uma cadeira com braos. Em seguida simbolicamente, porque ele representa Jesus Cristo diante de suas crianas. O discurso episcopal dos mtodos no hesita em desenhar uma imagem dos mestres e das mestras de escola que os afastam do comum, os aproximando do ministrio divino. Quais so as caractersticas

    23Ver Batencourt, op. cit., "Les meubles de lcole", p. 51 et sq, et Dmia, op. cit., p. 29-30. Esse ltimo prescreve para cada escola "uma pequena cartolina ou moldura para colocar a imagem do catecismo, que mudada a cada festa". 24 Segundo uma ordem dada pelo bispo de Lyon datando de 1672, e cartas de porte de 1680. 25Esses escritrios das escolas, criados com a iniciativa dos bispos, so sempre presididos por um eclesistico e compostos de "diretores" escolhidos entre os principais eclesisticos e os notveis laicos da cidade onde so estabelecidos, esses ltimos geralmente vindos das cortes de justia. O tesoureiro sempre laico.

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    dessa imagem ideal do mestre?26. Os clichs repetidos da funo so a "santidade do emprego", sua dificuldade e o pouco reconhecimento do pblico, o exemplo devido s crianas27. A humilhao e os sofrimentos so praticamente inseparveis do emprego. No entanto, lhes necessria muita bondade e caridade para suportar a irregularidade das crianas e a desordem dos pais, dos quais a escola tambm tenta impor a autoridade, assim como a dos oficiais da escola a quem o mestre confiou uma tarefa particular que os situa acima de seus colegas. Nada como a prtica de uma responsabilidade para situar-se a si mesmo na hierarquia da sociedade civil e respeit-la!

    Se a escola crist tenta construir a corrente da integrao social, ela procura romper, paralelamente, certas relaes existentes. uma caracterstica do modelo de escola lutar contra as festas de mscaras, na ocasio do carnaval. Os mestres de Lyon retm especialmente os estudantes depois do jantar da tera-feira gorda para impedir "qualquer ocasio de dissipao e de libertinagem" 28. Nos dias de carnaval, eles organizam debates de catecismo para reter as crianas na aula. A escola crist luta ainda contra as ms companhias e os jogos do cabar, contra tudo que representa a desordem do corpo e do esprito. No entanto, procura agrupar as crianas em uma confraria, como a de Saint-Enfant- 26 Apesar dos esforos da Igreja, no entanto, essa imagem no corresponde realidade. Em uma carta destinada ao bispo de Oloron de 15 de maro de 1737, o intendente de Barn, M. de Balosre, fala dos regentes como sendo "cpias de domsticos" dos padres, "homens mercenrios e pouco capazes". Archives nationales, Fonds du Clerg, G8 643. 27 "Acima de tudo, a vida dos Mestres e Mestras deve ser exemplar e edificante, porque as crianas absorvem com mais facilidade os defeitos de seus Mestres, do que as suas virtudes: e como o que elas vem marcam-nas mais do que o que elas ouvem, [...] quando os primeiros exemplos que lhes foram dados, so exemplos de libertinagem e de desordem", Lettre pastorale de Monseigneur lvque de Bayeux, op. cit., Caen, 1690, p. 28. 28 Charles Dmia, op. cit., p. 17. Jacques de Batencourt, op. cit., p. 99, tambm quer "desviar as crianas da libertinagem do Carnaval".

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    Jsus na escola da diocese de Lyon, e chega, inclusive, a ajudar aqueles que mereceram se estabelecer na casa de um mestre para aprender uma profisso29. A escola interpreta bem, portanto, o seu papel de reconstrutor da ordem junto as crianas que so consideradas como vivendo, por natureza, na desordem da vida.

    A disciplina dos gestos

    O segundo aprendizado importante da escola o domnio de si, um domnio que os afasta da rudeza e que torna mais digna a categoria de criana de Deus. por isso que a disciplina dos gestos uma aquisio importante, como nos mostra Georges Vigarello em Le Corps redress: "o corpo o primeiro lugar onde a mo do adulto marca a criana"30. Quais gestos, quais atitudes a escola espera ensinar?

    A principal noo que guia os mestres e mestras de escola a da modstia31. A modstia a disciplina do corpo, dos gestos, da voz, das roupas. A escola caa os impulsos que levam aos socos, s "pancadarias", exaltao do discurso, s palavras grosseiras, s injrias e aos insultos; ela ataca ainda toda falta de pudor referente parte baixa do corpo. As imundices do corpo so, doravante, escondidas, e as crianas que vo s suas necessidades assinalam com precauo sua presena.

    A parte mais visvel da modstia concerne limpeza e conduta. O porteiro vigia particularmente os cabelos penteados, sem parasitas, as roupas abotoadas, que estejam mais limpas

    29 Charles Dmia, Ibid, p. 49. 30 Le corps redress. Histoire dun pouvoir pdagogique, Paris, Jean-Pierre Delarge, 1978. Introduction. 31 Segundo o dicionrio de Furetire, a modstia fica prxima do pudor e da moderao. "A modstia dos eclesisticos edifica muito o povo: preciso que a modstia deles aparea muito em suas aes, sua mesa, no seu trem." O Dictionnaire de lAcadmie (1672) marca ainda mais a evoluo da palavra em direo a moderao na maneira de se conduzir, de falar, de se vestir.

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    possveis e que no estejam rasgadas, mesmo que eles sejam muito humildes. A modstia da roupa exclui qualquer vestgio de vaidade e de orgulho, como as plumas, os frisados e o p-de-arroz nos cabelos. As crianas contaminadas com doenas como a sarna, a acarase e as escrfulas no so aceitas na aula. A modstia concerne tambm o passo, regular, a ateno para no fazer barulho com seus tamancos entrando na sala, o controle de seus gestos ( proibido se coar na missa e durante as preces, de respirar ruidosamente, de olhar tudo sem reserva). "A maneira de ficar em silncio que as crianas estejam cobertas, os braos cruzados, o olhar baixo, sem que elas abaixem no entanto a cabea, nem que curvem o corpo, comportando-se como hipcritas..." 32. So ainda assinalados como impudicos, pelos oficiais, aqueles que falam, que empurram os colegas nas filas, que fazem barulho nas ruas...

    O controle dos gestos particularmente sensvel nos rituais de entrada na aula, bem descritos nos mtodos. Entra-se na sala como em uma igreja33. As crianas aprendem a pr seu corpo em harmonia com o lugar que elas freqentaro durante toda sua vida: a igreja paroquial. Os corpos tornam-se menos rudes na escola e se liberam das asperezas do populacho. A gestual de entrada se desenrola sempre dessa forma: tirar o chapu, colocando-o debaixo do brao, pegar gua benta, ficar em silncio, caminhar modestamente, ajoelhar-se diante do crucifixo ou reverenciar-se, rezar preces curtas em voz baixa (Pater e Ave Maria geralmente), caminhar at o lugar atribudo. Tendo a criana controlado seu corpo, ela se preparou em esprito para repetir em voz baixa suas lies e as respostas do catecismo, antes da chegada do mestre.

    32 Rglements concernant la conduite et la direction des coles charitables tablies dans la ville de Moulins, op. cit., art. 50. 33 Ver Marcel Grandire, "les petites coles ou les glises des enfants", p. 7-37, Lidal pdagogique en France au dix-huitime sicle, op. cit.

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    Esse ltimo, alis, no poupado da exigncia de modstia: moderao dos gestos, cor escura da roupa, controle da voz, ar severo; o mestre cria uma compostura que faz as crianas e os pais lhe respeitarem. fazendo referncia aos eclesisticos, um modelo para os mestres, que o dicionrio de Furetire define o termo da modstia. A virtude da modstia dos mestres, segundo Batencourt, "tempera as aes relacionadas viso, audio e ao toque. por isso que o mestre deve ser bastante cauteloso para no ter uma viso dispersa, mas modesta: no enferrujar os olhos e fazer gestos de touro contra suas crianas; nunca bater nelas com seu chapu, ou boina, mas somente com a vara, a palmatria, ou a vareta, nos dedos e nunca na cabea"34.

    Existe ainda toda uma gestual do chapu bastante simblica do controle de si e da aprendizagem da relao com os outros. O chapu generalizado, da a importncia de conhecer seu uso. O princpio , evidentemente, de descobrir a cabea para saudar, e de recobri-la um pouco depois, quando somos ntimos ou da mesma categoria. Na escola crist, os alunos descobrem a cabea toda vez que fazem o smbolo da cruz, ou seja, quando entram na sala, no comeo da leitura quando o "banco" de leitores se levanta, e toda vez que uma prece vai ser dita. Em Poitiers, quatro badaladas do sino ritmam o fim do almoo das 9 horas e a recitao das graas: a primeira para tirar o chapu, a segunda para se levantar, a terceira para virar em direo ao crucifixo, a quarta, enfim, para cantar a prece. Os alunos retiram ainda seu chapu cada vez que eles falam com o mestre para recitar suas lies ou lhe pedir alguma coisa, ou ainda quando uma pessoa importante entra na sala.

    A disciplina dos gestos na aprendizagem

    A aquisio da leitura no escapa dessa disciplina dos gestos. Lembremos que a leitura est no centro da organizao

    34 Jacques de Batencourt, op. cit., art. V, p. 23.

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    pedaggica da aula e que ela comanda a distribuio dos alunos nas diferentes "classes", segundo o progresso nessa aprendizagem: as crianas percorrem nove nveis de leitura35, comeam a escrita (seis nveis) no stimo nvel de leitura, e a aritmtica (cinco nveis) no quarto nvel de escrita. A longa durao da aprendizagem da leitura, sua estrita gradao segundo as etapas precisas, a exigncia de um rigoroso respeito do mtodo, tudo mostra que se trata de adquirir bem mais que uma simples competncia operacional.

    Essa aprendizagem primeiramente, para muitos alunos do povo, uma formao humana de rigor e de controle de si. As longas e repetitivas sees de aprendizagem sistemtica das letras e das slabas, depois a soletrao rigorosa das palavras que so decompostas em elementos, a leitura por palavras, por linhas e por frases, tudo nessa aprendizagem estritamente regulamentada lembra que a leitura , em primeiro lugar, um exerccio de controle de si mesmo. O domnio da voz faz parte do exerccio: necessrio lutar contra a balbuciao das crianas nas preces que s pronunciam sons misturados sem compreender nada. Sem dvida tambm o caso dos adultos... De onde a insistncia dos mestres, que nos parece incompreensvel hoje em dia, na pronunciao exata das letras e das slabas, na acentuao determinada de todas as letras que devem ser ouvidas, inclusive as ltimas como o r no sanctificetur do Pater Noster. Todas as preces so recitadas destacando-se as slabas para marc-las bem36. No insistimos o suficiente at aqui sobre a difcil sada do mundo da oralidade das

    35 Os nove nveis de leitura so os seguintes: lista do alfabeto; lista das slabas; silabrio (soletrar apenas); silabrio (para a leitura destacando as slabas); segundo livro: leitura acompanhada; terceiro livro: pontuao, nmeros; saltrio (livro dos salmos) para ler em latim; cortesia; manuscritos e registros. Ver Yves Poutet, Gnse et caractristiques de la pdagogie lasallienne, ditions Don Bosco, 1995. 36 preciso, segundo Lcole paroissiale, op. cit., p. 6, "aprender bem a pronunciar o Pater, a Ave Maria, o Credo, o Confiteor, em latim e em francs, e tambm o Benedicite, e as preces do exerccio do cristo". Essa recomendao geral.

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    massas populares, onde os dialetos misturavam consideravelmente as sonoridades, talvez porque os pesquisadores se colocam naturalmente do lado do mestre que ensina, e no do ponto de vista da criana que aprende, da cultura de onde saram. Essa exigente sada do mundo da oralidade foi feita atravs da aprendizagem das slabas e da marcao das letras importantes para colocar em evidncia as palavras, para isolar os elementos que constituem as produes sonoras efetuadas. Tudo , ento, arrumado na escola modelo, inclusive a voz, e, sobretudo, a ordem das palavras, que as crianas se esforam para aprender fazendo exerccios de determinao de cada elemento.

    No campo da aritmtica, a escola procura o mesmo rigor dos gestos pela adoo de uma iniciativa bastante precisa dos mtodos, em parte terico evidentemente, j que existe uma grande distncia na educao entre a demanda institucional e as realizaes concretas. As crianas que chegam at esse nvel de clculo aprendem a "controlar a mo e a pena", a praticar as quatro operaes e a resolver os problemas que esto relacionados a uma dessas operaes. O "jet" na mo (p. 50-51) permite conhecer e manipular as diferentes ferramentas de conta do Antigo Regime para domin-las. A criana aprende numa primeira etapa o valor dos caracteres, depois o jeito de colocar os "jetons". Os exerccios consistem a nomear as "somas" (os nmeros) num primeiro momento, a somar, ou seja, reagrupar as unidades de sol e de livres37 em 5, 10, 20 e 100.

    O essencial do trabalho concerne, no entanto, o uso do "jet" pluma: a aprendizagem dos nmeros rabes, das tcnicas operacionais que so aprendidas com muita preciso, de maneira a compreender bem as regras de numerao. O rigor, a ordem da iniciativa so absolutamente necessrios para a realizao das diferentes operaes, com os livres, sous e deniers, como na multiplicao (p. 52). Quanto s divises, Lcole chrtienne de

    37 Moedas do Antigo Regime francs. Nota do tradutor.

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    Jacques de Batencourt d apenas explicaes sucintas: as regras de diviso podiam, certamente, ser aprendidas na escola, mas, sobretudo, nas salas dos mestres escritores ou nas escolas de matemtica que prolongavam para alguns alunos o curso das pequenas escolas.

    Concluso

    O modelo de escola que constroem os clrigos durante o reinado pessoal de Luis XIV aparece como uma ferramenta para pr em ordem uma sociedade agitada pela violncia e pela misria. Essa escola privilegia a ordem moral, a aquisio das regras, dos gestos, da ordem em geral. Ela se interessa pelas aprendizagens que permitem a integrao na sociedade, a entrada na corrente de relaes que a estruturam. por esse lado que ela vai pouco a pouco se secularizar e se afastar da imagem de "igreja das crianas" que a impregnam fortemente no final do sculo clssico.

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    Imagens

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    Fonte das imagens

    Instruction mthodique pour l'cole paroissiale, dresse en faveur des petites coles, divise en quatre parties [...], Jacques de Batencour, Paris, P. Trichard, 1669.

    Marcel Grandire - Professor universitrio, colabora com as pesquisas do SHE - Service d'histoire de l'ducation de l'INRP (Paris) e da equipe de pesquisa l'IUFM des Pays-de-la-Loire. Pesquisa sobre a escola como dispositivo de regulao social, do sculo XVII ao XIX. Tem publicado, entre outras obras: L'Idal pdagogique en France au dix-huitime sicle (Oxford, 1998) e La formation des matres en France. 1792-1914, INRP, 2006. E-mail: [email protected]

    Sabina Ferreira Alexandre Luz - Aluna do sexto semestre do Curso de Histria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciao Cientfica CNPq/PUCRS (2006/1).

    Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educao - Histria e Filosofia da Educao (USP); professora do Programa de Ps-graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul; pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]

    Recebido em: 11/12/2006 Aceito em: 15/03/2007