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Um O santuário de Deeti ocultava-se em um penhasco, num canto distante da Maurício, onde as linhas costeiras leste e sul da ilha colidem para formar o domo açoitado pelos ventos do Morne Brabant. O lugar era uma anomalia geológica — uma caverna dentro de um contraforte de pedra calcária, escavada pelo vento e pela água — e não havia outra coisa como aquilo em parte alguma da montanha. Mais tarde Deeti insistiria que não fora o acaso, e sim o destino, que a conduzira até lá — pois a mera existência do lugar era inimaginável até que a pessoa houvesse efetivamente pisado ali dentro. A fazenda Colver ficava do outro lado da enseada e, perto do final da vida de Deeti, quando seus joelhos estavam enrijecidos pela artrite, a escalada para o santuário era demais para que pudesse fazê-la sozinha: ela não conseguia cobrir o trajeto a menos que fosse carregada em seu pus-pus especial — um meio de transporte que era parte palki, parte liteira. Com isso, as visitas ao santuário tornavam-se verdadeiras expedições, exigindo a assistência de um bom número dos homens de Colver, sobretudo os mais jovens e vigorosos. Reunir o clã completo — La Fami Colver, como diziam em kreol — nunca era fácil, uma vez que seus membros viviam espalhados por várias partes, dentro da ilha e fora dela. Mas a única época do ano em que se podia contar com todos para empreender um esforço especial era no meio do verão, durante o Gran Vakans que precedia o ano-novo. A Fami começaria a se mobilizar em meados de dezembro, e no início das férias todo o clã estaria em marcha; acompanhados por paltans de bonoys, belsers, bowjis, salas, sakubays e outros parentes afins, as falanges dos Col- ver convergiriam para a fazenda numa manobra em pinça: uns por via ter- restre, em carros de bois, vindo de Curepipe e Quatre Borne, através das enevoadas terras altas; outros de barco, desde Port Louis e Mahébourg, costeando o litoral até avistarem o mamilo do Morne, velado pela bruma. Muita coisa dependia do clima, pois uma jornada pela mon- tanha, onde ventava demais, só podia ser realizada em um dia bom.

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Um

O santuário de Deeti ocultava-se em um penhasco, num canto distante da Maurício, onde as linhas costeiras leste e sul da ilha colidem para formar o domo açoitado pelos ventos do Morne Brabant. O lugar era uma anomalia geológica — uma caverna dentro de um contraforte de pedra calcária, escavada pelo vento e pela água — e não havia outra coisa como aquilo em parte alguma da montanha. Mais tarde Deeti insistiria que não fora o acaso, e sim o destino, que a conduzira até lá — pois a mera existência do lugar era inimaginável até que a pessoa houvesse efetivamente pisado ali dentro.

A fazenda Colver ficava do outro lado da enseada e, perto do final da vida de Deeti, quando seus joelhos estavam enrijecidos pela artrite, a escalada para o santuário era demais para que pudesse fazê-la sozinha: ela não conseguia cobrir o trajeto a menos que fosse carregada em seu pus-pus especial — um meio de transporte que era parte palki, parte liteira. Com isso, as visitas ao santuário tornavam-se verdadeiras expedições, exigindo a assistência de um bom número dos homens de Colver, sobretudo os mais jovens e vigorosos.

Reunir o clã completo — La Fami Colver, como diziam em kreol — nunca era fácil, uma vez que seus membros viviam espalhados por várias partes, dentro da ilha e fora dela. Mas a única época do ano em que se podia contar com todos para empreender um esforço especial era no meio do verão, durante o Gran Vakans que precedia o ano-novo. A Fami começaria a se mobilizar em meados de dezembro, e no início das férias todo o clã estaria em marcha; acompanhados por paltans de bonoys, belsers, bowjis, salas, sakubays e outros parentes afins, as falanges dos Col-ver convergiriam para a fazenda numa manobra em pinça: uns por via ter-restre, em carros de bois, vindo de Curepipe e Quatre Borne, através das enevoadas terras altas; outros de barco, desde Port Louis e Mahébourg, costeando o litoral até avistarem o mamilo do Morne, velado pela bruma.

Muita coisa dependia do clima, pois uma jornada pela mon-tanha, onde ventava demais, só podia ser realizada em um dia bom.

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Quando as condições pareciam propícias, o bandobast começava na noite anterior. O festim que se seguia ao puja era sempre a parte mais ansiosamente aguardada da peregrinação e os preparativos para ele oca-sionavam grande empolgação e expectativa: o bangalô de telhado de zinco reverberaria ao som de cutelos e chakkis, pilões e rolos de macar-rão, conforme os masalas eram moídos, os chutneys, temperados, e as pilhas de legumes, transformadas em recheios para parathas e daal-pu-ris. Depois de tudo ter sido embrulhado nos porta-tiffin e gardmanzés, as pessoas se retiravam para dormir cedo.

Ao raiar do dia, Deeti zelaria para que todos fossem esfregados e lavados, e que nenhum bocado de comida passasse pelos lábios de quem quer que fosse — pois, assim como em qualquer peregrinação, também essa tinha de ser empreendida com um corpo imaculado, por dentro e por fora. Sempre a primeira a acordar, ela saía batendo no chão de madeira do bangalô, bengala na mão, trombeteando uma alvorada naquela estranha mistura de bhojpuri e kreol que se tornara o idio-ma pessoal em que se expressava: Revey-té! É Banwari; é Mukhpyari! Revey-té na! Haglé ba?

Quando toda a família se visse acordada e de pé, o sol já estaria banhando as nuvens que velavam o pico do Morne. Deeti assumiria seu lugar à frente, numa carruagem puxada por cavalos, e a procissão deixaria ruidosamente a fazenda, passando pelos portões e descendo a colina, rumo ao istmo que ligava a montanha ao resto da ilha. Isso era o mais longe que qualquer veículo podia ir, de modo que aqui o grupo descia. Deeti acomodava-se em seu assento no pus-pus e, com os rapa-zes se revezando nos varais, seu palanquim abriria caminho através do denso verdor que ocultava as faldas mais baixas da montanha.

Pouco antes do último e mais íngreme trecho da subida havia uma conveniente clareira onde parariam não apenas para recuperar o fôlego, como também para admirar embasbacados a vista manifik da selva e da montanha, contida entre duas linhas onduladas orladas de areia da costa.

Só Deeti não ficava nem um pouco encantada com a paisagem espetacular. Em poucos minutos ralhava com todo mundo: Levé té! Não estamos aqui para revirar os olhos com o zoli-vi e passar o dia inteiro nesse patati-patata. Paditu! Chal!

Queixar-se de que suas pernas estavam fatigé ou sua cabeça gidigidi de nada adiantava; tudo que você receberia em troca seria um feroz: Bus para o fana! De pé!

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Não era necessário grande esforço para tirar a turma do tor-por; tendo chegado até ali de estômago vazio, agora estariam todos impacientes para a refeição pós-puja, principalmente as crianças. Mais uma vez, o pus-pus de Deeti, com os homens mais robustos segurando os varais, iria na frente: ao som de pés sobre seixos, subiriam a trilha íngreme e contornariam uma aresta. E então, de repente, a outra face da montanha surgiria diante de seus olhos, descendo vertiginosamente para o mar. Abruptamente, o ruído das ondas rebentando subia pela beirada do despenhadeiro, ressoando em seus ouvidos, e seus rostos se-riam açoitados pelo vento. Esse era o trecho mais arriscado da jornada, onde os ventos e correntes ascendentes eram mais ferozes. Nenhuma parada era permitida aqui, nenhuma pausa para apreciar o espetáculo do horizonte circundante, girando entre o mar e o céu como um bam-bolê. Os procrastinadores sentiriam a ira da bengala de Deeti: Garatwa! Andando…

Mais alguns passos e chegavam à proteção da saliência rochosa que formava o limiar do santuário. Essa curiosa formação natural era conhecida pela família como Chowkey, e não poderia ter sido mais bem projetada nem se planejada por um arquiteto: o chão era espaçoso e quase nivelado e o lugar era protegido por uma borda rochosa que servia de teto. Havia algo que lembrava uma varanda ensombrecida e, como que para completar a ilusão, havia até uma espécie de balaustra-da, formada pela vegetação que se enroscava nas beiradas da saliência. Mas olhar por cima dela, para as ondas estourando no sopé do penhas-co, exigia estômago forte e cabeça firme: os vagalhões abaixo haviam viajado desde a Antártida e até mesmo em dias calmos e claros a água parecia subir e descer como que impaciente para varrer do mapa aquele nadica de terra que vinha interromper seu fluxo rumo norte.

E no entanto, tal era o milagre do projeto acidental do Chowkey que tudo que seus visitantes tinham a fazer era sentar, para que as ondas sumissem de vista — pois o mesmo verdor retorcido que protegia a sali-ência servia também para ocultar o oceano dos que se acomodavam no chão. A varanda rochosa era, em outras palavras, o lugar perfeito para confraternizar, e primos em visita do estrangeiro muitas vezes eram erroneamente levados a pensar que fora essa qualidade que emprestara ao Chowkey seu nome — pois aquilo não tinha qualquer coisa de um chowk, onde as pessoas se reuniam? E não era um pouco como um chokey, também, uma cela, com suas laterais confinantes? Mas somen-te o pensamento de um etranzer falante de híndi iria por essa veia: um

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insulano saberia que em kreol a palavra “chowkey” se refere também ao disco achatado em que os rotis são enrolados (aquilo que é conhecido Lá Atrás como “chakki”). E lá estava o Chowkey de Deeti, bem no meio da saliência rochosa, escavado não por mãos humanas, mas pelo vento e pela terra: nada além de um imenso matacão que fora gasto e erodido até se tornar um cogumelo rochoso de topo achatado. Momen-tos após a chegada do grupo, as mulheres estariam pegando no pesado, enrolando daal-puris e parathas finos como lenços e enchendo-os com o apetitoso recheio que havia sido preparado na noite anterior: um pica-dinho dos legumes mais saborosos da ilha — arwi roxo e mouroungue verde, cambaré-beti e songe murcho.

Inúmeras fotografias desse período da vida de Deeti sobrevi-veram, incluindo alguns lindos daguerreótipos de prata coloidal. Em um deles, tirado no Chowkey, Deeti está em primeiro plano, ainda sentada em seu pus-pus, cujos pés repousam no chão. Ela veste um sari, mas, ao contrário das outras mulheres na imagem, permite que a ghungta penda solta de sua cabeça, revelando seu cabelo, que é de um assombroso matiz de branco. O anchal de seu sari cai sobre seu om-bro, curvado com o peso de um enorme molho de chaves, símbolo de sua prolongada autoridade nos assuntos da Fami. Seu rosto é escuro e redondo, marcado por profundos vincos: o daguerreótipo é detalhado o bastante para fornecer a quem olha a ilusão de ser capaz de sentir a textura de sua pele, que é a do couro enrugado, duro, curtido. As mãos estão calmamente dobradas sobre o colo, mas nada insinua repouso na inclinação de seu corpo: os lábios estão fechados e tesos e ela entrecerra fortemente os olhos para a câmera. Um de seus olhos, obscurecido pela catarata, reflete inexpressivamente a luz de volta para a lente, mas o olhar do outro é duro e penetrante, a cor da pupila de um cinza único.

A entrada das câmaras internas do santuário pode ser vista aci-ma de seu ombro: não passa de uma fissura enviesada na face da rocha, tão estreita que parece impossível que uma caverna pudesse se ocultar além dela. No fundo, um homem barrigudo usando dhoti pode ser visto, tentando persuadir um bando de crianças a formar uma fila, de modo a seguirem Deeti ao entrar.

Isso também era uma parte inviolável do ritual: sempre cabia a Deeti cuidar para que os mais novos fossem os primeiros a realizar o puja, de modo que pudessem comer antes dos demais. Com uma ben-gala na mão e um castiçal bifurcado na outra, ela acompanhava todos os jovens Colver — chutkas e chutkis, laikas e laikis — diretamente

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pelo saguão da caverna que levava ao oratório interno. Os jovenzinhos famintos andavam apressados atrás dela, mal relanceando as paredes pintadas da câmara exterior, com seus desenhos e escritos. Eles iriam correr para a parte do santuário que Deeti chamava de seu “quarto de puja”: um pequeno oco na rocha, oculto no fundo. Se o santuá-rio fosse um templo comum, ali teria sido o coração do lugar — um oratório com uma coleção de divindades que era centrada em uma das deidades menos conhecidas do panteão hindu: Marut, deus do vento e pai de Hanuman. Ali, à luz bruxuleante de um lampião, eles realizariam um rápido puja, murmurando seus mantras e sussurrando suas orações. Em seguida, após oferecer punhados de flores arati e engolir bocados de prasad, que faziam cócegas nos dentes, as crianças sairiam correndo de volta para o Chowkey, sendo recebidas por gritos de: Átab! Átab! — ainda que nunca houvesse mesa onde comer, mas apenas folhas de bananeira, nenhuma cadeira onde sentar, mas apenas lençóis e colchões.

Essas refeições eram sempre vegetarianas e necessariamente muito simples, pois tinham de ser preparadas em fogueiras, com os utensílios mais rústicos: os ingredientes eram parathas e daal-puris, e eram comidos com bajis de pipengay e chou-chou, ourougails de toma-te e amendoim, chutneys de tamarindo e fruta combara, e talvez um achar ou dois de limão ou bilimbi, e quem sabe até um picante maza-varoo de malagueta e limão — e, é claro, dahi e ghee, feitos com o leite das vacas dos Colver. Era o mais parco dos festins, mas depois, quando toda a comida tivesse acabado, todo mundo se largaria, desamparado, pelas paredes de pedra, queixando-se de como haviam banbosé demais, de como suas barrigas estavam fazendo barulho, de como era estupidez comer demais, manzé zisk’arazé…

Anos mais tarde, quando o alcantil desmoronou sob a fúria de um ciclone, e o santuário foi arrastado para o mar numa avalanche, essa era a parte que as crianças que haviam participado das peregrinações lembrariam melhor: os parathas e daal-puris, os ourougails e mazava-roos, o dahi e a ghee.

*

Só depois de digerida a refeição e acesos os lampiões a gás as crian-ças começariam a voltar para a câmara exterior do santuário, obser-vando, os olhos arregalados de admiração, as pinturas nas paredes

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da caverna, que era conhecida como o “Templo-Memória” de Deetiji — Deetiji-ka-smriti-mandir.

Toda criança na Fami conhecia a história de como Deeti apren-dera a pintar: fora ensinado por sua avó quando ela não passava da chu-tki de uma criança, Lá Atrás, no Hindustão, no gaon onde nascera. O vilarejo se chamava Nayanpur e ficava no norte de Bihar, dominando a confluência de dois grandes rios, o Ganga e o Karamnasa. As casas por lá não se pareciam em nada com o que era visto na ilha — nenhum telhado de zinco e dificilmente algum metal ou madeira à vista. Lá Atrás, viviam em cabanas de barro colmadas de palha e rebocadas com estrume de vaca.

A maioria das pessoas em Nayanpur deixava suas paredes nuas, mas a família de Deeti era diferente: quando novo, seu avô trabalha-ra como silahdar em Darbhanga, cerca de cem quilômetros a leste. Quando servia ali, ingressara, pelo casamento, em uma família Rajput de uma aldeia próxima, e sua esposa viera junto quando ele voltou a Nayanpur para se estabelecer.

Lá Atrás, ainda mais do que na Maurício, cada povoado e vi-larejo tinha seu motivo de orgulho: alguns eram famosos por sua ce-râmica, outros, pelo sabor de seu khoobi-ki-lai; alguns, pela incomum idiotice de seus moradores, outros, pelas qualidades excepcionais de seu arroz. Madhubani, a aldeia da avó de Deeti, era renomada por suas ca-sas suntuosamente decoradas e paredes lindamente pintadas. Quando mudou para Nayanpur, ela trouxe os segredos e tradições de Madhuba-ni consigo: ensinou as filhas e netas a caiar as paredes com farinha de arroz, e a criar cores vibrantes com frutas, flores e terra tingida.

Cada garota na família de Deeti tinha sua especialidade e a dela era retratar os mortais que brincavam junto aos pés de devas, de-vis e demônios. As estatuetas que saíam de suas mãos tinham muitas vezes os traços das pessoas que a cercavam: eram um panteão privado daqueles que ela mais amava e temia. Ela gostava de desenhar seus contornos, em geral de perfil, suprindo cada um com uma distintiva marca de identidade: assim, seu irmão mais velho, Kesri Singh, que era um sipaio no exército da Companhia das Índias Orientais, era sem-pre identificado por um símbolo ligado à soldadesca, normalmente um bundook fumegante.

Quando se casou e deixou sua aldeia, Deeti descobriu que a arte que aprendera com sua avó não era bem-vinda na casa do marido, cujas paredes jamais tinham sido avivadas com uma única pincelada

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ou nem sequer uma gota de cor. Mas nem mesmo seus parentes afins podiam impedi-la de desenhar em folhas e trapos, e tampouco podiam lhe negar o direito de adornar seu quarto de puja do modo como bem lhe aprouvesse: o pequeno nicho de oração tornou-se o repositório de seus sonhos e visões. Durante os nove longos anos daquele casamento, desenhar foi mais que um consolo, foi também seu principal meio de recordação: sendo iletrada, era o único modo de não perder de vista suas lembranças.

Os hábitos daquela época permaneceram com ela quando es-capou dessa outra vida com a ajuda do homem que se tornaria seu segundo marido, Kalua. Foi somente depois de terem embarcado em sua jornada para a Maurício que ela descobriu estar grávida de um filho de Kalua — e reza a lenda que foi esse menino, seu filho Girin, que a conduziu para o local de seu santuário.

Naquele tempo, Deeti era uma cule, trabalhando em uma plantation recém-iniciada do outro lado da Baie du Morne. Seu senhor era um francês, um ex-soldado que se ferira nas Guerras Napoleônicas e adoecera tanto de mente como de corpo: fora ele que havia trazido Deeti e mais outros oito também do Ibis àquele rincão distante da ilha para cumprirem seu contrato de servidão.

A área era então a parte mais remota e menos povoada da Mau-rício, de modo que a terra ali era excepcionalmente barata: como a região era quase inacessível por estrada, os suprimentos tinham de ser trazidos de barco e às vezes acontecia de a comida ficar tão escassa que os cules viam-se obrigados a entrar pela selva à cata de algo para encher a barriga. Em nenhum outro lugar a floresta era mais abundante do que no Morne, mas raramente, se é que alguma vez, alguém se aven-turava a escalar aquelas encostas — pois a montanha era um lugar de reputação sinistra, onde sabidamente centenas, se não milhares, de pes-soas haviam morrido. Naqueles tempos de escravidão a inacessibilidade do Morne tornara-o um atraente quilombo para escravos foragidos, que haviam se estabelecido ali em número considerável. Essa comunidade de fugitivos — ou marrons, como eram chamados em kreol — havia perdurado até pouco depois de 1834, quando a escravidão foi banida na Maurício. Ignorantes da mudança, os marrons haviam continuado a viver a vida a que estavam acostumados no Morne — até o dia em que uma coluna de soldados apareceu no horizonte e foi vista marchando em sua direção. Que soldados pudessem ser os mensageiros da liber-dade era algo inimaginável — tomando-os por uma tropa de assalto,

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os marrons se atiraram dos penhascos, mergulhando para a morte nos rochedos abaixo.

A tragédia se dera apenas alguns anos antes que Deeti e suas ir-mãs de navio vindas no Ibis fossem trazidas para a fazenda do outro lado da baía, e a lembrança do ocorrido ainda saturava a paisagem. Nas filas de cules, quando o vento era ouvido uivando na montanha, dizia-se que o som era o lamento dos mortos, e tal era o medo evocado que ninguém ousaria de livre e espontânea vontade pôr o pé naquelas encostas.

Deeti não era menos temerosa da montanha que qualquer ou-tra pessoa, mas, ao contrário delas, tinha um bebê de um ano para desmamar e, quando o arroz ficava escasso, a única coisa que ele aceita-va eram bananas amassadas. Como elas cresciam abundantemente nas florestas do Morne, Deeti ocasionalmente reunia coragem e se aventu-rava pelo istmo, o filho atado às suas costas. E foi assim que aconteceu de um dia uma tempestade se formar repentinamente e prendê-la na montanha. Quando ela se deu conta da mudança operada no tempo, a maré já subira, cobrindo o istmo; não havia outro caminho para regres-sar à fazenda, então Deeti decidiu seguir o que parecia ser uma velha trilha, na esperança de que o caminho a conduzisse a algum abrigo. Foi essa trilha quase engolida pela vegetação, aberta pelos marrons, que havia revelado para ela o caminho para subir a encosta e contornar a aresta, até chegar à saliência rochosa que mais tarde se tornaria o Chowkey da Fami.

Para Deeti, no momento em que topou com o lugar, o exterior da saliência parecera o melhor abrigo que seria capaz de encontrar: ali era onde teria esperado pelo fim da tempestade, sem saber que a borda era meramente o limiar de um refúgio ainda mais seguro. Reza a lenda familiar que foi Girin que encontrou a fenda que se tornou a entrada do santuário: Deeti o pusera no chão, de modo que pudesse procurar um lugar para guardar as bananas que havia colhido pouco antes. Ela tirou os olhos do filho por apenas um minuto, mas Girin engatinhava com muita energia e, quando olhou em torno, ele sumira.

Ela deixou escapar um grito, pensando que a criança caíra pela borda da saliência nos rochedos abaixo — mas então escutou seus arru-lhos, ressoando por entre as rochas. Olhou em volta e, ao não ver sinal dele, aproximou-se da fissura e passou o dedo por suas beiradas antes de enfiar a mão. Era fresco ali dentro e parecia haver espaço de sobra, de modo que entrou pela fenda e quase imediatamente tropeçou em seu filho.

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Assim que seus olhos se acostumaram com a pouca luz, ela percebeu que havia entrado em um espaço que um dia fora habitado: havia pilhas de lenha arrumadas junto às paredes e pôde divisar peder-neiras jogadas pelo chão. O solo a seus pés estava forrado com cascas de sementes e ela quase cortou as solas nos cacos de uma cabaça rachada. Em um canto havia até restos de fezes humanas endurecidas, tornadas inodoras pela idade: era estranho que uma coisa que teria causado re-pugnância em outra situação ali fosse um símbolo de tranquilização, a prova de que essa caverna outrora abrigara seres humanos de verdade, não fantasmas, pishaches ou demônios.

Mais tarde, quando a tempestade chegou e os ventos começa-ram a uivar, empilhou um pouco de lenha e acendeu uma fogueira com as pederneiras: foi nesse momento que descobriu que parte das paredes calcárias havia sido coberta com desenhos a carvão; alguns deles pare-ciam homens-palito, feitos por crianças. Quando a fúria do vento fez Girin gemer de medo, foram essas imagens que deram a Deeti a ideia de desenhar na parede.

Olhe, disse para o filho: dekh — ele está aqui, conosco, seu pai. Não precisa ter medo; ele está com a gente…

Foi assim que começou a esboçar a primeira de suas imagens: era um desenho em tamanho maior do que o natural de Kalua.

Mais tarde, em anos por vir, seus filhos e netos perguntariam com frequência por que havia tão poucas representações dela mesma nas paredes do santuário. Por que tão poucas imagens de suas próprias antigas experiências na fazenda? Por que tantos desenhos do marido e de seus colegas fugitivos? A resposta dela era: Ekut: para mim, a ima-gem de seu avô não era como uma figura de um Ero numa pintura; ela era real; era a verité. Quando consegui chegar aqui, foi para estar com ele. Minha própria vida era algo que eu tinha de suportar cada sekonn do dia: quando eu estava aqui, estava com ele…

*

Foi essa primeira imagem em tamanho maior do que o natural que sempre serviu de ponto de partida para quem visse o santuário: ali, como na vida, Kalua era mais alto e maior do que qualquer outra pes-soa, tão preto quanto o próprio Krishna. Desenhado de perfil, domina-va a parede como um todo-poderoso faraó, com um langot amarrado em torno da cintura. Sob seus pés, entalhado por alguma outra mão,

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via-se o nome que lhe fora conferido no campo dos migrantes em Cal-cutá — “Maddow Colver” — dentro de uma cártula ornamentada.

Como em qualquer peregrinação, as visitas da Fami ao san-tuário seguiam determinados padrões prescritos: os usos e costumes ditavam a direção das circunvoluções, bem como a ordem em que as imagens tinham de ser vistas e veneradas. Após o retrato do pai fun-dador, a próxima parada era um painel conhecido pela Fami como “A Separação” (Biraha): não havia qualquer inscrição ou entalhe embaixo, mas todo Colver se referia a ele pelo nome, e até os mais novos dentre os chutkas e as chutkis sabiam que representava um ponto crítico na história da família — o momento em que Deeti se separou de seu esposo.

Isso acontecera, sabiam todos, quando Deeti e Kalua estavam no Ibis, fazendo a Travessia, da Índia à ilha Maurício, com vários ou-tros futuros servos. Com problemas desde o início, os infortúnios da viagem haviam culminado com Kalua sendo sentenciado à morte por um simples ato de autodefesa. Mas, antes que a penalidade pudesse ser administrada, uma tempestade surgira, engolfando a escuna e permi-tindo a Kalua escapar num bote, junto com outros quatro fugitivos.

A saga de como o patriarca se libertara do Ibis era frequente-mente contada entre os Colver: era para eles o que a história dos gansos vigilantes era para a Roma Antiga — uma ocasião em que o Acaso conspirara com a Natureza para lhes dar um sinal de que o destino de-les não era ordinário. No retrato feito por Deeti, a cena foi enquadrada de modo a congelar para sempre o momento em que o barco dos fugi-tivos estava prestes a ser levado para longe da escuna pelas ondas furio-sas: o Ibis era retratado à maneira de um pássaro mitológico, com um grande bico por gurupés e duas enormes asas de lona distendidas. O escaler dos fugitivos ficava à direita, a menos de meio metro de distân-cia, e separado do Ibis por duas ondas altas e estilizadas. Contrastando com a figura alada da escuna, o formato do bote sugeria um peixe parcialmente submerso; o tamanho, por outro lado — talvez de modo a enfatizar a grandiosidade de seu papel como o veículo libertador do patriarca —, era muito exagerado, suas dimensões sendo quase iguais às da nau de onde viera. Ambas as embarcações foram representadas como carregando um pequeno grupo de pessoas, quatro no caso da escuna, e cinco para o escaler.

Repetição é o método pelo qual o milagroso se torna parte da vida cotidiana: ainda que as linhas gerais da história fossem bem

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conhecidas de todos, Deeti seria sempre confrontada com as mesmas perguntas quando guiasse as expedições familiares até o santuário.

Kisa?, gritavam os chutkas e chutkis, apontando essa ou aquela figura: Kisisa?

Mas nisso também Deeti tinha seu próprio e ordenado ritual e, por mais que os jovenzinhos insistissem, ela sempre começava da mesma maneira, erguendo a bengala para apontar a menor das cinco figuras no bote salva-vidas.

Vwala! esse aqui com três sobrancelhas? Esse é Jodu, o lascar — ele foi criado com a Tantinn Paulette de vocês e era como um irmão para ela. E esse aqui, com o turbante na cabeça, é Serang Ali — um mestre marinheiro como nunca se viu e ladino como um gran-koko. E esses dois aqui eram condenados, a caminho de cumprir suas senten-ças em Maurício — o da esquerda tinha por pai um grande Seth de Bombaim, mas sua mãe era chinesa, de modo que o chamávamos de Cheeni, embora seu nome fosse Ah Fatt. Quanto ao outro, é ninguém menos que seu Neel-mawsa, o tio que adora contar histórias.

Era somente então que a ponta de sua bengala passava à figura gigantesca de Maddow Colver, representado de pé, no meio do bote. Apenas ele entre os cinco fugitivos fora desenhado com o rosto virado para trás, como se olhasse para o Ibis a fim de se despedir da esposa e do filho por nascer — em outras palavras, ela própria, ali representada com uma enorme barriga protuberante.

Aí está, vwala! Essa sou eu, no convés do Ibis, com sua Tantinn Paulette de um lado e Baboo Nob Kissin do outro. E esse mais no fun-do é Malum Zikri — Zachary Reid, o segundo imediato.

A posição da imagem de Deeti era um dos aspectos mais curio-sos da composição: ao contrário dos outros, que estavam todos com os pés plantados em suas respectivas embarcações, o corpo de Deeti estava desenhado de forma tal que parecia suspenso no ar, muito acima do convés. A cabeça se inclinava para trás, de modo que seu olhar parecia se dirigir a um ponto acima do ombro de Zachary, na direção do céu tempestuoso. Tanto quanto qualquer outro elemento do painel, era a estranha inclinação da cabeça de Deeti que dava à composição uma qualidade estranhamente estática, um aspecto a sugerir aparentemente que a cena se desenrolara com vagar e grande deliberação.

Mas qualquer sugestão nesse sentido fatalmente suscitava uma explosão de repúdio por parte de Deeti: Bon-dyé!, exclamava ela; você é um fol dogla ou o quê? Não seja ridikil: a coisa toda, do começo ao fini,

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só levou uns minits, e esse tempo todo, não passou de um jaldi-jaldi, um golmal dos diabos, tus em dezord. Foi um mirak, pode acreditar, que nós cinco conseguimos escapar — e nada disso teria sido possível se não fosse por Serang Ali. Foi ele que planejou a fuga, este aqui; foi tudo obra dele. Os lascares estavam todos metidos, é claro, mas o plano foi feito com tanto cuidado que o capitão nunca pôde acusar nenhum deles. Uma maravilha de estratégia, o tipo de mulugande em que só um burrburrya como o Serang era capaz de pensar: esperaram até a tempestade obrigar os guardas e maistries a descer sob o convés, para a cumra deles. Depois trancaram todos lá dentro, travando as escotilhas. Quanto aos oficiais, o Serang aguardou o momento propício, durante a mudança de vigia, quando os dois malums estavam fora do convés. Ah Fatt, o Cheeni, que era o mais rápido com os pés, ficou incumbido de trancar a escotilha da cuddy dos oficiais — mas o que ele fez em vez disso foi mandar o primeiro imediato para o lanfer com um sandokann no meio das costelas —, só que isso seria descoberto apenas quando o escaler tivesse partido. Eu, quando Jodu me libertou e cheguei ao con-vés, achei vreman que havia perdido a visão. Estava tão escuro que nada era vizib, a não ser quando um relâmpago brilhava — e tulétan, a chu-va, caindo como granizo, e o trovão, dhamak-dhamak-dham kaoando, como que tentando ensurdecer você. Meu trabalho era só soltar seu granper do mastro, onde o haviam amarrado, mas com a chuva e o vento, vocês não conseguem imaginar como era difisil…

Ouvindo essa descrição, a pessoa pensava que a cena terminara em não mais do que alguns minutos de atividade frenética — e contu-do, quase no mesmo fôlego com que fizera esse relato, Deeti também alegaria que a duração da Separação havia sido de pelo menos uma ou duas horas de tempo comum. Isso tampouco era o único paradoxo das experiências daquela noite. Mais tarde, Paulette confirmaria que estive-ra ao lado de Deeti do momento em que Kalua foi baixado ao bote até o segundo em que Zachary os enfiou de volta sob o convés; em todo esse tempo, jurava ela, os pés de Deeti jamais haviam deixado o Ibis, nem por um único instante. Mas sua insistência não criou hesitação alguma na certeza de Deeti sobre o que acontecera naqueles poucos minutos: ela nunca variava em sua afirmação de que o motivo que a levara a se retratar daquela forma era porque fora colhida e rodopiada no céu por nenhuma outra força senão a própria tempestade.

Ninguém que escutasse Deeti falando a respeito do assunto podia duvidar que em sua cabeça ela tinha certeza de que os ventos

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haviam-na erguido a uma altura de onde podia olhar para baixo e ob-servar tudo que estava acontecendo — não com medo ou pânico, mas mostrando calma imperturbável. Era como se o tufaan a tivesse esco-lhido para ser sua confidente, paralisando a passagem do tempo, e lhe emprestando a visão de seu próprio olho; pela duração daquele mo-mento, ela fora capaz de enxergar tudo que caíra no interior do círculo rodopiante do vento: ela tinha visto o Ibis, diretamente abaixo, e as quatro figuras espremidas ao abrigo da meia-laranja do tombadilho, ela própria sendo uma delas; a alguma distância a leste, ela notara uma ca-deia de ilhas, cortadas por muitos canais profundos; tinha visto barcos de pesca, abrigando-se nas baías e angras das ilhas, e outras estranhas embarcações pouco familiares, singrando velozes pelos canais. Então, do mesmo modo como um pai dirige o olhar da criança para alguma coisa interessante, a tempestade ergueu seu queixo para lhe mostrar um barco aprisionado em seus extremos revoltos — era o escaler em fuga do Ibis. Ela viu que os fugitivos haviam se aproveitado da imobilidade do olho da tempestade para atravessar rapidamente o mar até a ilha mais próxima; ela os viu saltando do barco e então, para sua admiração, viu que o viravam de borco, e o empurravam para um ponto onde a correnteza o pegaria e levaria embora…

Tudo isso — essa sucessão de visões e imagens — fora-lhe con-cedido, insistiria Deeti mais tarde, em questão de poucos segundos. E estava bastante evidente que se o testemunho dela era verdadeiro, então as visões não poderiam ter durado nada mais que isso — pois a chegada do olho da tempestade representara uma folga não apenas para os fugitivos, mas também para os guardas e maistries. Com o arrefecer dos ventos, eles tinham começado a golpear a escotilha trancada de sua cumra; levaria apenas um ou dois minutos até conseguirem arrombá-la para então saírem com tudo…

Foi Zikri-Malum quem nos salvou, acrescentaria Deeti. Não fosse por ele, teria sido uma grande kalamité — não há como saber o que os silahdars e capatazes poderiam ter feito com nós três se tivessem nos encontrado no convés. Mas o Malum, ele nos pôs de pé e empur-rou de volta para a dabusa, com os outros migrantes. Graças a ele a gente ficou longe de vista quando os guardas e capatazes apareceram no convés…

Quanto ao que acontecera depois disso, eles — Deeti, Paulette e os outros na dabusa — só podiam conjecturar: no breve intervalo anterior à passagem do olho da tempestade e à volta do vendaval, era

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como se outra tempestade tivesse capturado o Ibis, com dezenas de pés martelando o convés, correndo agram-bagram, para todos os lados. En-tão, abruptamente, o tufão caiu sobre eles outra vez, e não era possível escutar mais nada a não ser os uivos da ventania e o rugido da chuva.

Não foi senão bem mais tarde que os migrantes descobriram que Malum Zikri havia sido inculpado por tudo que acontecera — a fuga dos condenados, as deserções do Serang e do lascar, a libertação de Kalua, até mesmo o assassinato do primeiro imediato —, a responsabi-lidade por tudo isso fora jogada diretamente sobre seus ombros.

Lá embaixo, na dabusa, os migrantes nada sabiam a respeito do que acontecia acima de suas cabeças, e quando enfim tiveram permis-são de sair outra vez, foi apenas para serem informados de que os cinco fugitivos estavam mortos. O escaler fora encontrado, emborcado e com um buraco no fundo, disseram os maistries, de modo que não restava dúvida de que haviam ido de encontro ao destino merecido. E quanto a Malum Zikri, ia ficar preso a sete chaves, pois o capitão se viu obrigado a prometer aos enfurecidos capatazes que o entregaria à autoridades assim que atracassem em Port Louis.

Dyé-koné, vocês podem imazinn como a notícia afetou todos nós e o gran kankann que causou, com os lascares lamentando a morte de Serang Ali, os girmitiyas pranteando Kalua, e Paulette chorando por Jodu, que era como um bhai para ela, e também por Zikri Malum, pois ele era seu hombo e ela lhe havia entregue seu coração. Eu era a única ali, estou dizendo a vocês, cujos olhos estavam secos, pois não acreditava em nada disso. Escute, sussurrei para sua Tantinn Paulette, não se preocupe, eles estão seguros, os cinco; foram eles que empurra-ram o barco de volta para o mar, para que fossem dados como mortos e rapidamente esquecidos. E quanto a Malum Zikri, não se preocupe com ele tampouco tu-vwá, ele certamente fez alguns arranjos para você — apenas confie nele. E dito e feito, um ou dois dias depois, um dos lascares, Mamdoo-tindal era seu nome, deu a sua Tantinn Paulette um fardo com as roupas do Malum e sussurrou em seu ouvido: “Quando chegarmos ao porto, vista isso, e vamos dar um jeito de desembarcá-la na praia.” Eu fui a única que não ficou surpresa, pois era como se tudo estivesse acontecendo como eu tinha visto, quando a tempestade me carregou abá-labá e me mostrou o que se passava ali embaixo…

Nunca faltaram céticos para questionar o relato de Deeti sobre essa noite. A maioria de seus ouvintes crescera na ilha e podia se van-gloriar de uma certa intimidade com ciclones: nem um único deles ja-

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mais imaginara, ou poderia acreditar, que pudesse ser possível enxergar o mundo pelo olho de uma tempestade. Seria possível que ela tivesse imaginado tudo em retrospecto? Teria ela sucumbido a um ataque de alucinação? Que ela pudesse de fato ter visto o que alegava parecia du-vidoso até para o mais filial dentre eles.

Mas Deeti estava inflexível: acaso não acreditavam em estrelas, planetas e nas linhas de suas mãos? Não acreditavam que qualquer uma dessas coisas podia revelar parte do destino para as pessoas que sabiam como deslindar seus mistérios? Então por que não o vento? Estrelas e planetas, afinal, viajavam em órbitas previsíveis — mas o vento, nin-guém sabia para onde o vento podia resolver ir. O vento era o poder da mudança, da transformação: era isso que ela viera a compreender naquele dia — ela, Deeti, que sempre acreditara que seu destenn era governado pelas estrelas e os planetas; ela havia compreendido que fora o vento que decidira que o seu carma era ser carregada para a Maurício, para outra vida; fora o vento que enviara uma tempestade para libertar seu marido…

E aqui ela se voltaria para “A Separação” e apontaria para o que era talvez o aspecto mais cativante de seu imaginário: a própria tem-pestade. Ela havia retratado a tormenta de modo que cobrisse a parte superior do painel, esparramando-se por toda a superfície até a moldu-ra: estava representada como uma gigantesca serpente, retorcendo-se de fora para dentro, dando voltas e mais voltas em torvelinhos cada vez menores, e terminando num único olho enorme.

Vejam por si mesmos: diria ela aos céticos; não é isso uma pro-va? Se eu não tivesse visto o que vi, como teria jamais imaginado que um tufão podia ter olho?