um instante maestro: flávio cavalcanti

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Livro sobre Flavio Cavalcanti, de Lea Penteado

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Um Ifistante,Maestro 1

Quando foi entrevistada pelo repórter da Folha de S. Paulo LuizAntonio Giron, que fazia uma matéria sobre dedos-duros na vida cul-tural brasileira, condição atribuída, entre Outros, a Flávio Cavalcanti,a jornalista Léa Penteado, que trabalhou com o apresentador durantequatro anos no momento mais fechado do regime militar, negou a acu-sação, revelando ao repórter fatos desconhecidos pela maioria dos bra-sileiros. Surpreso, o jornalista da Folha sugeriu à ex-colaboradora domais polêmico apresentador da TV brasileira que escrevesse um livrosobre o período. Assim surgia UM INSTANTE, MAESTRO!, umli-vro que vai surpreender você também.

Flávio Cavalcanti foi um dos homens mais poderosos da TV bra-sileira nos primeiros anos da década de 1970. Seu poder emanava dosnúmeros do Ibope. Líder absoluto de audiência, idolatrado por mui-tos, desprezado por Outros tantos, ninguém lhe negava a condição de"Senhor dos Domingos", aquele que, através dos quadros de seu pro-grama, determinava o que as pessoas discutiriam durante toda a sema-na em casa ou no trabalho. O perfil que se tem de Flávio Cavalcantiapós a leitura de UM INSTANTE, MAESTRO! é de um homem des-temido, que conheceu a glória e a decadência sem se livrar destacondição.

Léa Penteado trabalhou com Flávio Cavalcanti entre 1971 e 1974,experiência que lhe permitiu não só reproduzir com fidelidade os bas-tidores da TV, com surpreendentes detalhes da vida de artistas, comoapresentar com propriedade a evolução técnica e política da televisãono Brasil nos anos 70. Ela era repórter da revista Amiga quando foiconvidada para trabalhar com Flávio Cavalcanti. Depois de quatro anosde assessoria ao apresentador, sua colaboração se transformou numaamizade que, mesmo depois da morte de Flávio, foi mantida por seusfilhos. A jornalista trabalhou nos principais órgãos de imprensa do país,o que de certa forma facilitou sua decisão de tornar-se divulgadora.Como divulgadora, associou seu nome a grandes eventos, como as duasversões do Rock in Rio e a Bienal Internacional do Livro do Rio deJaneiro. Em janeiro de 1993, foi nomeada Assessora Especial de Pro-moções e Eventos do Rio de Janeiro.

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LÉAPENTEADO

uiu Illstallte,Maestro 1

EDITORP. RECORD

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, Ri.

Penteado, LéaP472i Um instante, maestro! / Léa Penteado. - Rio

de Janeiro : Record, 1993.

1. Cavalcanti, Flávio. 2. Televisão - Brasil -História. 1. Título.

CM - 791.450981927.9145

CDU - 654.19(81)93-0465 92:654.19

Copyright © 1993 by Léa PenteadoFoto da capa: Revista Manchete

Direitos exclusivos desta edição reservados pelaDISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, Ri - Tel.: 585-2000

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-04094-0

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, Ri - 20922-970

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A

Bernardo, meu filho,um pouco da nossa história.

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Obrigada,

- a Marzinha, Flávio e Fernanda, por me permitirem contar a vidade seus pais.

- a Iaiá e Alceu, meus pais, pela minha vida.- à Bloch Editores, pela utilização de seu arquivo de

pesquisas e cessão de fotos que compõem o livro.- a Affonso Romano de Sant'Anna e Fundação Biblioteca Nacio-

nal, pela facilidade em utilizar seus arquivos.- a Hylde Darossati, por seu inestimável trabalho de pesquisa e

assessoramento.- ao Centro de Documentação da TV Globo, pelo acesso às

informações sobre Márcia Mendes.- e, ainda, a Angela do Rego Monteiro, Antonio Beilo, Artur

Xexéo, Celso da Silva Pereira, Eduardo Sidney, Geraldo Sobrei-ra, Gilda MüIIer, Giuseppe Ghiaroni, Lair Ribeiro, Luiz AntonioGiron, Marcelo Cerqueira, Mari Menda, Maurício Sherman,Moyses Fuks, Regina Echeverria e Vanusa.

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Urca, Rio de Janeiro. Janeiro de 1971.Domingo. Um calor insuportável. As duas horas da tarde, uma

longa fila saía da porta da TV Tupi e subia a Avenida SãoSebastião. Era tão grande que se confundia com as filas dos ônibusque levavam os farofeiros de volta para o subúrbio depois de umbelo domingo de praia.

A TV Tupi, Canal 6, estava instalada num prédio onde, muitos anosantes, funcionara o Cassino da Urca. O bairro era estritamente residen-cial, com apenas duas vias principais de acesso. Por um capricho daarquitetura do anos 40,0 prédio unia os dois lados da Avenida João LuísAlves; de um lado funcionava a parte comercial e do outro, os estúdios.Era engraçado ver os funcionários apressados passando de um lado paraoutro, ziguezagueando na frente dos carros e ônibus. Mas isso já faziaparte da rotina. Afinal, aquela era a maior rede de televisão do país, comafiladas nas principais capitais.

Foi a Tupi que colocou no ar a primeira emissora do Brasil,em São Paulo, em 1950. O dono era Assis Chateaubriand, que tinhaum império de comunicações, com rádios e jornais em váriosestados brasileiros. Após a sua morte, em 4 de abril de 1968, todoesse conglomerado passou a ser administrado por um condomínio,como determinara o testamento por ele deixado. Mas o síndicogeral, responsável pela direção desse condomínio, senador JoãoCalmon, preocupava-se muito mais com sua carreira política doque com os caminhos da comunicação. Com isso, novas emissorasforam chegando e ganhando lugar no mercado.

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No início da década de 70, os programas de auditório eram aovivo, e a Tupi, apesar de não estar vivendo seus melhores momen-tos, com problemas financeiros e uma briga interna entre os condô-minos, tinha grandes nomes como Bibi Ferreira, Jota Silvestre eAérton Perlingeiro no comando de bons programas. Aos domingos,no entanto, tudo mudava. A Urca ficava com outra cara. Dentro daemissora, contra-regras, assistentes de produção, técnicos e músicoscorriam de um lado para o outro da emissora, numa função quecomeçava bem cedo. Do lado de fora, os fãs formavam longa fila evibravam com a chegada dos artistas. Fã é fã em qualquer época, eali se repetiam os chiliques, gritinhos e desmaios como nos áureostempos do rádio. Paralelamente a essa agitação, acontecia uma outranão tão alegre junto à porta de serviço da emissora. Eram pedintesque se enfileiravam; a fila da miséria. Doentes, mendigos e neces-sitados vindos de diversos pontos do país esperavam a chegada do"Senhor dos Domingos", o salvador da pátria que - acreditavam- poderia aliviar todos os males e solucionar os seus problemas.

Distante duas quadras da TV Tupi, numa pacata rua residen-cial, a Candido Gaffrée, havia uma casa branca de dois andares,varandinha, jardim na frente, coqueiro e mangueira no quintal. Erauma casa diferente. Ali produzia-se o programa que fazia o Brasilparar aos domingos. Naquele momento, fechado numa sala super-refrigerada, o todo-poderoso preparava-se para mais um programa.Sabia exatamente o que se passava na porta da emissora. Há seismeses era líder absoluto de audiência. Amado por muitos, odiadopor outros tantos, era o apresentador mais polêmico da TV brasi-leira. Explorava assuntos que eram discutidos na semana seguintepelos mais diversos segmentos da sociedade, como Congresso,repartições públicas, quartéis, bares, salões de cabeleireiro e uni-versidades. Tanto a esquerda quanto a direita ficavam atentas aoque ele dizia, nem que fosse para discordar.

Ele tinha consciência desse poder. Atrás de uma grande mesa,sentado numa poltrona de couro, relia o script do programa. Omesmo script que recebera em sua casa, em Petrópolis, dois diasantes, numa cópia arroxeada, mimeografada em papel-jornal. Idên-tica à enviada à Censura. Era um tempo em que ninguém podiaabrir a boca no rádio e na TV, nem publicar uma linha num jornalou revista sem a aprovação da Censura.

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Depois de aprovado, o script ganhava outro formato na mãodo apresentador. O papel-jornal era substituído por papel-ofício,datilografado em máquina elétrica sem um erro. As perguntas dasentrevistas eram copiadas em fichas brancas, impecavelmentelimpas, sem rasuras. Somados a este farto material, capaz demanter milhares de brasileiros com os olhos pregados no vídeodurante quatro horas, outros textos surgiam de uma fina pasta decouro marrom, como se fizessem parte de um programa diferente.Eram recortes de jornais e revistas, cartas, anotações e algumasfolhas de papel datilografadas pelo próprio apresentador comidentificações variadas: "Li não sei onde, guardei e dou de gra-ça...", "Criança diz cada uma..." e "Fora de script". Este último,sem dúvida, o mais fascinante. Uma surpresa para os telespectado-res, um susto para a produção e um soco no estômago do governo.

Conheci esse lado de dentro da televisão no primeiro dia detrabalho. Eu era jornalista e trabalhava como repórter da revistaAmiga. Aos domingos era encarregada de ir à Tupi fazer a coberturado programa. Aos poucos fui conhecendo as pessoas, e um diaacabei sendo convidada para trabalhar com ele. O salário era quatrovezes maior, e não pensei duas vezes. Estava recém-casada, queriafazer análise, e topei a proposta. Um acerto puramente profissional,pois politicamente eu discordava de alguns pontos de vista doapresentador. Mas,já no primeiro dia como sua secretária particular,percebi o quanto valiam o grito, a coragem, num tempo de poucaspalavras. Valiam também a audiência, os pontinhos do IBOPE e aousadia de cutucar a censura com vara curta. O medo estava "forade script". Ele defenderia sua opinião com unhas e dentes, se fossepreciso, até tirarem o programa do ar.

Dramático, teatral, emocionado, ele dominava uma nova lin-guagem de comunicação e acreditava que TV era "timing": sabera hora do show, segurar o telespectador no suspense de uma boareportagem. Tirava e colocava os óculos nervosamente, choravadiante das câmeras, vibrava com as entrevistas, ria com os fora desérie e se divertia muito com o trabalho pelo qual era regiamentepago. Não era de esquerda nem de direita. Era simplesmente FlávioCavalcanti.

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Por Que o Livro

Eu tinha 22 anos de idade quando conheci Flávio. Tinhaparticipado de passeatas, cantado músicas de protesto, procuradoem delegacias de subúrbio um namorado desaparecido que só foiencontrado no DOPS, levado porrada da polícia no quebra-quebrada Cinelândia e ouvido dezenas de histórias de amigos torturados.Fazia parte de um grupo que veio a se chamar MAU - MovimentoArtístico Universitário -, nascido na casa do psiquiatra AloysioPorto Carreiro, na Rua Jaceguai, 27, Tijuca. Eu era colega deAngela, filha mais nova de Aloysio. Nos fins de semana, o grupose reunia em sua casa para tocar violão, bater papo, namorar etomar cerveja. Corria o ano de 1965, um após a revolução.

Era sensacional para uma adolescente descobrir aquele climade protesto e conhecer um mundo politicamente diferente do quetinha aprendido em casa. Com Aloysio e sua mulher Maria Ruthtudo era permitido. Fumar, ficar acordada até o dia amanhecer e,sobretudo, falar de política. Liberdade, liberdade! Aprendia-semuito ouvindo músicas de Sinval Silva a Nelson Cavaquinho,passando por Milton Nascimento e Paulo Sérgio Valle,já despon-tando como compositores, e acompanhando os novos que ali

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surgiam como Gonzaguinha (namorando Ângela), Ivan Lins (na-morando Lucinha), Aldir Blanc, César Costa Filho, Sílvio Silva,Paulo Emilio e mais um monte de gente de talento que veio a sefirmar nos festivais universitários.

Meus amigos não eram exatamente do estilo dos amigos deFlávio. Deste meu grupo, alguns ao longo da vida tomaram-seinimigos do apresentador por discordarem de sua postura. Apesardisso, me tomei amiga de Flávio, ou melhor, ele foi meu melhoramigo, essencial em minha vida durante quinze anos. Proporcio-nou-me momentos inesquecíveis, foi generoso, sincero, doce ededicado, ensinando-me que, mais importante do que ser de es-querda ou de direita, era ter opinião própria e respeitar a alheia.

Meu objetivo em escrever este livro foi apontar fatos e contarhistórias que envolveram o apresentador e a televisão no períodode 70 a 74. Mais do que o resgate do seu nome, quero revelar umFlávio Cavalcanti punido e perseguido pela Censura, ao contrárioda imagem fortemente divulgada pelo patrulhamento ideológico.Colocaram-lhe uma culpa que jamais teve, foi chamado de dedo-duro sem jamais terem conseguido provar nada, apesar de terajudado a esconder amigos procurados pelo Exército. Foi coniven-te com a revolução de 64, mas acabou discordando dos rumos queesta tomou a partir do Ato Institucional n2 5, em dezembro de 1968,e pagou por isso.

Através de pareceres da Censura Federal sobre o programa,somados a depoimentos de amigos, companheiros de trabalho e atémesmo de opositores, este livro mostra um Flávio Cavalcanti quequase ninguém conheceu.

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"Meu melhor programa de televisão éaquele que ainda não fiz."

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Em 1970 a TV Tupi, Canal 6, do Rio de Janeiro, utilizavatrês câmeras da marca RCA Victor para realizar seus progra-mas ao vivo. Cada câmera pesava mais de quarenta quilos eera fixada em um tripé com rodinhas. O peso da câmeraimpossibilitava o operador de movimentá-la sozinho. Surgiuassim o cabo-mau, aprendiz de cameraman, responsável porpuxar o cabo da câmera para que deslizasse pelo palco. Estascâmeras operavam com três lentes, trocadas manualmente deacordo com a solicitação do diretor de imagens. A cada trocade lente o cameraman tinha que acionar uma alavanca baru-lhenta, localizada embaixo do visor. Se havia silêncio nopalco, podia-se ouvir o clap-clap da troca de lentes.

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As 18 horas do dia 5 de julho de 1970, o Programa FlávioCavalcanti estreou na TV Tupi. Seu desafio era ficar no ar, ao vivo,até as 22 horas, em transmissão direta via Embratel para todo o Brasil(exceto Manaus), em época de censura total. Até então os programassó chegavam aos outros estados através do videoteipe. As fitas eramenviadas de avião para as cidades que compunham a rede, e osprogramas exibidos uma semana depois. Mas as coisas haviammudado. Em junho de 1970, a Embratel inaugurara o sistema detransmissão via satélite com a Copa do Mundo no México, onde oBrasil conquistou o tricampeonato mundial de futebol e, pela primeiravez, a torcida brasileira vibrava com as imagens ao vivo.

O Programa Flávio Cavalcanti utilizava o satélite da Embra-tel, na primeira experiência de um programa transmitido ao vivopara todo o Brasil. Este avanço nas telecomunicações tambémproduziu uma grande mudança na área dos comerciais de TV, queaté então se restringiam à praça onde o programa estava sendoexibido. Caso quisesse ter o seu comercial em todas as cidadesonde o programa era exibido, o patrocinador tinha que negociarpraça por praça e enviar os teipes. Com a transmissão por satélite,o Programa Flávio Cavalcanti se tornou o pioneiro em comerciaisnacionais. Antes de o apresentador pedir o tradicional "nossoscomerciais, por favor", anunciava o comercial nacional. Surgia natela um pequeno mapa do Brasil, o comercial era gerado junto como programa e visto em todo o país. Em termos de publicidade, eraum pulo no tempo e no espaço.

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Mas, em meio a todas essas maravilhas da telecomunicação,havia um outro desafio a superar: a engrenagem viciada, velha epouco produtiva da emissora. Controlada por um condomínio ondepredominavam os interesses pessoais, a TV Tupi era um saco degatos. A TV Globo entrara no mercado há cinco anos trazendo oque havia de mais sofisticado em técnicas de televisão. A Tupiestava defasada. O auditório era pequeno, desconfortável; os téc-nicos, mal-remunerados; e fazer um programa ao vivo naquelascondições era pra leão. Flávio sabia disso e buscou armas eficazespara esta luta.

Misturou os dois programas que fazia com sucesso na Tupidesde 66: Um Instante, Maestro!, às terças-feiras, e A GrandeChance, às quintas, acrescentando criatividade em novos quadros.Como era seu estilo, manteve o traje a rigor, exigindo o mesmodos jurados e convidados; colocou uma orquestra no palco econtratou os melhores profissionais do mercado. Como diretor,Eduardo Sidney; na redação, Giuseppe Ghiaroni e Roberto Silvei-ra; produção musical, Detto Costa e coordenação de José Manda-rino, entre mais de vinte pessoas que passavam a semana inteirapensando apenas no programa.

A TV Estúdio Produções, empresa do apresentador, tinha umcontrato com a TV Tupi no valor de 360 mil cruzeiros mensais,que corresponderia a 150 mil dólares. Esta quantia cobria os custosdo programa (uma parte da contratação de equipe - muitos eramfuncionários da Tupi -, artistas, jurados etc.) e, obviamente,pagava o salário do apresentador. Além disso, o contrato permitiaa Flávio ter patrocinadores exclusivos para os comerciais nacio-nais, o que representava um faturamento extra. Os concorrenteseram Sílvio Santos, das 18 às 20 horas, e Chacrinha, das 20 às 22,ambos na TV Globo. O carro-chefe da Globo eram as novelas,principalmente as de Janete Clair, com Regina Duarte e CláudioMano no elenco. Os altos índices de audiência eram mantidosdurante toda a semana, e Flávio chegava para balançar as noites dedomingo, ou melhor, desestruturá-las.

Na estréia do programa, o IBOPE registrou no Rio, entre 18 e21 horas, uma média, considerável para um programa iniciante, de45% de audiência, e das 21 às 22 horas, 56%. Números excelentes!O júri era formado por Oswaldo Sargenteili, Paulo Fortes, Mansa

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Urban, Erlon Chaves, Íris Lettieri, Terezinha Morango Pitigliani,Sérgio Bittencourt e Leda Lucia Galdeano. As principais atraçõesforam uma entrevista com o jogador Tostão, idolatrado por ter sidopeça importante na seleção brasileira para a conquista do tricam-peonato mundial no México; uma conversa ao telefone com ElisRegina, que da maternidade falava da alegria de ser mãe pelaprimeira vez; e os concursos para escolher o melhor dançarino deiê-iê-iê, coordenado pelo discotecário Monsieur Limá, e uma belamoça para ser capa da revista O Cruzeiro. Ainda tinha um júriespecial para o Um Instante, Maestro!, inserido no novo programa,formado por Mister Eco, José Messias, Francisco Carlos, Carmi-nha Mascarenhas, Detto Costa, Carlos Renato e o maestro Cipó.

Logo que o programa estreou, as contratações dos artistasnacionais e internacionais eram feitas diretamente pela produção.Mas dois meses depois Flávio conheceu o empresário MarcosLázaro, que tinha sob contrato os melhores artistas nacionais, comoElis Regina, Roberto Carlos e Wilson Simonal, entre outros.Devido a uma antiga briga com Chacrinha, que, segundo o empre-sário, queria ter os artistas em seu programa sem pagar cachê, todosos grandes nomes da MPB passaram a ser exclusivos do ProgramaFlávio Cavalcanti. Marcos Lázaro dominava o mercado do showbusiness no Brasil nos anos 70 e era responsável pela vinda dosmaiores artistas internacionais, como Josephine Baker, StevieWonder (surgindo com o primeiro sucesso e ganhando um cachêde 5 mil dólares), Elia Fitzgerald, Earl Grant, Silvie Vartan,Chubby Cheker, The Platters, entre outros. Alguns passavam comexclusividade pelo palco da Tupi e depois seguiam em turnê.

Dom Marcos, como era chamado, tinha uma boa infra-estru-tura, e provou a Flávio que o melhor negócio era a sua empresaSocram contratar os artistas e pagar os cachês, repassando os custosà empresa de Flávio, que ficaria livre de preocupações contratuais.Com todos esses elementos, o programa se tornou o maior sucessoda televisão brasileira. Se perdia na falta de recursos técnicos daTupi, ganhava na criatividade. Era dinâmico, contestador, provo-cante, e apresentava as melhores atrações. A cada semana umagrande surpresa. Os concorrentes faziam programas popularescos,tentando conquistar mais audiência. Todas as segundas-feiras co-lhíamos com o IBOPE o resultado da pesquisa da noite anterior. O

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IBOPE naquela época já era fundamental na aferição dos índicesde audiência, e seus dados eram respeitados pelos patrocinadores.Quanto maior nosso índice de audiência, maior nosso estímulopara enfrentar a turma da Globo. Como tudo era censurado, aprogramação da emissora concorrente muitas vezes resvalava parao mau gosto, apresentando o mundo cão, tapando com uma peneiraa realidade do país onde centenas de pessoas eram perseguidas,presas e torturadas e, contraditoriamente, ao mesmo tempo, cresciao chamado "milagre brasileiro".

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"O importante é a gente ter ação e paixãopara superar as dificuldades."

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A diretoria da TV Tupi mudava no mesmo ritmo que asatrações do programa. Quando A Grande Chance e UmInstante, Maestro! foram fundidos em um só programa, sur-gindo assim o Programa Flávio Cavalcanti aos domingos, odiretor da Tupi do Rio era Antônio Lucena. Logo após aestréia, Lucena foi substituído por José Arrabal, que, mesesdepois, cedeu seu lugar a Rubens Furtado. A cada mudançana diretoria Flávio ficava otimista, acreditava que a situaçãona emissora iria melhorar e ele conseguiria as facilidadestécnicas necessárias para fazer um programa ao vivo comquatro horas de duração. Doce ilusão! No período de 70 a 74ainda passaram pela Tupi os seguintes diretores: RubensFurtado, Edson Leite - levando Chacrinha -, OrlandoNegrão, como interventor temporário, Daniel Lo Forte ePaulo Cabral. Era muito difícil trabalhar assim.

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2N0 dia 31 de julho de 70, um domingo, o Programa Flávio

Cavalcanti foi interrompido para o anúncio, em edição extraordiná-ria, de que o cônsul do Brasil em Montevidéu, Aloísio Gomide, foraseqüestrado em sua casa por dez guerrilheiros tupamaros, de extre-ma esquerda, disfarçados de técnicos da companhia telefônica.

A notícia comoveu a opinião pública brasileira e uruguaia. Erepercutiu ainda mais sete dias depois, quando um funcionárionorte-americano, Dan Mitrione, seqüestrado no mesmo dia, foisumariamente executado pelos tupamaros. Além do cônsul brasi-leiro, também estava em poder dos seqüestradores o agrônomonorte-americano Claude Fly. Mas o governo uruguaio mantinha-seirredutível, e não negociava com os terroristas.

Começou então uma longa jornada para Maria AparecidaGomide, mulher do cônsul, tanto para conquistar a simpatia dopovo uruguaio para que participasse de sua luta a fim de resgataro marido quanto junto às autoridades brasileiras para que facilitas-sem as negociações. A família do cônsul acompanhava o seuseqüestro, mas só em dezembro os tupamaros anunciaram o preçoque deveria ser pago pelo resgate: um milhão de dólares. MariaAparecida, que até então passava a maior parte do tempo emMontevidéu, resolveu voltar ao Rio para tentar conseguir o dinhei-ro necessário à libertação do marido.

Através de Neném Mascarenhas, irmã caçula de Flávio, casadacom um diplomata, Armando Mascarenhas, o apresentador chegou

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até Maria Aparecida e ofereceu ajuda. Era o dia 13 de dezembro.Dois dias antes ela se encontrara em Brasília com o ministro dasRelações Exteriores, Mário Gibson Barboza, e falara do desejo defazer uma campanha. Em sua página semanal em O Jornal, no dia20 de dezembro de 1970, Flávio registrou assim seu encontro comMaria Aparecida:

"É domingo. Estou na Gávea. Rua João Borges. A casaé de uma das melhores pessoas do mundo. Nunca esbarreicom ninguém igual Fernandina, Maria Fernandina, Neném,Nem. Vim almoçar. Enquanto alguém prepara um uísque,percebo que estou nervoso, inquieto e triste. A qualquermomento deverá chegar Maria Aparecida Gomide, perdão,já chegou. Ei-la aí. Sentada à minha frente, de óculos escuros,contando toda a tragédia em pormenores tão impressionantesque é melhor deixar pra lá. Bonita figura de mulher. Perfeitoretrato de corpo inteiro da dor, da angústia, da aflição. Maslúcida, afirmativa, sabendo o que quer, conhecendo os cami-nhos escuros, cheios de armadilhas, mas topando a caminha-da. A empregada vem avisar que cinco homens dentro de umcarro pedem que eu dê um pulinho lá na calçada. Depois deuma pequena conversa com os policiais, volto à sala. Com-bino com Maria Aparecida a hora de chegar ao programa logomais. Há todo um show de alegria, de beleza, de Maysa, demoças bonitas a ser apresentado antes. Até lá, tenho quedeixar escondidos os impulsos, o desespero, a lágrima. Orelógio corre e eis que adentra o palco Maria Aparecida. Ecomeça a entrevista.

E todo o Brasil, na mais espantosa comoção, chora comAparecida e comigo, decide com Aparecida e comigo, resol-ve a caminhada com Aparecida e comigo. Cinco bilhões decruzeiros. Um milhão de dólares. Mas nós todos decidimosconseguir o dinheiro. Nenhum de nós terá Natal feliz, O NatalGomide é o Natal de nós todos, O diabo banca o jogo, Deusvai pagar pra ver."

Com esta entrevista nasceu a campanha "Maria Aparecida—Só o Amor Constrói". O ministro da Fazenda, Delfim Netto,

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declarava que "só por um passe de mágica" a mulher do cônsulconseguiria transferir o dinheiro arrecadado para o Uruguai. OBanco Central não podia participar da campanha nem exercerqualquer pressão junto aos bancos para abrirem contas com estepropósito. Comprar dólares, então, nem pensar. A lei era rígida eclara, só permitindo a compra de mil dólares para quem viajassepara o exterior, sendo 100 em cédulas e 900 em traveller's cheques.Acima desse valor, só com permissão especial.

Através do presidente do Sindicato dos Bancos, Teófilo Aze-redo Santos, Flávio conseguiu adesão do Banco Nacional, que deuo pontapé inicial da campanha abrindo contas em todas as suasagências. A campanha tomou vulto desde o seu lançamento, comas primeiras doações vindas do Grupo Metropolitano, TAP eDanuza Leão. O Jóquei Clube de Santos oferecia a renda de umacorrida, funcionários da Cervejaria Ouro Branco, em Belo Hori-zonte, doaram um dia de trabalho, o circo-teatro Catacumba, naLagoa, a renda de um fim de semana, e assim a campanha foicrescendo em todo o país. O Programa Flávio Cavalcanti tinhaessa força, movimentava o país de norte a sul.

No meio da campanha, Mana Aparecida caiu em profundadepressão, mas a luta continuava todos os domingos com chama-das durante o programa. No princípio de fevereiro, Maria Apare-cida voltou para o Uruguai. O pesadelo estava chegando ao fim.Como oficialmente os dólares não poderiam sair do Brasil, elesforam transportados de ônibus por uma senhora de 63 anos, IvaniAlmeida, e um advogado, Marcos Ribeiro de Azevedo, numasacola de plástico. Os dois foram até Chuí, fronteira do Brasil como Uruguai, numa viagem longa e tensa, pois o ônibus foi paradoem vários postos policiais, e todos os passageiros revistados. Masninguém poderia imaginar que milhares de dólares estavam em-baixo de guardanapos e pertences pessoais que aquela senhoracarregava numa sacola. No dia 3 de fevereiro, ao meio-dia, nacalçada da rua que marca a divisa dos dois países, o resgate foientregue a um tupamaro, com a seguinte senha: "Que NossaSenhora Aparecida nos proteja." Na sacola de plástico havia 300mil dólares, quantia arrecadada na campanha. Os seqüestradoresreduziram o valor do resgate com a condição de que fosse divul-gado que o valor pago fora o exigido, um milhão de dólares.

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O cônsul Gomide foi solto no domingo de carnaval, dia 22 defevereiro de 1971, e no domingo seguinte participava do programanum quadro chamado "Flávio Confidencial", relatando com de-talhes a odisséia de ficar 205 dias no cativeiro.

A campanha, além de fundamental para a libertação do cônsul,trouxe grande prestígio ao programa e mostrou, para quem aindanão sabia, que Flávio, antes de tudo, era um repórter. Sentia o faroda boa entrevista, quando um assunto poderia render. Este senti-mento era imprescindível. Ninguém, nem mesmo a pressão políticada época, seria capaz de convencê-lo a fazer algo que não quisesse.Por outro lado, tinha forças para enfrentar os maiores desafios poruma causa em que acreditasse. Agiu sempre assim, desde o inícioda carreira, como no discutido caso Tenório Cavalcanti.

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"Tenho nojo de qualquer tipo de covardia,física ou moral. Tenho medo deter medo.

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Em 1953 foi inaugurada a TV Record em São Paulo,propriedade de Paulo Machado de Carvalho e João Batista doAmaral, o "Pipa", que já tinham em sociedade as rádiosRecord, Cruzeiro do Sul, São Paulo e Bandeirantes. Amaralpensava em formar uma rede de TV, com canais em diversascidades. Em 1954, Pipa conseguiu a concessão de um canalno então estado da Guanabara, surgindo a TV Rio, Canal 13.O programa Noite de Gala estreou em 1957, transformando-se em ponta de lança de uma boa programação da emissora.Na esteira desse sucesso vieram O Grande Teatro Philco, TVRioRingue, o seriado americano Lassie, o humorísticoA( VemDona Isaura e dois programas do Velho Guerreiro, Ranchodo Mr. Chacrinha e Discoteca do Chacrinha.

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Em 1960,0 maior sucesso na televisão carioca era o programaNoite de Gala, na TV Rio, Canal 13. Fláviojá mostrava na televisãoum lado polêmico através do seu primeiro programa, Um Instante,Maestro!, que estreara três anos antes na TV Tupi. A convite deAbraão Medina, foi para o Noite de Gala, explorando o seu ladode repórter. A cada semana se superava com um assunto maisousado, instigante, que deixava sempre um clima de suspense paraa semana seguinte.

Dentro desse clima, ele foi entrevistar o tenente Bandeira, ogrande assunto policial da época. Bandeira estava preso e eraacusado de ter matado o bancário Afrânio, no famoso crime daLadeira do Sacopã. Nessa época não existiam câmeras portáteis.Para realizar a entrevista no presídio, além de levar enormescâmeras do estúdio, Flávio precisou da autorização do juiz quecondenou Bandeira, do chefe da polícia do Rio, do diretor dopresídio, dos advogados que pleiteavam novo julgamento e daOrdem dos Advogados.

A reportagem foi muito comentada e gerou uma outra, maispolêmica ainda, realizada em Duque de Caxias, na época umsubúrbio na Baixada Fluminense, hoje município. Esta região tinhacomo líder político o alagoano Tenório Cavalcanti, que lá chegouem 1928, como tantos outros imigrantes nordestinos fugidos daseca. Encontrou uma região paupérrima, plantada sobre um pânta-no. Espírito polêmico e desbravador, em poucos anos se tornou o

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salvador daquela gente que chegava em paus-de-arara. Arrumavaemprego, casa, ajudava a conseguir os documentos, e em troca tinhaum voto garantido. Reuniu um grande eleitorado, e foi eleitodeputado estadual e depois deputado federal.

Vestido sempre de terno e com uma capa preta, carregava sobela uma metralhadora a que, carinhosamente, chamava Lurdinha.Tenório Cavalcanti era alto, magro, tinha barba e usava óculos.Parecia uma figura de folhetim. Como advogado de defesa deBandeira, procurou Flávio depois da entrevista dizendo ter provasfundamentais para justificar a inocência de seu cliente. Garantiaque o verdadeiro assassino estava em sua casa. Mais um grandefuro de reportagem para Flávio, que, depois de muitas negociações,marcou a entrevista na casa do deputado, uma verdadeira fortalezaem Caxias.

Transportar o equipamento do estúdio de Copacabana paraCaxias era uma mudança. Uma kombi virava estúdio e levava todoo material necessário: câmeras, microfones e até a mesa de corte.A reportagem entrava no ar ao vivo. Não podia falhar.

A entrevista começou nervosa. Do outro lado da cidade, noestúdio em Copacabana, o patrocinador do programa, Abraão Me-dina, não tinha a menor idéia do que se passava. É que, depois detudo combinado, Tenório resolveu não mostrar o suposto assassino,e quis apenas defender Bandeira. O repórter ficou frustrado. Tantotrabalho para nada! Não querendo perder a viagem, até porque aemissora vinha anunciando uma entrevista sensacional, Fláviocriou uma outra sem contar para ninguém. Contratou um barbeiro,chamou um padre e, sem dizer a ninguém, começou o seguintediálogo com Tenório:

- Deputado, o senhor se considera um homem bom?Claro, aqui em Caxias todos podem comprovar isso.

- O senhor seria capaz de raspar a barba para uma obra decaridade?

- Como? Não estou entendendo.- Nós pagaríamos ao senhor dez mil cruzeiros e daríamos

para as obras assistenciais deste padre.- Eu dou quinze para não raspar - retrucou Tenóno.- Pois damos vinte.E assim começou um leilão inédito. O patrocinador ficou tão

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animado que mandava recados para Flávio aumentar o lance. Tudoisso acontecendo ao vivo, diante dos olhares incrédulos de milharesde telespectadores que sabiam o quanto aquela barba representavapara Tenório. Os lances foram aumentando, até o deputado serender, fazendo uma exigência: rasparia a barba e em troca oapresentador mergulharia na piscina como estava vestido, ou seja,de óculos, smoking, relógio, sapatos etc.

Como tudo isso acontecia ao vivo, as outras emissoras de TV,Continental e Tupi, acabaram acompanhando o burburinho emCaxias e enviaram seus caminhões de externa para fazerem areportagem da reportagem. O clima era de guerra. Tenório semprefoi muito querido em Caxias, e seus eleitores, revoltados com oleilão, ameaçavam virar o caminhão de externa da TV Rio. Final-mente o deputado raspou a barba e o apresentador mergulhou napiscina.

Uma correção que precisa ser feita: no filme O Homem da CapaPreta, a cena da piscina ridiculariza o apresentador, como se elenão soubesse nadar. Não é verdade. Flávio era um grande nadador,tanto que, quando jovem, tinha o apelido de "peixe-espada", porser muito magro e ágil. No filme dirigido por Sérgio Rezende, comroteiro do diretor em parceria com José Louzeiro e Tyrone Feitosa,José Wilker interpretou Tenório Cavalcanti, ganhando o Prêmio deMelhor Ator no Festival de Gramado em 1988, e Guilherme Karanfez o papel de Flávio.

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"Sou jornalista-repórter e não sei fazeroutra coisa."

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Entre as atrações do programa Noite de Gala estavamNorma Bengeil, Elizabeth Gásper e llka Soares. Oscar Oms-tein fazia entrevistas à beira da piscina do Copacabana Palace.Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta apresentava as "Certi-nhas do Lalau", as mulheres mais bonitas da cidade quetambém desfilavam em sua coluna no jornal. Bené Nunestinha um quadro musical onde apresentava com assiduidadeTom Jobim e João Gilberto.

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A agilidade dos meios de comunicação e a tecnologia sedesenvolveram de forma fantástica nos últimos trinta anos. A TVbrasileira se impôs no mercado mundial dignamente, com prêmiose glórias. Hoje em dia, é só apertar o botãozinho do controle remotoe, confortavelmente instalado na sala, acompanhar o que estáacontecendo no mundo. As imagens são tão reais que podem dar asensação de que um míssil está vindo em nossa direção, comovimos no bombardeio americano a Bagdá, na guerra no GolfoPérsico, a primeira transmitida ao vivo. As distâncias diminuírame passamos a conviver com autoridades, personalidades e artistasdo mundo todo sem a menor cerimônia. Eles estão ali, falando,discutindo, enquanto jantamos e sabemos de suas vidas com tantaintimidade que até parece que fazem parte de nossa família.

Mas nos anos 60, além de a comunicação ser mais lenta - nãohavia transmissão via satélite—, a situação era diferente. A televi-são brasileira engatinhava, tinha apenas dez anos. Apesar disso, noentanto, já colocava suas manguinhas de fora. Abraão Medina foium dos responsáveis por essa ousadia.

Pai de Rubem (deputado), Roberto (publicitário) e Rui (profes-sor de ginástica), o patriarca dos Medina era comerciante, dono deO Rei da Voz, uma rede de lojas de eletrodomésticos. Quando atelevisão apareceu no Rio, em 1954, não foi apenas mais umaparelho à venda em sua loja. Raciocínio rápido, bom em negóciose promoções, Medina logo percebeu que, para vender mais apare-

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lhos de TV, era preciso estimular o interesse do público e, porconseguinte, oferecer uma boa programação. Com o propósito devender mais aparelhos e investir no novo meio de comunicação, eleprocurou os dois maiores fabricantes, a Philco e a Philips, e propôscomprar mil aparelhos de TV de cada um com um desconto de 10por cento. Como dinheiro economizado, patrocinaria um programade TV de altíssimo nível. A proposta foi aceita, e surgiu assim, em57, Noite de Gala, um programa chiquérrimo, movimentando amaior verba da TV brasileira. Apresentava uma atração intemacional a cada semana e era produzido pela Midas Propaganda, agênciade Medina, que tinha uma equipe de primeira: Carlos AlbertoLofler, Geraldo Casé, Carlos Thiré e Flávio Cavalcanti. Além deprodutor, Flávio era também repórter, sendo responsável por gran-des furos de reportagem, como uma entrevista com o presidenteKennedy.

Em 1961, Flávio foi aos Estados Unidos com Medina pai, ofilho Rubem e Murilo Nery, o intérprete do grupo. Foram assistir aalguns espetáculos que poderiam ser apresentados no Noite deGala. Mas na cabeça do repórter havia uma idéia fixa: uma entre-vista exclusiva com o presidente Kennedy na Casa Branca. Curioso,investigativo e teimoso, o repórter não podia admitir sua volta aoBrasil sem a entrevista. Só ficariam cinco dias em Nova York e porisso, mal aterrissaram, Flávio começou a tentar a entrevista. Essetipo de reportagem às vezes leva semanas de negociações, mas eledecidiu tentar até o fim. Lembrou-se de procurar uma velha amiga,Dora Vasconcelos, que, coincidentemente, na época era cônsul doBrasil em Nova York. Dora o recebeu de braços abertos, mas,quando soube o que ele pretendia, concluiu o mesmo que Medinae Nery: impossível.

Flávio sabia ser teimoso quando queria alguma coisa. Diantede sua insistência, Dora prometeu ajuda, fazendo um primeirocontato com a Casa Branca. Foi informada que quem cuidaria daliberação da entrevista era o FBI. E lá foram os brasileiros aWashington tentar a investida mais de perto. Antes, porém, fizeramuma aposta. Se Flávio conseguisse gravar uma entrevista exclusivacom o presidente, Nery, Rubem e Dora teriam que lhe servir umafeijoada, na rua, em plena Broadway, centro de Nova York, comdireito a mesa posta e tudo mais. Caso perdesse, Flávio teria que

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patinar na pista de gelo do Rockefeller Center, também em NovaYork. Uma cena ridícula, pois o repórter jamais conseguiu seequilibrar sobre patins, quanto mais no gelo.

Em nenhum momento passou pela cabeça do repórter o fato deque não falar inglês pudesse atrapalhar a entrevista. Afinal, Neryestava junto como intérprete. O primeiro encontro com o pessoaldo FBI foi frustrante: a resposta foi não. Mas Flávio não se deu porvencido, continuou a insistir e Nery a traduzir todas as razões pelasquais o presidente americano deveria dar a entrevista. Chegou umahora em que o pessoal do FBI começou a ficar intrigado com aousadia do repórter e prometeu levar o assunto até o presidente, quedaria a palavra final sobre a entrevista.

Flávio não estava preocupado com o que iria perguntar aopresidente Kennedy, acreditando que o assunto apareceria na hora.Para ele, o mais importante era voltar ao Brasil com aquele furo dereportagem para Noite de Gala. Durante dois dias, Flávio tentouconvencer o FBI da importância da entrevista, mesmo tempo gastopelo governo americano para averiguar junto à sua embaixada noRio quem era o repórter e qual era o nível do programa. Foram doislongos dias de espera no hotel. Até que, num final de tarde, otelefone tocou e Nery atendeu.

Congratulations! You are the winners! (Parabéns, vocêsvenceram!)

Era o FBI dando sinal verde para a entrevista, que seria reali-zada no dia seguinte. A alegria foi imensa. Só então Flávio começoua pensar no que iria perguntar ao presidente americano. Passou-lheuma idéia louca pela cabeça, chamou Nery, e foram ao MuseuLincoln. Tinha agora uma outra missão. Queria um documento coma assinatura do presidente Lincoin, para pedir que Kennedy tambémcolocasse a sua assinatura. Na volta ao Brasil entregaria estedocumento ao presidente Jânio Quadros, grande admirador deLincoln. Parece até história de cinema, mas Flávio e Nery conse-guiram convencer o diretor do museu a entregar uma página ma-nuscrita e assinada por Lincoin para servir de subsídio ao repórterdurante a entrevista.

No dia seguinte, às 9:30 da manhã, o pessoal do FBI já estavana porta do hotel esperando os brasileiros. Como não levaramequipamento para a gravação, utilizariam câmeras do governo

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americano. A reportagem começou na entrada da Casa Branca, comuma panorâmica dos jardins, Flávio anunciando a entrevista.

Já dentro da Casa Branca, no percurso até a sala onde seriarealizada a entrevista, um dos rapazes do FBI fez o seguintecomentário: "Felizmente nosso presidente não usa barba." Apolícia federal americana investigara tanto a carreira do repórterque sabia até da matéria com Tenório Cavalcanti.

Uma entrevista como aquela seria inesquecível para qualquerrepórter. Flávio gostava de contar como o presidente Kennedy era"esguio, jovial, sorridente e brincalhão", que chegou para a entre-vista carregando o paletó nas costas e bateu no seu ombro com amaior simplicidade. Quando soube que Flávio não falava inglês,comentou em tom de brincadeira: "Imagino o que ele faria sefalasse inglês." A entrevista foi gravada, e Kennedy assinou odocumento que continha a assinatura de Lincoln. A equipe voltoupara o hotel exultante.

Já em Nova York começaram os preparativos para o pagamentoda aposta, a feijoada na Broadway. Mais uma vez o apoio da cônsulDora Vasconcelos foi fundamental: ela ajudou o grupo a conseguirautorização da prefeitura para realizar um almoço na rua. Era muitodifícil para os americanos entenderem a aposta, quanto mais ocardápio. Estiveram no almoço os agentes do FBI, a essa alturavelhos amigos da equipe, a cônsul e outros brasileiros que láresidiam, além da ex-Miss Brasil Adalgisa Colombo.

De volta ao Brasil, cumprindoo prometido, a carta com as duasassinaturas foi entregue ao presidente Jânio Quadros. Dois anosdepois, quando Kennedy foi assassinado, aquele pedaço de papelpassava a ter um valor ainda maior: era o único documento em queconstavam a assinatura de dois grandes estadistas americanos tra-gicamente assassinados. Alguns anos depois, o governo americanoentrou em contato com Flávio, pedindo uma cópia daquele docu-mento para constar do Museu Lincoln. Flávio tentou obtê-lo comJânio Quadros, chegou a colocar um anúncio no jornal, mas infe-lizmente havia desaparecido.

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"Eu quero estar acima. Sou do centro.Mas o diabo é que a esquerda é inteligentee a direita, burra. E, por isso, muitas vezeselas quase nos convencem do errado."

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No dia P de abril de 1964 o prédio da UNE (UniãoNacional dos Estudantes) na Praia do Flamengo foi incendia-do. Nesse mesmo ano Brigitte Bardot veio ao Brasil e trans-formou Búzios, uma pequena praia do litoral fluminense, empoint. Depois de terem conquistado os Estados Unidos e aEuropa, os primeiros discos dos Beaties chegavam até asvitrolas hi-fi tupiniquins. O cineasta francês Jean-Luc Godardera guru da geração que freqüentava as sessões do cinemaPaissandu, junto com o nacional Gláuber Rocha, que lançavao filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Na televisão, a novelaO Direito de Nascer, escrita por Glória Magadan e produzidapela TV Tupi de São Paulo, fazia o país inteiro chorar com odrama de Albertinho Limonta, interpretado por HamiltonFernandes, ao descobrir que sua mãe era Sóror Helena, per-sonagem vivido pela atriz Nathalia Timberg.

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Utilizando uma nova forma de comunicação nas suas repor-tagens quase sempre polêmicas, Flávio Cavalcanti ganhava cadavez mais espaço. Passional, radical, às vezes enfurecido diante desuas verdades, conquistou um público fiel que vibrava com seujeito de fazer TV.

Admirador de Carlos Lacerda, com quem tinha, além dosmesmos ideais políticos, uma certa semelhança física, Flávio co-laborou em sua campanha em 1960 para governador do recém-constituído estado da Guanabara. Chegou a privar da intimidadedo governador, mas não utilizou esse prestígio para favores pes-soais. Ao contrário, o governador é quem o procurava, pedindoapoio na divulgação de algumas obras públicas, e Flávio abria-lheas portas do Noite de Gala.

O ano era de 1964, e a política fervilhava. Mas, voltando umpouco no tempo, em 31 de janeiro de 1961 Jânio Quadros foiempossado na presidência com ajuda total de Lacerda, que era domesmo partido, a UDN, recebendo o cargo de Juscelino Kubitschekna nova capital, Brasília. Quanto à eleição de Jango, não havia naConstituição um dispositivo que obrigasse o povo a votar nummesmo partido para presidente e vice-presidente. Com isso, o paíspassou a ter como presidente e vice políticos de facções contrárias.A passagem de Jânio no poder foi meteórica, apenas sete meses,tempo suficiente para causar algumas confusões, como as proibi-ções das corridas de cavalo, do uso do biquíni e das brigas de galo.

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Até na televisão Jânio interferiu, ao exigir que os intervalos comer-ciais não tivessem mais do que três minutos de duração. Fazia umaexceção aos comerciais ao vivo, que poderiam chegar a cincominutos, dando um total de oito minutos de intervalo. Para atelevisão, era uma grande encrenca.

Em 25 de agosto de 1961, Jânio renunciou quando seu vice,João Goulart, encontrava-se na China. Até que Goulart voltassepara ser empossado, o presidente da Câmara dos Deputados, Pas-choal Ranieri Mazzili, assumiu a presidência por treze dias. Sócomo curiosidade: Mazzili ocupou esta mesma posição e pelomesmo período em 1964, quando Goulart foi deposto.

Carlos Lacerda, janista e opositor de Goulart, governava oestado da Guanabara. Sua força dentro da TV Rio era grande; jáutilizara a emissora quando soltou farpas em cima de Juscelino, em1955, tentando coibir sua posse como presidente da República.Com isso, era muito fácil perceber de que lado o apresentadorestava quando a revolução começou a pipocar.

Desde 63, o país vivia num clima pesado. Muitas greves,algumas com duração de mais de seis meses, e cada dia umainstituição ou um sindicato fechava suas portas. Greve de luz, grevedos distribuidores deleite, e assim por diante. Dentre estes grevistasestavam também os radialistas, categoria que englobava os profis-sionais de TV, e as notícias da revolução só chegavam através daRádio Nacional, empresa do governo.

No dia 31 de março, a revolução estourou. O rádio anunciavaque os fuzileiros navais, sob o comando do vice-almirante Aragão,o "almirante do povo", amigo de Brizola e Jango, iriam tomar oPalácio Guanabara para prender o governador Lacerda. AbraãoMediria e Flávio estavam na TV Rio tentando colocar a emissorano ar. A TV Rio ficava no Posto 6, em Copacabana, em frente aoForte, onde estava instalado o quartel-general de Artilharia daCosta, que, diante da revolução, estava em polvorosa. Flávio viuquando o coronel Montanha ocupou o Forte, e foi então até lá tentarconvencê-lo a apreender a torre de transmissão da emissora, noSumaré, para que a TV, que estava em greve, pudesse entrar no are mostrar a revolução. Assim foi feito, e a TV Rio passou atransmitir da rua tudo o que estava acontecendo. Como repórter,Flávio deitou e rolou. Fez do microfone a sua arma, correndo de

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um lado para outro entrevistando os que entravam e safam doquartel. Deu um banho de jornalismo. Assim como Lacerda, eleacreditava na revolução. No entanto, grande parte da imprensa eracontrária à deposição de Jango, e, como resultado, Flávio ganhoudesafetos e o repúdio da esquerda.

Na noite do dia 31 de março, Flávio voltou para casa, emCopacabana, muito tarde. Estava exausto. O telefone não parava detocar, e ele resolveu abafar o som, para que ninguém mais atendes-se. Mas o telefone tocava, tocava, e em determinado momento seufilho Flavinho, com treze anos, não resistiu e atendeu. Do outro ladoda linha uma voz masculina perguntou quem estava falando; ogaroto se identificou e ouviu em seguida a frase que o marcoudurante anos: "Que pena, você vai ficar órfão. Seu pai vai morrernas próximas 48 horas." O garoto desligou o telefone, contou parao pai, que não se incomodou com o fato. Esta foi a primeira dasmuitas ameaças que Flávio veio a sofrer por acreditar em seusideais.

Com Goulart deposto em 31 de março de 1964 e o fim darevolução, a vida continuava sorrindo para os que acreditavam nosnovos caminhos que o Brasil trilharia. Para mostrar que não guar-dava mágoas, nem mesmo dos fuzileiros navais que ameaçaramLacerda, convidou-os a participar do Noite de Gala, junto com onovo comandante Heitor Lopes de Souza, provando que os fuzilei-ros tinham sido usados pelo almirante Aragão numa manobrapuramente política.

Após a revolução, Flávio foi convidado a dirigir a RádioNacional, mas ao perceber que a intenção do novo governo era fazeruma caça às bruxas, não aceitou. Insistiram para que fizesse umprograma diário na rádio e ele criou o Falando a Verdade, ondeentrevistava políticos e personalidades. Alguns meses depois, co-meçou a sentir uma certa pressão. Eram pedidos da alta cúpula dogoverno para que entrevistasse fulano e beltrano. Definitivamentenão era este o perfil do repórter. Ele seria incapaz de fazer umaentrevista só para agradar A ou B, e com isso deixou o programa.

Ao mesmo tempo, passou a sentir que os objetivos da revolu-ção não eram mais os mesmos pelos quais lutara. Para Flávio emuitos outros, o movimento de 64 buscava instaurar a paz no paíspara, em 1965, em nova eleição presidencial, Juscelino e Lacerda

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se confrontarem. A ditadura militar determinou outro rumo, cul-minando com a prorrogação do mandato de Castelio Branco, eFlávio se afastou totalmente da política governista. Era tardedemais. A esquerda jamais o perdoaria por essa participação.

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"Eu achava que amúsica não prestava epronto."

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Maria Bethânia saiu da Bahia em 1965 rumo ao Rio,substituindo Nara Leão no espetáculo Opinião, que tambémcontava com as participações de Zé Ketty e João do Vaile.Muito magra, vestindo calça comprida e camisa de cortemasculino, cabelos longos presos à nuca em pequeno coque,seu estilo de vestir fazia contraponto ao das moças da época,que usavam minissaias, cabelos longos e eriçados com muitoIaquê, no melhor gênero "bolo de noiva". Bethânia conquis-tou o Rio e o país com sua voz forte e interpretação impecávelda música Carcará, do maranhense João do Vaile. A bossanova resistia, apesar de as músicas de protesto, pouco apouco, tomarem conta da preferência dos jovens.

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Pós-revolução, final de 64, Flávio foi convidado por CarlosManga a integrar a equipe da TV Excelsior. Era uma emissorapaulista promissora, que causara o maior impacto com o sucessoda novela A Moça que Veio de Longe, com Rosamaria Murtinhono papel principal. Chegando ao Rio, começou a contratar osmelhores profissionais da área, tendo como base de sua programa-ção a linha de shows.

O primeiro trabalho do apresentador foi criar, coordenar eapresentar um concurso de músicas de carnaval. Era uma forma dea Excelsior, paulista, se integrar mais aos cariocas, promovendo arenovação das marchinhas carnavalescas. O programa era semanal,e a seleção das músicas era feita através de um júri que Flávioformou convidando jornalistas, críticos musicais, produtores dediscos e radialistas. Estes profissionais, já conceituados em suasáreas, ganharam mais popularidade com o programa. No final dofestival, que premiou a música Máscara Negra, de Zé Ketty, estavaprovado que o sistema de júri poderia ser integrado a um programa,obtendo excelentes resultados. Baseado nisso, Flávio recriou UmInstante, Maestro!, seu primeiro programa de TV, apresentado porpouco tempo na TV Tupi, em 57.

A estréia de Flávio na TV foi por acidente, em 1957, substi-tuindo o mais importante colunista social da época, Jacinto deThormes, num programa de entrevistas na Tupi. Na verdade esteera o pseudônimo usado pelo jornalista Manuel Bemardez Müller,conhecido também como Maneco, compadre e amigo de Flávio.

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Os dois juntos tinham feito o programa Nós os Gatos, na RádioMayrink Veiga, dois anos antes e, ao entrar de férias, Maneco pediua Flávio que o substituísse. Quando Maneco voltou à AgênciaCasé, que fazia a produção do programa, percebendo a facilidadede comunicação de Flávio e o conhecimento de música que elemostrava no seu programa Discos Impossíveis, na Rádio Tupi,convidou-o a escrever e apresentar um programa de TV.

Flávio queria fazer algo diferente, inovador. Pretendia criaruma nova forma de linguagem em televisão. Foi para casa pen-sando nisso e teve uma idéia quando sua filha mais velha, Marzi-nha, pouco mais de Oito anos, lhe perguntou o que era "mãesolteira". O apresentador insistiu em saber onde ouvira aquilo, ea menina cantou uma música que dizia: "Parecia uma tochahumana rolando a ribanceira, a pobre infeliz tinha vergonha de sermãe solteira." Espantado com a letra, pouco adequada a uniamenina daquela idade, perguntou à filha onde aprendera aquelamúsica. "Ouvi no rádio", foi a resposta.

A partir daí passou a ouvir rádio com mais atenção e ainvestigar a qualidade das músicas apresentadas em programaspopulares. Criou assim Um Instante, Maestro!, um programa crí-tico num momento em que ninguém tinha coragem de criticar amúsica popular brasileira. Isso parecia ao apresentador bastantehonesto. Eram críticas que considerava justas, denunciando letrasmedíocres. No fundo, o programa procurava fazer com que opúblico reagisse de alguma maneira e demonstrasse interesse pelasmúsicas, mesmo que o preço fosse criar, em torno do apresentador,o mito do homem mau, do dono da verdade. O importante mesmoé que conseguiu provar que o bom verso existia na MPB. Duranteanos a sua caricatura ficou ligada ao gesto de Um Instante, Maes-tro!, onde aparecia com a mão direita estendida mandando aorquestra parar. Esse gesto, que tanto marcou a carreira do apre-sentador, como o de tirar e botar os óculos, foi idéia de CarlosThiré, o primeiro diretor de seu programa. Num dos ensaios, Fláviofez o gesto para interromper o maestro, e o diretor disse que essapoderia ser a marca do programa. Acabou pegando. Quanto aosóculos, o gesto nasceu espontaneamente, era uma necessidadeótica. Ele precisava de óculos para enxergar de perto, e, quandotinha que olhar para o auditório, tirava os óculos. Anos depois,

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passou a usar óculos com lentes multifocais, não havendo mais essanecessidade; a marca porém ficou.

A primeira fase na Tupi foi curta, pouco mais de um ano, e semjúri. Dramático, incisivo, contundente, certa vez perguntou a AryBarroso o que era "mulato inzoneiro" de Aquarela do Brasil. Foium deus-nos-acuda. O que é isso, Flávio?, todo mundo questionou.Mas ninguém também sabia o que era inzoneiro. O compositor foiobrigado a explicar-se e acabou brigando com o apresentador. Sófizeram as pazes muitos anos depois. Estas críticas nunca tiveramcomo tônica o moralismo. Como crítico feroz, ele dava valor aorespeito entre os homens e, quando a música feria esse respeito,cuspia fogo, quebrando os discos de que não gostava em frente àscâmeras. Era patético. Os discos de 78 rotações fabricados com cerade carnaúba eram facilmente quebráveis e propiciavam uma ence-nação polêmica. O programa acabou no mesmo ano em que foramlançados os LPs inquebráveis. Não tinha mais graça.

Mas na Excelsior, em 1965, com a boa performance do júri,Flávio resolveu reeditá-lo. Em lugar de quebrar discos, rasgava asletras e os jurados opinavam. Surgiu assim o primeiro júri detelevisão, formado por Nelson Motta, José Fernandes, Mister Eco,Hugo Dupin, Carlos Renato, Humberto Reis e Sérgio Bittencourt.Nelson Motta era um jovem e promissor compositor; José Fernan-des, radialista, rigoroso no julgamento, só dava nota zero; MisterEco e Hugo Dupin, críticos de música; Carlos Renato, jornalista,fazia charme com as mulheres; Humberto Reis, voz de locutor,buscava no dicionário palavras difíceis para mostrar erudição; eSérgio Bittencourt mostrava o conhecimento de MPB adquiridoem casa, pois era filho de Jacob do Bandolim. Teixeirinha eWaidick Soriano eram vítimas constantes. Mesmo sujeitos a críti-cas, muitos artistas torciam para que seus discos entrassem emjulgamento, para ganharem assim mais popularidade.

Flávio aliava uma formação musical apurada e bom gosto àemoção. Descobriu o quanto era fácil comover os outros, apelandopara os seus próprios sentimentos e utilizando os pontos de vistaopostos de seus jurados. Amigo de compositores, colecionador dediscos desde sua estréia no rádio, em Um Instante, Maestro!,analisava rimas poéticas e reverenciava aqueles que apreciava,como Dolores Duran, uma inesquecível amiga.

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"Quero a alegria de um barco voltandojquero ternura de mãos se encontrando,1para enfeitar a noite do meu bem..."

Dolores Duran

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Quando a TV Tupi do Rio foi inaugurada, Assis Cha-teaubriand contratou o engenheiro Palharini para fazer ainstalação técnica. O equipamento era importado dos EstadosUnidos, um trabalho complexo, com muitos fios e caboscoloridos, que deveriam seguir um código internacional.Conta uma lenda que Palharini, ao fazer a instalação daemissora carioca, criou um código novo. Trocou as cores dosfios e cabos, sendo o único capaz de resolver qualquerproblema técnico. Falavam ainda que diversos técnicos na-cionais e internacionais foram chamados para entender aengrenagem montada pelo engenheiro, mas não conseguiramchegar a um resultado satisfatório. Com isso, a televisãofuncionava graças ao milagre de Palharini, cujo segredojamais foi revelado.

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7Sobre Dolores, um fato interessante. Em 52, muito antes de

Um Instante, Maestro!, ainda no tempo em que fazia seu primeiroprograma na Rádio Mayrink Veiga, Discos Impossíveis, Flávioconheceu e ficou amigo de Dolores Duran. De madrugada, ao sairdas boates onde cantava, ela costumava tocar a campainha da casado amigo para comer um bife e conversar.

Seu primeiro disco, Outono, foi lançado na mesma época emque Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim chegavam aogrande público com a canção Se Todos Fossem Iguais a Você.Tímida, a "Bochechinha", como era chamada por Flávio, foi aospoucos se impondo como uma das maiores letristas do cancioneiropopular. Suas obras de grande lirismo romperam com o pieguismoda música tradicional. Dolores chegou a gravar Manias, compo-sição de Flávio em parceria com o irmão Celso.

Passava o ano de 1959, Dolores Duran e o marido Macedo Neto,Ismael Neto, do grupo Os Cariocas, e a mulher Heleninha Costa,junto com Flávio e Belinha, formavam um sexteto inseparável. Asreuniões duravam até o dia amanhecer. Flávio tinha mania de gravartudo, principalmente esses encontros, que depois transformava emprogramas de rádio. Dolores era perfeccionista; falava fluentementeinglês e francês e, para cantar em alemão, tomava aulas particularescom Belinha. Nesse clima de descontração, gravou para o DiscosImpossíveis cantando fados, boleros, blues e suas próprias compo-sições. Era uma compositora tímida. Guardava os poemas a sete

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chaves e demorava muito para mostrar suas letras. Um de seusprimeiros poemas a ganhar música foi Por Causa de Você, emparceria com Tom Jobim. Aos poucos foram surgindo outras com-posições, como Fim de Caso, Estrada do Sol, Ternura Antiga, Noitede Paz, Castigo e Solidão.

Numa dessas reuniões, Dolores chegou à casa de Flávio comtrechos de uma nova música. Escrevia, riscava, reescrevia, lia algunstrechos para os amigos, pedindo opinião. Até que finalmente, ao ficarpronta, cantou a música em primeira mão. Era A Noite do Meu Bem,que acabou se tomando seu maior sucesso e o hino dos notívagossolitários. Fascinada com a letra, Belinha pegou uma folha de papele uma caneta e pediu para Dolores escrever a nova composição. Estafolha ficou guardada com a assinatura e a data: 4 de junho de 1959.Com a morte prematura de Dolores Duran, aos 29 anos, alguns mesesdepois de ter escrito A Noite do Meu Bem, a poesia foi emolduradanum quadrinho que acompanhou Flávio por toda a vida.

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"Eu não tenho medo de ser careta."

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Os prefixos de A Grande Chance, Um Instante, Maestro!e ProgramaFlávio Cavalcanti foram compostos pelo maestroCipó, que acumulava as funções de diretor musical e regenteda orquestra da TV Tupi. Os integrantes da orquestra a cadasemana testavam seus conhecimentos acompanhando canto-res nacionais e internacionais, que interpretavam os maisdiversos gêneros musicais. A emissora tinha sob contratoquarenta músicos, vindos de diversos pontos do país, queformavam uma orquestra com doze violinos, duas violas, doiscelos, duas trompas, flauta, flautim, quatro saxes, quatrotrombones, quatro trumpetes, seis ritmos e um piano. Comoapoio, a orquestra da Tupi ainda contava como Coral do Joab,formado por quatro vozes femininas e quatro masculinas.

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Nos anos 70 o júri continuava sendo uma fórmula perfeitapara o sucesso do Programa Flávio Cavalcanti. O apresentadorsabia que, quando um jurado caía no gosto do público, issoequivalia a mais um ponto no IBOPE. Entretanto, esta não foi aúnica razão que o levou a convidar Leila Diniz para fazer parte doJun.

Ela era esplendorosamente feminina, musa do Pasquim e deIpanema, a grande estrela do final dos anos 60. Seu sucessoindependia dos personagens que interpretava no teatro, cinema etelevisão. Tinha luz própria. Extravasava uma alegria enorme,sacudia preconceitos e quebrava tabus através dos palavrões quedizia de forma espontânea. Chocava. Era idolatrada pela intelec-tualidade, e com a mesma naturalidade sentava num botequim paratomar cerveja com qualquer um. Naquele tempo em que Ipanemaditava as regras de comportamento e de moda, Leila pontificava.Sua moda virou moda, com longos vestidos de tecido indiano esandálias. Logo em seguida, chocava os moralistas ao desfilar debiquíni pela praia exibindo uma barriga de oito meses de gravidez.Foi peça importante no processo de evolução da mulher brasileira,fez a cabeça de uma geração. Era uma pessoa muito especial.

Nascida numa família de esquerdistas, ela era integrante doPartido Comunista, então na clandestinidade, e participava demovimentos políticos. Leila estreou no teatro com a peça O Preçode um Homem. Fez os filmes Todas as Mulheres do Mundo, de

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Domingos de Oliveira, na época seu marido, e Amor, Carnaval eSonho, de Paulo César Sarraceni. Com as comédias Tem Bananana Banda e Vem de Ré que Estou de Primeira, reabilitou no Rio oteatro de revista, espetáculo muito popular nos anos 40. Em Vemde Ré que Estou de Primeira, a cada noite interrompia o espetáculoduas vezes para, no camarim, amamentar Janaína, sua filha docasamento com o cineasta Ruy Guerra. Na 1'V Globo, fez asnovelas O Sheik de Agadir, da cubana Gloria Magadan, ondeinterpretava Madelon, personagem muito popular, e Anastácia, aMulher Sem Destino, que inicialmente era escrita por EmilianoQueirós mas no meio, diante da impossibilidade de manter a tramacom tantos personagens, passou à responsabilidade de Janete Clair.Aquela era a estréia de Janete na televisão, e, para salvar a trama,ela inventou um naufrágio, "matando" os velhos personagens ecriando novos. A personagem de Leila sobreviveu ao naufrágio econtinuou no ar.

No final de 69, Leila deu uma entrevista para o Pasquim ondeesclarecia seus pontos de vista em meio a muitos palavrões queacabaram substituídos por asteriscos e sinais gráficos. O artifíciousado pelos editores do jornal para que a matéria pudesse serpublicada não impedia o leitor de entender o sentido das frases edos palavrões. Essa edição, que trazia Leila na capa, tornou-sehistórica não apenas pela reportagem que desvendava o pensamen-to daquela mulher revolucionária como também por ter provocadouma severa lei de censura prévia, o Decreto n 2 1077, logo apelidadode "Decreto Leila Diniz".

Mas censura nunca foi uma exclusividade brasileira, nemmesmo era novidade. Basta dar uma olhada na História. Na antigaGrécia, a censura controlava a conduta para reprimir insultos aosdeuses e à perturbação da ordem pública. Em Roma, ditava a moral.A censura sobre obras escritas se expandiu no século XV, após a

^.Ínvénção da imprensa. Em 1559, a Igreja Católica criou o primeiro

dex, uma relação de livros proibidos que só foi revogada em 1966por decisão do Papa Paulo VI. Durante os séculos XVIII e XIX, aliberdade de imprensa foi assegurada na América e na Europa, comexceção da Espanha, Portugal e Irlanda. Nos Estados Unidos, égarantida pela primeira emenda da Constituição. No Brasil, éregulamentada pela Lei de Imprensa e Segurança Nacional.

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As posições tão contestatórias de Leila frente aos rígidosprincípios da revolução fizeram com que o mercado de trabalho sefechasse para ela, apesar do seu prestígio. A TV Globo não renovouseu contrato, e ela acabou famosa mas sem dinheiro. Foi nessaépoca, discriminada e sem oportunidades de trabalho, que Flávioconvidou-a para integrar o seu júri, mesmo sabendo que iria baterde frente com o governo.

Leila estreou como jurada do Programa Flávio Cavalcanti em4 de outubro de 1970. Na semana seguinte, Flávio publicou em OJornal, onde escrevia todos os domingos:

"Descontraída como ela só, gargalhando como ela só,foi tomando o seu lugar na banca. Estávamos novamente comdez personalidades compondo o júri. Mas para seu primeirodia de trabalho era preciso que nos dissesse algo mais. Erapreciso que fosse a responsável por um dos quadros apresen-tados.

- Vocês querem um número? Eu arranjo um da pesada.- Mas vê lá, Leila. Hippies, cabeludos e sujos rolando

no chão não vale.- Que hippies, que nada, deixem comigo, juro que não

vou trazer ninguém pra fazer strip-lease ou contar anedota depapagaio.

Deixamos com ela. Na hora do programa, subiu Leila aopalco, tentou explicar o que tinha trazido. Eu estava meiocabreiro, interrompia, indagava mais e mais.

- Flávio, tá maluco? Me deixa falar, homem!Apresentou sua atração: uma freira ventrfloqua e seu

boneco Chiquinho. E foi aí que começamos a conhecer amenina Leila, feliz da vida, rindo e batendo palmas para afreirinha sua amiga. Exuberante, pra frente, descontraída,Leila Diniz, nossa menina.

Boas-vindas!"

Além de brilhar no programa, Leila ganhou um outro espaço:um boxe na página de Flávio em O Jornal, com o título "ComoDiz Leila Diniz". Este título foi tirado de Coqueiro Verde, músicaque Erasmo Carlos fez para Narinha, então sua namorada. Em certo

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trecho, a letra falava: "Como diz Leila Diniz,/homem tem que serdurão,/se ela não chegar agora/não precisa chegar..."

Leila escrevia o que queria. Contava historinhas, registrava aconquista de sua carteira de motorista avisando que havia mais umabarbeira na praça, brincava com o pessoal do júri, enfim, aprovei-tava esta liberdade não-esperada. Ainda como jurada do programa,foi desafiada a desfilar de biquíni num carro aberto pela AvenidaRio Branco. Se a tarefa fosse cumprida, receberia um bom cachêe o mesmo valor seria doado a uma obra de caridade. É claro queLeila topou. Resultado: o centro do Rio parou para ver a musa deIpanema desfilar. Ela era só alegria!

Numa tarde de domingo, pouco antes do início do programa,em janeiro de 1971, Flávio ligou para Marcelo Cerqueira, cunhadoe advogado de Leila, avisando que a Polícia Federal estava naemissora com a missão de levá-la presa sem nenhum motivocomprovado. Marcelo entrou em contato com um militar, cujonome prefere não revelar, e montou uma estratégia de fuga. Nofinal do programa, no camarim da Tupi, Leila rapidamente trocoude roupa com a sua secretária, Neném, disfarçando-se assim paraa polícia. Acompanhada de Flávio e do militar, Leila seguiu paraa casa do apresentador, em Petrópolis. Enquanto isso, Marcelosaía de carro em disparada com a secretária, confundindo a polícia,que passou a persegui-los. Quando os policiais conseguiram alcan-çá-los e apresentaram a ordem de prisão de Leila Diniz, ficaramespantados porque não era a atriz que estava no carro. Durantealgumas semanas, Leila foi hóspede da família Cavalcanti. Chegoucom a roupa do corpo, usava as roupas de Marzinha e Fernanda,filhas de Flávio. Conquistou a todos.

O pessoal do Exército e do SNI ligava para lá perguntando porela, e o apresentador confirmava sua presença, ao mesmo tempoem que deixava claro o objetivo de mantê-la sob seus cuidados atéque a perseguição parasse. A casa de Flávio era muito segura.Ficava no alto do bairro de Caxambu, numa rua que tinha o nomedo apresentador, e era guardada na entrada por seguranças forte-mente armados. A casa tinha uma piscina linda, um enorme viveirocom passarinhos de todas as espécies e uma capelinha em home-nagem a Cristo Rei.

A reclusão de Leila acabou chegando ao conhecimento da

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imprensa, até mesmo porque a atriz deixou de participar do pro-grama sem qualquer explicação. Apesar de os jornais estaremimpedidos de divulgar o fato devido à Censura, não ficava bempara o regime militar que a imprensa soubesse da perseguição àatriz que era um mito e muito querida pelo público. Por isso, umdia, Flávio foi surpreendido por um telefonema com uma ordemmuito estranha. Do outro lado da linha, uma autoridade importantedeterminava: Leila deveria circular por Petrópolis, acompanhandoa esposa e as filhas do apresentador, para que fossem dissipadas asdúvidas e provasse publicamente que não estava sendo procurada.Com isso, ter-se-ia a impressão de que a atriz, muito popular,estava de férias na serra. A ordem foi cumprida, para alegria detodos, inclusive de Leila, que finalmente pôde andar pela pequenaPetrópolis.

Enquanto isso, Marcelo Cerqueira, incansável na busca de umasaída para o caso, pediu uma audiência com o ministro da Justiça,Alfredo Buzaid. No encontro ficou acertado que Leila seria "con-vidada" a depor na Polícia Federal e não "intimada", e assinariaum depoimento escrito por seu próprio advogado. Esses doisfatores favoreciam-na juridicamente.

Antes de deixar Petrópolis, Leila foi a um antiquário e com-prou uma caixinha de prata para Belinha. Junto à caixinha, umcartão: "Belinha, isto foi o que eu encontrei mais parecido comvocê. Com amor, Leila."

A Polícia Federal funcionava no local onde hoje está instalado oMuseu da Imagem e do Som, na Praça XV, centro do Rio. E um prédioantigo e com uma vista deslumbrante. Leila chegou na boca do lobomas não perdeu a sensibilidade. Diante da paisagem na janela, não seconteve e comentou: "Olha que linda vista vocês têm aqui!" Poucosminutos depois, assinava um depoimento que lhe dava liberdade e,em troca, se comprometia a não dizer mais palavrão. Era simplesmen-te ridículo, mas necessário para a sua sobrevivência.

Leila Diniz voltava à vida com paixão, e logo em seguidaconheceu o cineasta Ruy Guerra, com quem se casou, realizando osonho de ser mãe. Em 15 de junho de 1972, Leila voltava do Festivalde Cinema Internacional, na Austrália, quando o avião da JapanAirlines em que viajava explodiu ao se preparar para aterrissar noAeroporto de Calcutá, na índia. Leila Diniz viveu apenas 27 anos.

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"O carinho do público, evidentemente, meenvaidece. Não vou bancar o charmoso edizer que estou cansado de popularidade."

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Na equipe de Flávio Cavalcanti havia uma pessoa muitoespecial, o Chico, um misto de zelador e boy. Nordestino,baixo e atarracado, morava num quartinho no fundo doescritório e fazia um pouco de tudo: servia café, compravacigarros e entregava correspondência na emissora. Fã deFlávio, orgulhava-se em abrir a porta do Landau azul queconduzia o patrão. Uma tarde chuvosa, ao ouvir a buzinaanunciando a chegada de Flávio, saiu em disparada e, aochegar à calçada, percebeu que esquecera o guarda-chuva.Neste exato momento uma senhora atravessava a rua prote-gida da chuva. Chico não pensou duas vezes: num gestorápido, sem explicações, arrancou o guarda-chuva da mão dasenhora para proteger Flávio.

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N0 final dos anos 60, uma onda de festivais tomara conta dopaís de norte a sul. Esta onda começara em São Paulo, com osfestivais da TV Excelsior e depois da TV Record, que mostraramSérgio Ricardo atirando um violão na platéia que o vaiava; lança-ram Elis Regina, que cantava Arrastão; revelaram Nelson Moua eDori Caymmi como compositores; Nara Leão, com A Banda, doentão novato Chico Buarque; Jair Rodrigues, com Disparada, deGeraldo Vandré; Edu Lobo, com Ponteio, e mais uma infinidadede gente. A Record dominava na área musical e, além dos festivais,tinha uma grande linha de shows.

A Globo entrou nos festivais de forma diferente: promovia umsegmento nacional e, na semana seguinte, um outro internacional,aproveitando o charme dos artistas estrangeiros. Flávio estavacomo jurado no primeiro FIC em 1965, que consagrou NanaCaymmi, com Saveiro, de Dori Caymmi e Nelson Motta, e revelouMilton Nascimento, com Travessia. Os festivais continuaram tra-zendo muita gente boa, mas também apareciam alguns estrangeirostotalmente desconhecidos, e ninguém sabia se eram famosos emseus países. Muitas vezes era preciso consultar um mapa paradescobrir onde ficava a republiqueta de onde vinham.

Em 1970, entre centenas de músicas nacionais inscritas para oFIC, 41 foram apresentadas numa primeira seleção, e, destas, 19acabaram classificadas. A final foi no Maracanãzinho, num domin-go, 18 de outubro, com direito a uma grande festa, torcidas orga

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nizadas, vaias, aplausos e muita contestação. Afinal, para umpúblico formado em sua maioria por estudantes, tudo era motivode festa. Em época de repressão, extravasar sentimentos numfestival era um prato cheio. Não se podia gritar nas ruas, cantava-senos estádios. Mas só o permitido pela Censura.

E sempre havia confusão. Dois anos antes, a canção Pra NãoDizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, deixara osquartéis em polvorosa por causa do refrão: "Vem, vamos emboraque esperar não é saber,/quem sabe faz a hora não espera aconte-cer." A Censura entendia que a letra instigava o povo à luta armadae foi um deus-nos-acuda. Durante anos a música teve sua execuçãoproibida.

Em 1970, Flávio recebeu uma carta de Augusto Marzagão,organizador do FIC, convidando-o, mais uma vez, para participardo júri. Por ter seu programa no mesmo dia e horário do festival,ele tentou conversar com Marzagão, e, como não conseguia,publicou esta carta em sua página de O Jornal, de 18 de outubro:

"Carta fechadíssima ao Marzagão:Pois é, Marzagão, velho de guerra. Sua carta salpicada

de elogios me convidava para o festival. E nela você dizia sereu o primeiro chamado para o júri deste ano. Confesso quefiquei contente. Puxa, você se lembra, éramos três na sala. Jálá se vão cinco anos. O excelente (e tão passado pra trás)ministro Rio Branco, você e eu. Já naquela época eu tinhamilhões de linhas de frente e não havia tempo. Recusei oconvite para estruturar e dirigir o FIC e apontei outro caraexcepcional em matéria de caráter, Paulo Tapajós, o pai.

Bom, mas isso não interessa. O FIC está aí gordinho,rechonchudinho, uma linda realidade, vivinha da silva. Suacarta está aqui ao meu lado, também vivinha da silva. Masquietinha e meio decepcionada. É outra realidade. Telefonei,Dom Marzaga, pro seu escritório. Corre-corre louco. Nin-guém sabia dizer nada. Era um tal de 'espera um pouco, seuFlávio...', 'daqui a pouco a gente liga, seu Flávio'. Aí pedicalma e disse à moçada que o convite estava em minhas mãosem forma de carta, por sinal muito bem escrita pelo chefio.

- Alô, seu Marzagão está?

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Quem quer falar com ele?- E Flávio Cavalcanti.E a confusão se fez outra vez. Frases soltas, fofas, desa-

jeitadas, desalinhavadas. Até que saiu publicada nos jornaisa lista, muito boa por sinal, dos jurados. E meu nome neresde tupiniquins. No fundo até que foi bom. Ando muito sobreo afobado. O chato é que quando a gente escreve e assina umacarta a gente não deve dar pra trás dessa maneira, não é,bicho? O bacana, o leal, o certo, o educado é ao menos, já nofim da linha da impossibilidade de se realizar o prometido,escrever uma outra carta dizendo que não se é rei nem nada,e que portanto a palavra volta atrás, sim. Não estou zangadonão, Marzagão. Até que aquela afobação toda no seu escritó-rio me divertia. Imagina só a cena (que ibope, seu!), euentrando pelo Maracanâzinho. Lá em cima o meu queridoChacrinha, com a buzina na mão, na minha mão sua carta, eeu procurando meu lugar na mesa do júri. Mas não há de sernada. Quá ... quá ... quá ... quá. Com um abraço, anote esta: aúnica maneira elegante de aceitar um insulto é não tomarconhecimento dele; se não for possível, devemos retrucarcom um insulto pior; se não pudermos fazer isso, devemosrir dele; se não pudermos rir, provavelmente o merecemos.Desculpe, Marzagão, mas quá ... quá ... quá..."

O festival prometia esquentar para todos os lados. O cantorPaul Simon, que viera para presidir o júri, criou o maior problemana chegada. Sua mulher, Peggy, desembarcou no aeroporto do Riovestindo uma camiseta com o retrato de Mao Tsé-tung, líder daChina Comunista, e na mesma hora foi advertida pela PolíciaFederal para que não circulasse pela cidade com aqueles trajes.Simon ficou aborrecido com a história, recusou-se a falar com osjornalistas na coletiva e mudou de hotel.

Flávio estava magoado com a história malcontada do Marza-gão, mas ao mesmo tempo não podia ficar alheio ao festival. E que,além de disputar sua audiência, um amigo e jurado de seu progra-ma, o maestro Erlon Chaves, estava envolvido no FIC.

Negro, muito elegante, namorado da também jurada VeraFischer, na época apenas uma ex-Miss Brasil, Erlon estava vincu-

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lado ao festival desde a primeira edição, ao integrar a equipe decriação e compor o prefixo musical. Paulista, músico nato, estreouno rádio aos dois anos e meio de idade como cantor. Aos setecomeçou a estudar piano, e aos dezessete se formou pelo Conser-vatório Musical Carlos Gomes. Tocando na noite, familiarizou-secomo repertório popular e desenvolveu um suingue muito especialpara seus arranjos, tendo como guru o compositor e maestroamericano Quincy Jones. Depois de ter composto uma sinfonia queservia de vinheta para a TV Excelsior, transformou-se no primeiromúsico brasileiro a compor trilhas para novelas: O Direito deNascer (TV Excelsior), O Sheik de Agadir e O Preço de uma Vida(TV Globo). Foi diretor musical da TV Rio em 65 e depois músicoe arranjador de Elis Regina, tendo se apresentado com a cantorano Olympia de Paris e em Lisboa.

Pois bem, Erlon estava classificado para a final com Eu Tam-bém Quero Mocotó, música de Jorge Ben que ele apresentava coma Banda Veneno, formada por músicos da melhor qualidade,alguns arregimentados em bandas do Corpo de Bombeiros e daPolícia Militar. Eu Também Quero Mocotó era uma grande brinca-deira de Jorge Ben. Tinham insistido para que ele inscrevesse umamúsica e, sem maiores pretensões, ele enviou o Mocotó. A letra erafraca, repetitiva, mas a música, com o arranjo e a performance dabanda, melhorou consideravelmente e conquistou o público na fasede classificação. Em tempos bicudos, qualquer coisa é sinônimode protesto, e por isso o Mocotó entrou no páreo com grandespossibilidades.

Festival é antes de mais nada show, que é ampliado se fortransmitido pela televisão. Assim, foi um não parar mais de colocartempero naquele mocotó. A TV Globo inventou o que pôde paramostrar o melhor do seu festival. O maestro e os componentes dabanda se apresentaram vestidos com uma túnica longa, que eramoda, e, para finalizar, um balé com uma supercoreografia. Noensaio, durante a tarde, o maestro até achou que estava exagerado,que iria dar problema. Mas Boni, diretor da emissora, achavaótimo, garantindo que tudo estava sob controle.

Rolava o festival, e entre outros concorrentes estavam O AmorÉ o Meu País, com Ivan Lins; Encouraçado, com Fábio (cantorque se consagrara anos antes com Srela); Meu Lararará, com

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Martinho da Vila; Universo no Teu Corpo, com Taiguara; e BR-3,com Tony Tornado e Trio Ternura.

A apresentação de Mocotó, como era de se esperar, foi umsucesso. Em determinado momento, as bailarinas, todas brancas,sensuais e insinuantes, aproximavam-se do maestro negro e oacariciavam e beijavam. Para os moralistas, aquilo era um escân-dalo. Para os racistas, um absurdo. E o público vibrou. Todo mundoqueria Mocotó, inclusive Luiz Carlos Maciel, um dos jurados. E,como o maestro previra, deu encrenca.

Do outro lado da telinha, num confortável apartamento naZona Sul do Rio de Janeiro, a mulher de um coronel ficou chocadacom a cena. Indignada, pediu ao marido providências. Afinal,como era possível um negro beijar uma branca na sala de visitasde sua casa? E, a televisão estava ali, mostrando o que ela consi-derava pouca-vergonha e um atentado à moral e aos bons costumes.Enquanto isso, uma outra confusão acontecia no Maracanãzinho.O fotógrafo Erno Schneider, do jornal O Globo, fora agredido porpoliciais enquanto fazia seu trabalho. Revidou a agressão e foilevado para a MI Delegacia. A imprensa deu apoio ao colega.Retirou-se do ginásio, avisando que só voltaria quando o fotógrafofosse solto. O júri, solidário, resolveu só anunciar o vencedor doFIC quando a imprensa voltasse ao trabalho, o que ocorreria coma liberação do fotógrafo. A divulgação do resultado atrasou umahora e, apenas quando o fotógrafo foi liberado, a música vencedorafoi anunciada: BR-3.

Diante da repressão em que se vivia, a música, de Antônio Adolfoe Tibério Gaspar, podia até ser vista como canção de protesto. Ocantor, Tony Tomado, um estreante, era um figuraço. Alto, negro,cabelos no estilo black power, dançava num gênero que se podechamar de pré-funk, no clima de James Brown. Algum tempo depoissurgiu a suspeita de que a letra tinha ligação com drogas, supondo-seaté que a BR-3 era a veia do braço. Haja imaginação!

Voltando ao Mocotó, Erlon Chaves saiu do Maracanãzinhocomo o rei da cocada preta, ou melhor, da branca. Seu prestígiocom as mulheres estava em alta, e naquela semana não se falou emoutra coisa a não ser em Mocotó. Até os restaurantes mais sofisti-cados passaram a incluí-lo em seu cardápio. No domingo seguinte,além de estar no júri, Erlon iria "servir" no Programa Flávio

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Cavalcanti o tão famoso Mocotó com a Banda Veneno, repetindoa apresentação do Maracanãzinho.

O programa era ao vivo, e na tarde de domingo havia umensaio. Erlon já tinha ensaiado quando saiu do estúdio e, atraves-sando a rua, foi até o outro lado da emissora para tirar uma cópiadas partituras que faltavam. Quando voltava para o estúdio, foiagarrado por dois homens, que o encapuzaram e o colocaram nochão de uma caminhonete Veraneio. Para disfarçar o que estavamcarregando, os homens pisaram no rosto do maestro, que foi levadopara o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita,Tijuca.

Algumas pessoas que assistiram à cena não entenderam nada.Muito menos o maestro, que não sabia por que estava sendo presonem para onde estava sendo levado. Ao chegar ao quartel, foicolocado numa cela junto com outro preso, o advogado HelenoFragoso. Erlon não era de esquerda nem de direita; seu crime eraser negro e ter beijado uma loura num festival de música.

A prisão de Erlon provocou um corre-corre na televisão. Fláviotelefonou para o general Sizeno Sarmento, comandante do 12

Exército, que prometeu investigar os fatos. Algumas horas depoisum coronel, a mando do general Sarmento, telefonou dizendo queo maestro não estava em poder do Exército. A busca continuavapor delegacias, quartéis, cada um fazendo o que podia. Após doisdias de buscas, Flávio conseguiu contato com o coronel OtávioCosta, chefe da AERP, o órgão de relações públicas da Presidênciada República, que ficou de colaborar na localização do maestro.Algumas horas depois veio a informação de que Erlon seria soltoem poucos dias, mas continuava-se sem saber onde estava.

Erlon foi solto quatro dias depois, de madrugada, em VilaIsabel. Telefonou para Flávio, dando a notícia, e o amigo LeopoldoTeixeira Leite, marido de Edna Savaget, foi buscá-lo. Sentindo-seperseguido, ficou duas semanas escondido na casa de seu amigoSimonal. Contou que não foi interrogado nem torturado, masprocessado por atentado ao pudor, o que lhe valeu uma suspensãode trinta dias em sua atividade profissional.

O Mocotó ainda rendeu em outras áreas. Algumas semanasapós o festival, Jaguar, um dos donos do jornal Pasquim, publicoua foto de um quadro do pintor Pedro Américo sobre a Independên-

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cia do Brasil. No momento em que Dom Pedro devia dizer "Inde-pendência ou Morte!", Jaguar colocou um balão com os dizeres:"Eu quero mocotó!" Por coincidência ou não, logo após a publi-cação a equipe do jornal, formada por Jaguar, Luiz Carlos Maciel,Ziraldo, Paulo Francis, Fortuna, Tarso de Castro, Flávio Rangel eJosé Grossi, foi presa. Que mocotozinho indigesto!

Depois da síndrome do mocotó, o maestro Erlon Chaves nuncamais foi convidado a se apresentar na Globo. Era contratado dagravadora Polygrain, onde gravou diversos discos com a BandaVeneno, participava do Programa Flávio Cavalcanti como juradoe eventualmente se apresentava com a sua banda. Erlon Chavesmorreu aos quarenta anos, em 14 de novembro de 1974, vítima deum enfarte, numa loja de discos no bairro do Flamengo, no Rio deJaneiro.

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"O importante é ter o direito sagrado depensar o que quiser. A minha briga é nocampo das idéias."

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Antonio Belio era assistente de produção do ProgramaFlávio Cavalcanti e responsável em selecionar os candidatospara o quadro "Fora de Série". As inscrições eram feitas àssegundas-feiras, e desde cedo uma longa fila formava-se naporta do escritório. Inventores com suas máquinas maravi-lhosas, amestradores de animais, engolidores de faca, cuspi-dores de fogo, todos queriam participar do programa e ganharo prêmio em dinheiro. Muitos vinham de longe trazendopresentes para Flávio, cartas de recomendação de políticosdo interior, e ficavam aborrecidos quando não eram escolhi-dos. A grande dificuldade para Belio era distinguir o fora desérie do artista circense e do inventor maluco.

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lo

Em algumas cidades do interior, os cinemas não funcionavamaos domingos por falta de público. Aparelhos de televisão eramcolocados nas praças para que todos pudessem assistir ao Progra-ma Flávio Cavalcanti, na Tupi, que possuía a maior rede de 1'V dopaís. A Globo tentava ocupar o mesmo espaço, inaugurando novasrepetidoras e afiliadas.

Fazíamos o Programa Flávio Cavalcanti em ritmo de censuratotal em pleno regime do general Emilio Garrastazu Médici (deoutubro de 69 a março de 74). O Brasil tinha outra cara. Muitos quetinham acreditado na revolução de 64, como Lacerda e FlávioCavalcanti, discordavam dos rumos que a "Redentora" tinha to-mado. Tortura, desaparecimentos, uma constante. Havíamos passa-do pelos governos militares dos marechais Humberto de AlencarCastelio Branco (1514164 a 1513167) e Arthur da Costa e Silva(1513167 a 30110169), e desde 13 de dezembro de 1968, ao serpromulgado o Ato Institucional n2 5, a barra estava pesadíssima.

O país passava por uma crise de euforia e crescimento. Aseleção brasileira de futebol tinha conquistado o tricampeonato noMéxico e trazido pra casa a Taça Jules Rimet; Emerson Fittipaldiera campeão de Fórmula 1. A indústria vivia o milagre brasileiro.Noventa milhões em ação, pra frente Brasil... Eu te amo, meuBrasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil...

Há alguns anos Joãozinho Trinta, com muita propriedade,

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disse que "intelectual gosta de pobreza, e pobre gosta de luxo".Flávio já sabia disso, pois esta era a tônica do seu programa. Nãoera só luxo, mas bom gosto, sensibilidade e uma criatividadeinsuperável. Quatro horas ao vivo, sem quadros pré-gravados,eram pra leão. Aos domingos, a agitação começava de manhã, coma montagem do cenário e os ensaios dos números musicais com aorquestra do maestro Cipó. As seis da tarde, tudo tinha que estarpronto. Era uma tensão enorme, nenhuma atração podia faltar.Flávio era perfeccionista, muito exigente, e nada podia dar errado.O programa tinha que sair igualzinho ao que fora planejado, senãovinha bronca.

Além da parte jornalística em "Flávio Confidencial", onde oapresentador realizava incríveis entrevistas, a cada semana o pro-grama trazia também uma parte musical e uma série de concursoscomo "O Homem Mais Bonito do Brasil" (o primeiro foi PedrinhoAguinaga, que se eternizou com o título, e o segundo foi MaurícioAlberto, um ano depois lançado como cantor internacional com opseudônimo de Morris Albert), "Miss Suéter" (Rose di Primo),"A Mais Bela Moça de Óculos", "Minha Patroa, Minha Amiga"(com empregadas domésticas), "A Gordinha Mais Simpática","Arrimo de Família" e dezenas de outros. Estes concursos dura-vam semanas, davam audiência e quebravam tabus. Os homensdeixavam de ter vergonha de dizer que eram bonitos, as gordinhaspassavam a se sentir mais charmosas, as domésticas mais impor-tantes, miopia não era problema, e assim por diante.

Mas, entre todos esses concursos, havia um, logo copiadopelos concorrentes, chamado "Fora de Série". O objetivo eraapresentar pequenos inventores, pessoas que faziam alguma coisainusitada, diferente, visando a estimular a criatividade. O júriescolhia o melhor, e o vencedor levava um prêmio em dinheiro. Osucesso foi tanto que uma equipe da televisão japonesa veio aoBrasil especialmente para gravar este quadro do programa e levoualguns foras de série para apresentações no Oriente. Entre eles,lembro de uma professora, Helena Lacour, ambidestra, que escre-via com uma mão e desenhava com a outra, simultaneamente.Lembro também de um homem que escalava paredes com umasuperagilidade, parecia o Homem Aranha, e acabou se exibindo noJapão. Havia também inventores malucos; um deles apareceu com

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uma geringonça engraçadíssima para matar formigas. O quadrotinha um pouco de espetáculo circense e muito de criatividade, ese tomou tão popular que a expressão "fora de série" passou a serusada como sinônimo de inusitado.

Durante longo tempo, a última meia hora do programa eraocupada pela gincana "Minha Turma E da Pesada". Começoucom uma competição entre bairros, passando depois ao nívelinterestadual, em que competidores do Rio e de São Paulo dispu-tavam um grande prêmio. A cada semana as tarefas ficavam maisdificeis. Alvaro e Celso Pereira eram líderes das equipes e quasese tomaram gincaneiros profissionais. Cumpriam as tarefas maisloucas, como, no centésimo programa, apresentar uma pessoa comcem anos, a centésima música de Roberto Carlos, um bolo comcem velas, um casal com cem minutos de casados, um com cemdias e outro com cem meses. Num domingo, uma das tarefas eralevar até o programa alguém "fora de série", e o convidado foiLennie Dale, na época cumprindo pena por uso de drogas. Nin-guém mais do que Flávio condenava o uso de tóxicos. Ele promo-veu, inclusive, diversas campanhas contra as drogas. Depois de umshow incrível do artista, ele se rendeu ao talento do bailarino.Sensibilizado, conseguiu através de um sobrinho, Dr. FranciscoLuiz Horta, na época juiz da Vara de Execuções Criminais, regaliaspara que Lennie continuasse se exercitando e não perdesse a forma.

Numa das finais, em que o prêmio era um carro, a sofisticaçãoda gincana chegou a tal ponto que a última tarefa era dar uma voltaao mundo em sete dias, trazendo alguma coisa "fora de série" decada país. Claro que tudo pago pela produção. Eles não tiveramtempo de respirar durante aquela semana. Alvaro viajou em direçãoao Oriente e Celso, em direção ao Ocidente, e em alguns países sóficaram no aeroporto. Resultado da gincana: empate.

Fora do vídeo, uma das facetas mais gostosas de Flávio era asua forma espontânea de falar com as pessoas e fazer amigos.Quem conviveu com ele longe das câmeras sabia dos seus impulsosarrebatados, as brincadeiras com amigos, das farras na piscina,onde ninguém estava livre de se divertir como criança, ou do jeitocom que se aproximava de alguém a quem admirava mas jamaisfora apresentado e puxava assunto. Assim aconteceu uma tarde noD'Angelo, tradicional casa de chá do centro de Petrópolis, por onde

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passava numa de suas caminhadas. Sentada sozinha a uma mesa,a escritora Adalgisa Nery tomava chá num final de tarde. Flávioparou para cumprimentá-la. Não tinham sido apresentados antes,e, apesar de terem posições políticas opostas, ele a admirava.

AdalgisaNeiy, poeta, romancista, deputada, embaixairiz,jornalistacombativa, durante muito tempo foi ligada agnipos de esquerda Viúvado pintor Ismael Neiy e depois casada com Lounval Fontes, diretor doDIP (Departamento de Imprensa e Propaganda do governo de GetúlioVargas), nos anos 50 fazia a coluna diária "Retrato Sem Retoque", nojornal Ultima flora, que lhe valeu, inclusive, em 1960, uma vaga comodeputada do recém-criado estado da Guanabara. Reelegeu-se em 1962,sempre sob a legenda do Partido Socialista. Defensora ferrenha deGetúlio, o que Flávio admirava naquela mulher era a sensibilidade,demonstrada nos livros Poemas (1937), OG (1940), A MulherAusente(1940), Ar do Deserto (1945), As Fronteiras da Quarta Dimensão(1951), A Imaginária (1959) e Mundos Oscilantes (1962).

Flávio convidou-se para sentar e o papo preencheu a tarde. Jáescurecia quando resolveram ir embora. Flávio viu que Adalgisase dirigia para o ponto de ônibus e ofereceu-lhe carona. Ela moravaperto do Quitandinha, e, lá chegando, convidou-o a entrar paramais um café. Era uma casa muito simples, e Adalgisa contou dasolidão, dos filhos que pouco a procuravam. Logo nasceu a ami-zade. Ele passou a convidá-la para ir à sua casa, do outro lado dacidade. As conversas rolavam até tarde da noite entre Flávio,Belinha e Adalgisa, e quando olhavam o relógio já era tão tardeque ela acabava dormindo por lá. Foi ficando tantas vezes até queum dia ficou definitivamente, fazendo parte da família. Para me-lhor acomodar Adalgisa, Flávio construiu, especialmente para ela,uma casa de hóspedes com um quarto muito confortável.

Lembro de Adalgisa, mulher altiva, personalidade forte, an-dando pela casa de Flávio como se fosse sua. Muitas vezes nosreuníamos em almoços aos domingos, e ela, sempre falante, pon-tificava em todas as discussões. Palpitava sobre o programa, apro-vava alguns quadros, criticava outros e exercia seu direito delivre-pensadora. Apesar de todas as controvérsias, era uma grandeamiga de Flávio. Era interessante ver como pólos diferentes seencontravam e, sobretudo, se respeitavam debaixo do mesmo teto.Um exemplo de civilidade e democracia. Ela getulista, comunista,

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contra a revolução de 64. Flávio lacerdista, democrata, lutou afavor. Adalgisa não dependia de Flávio financeiramente, gostavada amizade, do carinho e do aconchego que encontrou naquelafamília. Foi na casa do apresentador em Petrópolis que Adalgisavoltou a escrever, depois de dez anos, e fez seu último livro,Erosão, lançado em 1973. Quando Flávio mudou-se para SãoPaulo, Adalgisa preferiu ir morar num asilo de idosos em Jacare-paguá, onde morreu aos 74 anos, em 8 de junho de 1980.

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"Sou como sou, nunca represento."

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Os ensaios aos domingos começavam à uma hora datarde e acabavam antes das seis, hora em que o programaentrava no ar ao vivo, sem atraso. Roberto Carlos, quandoparticipava do programa, tinha prioridade nos ensaios e, porser perfeccionista, fazia a banda repetir diversas vezes amesma canção, atrasando os ensaios. Num desses domingos,Cláudia também ia se apresentar, e chegou cedo para osensaios. Mas, com os atrasos de Roberto, às seis em ponto,quando o programa entrou no ar, a cantora ainda estava nopalco, com os cabelos enrolados, rosto sem maquiagem,passando o final da canção. O programa não podia atrasar, eFlávio entrou no ar assim mesmo. Transformou o erro emnotícia, fazendo um pequeno editorial sobre o profissionalis-mo da cantora e mostrando os bastidores da televisão.

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11Flávio sempre gostou muito de escrever, e começou sua

carreira junto com um amigo, Sérgio Porto, mais tarde conhecidocomo Stanislaw Ponte Preta, que tão bem definiu a televisão como"a máquina de fazer doidos". Pois bem, Flávio e Sérgio fizeramconcurso para o Banco do Brasil. Jamais haviam trabalhado, enaquela época trabalhar em banco era um grande negócio. Mas avida de bancário não satisfez nem a Flávio nem a Sérgio, que logoprocuraram outra saída.

Em 1945, através de um outro amigo, Fernando Hupsel deOliveira, Flávio chegou até o jornal A Manhã e foi admitido comocolunista social, no setor onde pontificava Jacinto de Thormes.Mas, como não levava jeito para colunista, passou para a reporta-gem geral como foca, ou seja, repórter iniciante. Era o ano em queGetúlio Vargas fora deposto, e deram a Flávio a tarefa de entrevis-tar o ex-presidente, que se recolhera à vida particular em umapartamento no Morro da Viúva. Ninguém da imprensa conseguiachegar até o homem. O prédio estava cercado por policiais dogoverno e pela guarda pessoal de Vargas.

Flávio era muito magrinho, muito alto e muito envolvente.Vestiu-se como garçom e, fingindo prestar serviços a uma famíliaque morava no mesmo andar que o ex-presidente, conseguiu burlara vigilância e entrou no prédio. Chegando no andar, apertou acampainha do vizinho, sob os olhares atentos dos que vigiavam oapartamento do ex-presidente. Ao ser atendido, inventou uma

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explicação para a sua presença e conseguiu entrar. Fechada a porta,perguntou pela dona da casa e, com toda a sinceridade, disse omotivo de sua presença ali. Mas, com toda a insinceridade derepórter que se vale de quaisquer meios para atingir seus objetivos,inventou que se não pudesse apresentar uma boa reportagem seriadespedido. Comoveu a dona da casa. E começou então uma opera-ção acrobática para chegar até o apartamento de Vargas, pois teriaque pular da área de serviço de um apartamento para o outro. Eramesmo uma invasão de domicílio. Flávio não pensou no perigo, nãoteve medo da altura e pulou para o apartamento de Vargas, onde foiagarrado pelo tenente Gregório, guarda-costas do ex-presidente.

A cena deve ter sido muito engraçada: Flávio, magrinho,disctitindo com o gigante Gregório Fortunato. Em meio às discus-sões, atraído pelas vozes, surgiu o Dr. Alencastro Guimarães,ex-ministro de Vargas, que resolveu ouvir os apelos do jovemrepórter e negociar a entrevista com o ex-presidente. Alguns mo-mentos depois chegou à área de serviço dona Darcy, esposa deVargas, que, impressionada com a ousadia de Flávio, permitiu queele entrasse no apartamento e fizesse a tão desejada entrevista.

E então ficaram, frente a frente, de um lado o repórter furão,sem a menor tarimba, mas possuidor de uma enorme força devontade, do outro o político imbatível, homem procurado, assuntoa ser explorado. A entrevista durou algumas horas, e Vargas faloupor que fechara o Congresso em 1937 e não realizara as eleiçõescomo prometera, pois, segundo ele, o povo estava despreparado.Falou que o país precisava de uma paz social e de suas realizaçõescomo a criação de Volta Redonda e o Ministério do Trabalho. Comesta entrevista, Flávio foi promovido de foca para repórter eprofissionalizou-se ao entrar para o Sindicato dos Jornalistas.Começava ali uma carreira que seria a paixão de sua vida.

No entanto, com o aparecimento da TV em 1950, a imprensaescrita passou a ter um misto de mágoa e inveja daquele novoveículo que veio tomar seu espaço. Sem contar que os jornalistasde televisão eram e são muito mais bem remunerados do que os dejornais e revistas. Mas a mídia impressa sempre precisou da mídiatelevisiva para se promover e, por essa razão, durante muito tempoabriu espaço para apresentadores de TV escreverem em suaspáginas.

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Assim foi algumas vezes com Flávio Cavalcanti. Em O Jornal,um veículo integrado aos Diários Associados, ele manteve umapágina semanal entre 70 e 71; depois foi para o Ultima Hora, ondedurante um tempo assinou duas páginas diárias que eram coorde-nadas pelo jornalista Artur da Távola, o hoje deputado federalPaulo Alberto Monteiro de Barros.

Flávio conheceu Paulo Alberto no início dos anos 60. PauloAlberto dirigia a UME - União Metropolitana dos Estudantese convidou o apresentador a dar uma aula de jornalismo na Facul-dade Cândido Mendes. Flávio era autodidata, não fazia o tipointelectual, e esse convite lhe deu enorme gratificação. Comoagradecimento, em 1961, quando Paulo Alberto se candidatou adeputado estadual, Flávio o convidou a participar do programaNoite de Gala. O jovem candidato era bonito, charmoso, e tinhauma incrível facilidade de comunicação. Isso, somado à grandeaudiência do programa, representou muitos votos, e em muitocolaborou para sua eleição a uma cadeira na Assembléia Legisla-tiva.

Seu primeiro mandato foi curto. Cassado pela revolução de 64,buscou exílio no Chile. Aproveitando uma pequena abertura quesurgiu durante o governo Costa e Silva, voltou ao Brasil em 1968.Nessa mesma época, voltava também de Paris o jornalista SamuelWainer, dono do Ultima Hora, jornal quase fechado com a revo-lução. Dez dias após sua chegada, Paulo Alberto foi procurado porFlávio e convidado a integrar o júri de um de seus programas, UmInstante, Maestro! ou A Grande Chance. Por estar cassado, nãopodendo ser apresentado como deputado, Flávio sugeriu que nojúri ele fosse apresentado simplesmente como "o jornalista PauloAlberto". O convite o sensibilizou, mas ele não o aceitou. Pareciaexagerado, pouco oportuno e politicamente incorreto que, comocassado, aparecesse do lado de alguém que apoiara a revolução.

Nesse retorno ao Brasil, sem direitos políticos, Paulo Albertofoi trabalhar no Ultima Hora, escrevendo sobre televisão, assuntoque passou a conhecer quando foi obrigado a morar no Chile. Em1970, Samuel Wainer, dono do jornal, estava promovendo umaremodelação, numa tentativa louca de superar a crise que o UltimaHora atravessava. Criou um suplemento cultural, editado em for-ma de tablóide, contando com a colaboração de jornalistas como

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Nelson Motta, Luiz Carlos Maciel, DanielMás e o próprio Arturda Távola.

Wainer não era amigo de Flávio, até porque tinham pontos devista contrários, mas se respeitavam. Consciente da penetração doapresentador e de sua grande audiência, convidou-o a escrever duaspáginas diárias no jornal. Era um jogo interessante para ambas aspartes: espaço para Flávio escrever o que quisesse e divulgação degraça para o jornal. Mas não era apenas isso. Flávio podia comer-cializar os espaços das duas páginas e com isso ajudar a pagar osalário de dois funcionários do Última Hora, Artur da Távola eCélia Ladeira. Em meio expediente, os dois trabalhavam em nossoescritório na Urca, como redatores dessas páginas. Através daAnatom e da Erontex, patrocinadoras do Programa Flávio Caval-canti, o apresentador conseguiu vender seu pequeno espaço publi-citário, e assim a equipe era paga. Essa experiência no Ultima Horadurou pouco, apenas três meses. Flávio adorava escrever, mas oexcesso de trabalho estava levando-o a uma estafa, e ele teve queoptar. Ficou só com a televisão. O Ultima Hora pertenceu a SamuelWainer apenas por mais um ano: . foi vendido em 21 de abril de1972.

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"Um velho ditado diz que no sucessodevemos ser cavalheiros e no desastredevemos ser homens."

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As inscrições para o Mli' - Mercado Internacional doTalento - eram feitas às quartas-feiras. Carminha Mascare-nhas fazia a seleção, auxiliada pelo maestro Anselmo Maz-zoni ao piano. A maioria dos candidatos mostrava o potencialvocal interpretando clássicos de Noel Rosa e Chico Buarque.No entanto, uma pequena parcela inscrevia-se querendo in-terpretar suas próprias composições, como foram os casos deFátima e Maurício Alberto Kaiserman. Carminha Mascare-nhas aconselhou Fátima a escolher uma composição conhe-cida, e ela alguns anos depois transformou-se em Joanna,.grande intérprete da música romântica. Maurício foi elimina-do como cantor, concorreu ao título de Homem Mais Bonitoe foi vencedor. Em 1975, Maurício se tornou o internacionalMorris Albert.

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12Participar do júri era chique, dava status, e muitas pessoas

ganharam notoriedade através do Programa Flávio Cavalcanti. Ojúri era formado por jornalistas, músicos, radialistas, artistas, co-lunáveis e personalidades, num total de dez pessoas. Flávio sabiaa medida exata de formar um grupo heterogêneo que colaboravapara o sucesso do programa. Convidava e fazia o teste da empatiacom o público e da comunicação. Quando sentia que o juradorendia, que os comentários eram inteligentes e, sobretudo, quetinha noção de timing, mantinha-o no programa. Nada era combi-nado. Flávio sabia que eles eram profissionais, e em suas mãosestava a missão de levantar ou derrubar o programa.

Alguns jurados eram fixos, outros temporários. Não haviacontrato, apesar de todos receberem cachê. Os problemas entreFlávio e os jurados surgiam quando eles passavam a acreditar queo lugar ocupado na bancada era vitalício. O apresentador adoravamudar a cara do programa, uma forma de não cansar o telespecta-dor, e com isso mudava também o júri. Quando ocorriam essasmudanças, ele enviava uma cartinha amabilíssima agradecendo aparticipação e dispensando a colaboração. Muitos não aceitavam,e assim Flávio ganhava mais um inimigo. Nós, da equipe, chamá-vamos essa cartinha de "voador". Eu era encarregada de datilo-grafá-las e enviá-las acompanhadas com flores. O "voador"sempre surgia às segundas-feiras, depois da reunião em que sediscutia o programa do dia anterior e se planejava o próximo.

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Muita gente passou pelas inúmeras bancadas do programa.Alguns marcaram mais, outros menos. Márcia de Windsor foijurada por longo tempo. Era amiga pessoal de Flávio, e o acompa-nhava desde A Grande Chance. A cada domingo desfilava umvestido diferente, como se estivesse indo para uma festa black-rie.As donas-de-casa babavam. Márcia tinha fã-clube, era gentilíssimacom os calouros e só dava nota dez. Mansa Urban, além de jurada,era amiga de Flávio de muitos anos e figura constante; assim comoDanuza Leão, o deputado Alvaro Valie, o compositor FernandoLobo, Sérgio Bittencourt, Humberto Reis, Carlos Renato, RonaldoBôscoli e o maestro Erlon Chaves.

Em maio de 1972,0 costureiro Denner fazia parte do júri, commuito sucesso. Afetadíssimo no falar, culto, inteligente, com adesenvoltura mostrada no programa, foi convidado para ter seupróprio programa na TV Itacolomi, em Belo Horizonte. Mas,seguindo instruções dadas à Censura pelos ministros da Justiça edas Comunicações, costureiros como Denner, Clóvis Bornay eMauro Rosas estavam proibidos de aparecer em qualquer progra-ma de televisão. Para ser mais direta, a Censura avisava que nãopermitiria, sob qualquer pretexto, a inclusão de artistas que pudes-sem transmitir estímulos negativos à formação moral do especta-dor. Os critérios da Censura eram ridículos. Ao mesmo tempo emque Denner, educado e gentil, era vetado no júri Luxo, o escritorFernando Jorge, grosseiro e deselegante, estava liberado paracontinuar dizendo todas as barbaridades que bem entendesse.

Lembro também no júri de Regina Rozemburgo, ArmandoMarques, Hildegard Angel, Marcos Szpilman, Vera Fischer, Renéede Vielmond, Maria do Rosário Nascimento e Silva, Germana deLamare, Alik Kostakis, Armando Pitigliani, Tetê Nahas e TerezaSodré.

Em 1972, Flávio morou uma temporada no anexo do HotelCopacabana Palace enquanto seu apartamento na Rua Paula Freitasestava em obras. Nessa época, Mansa Raja Gabaglia, que faziaparte do júri, foi até lá contar sobre o lançamento de seu primeirolivro, Milho pra Galinha, Mariquinha - uma coletânea de crôni-cas que escrevera para o jornal Ultima Hora -, e pedir a Flávioajuda na divulgação. Flávio abriu espaço no programa, e o livro setornou bestseller, vendendo 120 mil exemplares.

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Durante um período, além do júri que ficava em frente àscâmeras, Flávio criou um júri crítico, formado porjornalistas comoMaria Claudia Bonfim, Giba Um, Eli Halfoun, Marcos Merehi,Moisés Fuks e Raul Giudiceihi, que assistiam ao programa pelatelevisão confortavelmente instalados em nosso escritório, comose estivessem num coquetel. Bebiam uísque, saboreavam canapése no final iam ao palco julgar o próprio programa, com liberdadetotal de opinião.

Mas Flávio era especialista em criar polêmicas, principalmen-te quando o assunto era música. Para isso, durante alguns meses,utilizou dois júris que discutiam as melhores músicas de todos ostempos. As opiniões eram sempre contraditórias, pois um júri eraformado apenas por jovens como Eleonora Soledade (filha docompositor Paulo Soledade), Maria Luiza Imperial (filha de Car-los Imperial), Pratinha (filho de Grande Otelo), Marcelo (filho doator Carlos Alberto), Micheline Christophe (que respondera noprograma O Céu É o Limite, de J. Silvestre, sobre o Egito), JoséBeilo (filho da Nair Behio) e Gisela Pitanguy (filha do cirurgiãoplástico Ivo Pitanguy); e o outro, mais velho, formado por profis-sionais da música e da televisão, como Floriano Faissal, LindaBatista e Nair Behio.

O rigor do regime político dos anos 70 foi um dos elementosque propiciaram o crescimento dos júris em programas de televi-são, assim como a popularidade e o prestígio dos jurados. Como opovo não podia votar, nem emitir opinião, buscava identificaçãonos jurados, uns poucos "agraciados" em emitir conceitos, mesmoque sob a mira da Censura, prontos a serem executados a qualquermomento.

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"T apavorante saber que estou falandopara seiscentos Maracanõs superlotados."

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O júri Luxo, localizado no palco, e o júri Popular, naplatéia, estavam sempre se confrontando. Denner era o suces-so do júri Luxo. Um domingo o programa apresentou umaencantadora de serpentes. Quando a mulher abriu o balaio etirou a primeira cobra, o pavor de Denner em ver o réptil foitamanho que ele saiu do palco, escondendo-se na platéia.Todos riram muito com a confusão, e, após a apresentação dacobra, ao voltar para o júri, Denner ouviu o seguinte comen-tário de Sérgio Bittencourt: "Foi preciso uma cobra noprograma para você ir ao povo." Rápido de raciocínio,Denner respondeu: "Ir ao povo eu sempre vou; você vir parao júri Luxo é mais difícil."

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13Mesmo abrindo mão de suas colunas no Última Hora, Flávio

não perdeu o contato com Paulo Alberto, que, naquela época, jáestava se associando a um projeto do jornalista Gentil Noronha.Nos anos 60, Noronha começou a arquivar informacões sobre oBrasil, principalmente as que se referiam à economia. Acordavade madrugada, lia os jornais e arquivava os dados em fichas. Ummétodo bem artesanal. Em pouco tempo, tinha um acervo degrande valor histórico, e, para expandir sua empresa, chamou CiroCurtis, Alfredo Viana, Paulo Alberto e Eurico Amado. Homensmuito inteligentes que, assim como ele, já haviam passado porenormes dificuldades por serem de esquerda.

Juntos formaram o Indice —Banco de Dados, prestando umserviço muito interessante. Diariamente, por volta das duas horasda manhã, assim que os jornais eram impressos, Gentil e sua equipefaziam uma leitura detalhada, selecionando as principais notíciaseconômicas. Depois redigiam um boletim, que era mimeografadoe distribuído aos clientes. Era um trabalho apaixonado e dedicado.A clientela era formada por empresários que não tinham tempo aperder com a leitura de todos os jornais e iam direto ao queinteressava: a economia do país.

A amizade de Paulo Alberto a Flávio fez com que toda semanarecebêssemos informações do índice sobre o crescimento do país,notas interessantes que o apresentador gostava de divulgar noprograma, sempre citando a fonte. Índice - Banco de Dados

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ganhou notoriedade em todo o país, a clientela ia aumentando eaos poucos a forma artesanal de classificar as informações foidando lugar aos computadores. No programa, as notas divulgadastambém faziam sucesso. Recebíamos cartas de todo o Brasil pe-dindo mais e mais informações. Não só técnicos em economia nosescreviam mas também pequenos artesãos, donas-de-casa, vende-dores, aposentados, soldados, estudantes e bancários querendomais dados. Era um período próspero na economia do país.

Diante do interesse do público e do empenho de Flávio emcolaborar com os profissionais do Índice, a equipe resolveu criarum livro mostrando o Brasil que o Brasil não conhecia. Os jorna-listas Alberto Rajão e Jesus Soares Pereira trabalharam em tempointegral para a elaboração do livro Brasil em Dados, que emoutubro de 71 foi lançado no Programa Flávio Cavalcanti. Oprefácio escrito pelo apresentador era o seguinte:

"Há cerca de um ano, o Programa Flávio Cavalcanticomeçou a divulgar pequenas informações sobre a economiabrasileira, aproveitando o excelente trabalho de pesquisa queme é fornecido diariamente pelo índice - Banco de Dados.

Ao fazer essa divulgação, meu desejo era o de prestarmais um bom serviço aos telespectadores da TV Tupi, Canal6, transmitindo-lhes dados de grande valor para quem plane-ja, educa, produz, comercializa, estuda, para todos aqueles,enfim, que precisam da informação econômica em suas ati-vidades profissionais.

Supunha que o número dessas pessoas não fosse muitogrande, limitado que estaria a uma parte das chamadas elitesdo país. Embora poucas, mereciam que o Programa FlávioCavalcanti estendesse a elas o serviço que ainda era privilé-gio dos clientes do índice.

Devo confessar que me enganei, apesar de minha longaexperiência na imprensa, no rádio e na televisão.

Milhares e milhares de cartas começaram a chegar, detodo o país, das grandes cidades e dos pequenos municípiosdo Norte, do Leste, do Centro, do Oeste e do Sul. Dezenas demilhares de brasileiros escreviam-me pedindo mais informa-ções.

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'Seu Flávio. Quantas toneladas de aço produz o Brasil?Qual a quilometragem de nossas estradas? Quantos analfabe-tos ainda existem? Por que não se industrializa a banana?Quantas vagas existem nas universidades brasileiras? Qualtem sido o aumento de nossa renda per capita?'

Eram consultas de professoras, médicos, advogados, in-dustriais. Mas eram também, e em maior número, perguntasde operários, comerciantes, camponeses, donas-de-casa, es-tudantes, vendedores, aposentados, soldados, empregadasdomésticas.

Descobri com uma das maiores emoções de minhavida que o povo brasileiro queria saber; que o povobrasileiro quer conhecer o seu país, a sua terra, a sua gente,os seus problemas, as suas possibilidades. Descobri que opovo brasileiro deseja aprender, para melhorar, para cons-truir, para desenvolver-se.

Era preciso ajudá-lo.Recorri ao índice. Expus essa necessidade e a minha idéia:

estender ao povo a assessoria econômica que vinha sendoprestada apenas aos técnicos, aos dirigentes, aos grandesindustriais e homens de empresa que têm acesso às fontes depesquisa ou que recebem todas as manhãs o Boletim do Bancode Dados.

Meu entusiasmo foi imediatamente entendido e incorpo-rado pelos jovens empresários e profissionais daquela orga-nização. Começamos a recolher informações, a classificá-las,a organizá-las didaticamente, a enriquecê-las com fotos, grá-ficos e quadros, a traduzi-Ias para uma linguagem simples,ao alcance de todos.

Posso dizer agora, com muito orgulho, que o resultadodesse trabalho foi o que obtive no índice, guardei e passo avocês: o Brasil em Dados.

De tudo o que fiz nos jornais, nas emissoras de rádio enos estúdios de televisão, procurando durante anos oferecerao meu público a melhor música, o humor mais alegre, anotícia mais verdadeira, o espetáculo mais agradável, nadase compara ao que desejo oferecer a todo o povo brasileiroatravés deste livro: o conhecimento de seu próprio país.

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Brasil em Dados não contém a minha opinião nem aopinião de ninguém. Não é contra nem a favor de pessoas oude partidos. Não ataca nem defende quem quer que seja.Brasil em Dados informa.

Esta é a minha contribuição ao desenvolvimento, à paz,à integração e à felicidade deste nosso querido Brasil. Emodesta, sem dúvida. Mas eu a dou, juntamente com o Índice- Banco de Dados, com o melhor do meu carinho, do meupatriotismo, da minha confiança nesta brava gente brasileira.

Tomem este livro nas mãos, transfiram para a memóriao que ele contém, fortaleçam no coração o que ele desejaensinar: o amor ao Brasil, não apenas pelo que ele é, mas peloque ele deve e pode ser. E será.

Flávio Cavalcanti."

Brasil em Dados se transformou num grande sucesso editorial.Em 48 horas foram vendidos vinte mil exemplares, em umasemana, cinqüenta mil, e em um ano, duzentos mil. Tinha 144páginas escritas por uma equipe de técnicos e profissionais doIndice; trazia ainda fotografias, gráficos e quadros, traduzindo aeconomia para uma linguagem simples, bem ao alcance do público.Nessa época o Brasil tinha 92 milhões de habitantes e era o oitavopaís em volume populacional. Na sua frente estavam China, Índia,União Soviética, Estados Unidos, Indonésia, Paquistão e Japão.Em 72, Flávio lançou São Paulo em Dados, também elaborado pelaequipe do Índice. Repetindo o sucesso, o livro teve cem milexemplares vendidos em menos de seis meses só em São Paulo.

O Índice ainda prestou serviços à Bolsa de Valores do Rio deJaneiro e a muitas empresas de grande porte. Foi vendido em 74,e de sua equipe original continuam entre nós Paulo Alberto Mon-teiro de Barros, deputado federal, e Ciro Curtis, advogado.

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"Acho que psicanalista é aquele cara quequer que a gente deite, para ensinar comoé que a gente deve proceder quando estáem pé."

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Os relógios Classic eram um dos patrocinadores doprograma. Semanalmente recebíamos muitos relógios, queeram distribuídos entre os participantes dos concursos, jura-dos, auditório, e Flávio sempre sorteava um entre os músicosda orquestra. Muitas pessoas escreviam pedindo relógios,outras falavam com Flávio na rua. Entretanto, a pedinte maisassídua era uma senhora da Censura que ia todos os domingosao programa. Seu humor e a boa vontade para a liberação dedeterminados assuntos variavam de acordo com a quantidadede relógios que ganhava.

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FElA Censura estava sempre presente nas situações mais impre-

visíveis. Em maio de 1971, para integrar ojúri do programa, Flávioconvidou Bete Mendes, que estava no elenco da novela Meu Pé deLaranja-Lima, na Tupi. Ele sempre fazia isso. Chamar atores daTupi para participarem do júri era uma forma de divulgar a progra-mação da emissora, que, em se tratando de novelas, perdia para aGlobo, principalmente no Rio. Bete era uma das atrizes maispopulares da Tupi, tendo participado, inclusive, de BetoRockefel-ler. Escrita por Bráulio Pedroso, esta novela mudou a concepçãoda telenovela brasileira, por sua linguagem inovadora.

Bete estreou no júri domingo, 23 de maio. Nessa época, umdos pontos altos do programa era o "Arrimo de Família", umquadro onde eram apresentados jovens menores de idade quesustentavam, ou ajudavam a sustentar, a família com seu própriotrabalho. Era comovente. O Brasil chorava com as histórias tristesdaqueles jovens, repetidas a cada semana e selecionadas através dojúri. O critério para essa escolha era muito pessoal, valiam oesforço de cada um dos arrimos, a simpatia, a luta, a necessidade.O prêmio final era uma casa. O ganhador foi Praxides, pouco maisde quatorze anos, que sustentava a avó e três irmãos. De tanto irao programa todos os domingos, terminou por se juntar à equipe,e, trabalhando conosco, ganhava mais uns trocados.

Voltando a Bete, Flávio ficou enternecido com a sua emoçãono programa de estréia e passou isso para o papel. Publicou um

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artigo dias depois, numa das duas páginas que assinava diariamenteno Ultima Hora.

"Uma Rosa para BeteVejo pouco a Bete Mendes, a mais nova das minhas

juradas. Ela grava a semana inteira em São Paulo os capítulosde Meu Pé de Laranja-Lima. Avião pra cá. No júri sentada.Avião pra lá. Mal dá pra conversar com ela. Muito menosentrevistá-la para vocês.

Em tempos agressivos, a recuperação da ternura é medidaterapêutica. E Bete é assim: ternura sem melado.

Outro dia ela chorou no quadro 'Arrimo de Família'. Desuas pestanas, ainda molhadas, é a foto desta página. Háchoros e choros. Um deles, mais freqüente nos programas detelevisão, é o que vem de uma emoção rápida, forte demais.E um estado nervoso. Outro deles, mais fundo, correspondea sentimentos mais duradouros. Foi o dela. A emoção de umjovem chorando tem sempre um sentido que devemos com-preender, já que, até biologicamente, a juventude se protegedos sentimentos pela extrema abertura à alegria e à confiançana vida.

Eu compreendi tudo nas lágrimas de Bete. Era a misturado sentimento do próximo com a certeza da própria impotên-cia para resolver certos problemas humanos. Nesse momentoela talvez tenha compreendido, como milhares de jovenscomo ela, que muitas vezes somos obrigados a chocar e aagüentar as críticas que vêm em cima para disseminar exem-plos, semear a esperança de reconstrução que existe emqualquer ser humano que não parou de contemplar passivoas dificuldades e resolveu sair em frente. A única maneira delevar isso a milhões de brasileiros é essa, chocante talvez, masefetiva. Sem saber bem, sem conhecê-la mais de perto, apenaspor perceber seu clima humano, patético e ternamente ex-presso nos personagens que já encarnou no vídeo, convidei-apara ojúri. Os jurados de um programa longo e variado comoo meu devem expressar elementos de comunicação que pro-jetem imagens fecundas e ricas, e que provoquem no públicoatitudes de adesão ou de discordância, mas atitudes ativas,

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participantes. Bete é a presença do sentimento sem sentimen-talismo, é a atualidade da beleza e da esperança de umajuventude que põe no ser humano a medida de todas as coisas.

Uma rosa para Bete."

A publicação deste artigo foi o bastante para que Flávio fossechamado pelo Exército e tomasse conhecimento de um enormedossiê sobre a atriz, onde era mostrado seu envolvimento com aesquerda. Bete, militante de uma organização revolucionária, jáfora presa, torturada, respondera a processo e fora absolvida.Depois disso tudo estava muito bem, exercendo a sua profissão deatriz. Na conversa que teve no Exército, Flávio perguntou por quea atriz podia aparecer na novela cinco dias por semana, mas nãopoderia participar do programa. A resposta foi simples: na televi-são ela vivia um personagem cujos diálogos eram aprovadospreviamente pela Censura, enquanto no programa seria ela mesma,colocando suas opiniões ameaçadoras ao regime. O Exército queriaque Flávio tirasse Bete do programa, mas ele não deu atenção.

No domingo seguinte, numa das tarefas da gincana, Bete foiescalada para dar o chute inicial de uma partida de futebol entreartistas em pleno gramado do Maracanã. A Censura brecou, comose o chute naquela bola pudesse detonar uma bomba e iniciar umagrande revolução de esquerda. Ela não ia fazer discurso político,nem mandar mensagens terroristas, apenas ser madrinha de umjogo de futebol de artistas. Lembro de Flávio chateado, a produçãoarrasada, sem saber como explicar aquela situação. Bete não pôdemais voltar para o júri por ordem do EMFA (Estado-Maior dasForças Armadas).

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"Só vou fazer TV mundo-cão na medidaem que o mundo está cão."

ii

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Flávio dividia com a equipe alegrias e tristezas. Quandoo programa atingiu 72 pontos de audiência, num gesto deagradecimento, Flávio distribuiu viagens internacionais àequipe. Ghiaroni, descendente de italianos, jamais saíra doBrasil e por isso ganhou com sua mulher uma viagem à Itália.Eduardo Sidney foi para Londres; eu, Paulo Martins e GildaMüller fizemos um tour pela Europa; e o nosso faz-tudo,Chico, foi de avião para Recife visitar a família, levandomuitos presentes, entre eles uma televisão.

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15Brigava-se pela audiência e também contra a política do

governo. As vezes as armas usadas não eram corretas, mas procu-rava-se fazer o melhor, criando até estratégias para sair daquelesufoco. As quintas-feiras, quando o script ia para a Censura, deantemão já se sabia que voltaria com cortes. Os censores tinhamque procurar algum erro, era a função deles; por isso todo o cuidadoera pouco com o bendito script. Ghiaroni, uma figura sensacional,era craque em escrever bobagens para lustrar o ego dos censores.Escrevia palavrões, absurdos, textos que obviamentejamais seriamditos pelo apresentador nem levados ao ar, mas eram a chance deos censores se deliciarem e exercerem o seu poder de corte.

Giuseppe Ghiaroni era outro dos homens de esquerda que traba-lharam com Flávio. Criador de programas de sucesso na RádioNacional, como o humorístico Tancredo e Trancado, conheceu Flávioantes dos anos 70, nos tempos de Noite de Gala, apresentado pelovelho Medina. Em 64 estava na Rádio Nacional quando César deAlencar fez a famosa lista com mais de duzentos nomes de "comu-nistas" que trabalhavam na emissora. Seu nome era um deles. Dessalista muitos foram demitidos, como Mário Lago. Outros foram cha-mados a deporem 1PM (Inquérito Policial Militar). Integrante da lista,e sabendo que a situação ia piorar, Ghiaroni saiu de circulação durantedois meses. Tempos depois, quando Mário Neiva assumiu a direçãoda Rádio Nacional, provocando a saída de Alencar, os demitidosforam reintegrados, inclusive o redator.

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Ghiaroni escrevia como Flávio falava. Conhecia o apresenta-dor a fundo, a maneira como abordava um assunto, suas perplexi-dades, emoções, e colocava tudo isso no papel. Admirável ecoerente em seu pensamento, ágil no raciocínio, era capaz deescrever uma carta para Belinha como se fosse Flávio. Um fatoacabou se tomando piada entre a equipe do programa. Certa vezFlávio pediu-lhe que escrevesse uma carta para determinada pes-soa. Quando Ghiaroni mostrou a carta pronta, Flávio se assustou efez o seguinte comentário: "Era para falar mal, e não para elogiar."Dez minutos depois o redator entregava a carta certa. Esta histori-nha demonstra que Ghiaroni nem sempre tinha o mesmo ponto devista de Flávio; discordavam de algumas coisas, mas havia umrespeito muito grande entre eles. O pensamento dos dois era um sóquando se tratava de tortura, delação e violação de direitos.

O Programa Fidvio Cavalcanti tinha quadros fantásticos, al-guns muito engraçados. Em abril de 71, o radialista e jurado JoséMessias fez uma aposta com Jece Valadão e raspou a cabeça empleno programa. Assim mostrava solidariedade às concorrentes aotítulo de "A Mais Bela Moça Careca" que semanalmente desfila-vam no programa. Em maio do mesmo ano, no mesmo palco, foramreunidos os três homens de maior prestígio no país: Pelé (tricam-peão de futebol de 70), Roberto Carlos e Chico Anysio. Umencontro muito criativo, onde Pelé cantava Perdão Não Tem,composição sua gravada em dueto com Elis Regina, RobertoCarlos contava piadas e Chico Anysio fazia embaixadas com umabola de futebol. Este encontro entre os três superastros virou capada revista Manchete e deu ao programa 72 pontos de audiência,registrados pelo IBOPE. Era uma liderança total.

Em junho do mesmo ano, Stevie Wonder, por um cachê deapenas cinco mil dólares, fazia sua primeira apresentação no Brasil.E claro que no palco da TV Tupi. Ainda não era o premiadíssimocompositor e intérprete, cujo cachê hoje é de 150 mil dólares.

Em meados de novembro, Maurício Sherman, então diretor doprograma, em substituição a Eduardo Sidney, que passara a diretorda TV Tupi, sugeriu a Flávio uma apresentação de GuiomarNovaes. Considerada a maior pianista brasileira da época, elatocaria as variações do Hino Nacional. Estas variações haviam sidofeitas por Gottschalk, compositor e pianista que viera ao Brasil a

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convite do imperador Dom Pedro II e ficara encantado com o HinoNacional. O imperador então sugeriu que ele compusesse variaçõese fantasias baseadas no Hino. A obra ficou tão bonita que DomPedro 11 assinou decreto-lei permitindo sua execução em todo opaís fora das cerimônias oficiais, e ainda condecorou o pianista.Guiomar Novaes interpretava esta peça de maneira magistral. Oinício do arranjo dava ênfase à mão esquerda e soava comosoldados marchando.

Naquela semana, como sempre era feito, o script do programaseguiu para a Censura na quinta-feira, relacionando todas as atra-ções, inclusive Guiomar Novaes. Na tarde de domingo, poucoantes de o programa começar, veio uma contra-ordem; um coroneltelefonara a Maurício Sherman vetando a execução da música. Foium deus-nos-acuda. O piano de cauda estava no palco, a pianistajá tinha ensaiado e sua presença anunciada. Foram horas correndoatrás de um outro coronel, ou quem sabe até um general, alguémque pudesse entender que aquela variação do Hino Nacional,conforme constava na partitura, fora autorizada por Sua Majestadeo imperador Dom Pedro II e não iria desmoralizar o Hino.

Sem saber de nada, na coxia da TV, a pianista estava nervosacom a possibilidade de o ar-condicionado, muito fraco por sinal,desafinar o piano. Queria que o mudassem de lugar, o que eraimpossível, devido à iluminação previamente programada. Depoisde muito custo, a liberação foi conseguida através de um coronelmais erudito, que compreendia que fantasias e variações sobre oHino Nacional não significavam falta de respeito, muito menostinham alguma relação com desfile de escola de samba.

Mas nem sempre se conseguia manter o alto nível. Numdomingo, no final de 71, o programa conseguiu resvalar para omáximo do mau gosto. A imprensa vinha publicando muitasreportagens sobre um centro espírita no subúrbio carioca de San-tíssimo, onde aconteciam curas - verdadeiros milagres - atravésde uma entidade chamada Seu Sete da Lira, incorporada por umasenhora de nome Cacilda. Políticos, colunáveis, artistas iam até lábuscar proteção, o que acabou transformando o terreiro num point.Carros luxuosos dirigidos por motoristas uniformizados estaciona-vam na porta como se estivessem na mais badalada boate da ZonaSul. Havia até um pequeno shopping no terreiro, onde era vendido

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um disco com pontos de macumba, as músicas cantadas duranteos trabalhos. Era ver para crer.

Dona Cacilda jamais havia aparecido na televisão, quanto maisincorporada como Seu Sete. Mas naquele domingo, depois de umcerco muito grande da equipe de reportagem do programa, elaacabou aceitando o convite e foi parar na Tupi. Com o programano ar e o assunto anunciado logo na abertura, veio gente de todosos cantos da cidade para assistir ao vivo uma atração tão comenta-da. Dona Cacilda entrou no palco comme ilfaut, incorporada pelaentidade do Seu Sete, vestindo um temo preto e uma capa pretaforrada de vermelho, com uma cartola na cabeça. Atabaques,cantoria, e em poucos minutos estávamos num verdadeiro terreirode macumba, com direito a charuto e cachaça. Jurados e público,de mãos dadas, formaram uma enorme corrente de fé e tomaramcachaça, com exceção de Márcia de Windsor, que se recusou abeber no gargalo da garrafa que passava de boca em boca. Umacena feiliniana, apelativa, de profundo mau gosto, sem coerênciacom os princípios religiosos do apresentador. O impacto causadono público e na Censura foi fenomenal.

Flávio era um homem religioso, e mandara construir umacapela ao lado de sua casa, em Petrópolis. Aceitava e respeitavatodas as religiões, desde que visassem ao bem da humanidade e aoamor ao próximo. Tinha ido a diversos centros espíritas e receberaem casa algumas mães-de-santo como amigas. Mas montar umterreiro no palco passou dos limites, e não sei até que ponto elepercebia o quanto estava se aviltando.

Chacrinha fazia o seu programa no mesmo horário na Globo,e, quando soube que Seu Sete da Lira estava na Tupi, mandou umprodutor buscá-lo. Queria levar aquele delírio também ao seuprograma. O mau gosto chegava ao ápice; os dois programas quedisputavam audiência apresentando uma atração tão lamentávelNo dia seguinte a imprensa fez críticas violentas aos dois apresen-tadores. E o Ministério das Comunicações, a Censura e todos osoutros órgãos que podian interferir fizeram o mesmo. A partir daí,tanto Flávio quanto Chacrinha ficaram sob uma mira da Censuramuito mais rigorosa, e até entrevistas sérias eram postas em dúvida.

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"Senti o peso da responsabilidade queestou assumindo quando alguém disse queserei a maiorforça opinativa deste país."

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A estilista de alta costura Marina Massari cedia ao pro-grama vestidos que eram usados por cantoras e algumasjuradas. Eram vestidos caríssimos, confeccionados com teci-dos finos e bordados, e, por serem emprestados, deveriam serusados com o maior cuidado. Um domingo, Renée de Viel-mond, integrante do júri, utilizou um deles. Era um modeloem chjffon amarelo-claro, com punhos e decote bordados commiçangas e pedrarias. Ninguém sabe o que aconteceu, mas,quando o vestido foi devolvido, tinha uma enorme manchade gordura. Todas as tentativas foram feitas para limpar ovestido e a estilista não o aceitou de volta. Como resultado,a produção teve que pagar o prejuízo e Flávio proibiu oempréstimo de roupas.

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Wel

E já estava me acostumando com a popularidade de Flávioe achava muito divertido estar ao lado de alguém que era alvo detodas as atenções. Por ser jornalista e ter passado a maior parte daminha curta carreira profissional do outro lado da câmera, prestavaatenção em tudo, estava sempre com as antenas ligadas. Na novafunção, como sua secretária particular, podia perceber com a maiorclareza a força do seu nome. Todas as portas se abriam, bastandousar a palavrinha mágica: Flávio Cavalcanti. As autoridades aten-diam ao telefone, os pedidos eram aceitos e era fácil localizarqualquer pessoa. Detalhe importante: ele jamais pedia qualquercoisa para seu próprio benefício. Era sempre para uma obra assis-tencial, trabalho para um desempregado e assim por diante.

Certo dia, não sei se a sério ou de brincadeira, Flávio disse-meque queria falar com Sophia Loren, convidá-la a vir ao programa.Queria homenageá-la como mãe do ano. Peguei o telefone, ligueipara a telefonista internacional e expliquei que estava tentandolocalizar a atriz porque o apresentador queria falar com ela. Ao queeu sabia, a Cinecittá, em Roma, empresa cinematográfica do maridoda atriz, Cano Ponti, poderia dar alguma informação. Em menos dedez minutos, do outro lado da linha e do mundo, estava Calo Ponti.A princípio Flávio pensou que eu estivesse brincando, mas percebeuque era verdade quando a telefonista se propôs a servir de intérprete,visto que nenhum de nós falava italiano. A telefonista, fã de Flávio,fizera um trabalho de relações públicas perfeito, explicando para a

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secretária do diretor quem era o brasileiro que iria falar. A belaSophia não veio ao programa, mas enviou uma carta linda agrade-cendo o convite.

A correspondência que chegava diariamente ao escritório daprodução refletia o sucesso do programa e ia se avolumando aolado de minha mesa. Eu via a caixa cada dia mais cheia, quasetransbordando, e não tinha tempo para abrir uma carta sequer. Foiquando, num final de tarde, recebi um telefonema misterioso. Umhomem insistia muito em falar com Flávio e não queria se identi-ficar. Esses telefonemas eram comuns, e meu trabalho tambémconsistia em descartar as pessoas que apareciam com algumasolução milagrosa para um problema nacional. Mas o homem dooutro lado da linha ganhou minha atenção ao avisar que estavapronto para se suicidar e que queria vender as imagens de suaprópria morte para pagar as dívidas que acumulara nos últimosanos porque estava desempregado. Enquanto convencia o suicidaanão fazer nenhuma loucura, pela outra linha colocava o apresen-tador a par da situação. Flávio entrou na conversa e convenceu ohomem a ir ao escritório para um encontro. Além disso, para que osuicida não ficasse envergonhado ao ser reconhecido por mim,Flávio combinou que, ao chegar, ele diria que era dos Correios eTelégrafos. Meia hora depois um senhor alto, magro, cabelosgrisalhos, fisionomia triste, chegava ao escritório. Flávio conversoucom ele por mais de uma hora. Na saída, sua expressão era bemmais tranqüila. A mim sobrava a missão de arranjar alguma coisapara ele fazer no escritório, uma forma de justificar o salário querecebera antecipadamente. Resolvíamos assim dois problemas, o dosuicida e o da minha correspondência acumulada. A partir daqueledia, ele tornou-se responsável pelo setor de cartas, fazendo otrabalho com um carinho incrível e uma paciência de Jó. A cadadois dias ia buscar a correspondência, abria carta por carta, selecio-nava os assuntos e discutia comigo a melhor forma de respondê-las.Como tinha instrução e um texto razoável, ajudava-me nas respos-tas. Era muito comum recebermos "moções" de aplauso de assem-bléias e câmaras dos lugares mais longínquos, como tambémpedidos impossíveis para doação de terrenos, dinheiro para opera-ções, internações, sempre acompanhados de documentos atestandodoença e pobreza, além de originais de livros e fitas. Tudo isso era

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devolvido através do correio, acompanhado de uma cartinha assi-nada pelo próprio apresentador. Poucas pessoas da equipe sabiamque o meu ajudante tentara vender seu suicídio e acabara conse-guindo um trabalho.

O trabalho aumentou a partir de julho de 1971. A Tupi paulistaofereceu-lhe um programa às terças-feiras, Flávio Especial, comtransmissão apenas para o estado. Além de representar uma rendaextra, era uma forma de Flávio, tão carioca, se aproximar um poucomais dos paulistas. A experiência durou um ano e, apesar decansativa, foi fantástica. Todas as terças-feiras, religiosamente àssete horas da manhã, Cid, motorista de Flávio, estava na porta deminha casa. Buscávamos o apresentador e seguíamos para o Galeãoa tempo de pegarmos o vôo das oito horas. As vezes Flávio vinhafalante, contando histórias da primeira noiva, Risoleta. Era uma boamoça, mas Flávio acabou preferindo Belinha, que conhecera quan-do criança e por quem se apaixonara ao reencontrá-la já formada,voltando dos Estados Unidos onde estudara. Outras vezes cantaro-lava musicas antigas que compusera em parceria com Celso, seuirmão. Foi nesse período que convivi mais de perto com o "Senhordos Domingos".

Em São Paulo, o motorista de Marcos Lázaro, João, invaria-velmente nos esperava no aeroporto e nos levava para o HotelExcelsior, que acabou se tornando uma segunda casa. Ocupávamossempre os mesmos apartamentos, um do lado do outro, e nemprecisávamos levar malas, pois as roupas ficavam no próprio hotel.Na ponte aérea descobri que estava grávida: enjoava demais noavião, e minha primeira preocupação foi não poder mais acompa-nhar Flávio nas viagens. Meu marido, Paulo Roberto Martins,também trabalhava na equipe, fazendo filmagens para o programa,e a gravidez foi muito paparicada por todos.

Eu gostava daquelas viagens a São Paulo; sempre havia umanovidade e tudo acabava se tornando uma diversão. Antes doprograma, no hotel, quando Flávio estava muito cansado, ia dor-mir. Mas geralmente ficávamos conversando, inventando novosquadros, respondendo às cartas sem a confusão do entra-e-sai doescritório do Rio. Flávio era uma pessoa comum, transparente.Almoçávamos no próprio apartamento. As vezes pegávamos umcineminha à tarde ou passeávamos pela Rua Augusta, fazendo hora

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1até irmos para a Tupi, no Sumaré. Era uma relação gostosa, comode um pai com a filha grávida

As instalações da TV Tupi em São Paulo eram ótimas, em nadase parecendo com as da Urca. Era muito bom fazer o programa lá,e o esquema era o mesmo do Rio. Havia um júri formado porTereza Sodré, Arley Pereira, Bernardo Fedorowski, Fernando Jor-ge, Irene Ravache, Anselmo Duarte e mais alguns convidados, eainda música, concursos e gincanas. Foi lá, no domingo, 31 demarço de 1972, que fizemos o primeiro teste para a transmissãoem cores, com a equipe carioca produzindo o programa em con-junto com a paulista.

Mesmo grávida resisti até o final às viagens semanais a SãoPaulo. Em julho de 1972, o contrato com a emissora terminou eFlávio não quis renová-lo. Algumas pessoas da Tupi comentavamcomigo que Flávio desistira porque eu não poderia viajar depoisque o bebê nascesse. A verdade é que Flávio estava muito cansadoe precisava de férias. Quanto a mim, continuei viajando com eleem shows pelo interior do país, pois, como dizia Elis Regina,gravidez não é doença. Trabalhei até uma semana antes de Bernar-do nascer, em 3 de novembro, e voltei à TV uma semana depois.

1 ló

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"Vai lembrar que um dia existiu/umalguém que só carinho pediu,/e você fezquestão de não dar,/fez questão denegar."

Maysa

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Chico era um personagem à parte na equipe de FlávioQuebrava muitos galhos, mas também arrumava muitas con-fusões. Comprava fiado no pequeno comércio da Urca e"pendurava" as contas em nome de Flávio. Quando oscomerciantes vinham cobrar, Gilda Müller, diretora financei-ra, dava uma bronca em Chico e ameaçava mandá-lo embora.Mas ele era esperto e ágil para resolver pequenos problemas.Todos os domingos, quando terminava o programa, Flávio iaao escritório, relaxava, tomava um banho e saíamos parajantar. Uma noite Flávio pediu a Chico que lhe servisse umuísque, e lá veio ele com a garrafa, copos e gelo. Dias depois,um vizinho, muito sem graça, foi até o escritório pedindo ouísque de volta. Contou que Chico entrara em sua casa muitoagitado e, justificando que era "para seu Flávio", levou seuúnico uísque do bar, sem a menor cerimônia.

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17Conheci Maysa quando fui trabalhar com Flávio. Ela era meu

ídolo. Descobri Maysa com pouco mais de dez anos, vendo umprograma de TV em São Paulo. Era tarde da noite, e não eraprogramação para criança. Não sei bem porquê, mas naquela noitemeu pai me deixou acordada até mais tarde e fiquei deslumbradaao vê-Ia entrar no estúdio. Ela estava um pouco gorda, usava umvestido de chjffon drapeado preso num ombro só, os cabelos meiocurtos caindo em desalinho pelo rosto, e cantava Meu Mundo Caiu.Esta cena em preto e branco tinha um impacto ainda maior. Maysaera diferente de tudo o que eu vira e ouvira sobre música. Não tinhaa doçura de Cely Campelo com seus lacinhos cor-de-rosa nem avoz grave e o violão de Inezita Barroso como o disco que tínhamosem casa. Era uma mulher com um olhar profundamente triste, quecaminhava por um estúdio esfumaçado, taça de champanhe namão, apoiando-se em colunas de estilo romano, e falava de umamor sofrido. Nos dias de hoje seria dark. Passei a acompanhar otrabalho de Maysa, rompendo com todos os paradigmas de mitopara uma garota da minha idade.

Maysa foi compositora e cantora de grande carisma. Nasceunuma família rica, casou com um herdeiro dos Matarazzo, de SãoPaulo, e abandonou tudo pela música. Nos anos 70, continuavauma mulher muito bonita, cabelos castanhos caindo no rosto, olhosverdes profundos e um ar muito chique. Suas canções eram tristes,a chamada "música de fossa", e seus sucessos eram Ouça e Meu

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Mundo Caiu. Em meados de 60, casou com um espanhol e foimorar na Europa. Estava lá há alguns anos quando, em 68, Fláviofoi a Portugal para fazer o programa A Grande Chance, a conviteda '1V portuguesa, transmitido pela Eurovisão. Hospedado noHotel São Carlos, em Lisboa, Flávio reencontrou Maysa. Umencontro mais do que agradável, sincero, amigo e saudoso. Acantora acabou aceitando o convite do apresentador de voltar aoBrasil. Foi integrar o júri do programa Um Instante, Maestro!, fezum show inesquecível no Canecão, dirigido por Ronaldo Bôscoli,e permaneceu fixa no Programa Flávio Cavalcanti.

Sincera, às vezes enfossada, mas grande amiga. Em 73, euainda trabalhava com Flávio, mas comecei a fazer reportagenscomo freelancer para uma revista. Um dia chegou a oportunida-de de fazer uma entrevista com Maysa. Eu estava separada demeu marido há pouco tempo, vivia pela primeira vez a experiên-cia de morar sozinha com um filho pequeno, e não foi precisomuito para que Maysa percebesse minhas dificuldades naquelemomento. Não perguntou muito sobre a minha vida, mas nomeio da entrevista pegou o telefone e fez uma ligação. Começoua falar com alguém e lá pelas tantas pediu o endereço da minhacasa. Quando desligou disse que eu deveria estar pronta às novehoras da noite, na porta do prédio, porque seu ex-marido, eamigo, iria me levar para jantar. Recomendara a ele que medesse uma noite inesquecível, pois eu estava precisando medivertir. E tudo aconteceu conforme ela organizou. No diaseguinte, Maysa me telefonou para saber se o ex-marido haviase portado bem. Contou que fizera algumas anotações paraajudar na minha reportagem e que mandaria entregar. No mesmodia chegou um envelope; quando abri, encontrei quatro folhasde papel-ofício dobradas ao meio, com uma pequena biografiamanuscrita. Como toda fã, fui egoísta, guardei só para mim. Em1977, quando Maysa morreu num acidente de carro na ponteRio—Niterói, eu estava no Festival de Cinema de Gramado. Eraum sábado, 22 de janeiro, e eu me preparava para a festa daentrega de prêmios do festival quando vi a notícia no JornalNacional. Chorei muito, e mais uma vez lembrei das quatrofolhinhas dobradas, aqui transcritas.

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"Nasci no Rio, sou de Gêmeos, dia 6 de junho. Nasci emBotafogo, em casa mesmo, na Rua Visconde Silva. Hoje emdia é uma clínica. Tenho imensa saudade daquela casa esempre sonho com ela.

Tenho um irmão, Alcebíades, já casado com Dorinha eque tem uma filha linda chamada Maysa, como eu. Meus paissão maravilhosos, minha mãe é linda e papai tem os olhosmais azuis que já vi. Sempre foram meus amigos e compa-nheiros em tudo e para tudo.

Só não gostaram quando eu comecei a cantar. Deram onão. Hoje porém são fãs incondicionais.

A música sempre foi importante pra mim, desde menina.Minha tia Lia era pianista excelente, e, quando ela estudava,eu ficava horas e horas sentada ao lado dela ouvindo músicaclássica.

Aos três anos eu já sabia tocar alguma coisa com doisdedinhos. Aos seis ia dar meu primeiro concerto de piano,mas caí doente com sarampo. Aos sete outra vez, mas tivecatapora; assim, nunca pude levar a sério uma carreira depianista, hoje uma de minhas frustrações.

Já casada, esperando Jayminho, meu filho, hoje comdezessete anos, numa festinha em casa toquei algumas deminhas músicas, que compunha desde os treze anos.

Estava lá Roberto Corte Real, que me convidou paragravar um disco logo que o baby nascesse. Meu pai era muitoamigo de Silvio Caldas, Elizeth Cardoso, que sempre esta-vam lá em casa. Sílvio foi a primeira pessoa que me ajudoua tocar violão. Com Elizeth, aprendi muito para depois partirpara cantora.

Não foi fácil conseguir ser profissional.Para poder seguir essa profissão, tive que abrir mão de

muitas coisas e, por fim, não podendo mais, larguei até o meucasamento, minha casa, enfim, a minha vida de moça desociedade, para seguir a minha verdadeira estrada.

Devo ter mais ou menos uns 23 LPs, muitos feitos noBrasil e dois nos States, Itália, Espanha, Argentina etc.

Compus muitas músicas e devo ter gravado umas cin-qüenta. Elas sempre refletiam meu estado de alma, minha

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tristeza e solidão. Nunca consegui escrever nada alegre.Fora do Brasil estive sete anos. As razões foram várias,

mas a principal foi meu segundo casamento. Meu segundomarido, Miguel Azanza, era espanhol, e todos os seus negó-cios estavam na Espanha. Segundo foi querer levar Jaymepara que ele tomasse contato com a vida num local onde elefosse somente Jayme, e não Jayme Matarazzo. Para que eleaprendesse a se valorizar pelo que ele é, e não por outrascoisas que poderiam ocorrer em face de seu nome.

Com a morte de André, meu primeiro marido, levei oJayminho para a Espanha e hoje não me arrependo. Atual-mente minha vida chegou a um ponto onde há um equilíbrioagradável, embora eu esteja dando os meus primeiros passospara que o equilíbrio seja total. Muitas vezes ainda me sintoperdida, só, o que é normal para quem se colocou tanto temponessa situação.

Carlos Alberto e eu temos muita coisa em comum, inclu-sive uma vivência adquirida nos tantos erros anteriores.Fomos pessoas machucadas e machucamos. Tudo que souagora é uma conseqüência lógica do que passou. Só queprocuro tirar o que de bom ficou e jogar fora o que nãointeressa.

Há anos venho em busca de um local que me permitisseuma paz quase inacreditável. Antes era na Barra da Tijuca,há dezesseis anos, onde eu tinha uma casa e vivia emperfeita harmonia com meus bichos, o mar e uma turma dapesada.

Hoje é uma praia distante onde vivo na mais completaharmonia com Carlos, com os bichos, o mar e mais ninguéma não ser essa nova expressão que está nascendo em mim háalgum tempo que é a pintura. Levei um piano onde pretendocompor algumas coisas, levei um cavalete, meus discos elevei a minha paz que, juntamente com a de Carlos, nos fazpensar num pra sempre.

Jayminho hoje tem dezessete anos, é bonito, rico, canta,toca violão, pinta, é bacana e um ser humano maravilhoso,que muito me ajudou no encontro dessa paz que hoje em diaé a minha constante.

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E se às vezes derramo o caldo, ele é quente, mas não maisfervendo.

E isso aí, bicho!Rio, novembro de 73"

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"Eu não me lembro de ter guardadorancor de ninguempormais de 24 horas.

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No princípio dos anos 70, a televisão brasileira não tinhaequipamento portátil de VT. Para fazer as reportagens doprograma, Flávio comprou uma Rolair NPR, uma câmera decinema de I6mm, que trabalhava acoplada a um gravadorNagra. Contratou uma equipe de cinema - Paulo Martins,Antônio César e Samuel Lucas - que fazia reportagens comose fossem curtas-metragens. Os filmes tinham que ser reve-lados, editados e só então exibidos na TV Tupi através de umequipamento chamado Telecine.

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Amúsica foi um dos elementos de maior importância nosprogramas que Flávio Cavalcanti criou e apresentou ao longo davida. Em 1970, na Tupi, três dos artistas de maior sucesso na épocaeram seus contratados com exclusividade. Um deles era WilsonSimonal. Hoje é impossível encontrar um artista que tenha tidotanto sucesso e prestígio quanto Simonal no final dos anos 60,início de 70. Ele não era sertanejo, tampouco brega ou MPB. Criaraum estilo, um movimento, uma marca que vendia milhares dediscos, faturava alto com os shows que fazia no Brasil e exterior.Apresentava programas de televisão, era capa de revistas e chegaraa lançar um bonequinho de pano, o Mug, que virou mania nacional.

Superafinado, com muito balanço e um repertório popularonde interpretava as canções mais simples de forma sofisticada,Simonal além de tudo era o rei da simpatia. Vestia-se com a maiorelegância, era recebido nas festas mais fechadas da sociedade etinha um Mercedes Benz branco, novinho em folha. As críticas quelhe eram feitas traziam sempre um ponto de inveja e preconceito:ele era um negro bem-sucedido. Voou mais alto do que o melhorsonho que um garoto pobre pode ter ao se tomar cantor.

Filho de dona Maria, uma empregada doméstica semi-alfabe-tizada, começou, como muitos cantores, em um programa decalouros, o de Ary Barroso, aos dezessete anos. Sua apresentaçãomereceu um raro elogio do exigente compositor. Aos dezoito foiservir ao Exército, no 89 Grupo de Artilharia de Costa Motorizada,

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no Leblon, e lá surgiu a oportunidade de mostrar seus dotes vocaisao fazer um show de improviso, onde imitava Agostinho dosSantos e Harry Belafonte, cantores negros como ele. Dois anosdepois, ao deixar o Exército, entrou para um conjunto de rockliderado por Sérgio Riff. O grupo se reunia na casa de Riff, noLeblon, e uma noite Carlos Imperial foi lá ouvir os novatos.Imperial tinha dois programas de televisão: Os Brotos Comandam,na TV Continental, e Festival de Brotos, na TV Tupi. O suinguedo crooner conquistou Imperial, que o levou para a TV e depoispara gravar um compacto na Odeon, com o Chá-Chá-Chá Terezi-nha. O chá-chá-chá era o ritmo do início dos anos 60, e a músicafoi feita por Imperial para sua namorada Tereza. A letra era assim:"Terezinha,/todo dia,/dança o chá-chá-chá,/dança, menina, dança,Ibalança o corpo/que eu quero ver..." Uma bobagem, mas,como o ritmo estava no auge, a música estourou nas paradas.Surgiram então os convites para shows, e outros tantos LPs seseguiram, numa sucessão de hits.

Aos 32 anos de idade, Simonal chegava ao auge de sua carreira.Gravara três maravilhosos LPs de bossa nova e, sob orientação deImperial, lançou a "pilantragem", com a música Nem Vem queNão Tem. Era um samba mais arrastado, cadenciado. Surgia assimum novo estilo musical na MPB. Simonal estava de volta ao Rio,depois de uma temporada em São Paulo onde apresentava umprograma de TV. Morava em Ipanema, numa belíssima cobertura,e estava muito bem casado com a Terezinha do chá-chá-chá.

Em 69, fez uma apresentação que literalmente balançou oMaracanãzinho. Simonal era presidente do júri do Festival Inter-nacional da Canção, e fora contratado para fazer o show da noitefinal. Uma de suas características como showman era manterdomínio total sobre o público, e naquela noite não foi diferente.Dividiu a platéia em duas vozes, como num gigantesco coral, e"regeu" vinte mil pessoas cantando Meu Limão, Meu Limoeiro ePatropi. Um espetáculo inesquecível e jamais repetido por qual-quer outro artista.

Era muito sucesso para um homem só. Domingos de Oliveira,o cineasta mais in do momento, dirigiu no final de 69 o filme ÉSimonal, uma produção de Carlos Thiré, tendo como ator principalo próprio cantor e um elenco formado por Maria Gladys, Oduvaldo

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Viana Filho, Vanda Stefânia, Irma Álvarez, entre outros artistasconsagrados. Em 70, Simonal foi contratado como garoto-propa-ganda da Shell, para uma grande campanha publicitária. Estava natelinha da 1V o dia todo, os postos de gasolina estampavam o seusorriso em enormes cartazes e a companhia de petróleo patrocinavaseus shows.

Simonal tinha trabalhado com os melhores empresários do paísmas, julgando-se auto-suficiente, resolveu criar a sua própria agên-cia, para administrar sua carreira e seus bens. Para cuidar de tudoisso convidou Rui Brizola, um misto de empresário e administra-dor. Tomou-se assim o primeiro artista a se auto-empresariar,montando um sofisticado escritóriô todo branco, muito bem deco-rado e aparelhado, na Avenida Princesa Isabel 150, em Copacaba-na.

Para cuidar da parte financeira, indicado por Rui Brizola,Simonal contratou o contador Raphael Viviani, paulista que jáhavia trabalhado em bancos. Viviani veio morar no Rio e durantequatro meses ficou no Hotel Plaza, em frente ao escritório deSimonal, com todas as despesas pagas. Com a indicação de Brizola,o cantor não se preocupou em investigar o passado do contador e,como estava sempre viajando com shows, envolvido com muitasfestas, entrevistas, numa vida como nos melhores tempos de Hol-lywood, acabou relaxando no controle de seus negócios. Um dia osonho virou pesadelo. O gerente do banco telefonou avisando quehavia um problema com a conta corrente da empresa, um rombomuito grande, e tudo levava a crer que o contador estava desviandodinheiro.

Estávamos em 1971, num clima político explosivo, vivendoem cima de um barril de pólvora. Qualquer coisinha era motivopara especulações, distorções, divagações e patrulhamento ideoló-gico. A popularidade de Simonal incomodava tanto a esquerdaquanto a direita. Ele achava difícil ser um negro bem-sucedido,resumindo o racismo brasileiro com a seguinte frase: "Em lugaronde preto pobre não entra, branco pobre também não entra."

Simonal acreditava ter amigos em todas as áreas. Ao saber dodesvio de seu dinheiro, em vez de ir à polícia fazer uma queixacontra o contador, pediu a uns amigos policiais, entre eles oinspetor Mário Borges, que nas horas vagas fazia sua segurança

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pessoal, que fizessem a averiguação. No dia 24 de agosto de 1971os policiais saíram em busca do contador no próprio carro doartista, dirigido por seu motorista, Luiz llogti. Já passava das dezda noite quando chegaram no prédio em que Viviani morava, naRua Barata Ribeiro, em Copacabana. Chamaram Viviani pelointerfone e o levaram para o DOPS - Departamento de OrdemPolítica e Social—, a fim de prestar depoimento sobre o desfalquedado na empresa de Simonal. O motorista Luiz llogti deixou-os noDOPS, na Rua da Relação, no Centro do Rio, e foi para casa,esperando o aviso para buscá-los. Algumas horas depois recebeuum telefonema avisando que o depoimento iria se prolongar e queele não deveria voltar. O depoimento durou a noite toda. A mulherde Viviani viu quando o marido foi levado e identificou o motoristado cantor. O dia amanheceu sem Viviani chegar em casa, e suamulher foi à 13! Delegacia de Polícia dar queixa de que Simonalseqüestrara seu marido. Ilogti não pôde afirmar se Viviani foitorturado, pois não assistiu ao depoimento, mas o contador decla-rou ter sofrido os mesmos métodos de tortura utilizados peloregime militar, até confessar o roubo. Em pouco tempo o assuntochegou ao conhecimento da imprensa. O que seria um caso policialse transformou num escândalo político.

A partir daí foi aberto um inquérito contra o inspetor MárioBorges, acusado de seqüestrar o contador e, sob coação física, tê-lofeito assinar uma confissão de desfalque contra a firma do cantor.Segundo Simonal, Mário Borges, para livrar-se do processo ejustificar o fato de trabalhar como segurança pessoal do cantor,acusou-o de ser informante do DOPS. Com isso o cantor foiarrolado no processo, acusado de seqüestrar e torturar o contadorcom a ajuda de informantes do DOPS. O caso tomou proporçõesenormes, atingindo drasticamente a carreira do artista.

O mundo desabou para Simonal. Sua gravadora, a Philips, hojePolygram, rescindiu o contrato alegando estar sofrendo pressõesdos outros artistas. Passou a ser responsabilizado por todos osartistas, jornalistas e políticos perseguidos e torturados. Problemapolicial à parte, Simonal estava sendo vítima de uma sórdidacampanha de difamação e boicote a uma carreira bem-sucedida.

As portas foram se fechando. As casas noturnas lhe davamespaço, mas a imprensa evitava divulgar seus shows. Flávio Caval-

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canil, ao contrário, continuava tratando o cantor como superastro,convidando-o todos os meses para o programa. Isso lhe garantia apresença na mídia eletrônica no momento em que seus discos eramretirados da programação de diversas rádios. Ojornalista João LuizAlbuquerque lembra que nessa época estava fazendo uma entre-vista com Simonal e, para continuar o papo, foram jantar noMario's, um restaurante muito badalado na época no Leblon. Namesa em frente havia alguns jornalistas e intelectuais, que come-çaram a provocar o cantor com piadinhas. Simonal resistiu oquanto pôde, mas em determinado momento virou-se para o grupoe falou: "A diferença entre nós é que eu sou negro, rico, e nãotenho compromisso com a esquerda nem com a direita."

No final de 1973, a barra estava ainda mais pesada. Flávio,sempre amigo de Simonal, passou a ser também seu compadre.Numa cerimônia muito simples, na igreja São Paulo Apóstolo, emCopacabana, Frei Memória batizou Max,o filho caçula do cantor,junto com meu filho, Bernardo. Algumas semanas depois a famíliaSimonal deixava o Rio para morar em São Paulo. Após a mudança,uma "mágica" qualquer do destino impediu que chegasse até aocantor e seu advogado a comunicação sobre o julgamento em queMário Borges o acusava de "delação". A partir daí o processocomeçou a correr à revelia. Num julgamento posterior, o assistentede acusação, Dr. Jorge Alberto Romeiro Jr., perguntou ao inspetorVasconcelos, superior de Borges, se o cantor tinha algum envolvi -mento com o órgão. A resposta foi negativa. Este fato não foidivulgado na época, e o cantor continuava a ser tratado como omaior torturador do século.

Em novembro de 1974, Wilson Simonal foi julgado à revelia,sob a acusação de extorsão mediante seqüestro. Foi obrigado acumprir cinco anos e quatro meses de prisão, sendo um ano emcolônia agrícola. No dia 12 de novembro ele foi preso em São Pauloe levado ao presídio de Agua Santa, num subúrbio do Rio, ondepermaneceu por doze dias, enquanto seu advogado conseguialiberdade provisória até um novo julgamento. Em seu segundo diade prisão uma notícia trouxe uma dor ainda maior. A morte doamigo, meio-irmão, Erlon Chaves.

Em novo julgamento, o juiz Mena Barreto desqualificou oseqüestro e o condenou a seis meses de detenção, que poderiam ser

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cumpridos em liberdade por ser ele réu primário. Sua vida, noentanto, estava totalmente destruída. Simonal perdeu tudo o quehavia conquistado, o sucesso, o prestígio, os bens materiais. Entrouem decadência, foi despejado da mansão onde morava em SãoPaulo, e sua mulher Tereza, profundamente estressada, passoulongos períodos internada para tratamento médico.

Em maio de 1992 reencontrei Simonal. Acabara de mudar paraum apartamento perto do Ibirapuera, em São Paulo, e estavaterminando de arrumar a casa. Convalescia de uma hepatite, tossiamuito, a respiração era ofegante, e dizia estar muito cansado. Nãofazia shows há dois meses, e contou que começou a sentir essessintomas numa temporada no México. Nessa turnê, fazia doisshows por noite, sentia muito calor, transpirava demais, não tinhaapetite e entre uma apresentação e outra ia para o hotel descansar.Contou também que estava bebendo mais do que o normal, o queafetara o fígado e a vesícula. Como estava se alimentando muitomal, acabou anêmico, e tudo isso gerou uma hepatite.

Esse encontro com Simonal foi para mim como uma viagemao tempo. Em sua casa, ao lado do sofá forrado de couro verde,havia uma mesa repleta de porta-retratos com fotos amarelecidasrelembrando sua época de sucesso. Apesar do rosto envelhecido edo cabelo grisalho, Simonal mantinha o charme do tempo em queera o primeiro da música brasileira. Falava com as mesmas gírias,repetia o sorriso de canto nos lábios e sonhava com um grandeespetáculo onde pudesse reviver uma cena do Circo - showapresentado no Canecão em 1973 -, onde surgia no palco com orosto pintado de palhaço.

Simonal não se incomodava em falar do passado. Acreditavaque nos meios de comunicação algumas pessoas o julgavam ummau-caráter, mas estava certo de que a grande maioria embarcaranessa onda para ficar de bem com a classe. Lembrava de que antesdo caso Viviani, quando viajava ao exterior, trazia cartas deexilados para suas famílias e também assinou muitas listas dandodinheiro para auxiliar presos políticos, apesar de não ter umaposição política formada. Só muitos anos depois soube, através deamigos, que o dinheiro desviado por Viviani era repassado a DulceMaia, irmã do publicitário Carlito Maia, conhecida militante deesquerda, com o objetivo de financiar guerrilhas. Acreditava ter

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sido vítima do macarthismo da esquerda festiva, do racismo e dainveja. Sentiu-se atirado vivo aos leões quando o jornal Pasquimpublicou na capa um dedo enorme, a imagem do dedo-duro, ondeestava escrito seu nome. Não gostava de falar sobre o mal que tudoisso provocara à sua carreira e à sua família, e às vezes chegava aimaginar como estaria se nada disso tivesse acontecido.

Apesar de ter feito carreira no mercado internacional, comoMéxico, França, Argentina e Chile, onde continuou sendo aplau-dido e respeitado, jamais se recuperou financeiramente. Mora comTereza e os dois filhos menores, Patrícia e Maximiano, numapartamento alugado. O filho mais velho, Simoninha, trabalha comJoão Marcelo, filho de Elis Regina, num estúdio de som e morasozinho. Sem trabalhar há meses, Simonal conta com a ajuda demuitos amigos, entre eles seu antigo empresário Marcos Lázaro.Mas os fantasmas ainda o perseguem. Fez questão de conseguirum habeas data, um documento oficial da Secretaria de AssuntosEstratégicos da Presidência da República, datado de 28 de agostode 1991, que nega a sua colaboração para qualquer órgão derepressão, seja DOPS ou SNI. Esta simples folha de papel, entre-tanto, não foi suficiente para apagar as mágoas dos 22 anos em quefoi perseguido e boicotado. Simonal ainda sonha em ser o mesmoartista popular, como na década de 60.

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"É uma coisa incrível! O público põe emminhas mãos uma enorme responsabilidade.É como se eufosse opai de toda essa gente."

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Flávio tinha horror a pessoas chatas, aquelas que falamcutucando, explicam demais, cospem no interlocutor etc.Conseguia distinguir os chatos e, um dia, resolveu se divertir,convidando todos para um almoço em sua casa. Riu demaiscom a facilidade com que chatos, desconhecidos entre si,confraternizavam, trocavam tapinhas nas costas, contavamvelhas piadas e relatavam com os mínimos detalhes as histó-rias mais sem graça. O almoço foi um sucesso, e até hoje essegrupo não sabe que naquele dia estava sendo fundado o Clubedos Chatos.

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19Em 1972, Flávio ganhava cada vez mais audiência para a

Tupi, e por isso a Globo tentava segurar seu público com osprograma de Silvio Santos e Chacrinha. A Censura, no entanto,começava a apertar todos os veículos de comunicação, atingindoaté a Globo. No livro Campeão de Audiência, Walter Clark contaque nessa época foi procurado por três coronéis que, em nome deum general, pediam que o programa do Chacrinha fosse tirado doar. Achavam uma indignidade Chacrinha jogando bacalhau para opovo em horário nobre enquanto Amaral Netto, que mostravaassuntos considerados culturais, como a pororoca do rio Amazonase reportagens sobre o Brasil grande, só fosse visto depois das dezda noite. A Globo não topou a troca de horário. Nem Chacrinha,nem Amaral Netto. Em vez disso foi criado um novo programa, Sóo Amor Constrói, uma espécie de Esta É a Sua Vida. Dirigido eproduzido por Augusto César Vanucci, com entrevistas de MansaRaja Gabaglia (ex-jurada de Flávio), era um turbilhão de lágrimase emoções. A cada domingo alguém contava a sua vida, geralmentepessoas famosas, como atores das novelas da Globo que estavamem evidência. Com muitos recursos técnicos, usando e abusandodas gravações de externa, o programa fez muito sucesso e começoua ameaçar a nossa audiência. *

O Velho Guerreiro, a essa altura, se transferira para a Tupi. Asquartas-feiras apresentava a Discoteca do Chacrinha e, aos sábados, oscalouros, na Buzina do Chacrinha. Não mais concorrente, agora aliado.

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Os convites para Flávio e Eduardo Sidney, diretor do pro-grama, comparecerem ao Exército ficavam cada vez mais assí-duos. Os dois eram geralmente recebidos por coronéis que, emnome da moral e da família, davam uma bronca. Mas na saídavinha o comentário: "Minha mulher adora o seu programa" ou"Que bom o musical do último domingo." As visitas se toma-ram tão freqüentes que o apresentador fez um acordo com odiretor do programa e avisou os militares: era o único responsá-vel pelo "Fora de Script": por isso ninguém mais poderia serchamado a dar explicações.

Estava ficando cada vez mais difícil fazer o "Fora de Script".Toda semana havia advertências da Censura, do Exército, e dopróprio condomínio associado que comandava a Tupi. Flávio sem-pre dava um jeito de contornar os problemas, encontrar uma solu-ção, mas o seu jeito impulsivo fazia com que perdesse as estribeirascom o programa no ar e chamasse a atenção do então ministroDelfim Netto. Confesso que não lembro bem qual era o motivo,apenas que, lá pelas tantas, o apresentador se excedeu e encerrou odiscurso com um desafio: "Isso não vai ficar assim!" E não ficoumesmo. Enquanto a classe média vibrava e a esquerda repudiava,Flávio ia incomodando o sistema.

Nesse ano de 1972 fomos a Fortaleza fazer um show para a obraassistencial de Frei Memória, no bairro do Pirambu. Era um bairromuito pobre, onde havia uma grande área de prostituição. Asmeninas eram iniciadas aos doze anos e aos dezoito já estavam semtrabalho por serem consideradas velhas. Flávio conheceu FreiMemória, uma figura muita doce, através de amigos comuns. Aotomar conhecimento da obra que vinha desenvolvendo, da misériae da pobreza do Pirambu, convidou-o a participar dojúri, como umaforma de iniciar uma campanha para ajudar a obra. O show quefomos fazer em Fortaleza tinha como objetivo levantar fundos paraa construção de uma escola profissionalizante, com máquinas decostura e uma pequena cozinha industrial para que as prostitutastivessem uma outra profissão quando "envelhecessem". Essa dis-torção me tocou ainda mais.

Viajamos com os jurados e, por medida de segurança, paradriblar os fãs, fomos aconselhados a chegar de madrugada. Espe-rávamos encontrar a cidade dormindo e nos deparamos, às três da

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manhã, com o aeroporto lotado. Mais de cinco mil pessoas espera-vam o "Senhor dos Domingos", enquanto o Corpo de Bombeirose a polícia tentavam controlar a multidão. Uma confusão enorme.Em meio àquela zorra, uma cena me tocou profundamente. Euestava grávida, e vi uma mulher furando o cerco de segurança ecorrendo até Flávio com um bebê no colo. Queria que o apresenta-dor segurasse a criança e a abençoasse.

Esse era o retrato do Brasil oprimido, onde o povo transformavaem deus um apresentador de televisão. Jamais conversei com Fláviosobre esse assunto, mas sei que ele tinha total consciência de suaforça. Fora longe demais. Sei que não queria ser um herói, apenaster o direito de falar livremente. No entanto, a forma enfática de secomunicar, as atitudes ao defender amigos que eram perseguidosforam pouco a pouco minando sua imagem junto ao governo, quetentava impedir o surgimento de qualquer liderança. Não importavase era de esquerda ou de direita, ninguém tinha o direito de mobi-lizar o povo daquela forma.

A Censura estava cada vez mais atuante, bisbilhotando a vidade Flávio. Durante seis meses, um suposto fiscal do Ministério daFazenda fez plantão em nosso escritório. Com um pedido paraverificar documentos do Imposto de Renda da TV Estúdio Produ-ções, empresa que produzia o programa, o "fiscal" chegava àsnove da manhã e saía às sete da noite. Gilda Müller, jornalista,comadre de Flávio e gerente da empresa, e Vilma Ribeiro, conta-dora, foram incansáveis em fornecer dados e mais dados que nuncasatisfaziam o tal "fiscal". Esgotadas, o único jeito de se livrar delefoi transferir os livros de contabilidade para o escritório do advo-gado de Flávio, Dr. João Marcos Ávila da Costa. Em menos de ummês o fiscal desapareceu.

Nessa época o escritório se mudara para uma casa maior, comtrês andares, na mesma rua, a Cândido Gaffrée, na Urca. A produ-ção ocupava o térreo, Flávio, o segundo andar e a contabilidade, oterceiro. Nosso sistema de telefones era muito simples: duas ou trêslinhas conectadas a uma pequena mesa, mais uma linha exclusivapara o apresentador. Instalar um sistema de escuta era muito fácil,e durante muito tempo desconfiamos de que as nossas linhasestavam grampeadas. Bem-humorada, Gilda MülIer, todos os dias,cumprimentava a escuta quando chegava ao escritório. Nada se

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provava, mas tudo se percebia. Não vivíamos de forma paranóicaessa situação, talvez até porque a força popular de Flávio era muitogrande e acreditávamos que nada poderia nos abalar. Doce inge-nuidade! Nossos dias estavam contados.

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"Desejo que o público continue presenteno meu auditório, já que nunca prejudicounenhum programa."

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A casa onde Flávio morava em Petrópolis acabou setransformando em ponto turístico. Paravam ônibus trazendocuriosos em conhecer o famoso viveiro, a entrada era permi-tida, mas o apresentador se refugiava em casa para não servisto. Um dia, olhando os visitantes através de uma janela,encantou-se com uma velhinha que estava em seu jardim efoi lhe servir de cicerone. Depois de ter mostrado a adega, acapela e o viveiro, convidou-a para entrar na casa. A velhinha,ao ver o quadro de uma paisagem bucólica na parede, come-çou a chorar, pois, por incrível coincidência, ela era EdithBlanc, a autora da obra

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20N0 início da década de 70, a imprensa e as chamadas "pa-

trulhas" políticas e ideológicas cobravam da televisão uma posturacultural. Mas não foi por esse motivo que Flávio criou o "Repórterda História". Este quadro do Programa Flávio Cavalcanti surgiude uma conversa com Amara! Netto, que como hobby colecionavanotícias do tempo do Império, além de jornais que documentavama história do Brasil. Amaral contava para Flávio passagens muitointeressantes da história mundial que não constavam dos livrosescolares, e, com a assessoria técnica do historiador Jaime Coelhoe do estudioso Gustavo Barroso, foi estruturado o quadro que maistarde acabou se transformando em dois discos.

Ele consistia em "entrevistas" com figuras históricas, e trou-xe para a televisão um visual inédito. Com base em pesquisas,eram redigidas as entrevistas, onde, além das perguntas tradicio-nais (data e local de nascimento, filiação), eram perguntados fatospouco divulgados de cada personalidade da história. Por exemplo:quando o Brasil foi descoberto era uma quarta-feira, Cabral tinha31 anos e era solteiro. A produção tratava de convidar artistas quetivessem alguma semelhança física com o personagem focalizado,e o figurinista e o maquiador se incumbiam do resto. Assim, PerrySalIes foi Jesus Cristo, Pedro 1 e São Jorge; Jaime Barceilos viveuAssis Chateaubriand; Suely Franco foi Carmen Miranda; Rubensde Falco foi Pedro Alvares Cabra! e Tiradentes; Isabel Ribeiro foiCleópatra; Cláudio Corrêa e Castro reviveu D. João VI; e AurimarRocha fez uma entrevista polêmica como Hitler; entre outros.

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Esse quadro, assim como a presença de Jacques Klein, IsaacKarabtchevsky e outros músicos eruditos no programa, não afas-tava a Censura. Mesmo com a exigência do Departamento deCensura de Diversões Públicas em analisar o scrip: 72 horas antesde o Programa Flávio Cavalcanti ir ao ar e só então liberá-lo,tínhamos todos os domingos, sentado na primeira fila do auditório,um censor de plantão. Anotava item por item do programa e no diaseguinte fazia o julgamento, enviando um relatório ao Ministérioda Justiça. Sempre tive a impressão de que esses pareceres daCensura eram escritos de forma muito pessoal. Em junho de 1992,tive acesso a alguns deles, hoje no Arquivo Nacional, em Brasília,e pude constatar que o raciocínio dos censores era limitado, suasposições eram fantasiosas, chegando, muitas vezes, às raias doridículo.

Como exemplo, no programa do dia 15 de outubro de 1972,entre as atrações musicais estava a grande dama dojazz americano,a cantora Sarah Vaughan, além de Peri Ribeiro, Tony Tornado,Cláudia e Agnaldo Timóteo. Eram também convidados o escritorLeon Eliachar e o médico Benedito Mário Mourão, e o ator JoséLewgoy vivia Santos Dumont no quadro "Repórter da História".Sobre este programa o censor se deteve na atuação de Maria LuizaImperial, filha do compositor Carlos Imperial, integrante do júrijovem, e enviou o seguinte parecer:

"Apesar da advertência feita à direção do programa emrelação às atitudes da menor Maria Luiza Imperial nas suascríticas, o que tem causado grande mal-estar entre os teles-pectadores do referido programa, me parece que tudo voltouà estaca zero, pois a jovem Imperial, no último programa,domingo próximo passado, novamente com suas críticasmordazes criou situações com o júri da velha guarda, chegan-do ao ponto de cantora Linda Batista, fora de si, nervosa edescontrolada, quase, quase mesmo, falar coisas em desacor-do com as normas aceitáveis para o horário. Parece-me quea douta Chefia deveria,junto à direção geral da Tupi, solicitarao Sr. Flávio Cavalcanti a retirada da menor Maria LuizaImperial, que tem sido, até o momento, uma imagem negativapara os jovens que assistem ao programa em questão."

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O programa, apesar de ser ao vivo, era gravado em vídeo porsolicitação da Censura. Ainda em 1972, no dia 12 de dezembro, orelatório enviado ao Ministério da Justiça tinha a seguinte obser-vação:

"O Sr. Flávio Cavalcanti em dado momento do progra-ma, em tom veemente e notadamente nervoso, renotadamen-te nervoso, recriminou uma reportagem do Jornal do Brasilque o envolvia num suposto Livro de Ouro para a construçãode um hospital para viciados, juntamente com o conhecidodetetive Nélson Duarte. Depois de chamar de covardes osautores da reportagem e visivelmente irritado, declarou seramigo sim de Nélson Duarte, perguntando ainda por que osque o atacaram no jornal 'não metiam opau no governo', nãosabendo com que intenção, digo, não sabendo este censorcom que intenção foi feita a alusão acima grifada. Esta partedeverá ser cortada para a liberação do programa, devendoporém ser guardada até posterior deliberação da Censura.

Fatos como estes não podem ser evitados pelos censores,pois o programa é ao vivo, não constam do roteiro, e são ditoscom inteira responsabilidade dos donos dos programas, quese dizem jornalistas também, como o caso em tela."

Esses comentários fora de script feitos por Flávio Cavalcanticausavam um grande problema com a Censura, principalmente quan-do fazia alguma referência ao governo. Os teipes do programa eramguardados como provas, e pior do que isso era o clima cada vez maistenso que ficava entre o apresentador e a Censura, acirrando uma lutasem tréguas.

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"Não gosto de ver ninguém passivo naminhafrente."

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Flávio tinha um carinho todo especial pela APAE, e em1972, quando fazia o programa Flávio Especial em SãoPaulo, foi convidado a organizar a barraca do Rio de Janeirona Feira da Bondade, que anualmente acontecia no Ibirapue-ra. Todos os jurados e amigos colaboraram, e no dia dainauguração o apresentador levou Roberto Carlos para pres-tigiar sua barraca. O sucesso foi tanto que, depois de tervendido todos os produtos, e até mesmo autógrafos, elesforam ajudar a vender o que restava nas outras barracas.

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21' Canções Medalha de. Ouro" foi um quadro lançado no

programa em 1972. Flávio passava dias ouvindo discos e selecio-nando as melhores músicas do ano para apresentar a cada domingono programa. Os jurados iam fazendo uma seleção e no final as dezmais votadas eram gravadas num LP pela Polygram. Os arranjoseram do maestro francês Paul Mauriat e do brasileiro ErlonChaves, e a produção, de Armando Pitigliani. As semanas queantecediam a final eram deliciosas, um festival de boa música ebons intérpretes no palco.

Ao selecionar as músicas, Flávio não levava em conta se ocompositor gostava dele ou não. Era o caso de Chico Buarque. Em1965, em Um Instante, Maestro!, Flávio apresentou Chico pelaprimeira vez na televisão. Ele nunca tinha gravado e foi anunciadocomo o filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Tímido,acompanhando-se ao violão, Chico cantou Pedro Pedreiro. Osanos se passaram, a Censura ficou de olho em Pedro Pedreiro eoutras composições que julgava de protesto, e o compositor deixoude gostar do apresentador. Mas a recíproca não foi verdadeira. Asmúsicas de Chico Buarque continuaram a ser prestigiadas e aplau-didas no programa. Para Flávio, o motivo era muito simples: orapaz era um grande poeta e compositor, e isso estava acima dequalquer divergência.

Houve uma época em que Tom Jobim também andou magoadocom Flávio. O apresentador conseguiu levá-lo ao programa para

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desfazer o mal-entendido. Esta era a sua maneira de conduzir a vidaprofissional, sem deixar que as rivalidades o influenciassem aponto de não saber mais distinguir quem realmente tinha valor.

O primeiro LP Canções Medalha de Ouro vendeu cem milcópias. Hoje isso equivaleria a um milhão de discos vendidos,levando-se em conta o mercado consumidor da época. De um ladodo disco Paul Mauriat assinava arranjos e regência das músicasCasa no Campo, de Zé Rodrix e Tavito; Presepada, de AntônioCarlos e Jocafi; Naquela Mesa, de Sérgio Bittencourt; Viagem, dePaulo César Pinheiro e João de Aquino, e Amada Amante, deRoberto e Erasmo Carlos. Do outro lado, Erlon Chaves apresentavaDona Chica, de Dorival Caymmi; Construção, de Chico Buarque;Testamento, de Vinicius e Toquinho; Como Dois e Dois, de Cae-tano Veloso, e Águas de Março, de Tom Jobim.

Foi um lançamento memorável. Uma semana antes de o maes-tro francês chegar ao Brasil, as dez canções selecionadas foramapresentadas no programa com seus intérpretes originais, entre elesElis Regina, Mansa Gata Mansa, Dorival Caymmi, Roberto Carlose Elizeth Cardoso. A programação incluía também a presença deVinicius de Moraes, que morava em Salvador. Tudo acertado, namanhã de domingo ficamos sabendo que Vinicius não viria. Bri-gara com Jesse, sua mulher, e não queria sair de Itapuã. Flávio ficouirritado, não se conformou. Mandou Flavinho, seu filho, alugar umjatinho e ir a Salvador buscar o poetinha. Assim foi feito. Na horado programa, Vinicius entrou no palco, copo de uísque na mão,curtindo sua dor-de-cotovelo, mas o anunciado foi cumprido.

Mas não apenas os artistas consagrados tinham vez. Dandocontinuidade ao programa A Grande Chance, foi criado em 72 oMIT - Mercado Internacional do Talento, que tinha como obje-tivo escolher um grande cantor que, além de ganhar mil dólares egravar um disco, seria empresariado por Marcos Lázaro, o maiorempresário de artistas daquela época, que o levaria para apresen-tações no exterior. As inscrições para o MIT eram feitas às segun-das-feiras, na garagem do escritório. Carminha Mascarenhas eAntônio Belio faziam a seleção, enquanto o maestro AnselmoMazzoni ficava no piano dando o tom e acompanhando os candi-datos. A fila dos calouros era enorme, e começava cedo. Uma tardeeu estava trabalhando quando uma voz afinadíssima, com um

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supersuingue, chega até minha saia, que ficava nos fundos. Abri ajanela e pedi para Carminha me mostrar o cantor. Era EmílioSantiago, na época um cantor da noite. Emilio chegou até a final,foi o segundo colocado, perdendo por um ponto para Afiton Tobiasde Andrade. O terceiro lugar ficou com Luiz Antônio, que hoje fazcarreira na França.

Segundo os comentários da época, esta final do MIl', realizadano Teatro Municipal do Rio em 18 de junho de 72, teve doisméritos. O primeiro, por abrir um espaço restrito à música eruditaa um público que jamais entrara naquele teatro; e o segundo, porter conquistado uma superaudiência. Além dos concorrentes, hou-ve shows de Juca Chaves e de Elis Regina. Este último, por sinal,antológico. Elis acabara de se separar de Ronaldo Bôscoli, quefazia parte do júri e entrou com a corda toda. Ela cantava umamúsica cujo refrão dizia "quá quará quá quá quem riu, quá quaráquá quá fui eu" e olhava para o ex-marido, que afogava suador-de-cotovelo num copo de uísque.

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"Não deixo que rivalidades escureçamminha vista a ponto de não saber maisdistinguir quem tem realmente valor."

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Ainda nos tempos da TV Rio, Flávio foi fazer umareportagem sobre as carrocinhas que pegavam cachorros narua, e, sensibilizado com a forma como os animais eramtratados, salvou uma cadelinha vira-lata, levando-a para casa.TV era o nome da cadelinha, que acabou morrendo muitoanos depois de ter dado várias crias. Quando Flávio fez 50anos, a equipe de produção do programa se cotizou e lhe deude presente um casal de pastores-alemães, batizados de Jac-queime e Onassis, em homenagem à ex-primeira-dama ame-ricana e ao armador grego. Para manter o clima de love storye fazer companhia a Jackie e Onassis, Flávio comprou maisum casal, que receberam os nomes de Sara e Juscelino.

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22A0 lado de Simonal e Roberto Carlos, Elis Regina era atração

fixa do Programa Flávio Cavalcanti. Uma vez por mês, lá estavaa baixinha no palco da Tupi com toda aquela emoção visceral, vozafinadíssima, forma única de divisão rítmica e um perfeito equilí-brio entre a técnica e a sensibilidade. Elis já era a mais importantecantora brasileira. Apresentava-se nos melhores palcos do mundoe, na televisão, com exclusividade para o nosso programa.

Fazia turnês pelo exterior, e em 1969, junto com RobertoMenescal, percorreu alguns países da Europa, com muito sucesso.Mas, em entrevista a um jornal holandês, baixou malhação noregime político do Brasil, chamando, inclusive, os militares de"gorilas". Quando voltou o circo já estava armado. Através deArmando Nogueira, diretor de jornalismo da TV Globo, soube queo pessoal do Exército estava querendo ter uma conversinha comela. Os militares foram informados sobre suas declarações noexterior e não gostaram nem um pouquinho.

Elis não tinha contrato com a Globo, apenas uma relaçãoprofissional, mas era comum naquela época todos se ajudarem emcasos como esse. Por isso ela foi depor no CIE - Centro deInformações do Exército acompanhada do jornalista Aníbal Ribei-ro, assessor de Walter Clark, então diretor geral da TV Globo. Ojornalista não teve acesso ao local do depoimento e contou apenasque o encontro foi rápido. A cantora saiu comentando que haviasido bem-tratada, mas não entrou em detalhes. Para Ronaldo

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Bôscoli, seu marido na época, no entanto, contou que levara umaperto, que lhe tinham sugerido uma temporada fora do país e quediante disso resolveu não mais criticar o regime.

Aperto ou não, Elis passou a restringir seus comentários sobrepolítica para as quatro paredes de casa, e dois anos depois, em1972, cantava o Hino Nacional num show nas Olimpíadas doExército, dentro das comemorações pelo Sesquicentenário da In-dependência. Elis teria participado desse show porque o cachopedido por Marcos Lázaro, seu empresário, era muito bom, e foiaceito pelo coronel responsável pela contratação dos artistas. Antesde fechar o contrato, Marcos lembra que consultou Elis e ela lhedisse que não tinha a menor objeção em fazer essa apresentação.Pressionada ou não? Essa pergunta vai continuar sem resposta. Ofato é que a história nunca foi digerida pela esquerda. A cantorapassou a ser considerada simpatizante do regime e acabou sendopichada. Nessa época, ocartunista Henfil publicava semanalmenteno Pasquim o "cemitério dos mortos vivos". Eram pequenaslápides com os nomes das pessoas que considerava de direita, ondeele fazia os "enterros". Elis foi enterrada ao lado de Marília Pêra,Roberto Carlos, Pelé e outros "traidores".

Até 1973, com a esquerda massacrando, Elis permaneceucomo contratada do Programa Flávio Cavalcanti. Nesse mesmoano, transferiu-se para a Globo para participar do programa SomLivre Exportação, e, aos poucos, as facções políticas foram serendendo ao seu indubitável talento. Foi louvada, endeusada,aplaudida. Até o próprio Henfil, tempos depois, tornou-se seuamigo.

Muitos anos depois, no final de outubro de 1981, Elis veio aoRio para assinar contrato com a gravadora Som Livre e estrear oshow Trem Azul. Depois de um badalado coquetel no Hotel CaesarPark, numa suíte no vigésimo andar, ela me deu uma entrevistaexclusiva para o jornal O Globo. Já nos conhecíamos há muitotempo. Antes de trabalhar com Flávio, eu fizera algumas reporta-gens com ela, inclusive a do nascimento de João Marcelo, seuprimeiro filho. Elis estava com 36 anos, três filhos, dois casamen-tos, e era o maior nome da música brasileira. A sua frente eu sentiaum misto de culpa e constrangimento. Apesar de ter entrevistadodezenas de pessoas tão famosas quanto ela, o que me deixava assim

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era o fato de estar envolvida emocionalmente com seu ex-marido,o pianista César Camargo Mariano, o que ela não desconhecia.

César passava as noites contando detalhes do casamento comElis, as brigas, as voltas, os filhos, os erros, e, pacientemente, euouvia. Aquele romance, na versão dele, eu conhecia do avesso. EElis também sabia disso, mas em nenhum momento naquela entre-vista deixou de ser sincera, inteira, corajosa; expunha seus senti-mentos sem reservas. Muito agitada, falando sem parar, às vezesinterrompia o discurso, ia até o quarto e voltava ainda mais acesa,com um copo de vodca na mão. Conversamos até de madrugada,e, quando fui embora, ela me levou até a porta do elevador, me deuum longo abraço e disse baixinho em meu ouvido: "Eu não soutão ruim como dizem." Não sabíamos que aquele seria nossoúltimo encontro e aquela sua última entrevista. No dia 19 de janeirode 1982, quando eu morava em Nova York, soube de sua mortebrusca e tumultuada. Ela não merecia ir assim.

Eis alguns trechos da entrevista.

"Casamento e separação:'Não estou preocupada em fazer uma avaliação de perdas

e danos, nem rescaldos de incêndio. Isso não faz o meumodelito. Viver é melhor do que sonhar, por isso eu quero émais.'

Produção de shows:'No Brasil a aspiração é americana, mas a organização é

macunaímica. Quem está no palco envolvido com o processode criação não vê, só sabe o que está acontecendo através deinformações carregadas de visões pessoais, que acabam vi-rando um patchwork, verdadeira colcha de retalhos de ten-dências. O fato de ser artista e empresário faz com que oartista, muitas vezes, acabe tomando aversão pelo que estáfazendo, pois sabe que no final do mês tem que pagar INPS,FGTS e outras coisas.'

Cantar:'Cantar para mim é uma coisa séria, um sacerdócio. O

resto é o resto. O meu futuro é cantar, pois quando ficar velha,como a Edith Piaf, vão me colocar no palco, e esta é a únicacoisa que vai me restar. Até meu filho, que tem onze anos, já

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passa noites fora de casa. Dediquei minha vida a cantar, e nãotem homem, nem pai, nem mãe que me tire disso. Quematravessar no meio para dividir ou diminuir vai ser atropeladocomo um trator passando por cima de uma margarida. Nadame segura quando o maestro conta quatro. Aí, danou-se! Acatarse acontece, tem até vomitórios. Sábado passado choreidurante o show por causa de uma conversa que tive comminha mãe. Eu tenho o prazer de me danar e me recomporsozinha. Não preciso de muletas.'

Psicanálise:'É muita individualidade para a minha cabeça, que traba-

lha em mutirão, pagar três milhas por hora para falar dos meusproblemas. Resolvi que nada mais me chateia, a não ser febrede menino. As pessoas ditas corretas estão frustradas por nãoterem um tipo de vida como a minha. A perfeição é uma metadefendida pelo goleiro, já disse Gilberto Gil, e, como não souWaldir Peres e nem quero jogar na seleção, não estou preo-cupada com isso. Só quero levar adiante a minha vida semmachucar ninguém. É claro que continuo amarrando bodes epagando caro o preço da liberdade. Tenho pânico de solidão,mas estou aprendendo a fazer mil coisas, até ajogar paciênciacomigo mesma. A minha lucidez me leva às raias da loucura.'

Amor-próprio:'Eu sou apenas o meu tipo inesquecível, apesar de às

vezes me achar uma porcaria.'Filhos:'O encargo de estrela é pesado, mas pior ainda é ode mãe.

Eles que se virem como eu me virei. Meu pai era chefe deexpedição numa companhia de vidros, minha mãe de prendasdomésticas, e eu cantora. Ninguém me valeu de nada, meusfilhos vão ter que se virar. Ferre-se o avião que eu não sou opiloto.'

Emoção e técnica:'Não há artista que não tenha técnica e parâmetro para

obedecer até chegar a um determinado ponto num show. Ficaruma hora e meia em cima dum palco com um sapato de saltoalto e o estômago dançando, se não tiver um mínimo decontrole, a cabeça estoura. Quem não tiver sutileza para

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entender que quem está ali é um ser tímido pode pensar milcoisas. Eu sou tímida, até as palhaçadas são um reflexo.'

Final:'Resultado final só quando eu acabar, e assim mesmo vou

deixar testamento, mas não sei se vão me respeitar. Naverdade eu não afirmo nada em relação a ninguém: só dou otiro, quem mata é Deus."

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"Não sou um censor, sou um censurável."

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Flávio sempre gostou de sanduíches, de todos os tipos eformatos. Muitas vezes, quando estávamos viajando e chegá-vamos cansados no hotel, trocava o jantar por um bomsanduíche de filé. Aos 60 anos, Flávio descobriu e se apaixo-nou pelos sanduíches do McDonald's. Tinha mais prazer emdevorá-los que uma criança, principalmente a altas horas danoite, assistindo televisão. Fazia olhar de criança, pedia comjeito, e sempre Fernanda, a caçula, saía em busca de um BigMac para a ceia.

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23O ano de 1973 prometia ferver em todos sentidos. Flávio

começara o ano com um grande problema junto à direção da Tupi:atraso nos pagamentos. Sabíamos que os patrocinadores pagavamem dia, mas o dinheiro sumia, não chegava até a TV EstúdioProduções. Os integrantes do condomínio dos Associados rece-biam seu quinhão direitinho, mas para Flávio receber a sua parteera uma choradeira desagradável. Nem na base da ameaça funcio-nava. O advogado do apresentador anunciou que levaria a protestoas promissórias atrasadas. O departamento financeiro da emissoraria, respondendo que assim seria melhor, pois ganhariam maistempo para efetuar o pagamento.

E o programa continuava sendo o de maior audiência daemissora, o que abria as portas para o resto da programação. Mas,como dizem os americanos, "the show must go on". Não podíamosparar. E assim continuamos fazendo o programa com a maiorcompetência.

Desde março do ano anterior estávamos na era da TV em cores,e o nosso programa tinha sido o pioneiro na Tupi. A concorrênciaestava acirrada, e não dava para deixar a peteca cair. MaurícioSherman, o diretor do programa, trocara a Tupi pela Globo parapreparara estréia do Fantástico - O Show da Vida, e a direção doPrograma Flávio Cavalcanti passara para as mãos de WiltonFranco.

A relação com a Censura era cada vez mais complicada. Como

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exemplo, no primeiro programa de 1973, que foi ao ar no dia 7 dejaneiro, Flávio fez uma entrevista incrível com o radioamadorAlfredo Delgado, sobrevivente de um desastre aéreo nos Andes,uma tragédia que havia comovido o país. Apresentou ainda oQuarteto em Cy cantando músicas de Sérgio Porto, entre outrasatrações. Nessa época havia um quadro novo no programa, "VaiLevar ou Vai Quebrar", uma variante do Um Instante, Maestro!,cujo objetivo era analisar letras de músicas. Em relatório enviadoao Ministério da Justiça, o censor de plantão julgou dois "inciden-tes" surgidos no decorrer do programa:

"- Ojurado Milanês, ao dar sua opinião sobre o núme-ro do cantor Serguei, disse que o mesmo ficaria muito bemse apresentado na parada de Sete de Setembro, por fazermuito barulho;

- no quadro 'Vai Levar ou Vai Quebrar', o apresenta-dor insinua que o vocábulo curitinibó não poderia ser expli-cado no ar, 'é onde se recebe ou dá pontapés', e o cantorBenedito Nunes, ao apresentar a canção que leva este título,usou de marcação muito acentuada, não-condizente com umaapresentação em TV."

No domingo seguinte, nova queixa seguia para o Ministério daJustiça:

"Cumpre informar que durante o quadro 'Vai Levar ouVai Quebrar' o produtor e apresentador do programa disseque havia sugerido à Censura que proibisse a música Feirada Fruta, cuja letra não deveria ser divulgada por dar margema interpretação duvidosa. Os jurados Wilton Franco e AlfredoBorba corroboraram a opinião do Sr. Flávio Cavalcanti,sendo que Alfredo Borba ainda disse ter o censor 'comidobola', examinando só a letra, como normalmente é feito, sematentar contra o efeito fonográfico, que é dos piores. Corte nacena mencionada."

O teatro, o cinema, a literatura e a música viviam num inter-minável conflito com a Censura. No dia 4 de fevereiro, o programa

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anunciara o fim da guerra do Vietnã e apresentara dois cantores: oamericano Chubby Cheker, lançador do twLçt, unia dança que fez muitosucesso em meados dos anos 60, e Luís Gonzaga Júnior, o Gonzagui-nha, que a Censura vinha castigando desde o início da carreira. Sobreesta apresentação foi feito o seguinte parecer da Censura:

"Cumpre informar que durante a apresentação de LuísGonzaga Júnior, em Comportamento Geral, o júri levantouuma problemática sobre a música em questão, dando seuautor uma resposta não muito correta, dizendo que 'apreciavao governo Médici e suas realizações, embora não esteja deacordo com muitas delas'. Como se tratasse de um problemadecorrente do imediatismo de um programa ao vivo, nãodando margens a que se pudesse evitá-lo, fica a sugestão, coma devida vênia, de que o cantor em questão seja advertidopara que evite pronunciamentos dessa natureza, caso surjam,em futuras apresentações, comentários sobre sua composi-ção.,,

Foi realmente a partir dessa época que a Censura passou aexercer uma pressão mais constante. No domingo, 11 de fevereiro,Flávio estava buscando uma nova forma de utilizar o satélite daEmbratel que transmitia o programa, e entrevistou Émerson Fitti-paldi diretamente do estúdio da TV Tupi de São Paulo. Hoje issopode parecer simples. Mas naqueles anos, quando se aprendia afazer transmissões por satélite, tudo era muito complicado. Nomesmo programa, no quadro "Repórter da História", foi simuladoo julgamento de Pôncio Pilatos, com o objetivo de desenvolver aomáximo a criatividade da equipe e conquistar mais audiência.Enquanto isso a Censura se sofisticava. Era cada vez mais raroencontrar um relatório sobre o programa isento de comentárioscríticos e análises incompreensíveis, mais parecendo um códigoentre o censor e o Ministério da Justiça. Naquele domingo aCensura cortou o quadro "De Colega para Colega", onde Fláviomostrava ao vivo um pouco dos outros programas da Tupi. Oquadro apresentaria Wilza Cana e Pedro de Lana, integrantes doelenco do humorístico Balança Mas Não Cai. Assim o censorjustificou a proibição:

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"CORTE: quadro Pedro de Lara, a família e bons costu-mes, Wilza Cana, mulheres fantasiadas [biquíni] assuntonarrado. Para o relator são opiniões nas quais o elementoemocional dissimulado, muitas vezes até para o interessado,determina uma seleção de fatos para tornar os que foremfavoráveis ou hostis a determinado grupo ou indivíduo, re-presentam julgamentos fossilizados."

Creio ser impossível alguém explicar o que é um julgamentofossilizado. Não entro na discussão da qualidade do ProgramaFlávio Cavalcanti, mas nos critérios desses censores, que tinhamnas mãos o poder de derrubar um sucesso conquistado com muitoesforço. Penso que os censores ou eram muito inteligentes e suasanálises iam além da nossa cultura mediana, ou eram profunda-mente ignorantes. E engraçado nos anos 90 lembrar que em 1973a Censura chegou ao extremo de proibir o uso de biquíni nocarnaval, como também a apresentação de um balé moderno deVilma Vernont, porque ela usava um maiô cavado. Como relatavao censor, a família e os bons costumes poderiam estar ameaçadoscom estes atos. Era profundamente triste!

1'

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"Não vão conseguir me calar."

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Com um programa acontecendo ao vivo, o palco setransformava num caos nos poucos minutos de intervalo entreos comerciais. Muitas vezes era preciso trocar parte do cená-rio, preparar a orquestra, mudar a estante do apresentador delugar, brigando contra o tempo. Como as instalações da Tupieram precárias, foi improvisado um camarim ao lado do palcopara que Flávio pudesse trocar a camisa, sempre ensopada desuor nas quatro horas de programa. No havia água corrente,e Flávio passava uma toalha umedecida no corpo e emseguida polvilhava-se com talco. Parecia uma gincana, ondetinha que tomar banho e mudar de roupa em no mais de trêsminutos.

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24Com todos esses problemas da Censura, continuávamos procu-

rando dar especial atenção ao jornalismo do programa, porque, antesde qualquer coisa, Flávio se considerava um repórter. Nossa equipetinha repórteres contratados, mas, além deles, também contávamos coma colaboração das equipes de jornalismo da Tupi e dos jornais perten-centes aor, Diários Associados, que tinham sucursais em todo o país.Durante algumas semanas, uma matéria de Minas rondou a produção.Primeiro, foi levantada por um repórter da equipe do Rio, ClaudemirBrochado, mas Flávio recusou. Algumas semanas depois voltou comnovo tempero, trazida por um repórter de São Paulo, Odilon Coutinho.Dessa vez, com a garantia de que o assunto seria acompanhado por umdelegado autorizado pelo secretário de Segurança do estado de MinasGerais. Diante de tantas garantias, mesmo não gostando muito doassunto, o apresentador topou.

No dia 14 de março de 1973,0 Programa Flávio Cavalcanti eratransmitido para dezoito estados, com cerca de dez milhões detelespectadores, e atingiu 32% de audiência quando o apresentadoriniciou a entrevista que iria mudar o rumo de sua carreira. O assuntoque constava do script, enviado à Censura, como de praxe, 48 horasantes do programa, resumia-se no seguinte:

"O lavrador José Gonçalves Filho, semi-analfabeto,doente, e bebendo mais do que devia, resolveu emprestar suamulher, Rita, ao pedreiro João de Almeida Coutinho, casado

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e pai de quatro filhos. João e Rita se entenderam tão bem queJosé não conseguiu a mulher de volta. Rita, por sua vez,estava disposta a cuidar dos dois, e João não concordou."

Este incidente familiar ocorreu em Belo Horizonte, na favelade Minérios, no bairro de Abadia, onde José, Rita e João moravam,e foi registrado pelo delegado José Eduardo de Assis, que acom-panhou os três até o programa. A viagem do delegado e do trio foiautorizada pelo secretário de Segurança de Minas, coronel OdelmoTeixeira da Costa, e pelo chefe do Departamento de Investigações,delegado Prata Neto. O assunto não era muito fascinante, mas,como a reportagem já estava ali, pronta e com a liberação daCensura, Flávio resolveu colocar no ar. Antes de o programacomeçar, Flávio foi alertado por Mansa Urban e Maysa, integran-tes do júri, de que a Censura poderia interferir, e o assunto, apesarde tolo, podia resvalar para o mundo cão. O certo é que ninguémseria capaz de prever que ali havia uma grande arapuca, a gotad'água capaz de fazer transbordar todo o ressentimento que ogoverno guardava do apresentador.

A entrevista correu normalmente, e, quando o programa ter-minou, fomos jantar, como fazíamos sempre, sem termos a maispálida idéia do que nos aguardava.

No dia seguinte, 15 de março, quando o presidente EmílioGarrastazu Médici chegava ao aeroporto de Brasília para viajarao Rio, diversas autoridades discutiam o programa da noite ante-rior. As nuvens negras de Brasília chegaram rapidamente ao Rio,tanto que Ibrahim Sued encerrou naquela noite o seu programa naTV Globo comentando uma possível suspensão de Flávio Caval-canti.

Na terça-feira fui cedo para o apartamento de Flávio, na RuaPaula Freitas em Copacabana. Quando estava no Rio, ele moravasozinho, e, para que se sentisse menos solitário, preparei-lhe o caféda manhã. Enquanto isso, em Brasília, da tribuna do Congresso, ovice-líder da Arena, deputado Clóvis Stenzel, denunciava a entre-vista considerada grotesca. Na quinta-feira às dez horas da manhãos ministros da Justiça, Alfredo Buzaid, e das Comunicações,Hygino Corsetti, acompanhados pelo diretor do Departamento dePolícia Federal, general Nilo Canepa, sentavam-se diante de um

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aparelho retransmissor de videoteipes, numa sala da TV Nacionalde Brasflia, para julgarem o apresentador.

Mesmo sendo um programa ao vivo, ele tinha que ser gravado,por ordem da Censura. E, assim, lá ficaram os senhores discutindoo nosso futuro. Foi um julgamento rápido, pouco mais de uma hora.O diretor da Divisão de Censura do Departamento de Polícia•Federal, Rogério Nunes, interrompeu suas férias em Foz do Iguaçu,e às 21 horas do mesmo dia deu a sentença: sessenta dias desuspensão para o programa, para o apresentador e para o diretorWilton Franco. Ambos ficavam proibidos de exercer qualqueratividade artística em todo o território nacional pelo mesmo perío-do.

As suspensões eram baseadas num decreto-lei de 24 de janeirode 1946, anterior à chegada da televisão ao Brasil. Além disso,violava o artigo segundo de outro decreto, de agosto de 1961, quedizia: "Não será permitido no rádio ou na televisão programa quecontenha cenas imorais, expressões indecentes, frases maliciosas,gestos irreverentes capazes de ofender os princípios da sã moral."

Ora, Flávio não apresentara nenhuma cena imoral, nem dissepalavrões, nem fizera gestos obscenos. Foi punido porque queriamque fosse punido, e assim funcionava a lei do autoritarismo. Essedecreto-lei, de janeiro de 46, praticamente mantinha as proibiçõespara espetáculos determinadas durante o Estado Novo pelo DIP -Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1939, no período daditadura de Getúlio Vargas.

Aquela entrevista aprovada pela Censura, seguindo as normasde um protocolo assinado em setembro de 1970 entre as emissorasde televisão e a Polícia Federal, não tinha muito o que render.Afinal, por serem semi-analfabetos e terem pouquíssimos conhe-cimentos, João, José e Rita jamais poderiam fazer um discursoacalorado. Suas respostas foram monossilábicas, óbvias e ingê-nuas.

Depois da suspensão, a Tupi decidiu não recorrer à Justiça. Emvez de ficar do lado de quem lhe garantia o melhor faturamentopublicitário e o maior índice de audiência, o diretor geral daemissora, José Arrabal, fazia a seguinte declaração à revista Vejade 21 de março de 1973: "O quadro infringiu a ética, a moral e osnossos costumes. As autoridades agiram como deviam. Só estou

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atordoado com o rigor da punição. Flávio nunca deveria ter colo-cado o quadro no ar."

Na verdade, há muito Flávio vinha incomodando, e quemacompanhava podia perceber que os fatos dos bastidores dessahistória eram bem diferentes do que o caminho que a reportagemtomou. Naquele mesmo domingo, pouco antes da fatídica entre-vista, Flávio mais uma vez desobedecera à Censura tirando da suaestante de acrílico um "Fora de Script "de fazer tremer nas bases.Ele batia muito na tecla da educação, e naquele início de mês oassunto estava em pauta. Depois da Lei n2 5.692, de agosto de 1971,conhecida como Lei Passarinho, o ensino do primeiro e segundograus sofreu modificações: o primário e o ginásio foram unifica-dos, e o primeiro grau passou a ter oito anos; e os cursos clássicoe científico viraram um só. Esta Lei, que teve efeitos a partir de1972, não veio sozinha. Em 1973, uma portaria da Fename -Fundação Nacional do Material Escolar, criou o Banco do Livro,para que os livros escolares deixassem de ser descartáveis, duras-sem pelo menos três anos e pudessem ser passados de irmão parairmão, permitindo com isso uma boa economia doméstica parafamílias numerosas. A única exceção era para as cartilhas. Estaportaria vinha contra a Lei n2 4.024, de 1961, que dava liberdadetotal aos professores para adotar os livros que bem entendessem.

Bem, toda essa explicação foi para chegarmos até um fatoamplamente discutido pela imprensa na semana anterior à suspen-são do programa: um número muito grande de professores nãosabia que lei seguir, o que criou enorme confusão quanto aos livrosa serem adotados. As secretarias de Educação não se manifestavamsobre o assunto, enquanto diretores e professores se queixavam dafalta de orientação. Flávio foi um dos defensores da Lei Passarinho,mas acreditava que a portaria da Fename fora precipitada demais,e que só deveria vigorar a partir do ano seguinte.

Para melhor retratar a situação, durante a semana fora feita umareportagem de rua, em Copacabana, em frente a uma das maioreslojas de material escolar. Foram entrevistadas donas-de-casa quenão entendiam o que era o Banco do Livro nem tampouco a portariada Fename. Esta foi a primeira vez que trabalhei como repórter deTV e, por isso, o fato me marcou.

Depois de mostrar a reportagem, Flávio não resistiu e, ao

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encerrar o "Fora de Script", mandou um recado malcriado para oentão ministro da Educação, Jarbas Passarinho, pedindo que expli-casse melhor as mudanças no ensino. O discurso inflamado foisuficiente para causar um rebuliço em todo o país, principalmenteporque no dia seguinte começava o ano letivo.

Todos nós sabíamos que Flávio vivia um dos momentos demaior prestígio em sua carreira. Seu programa tinha um poderincrível de mobilização popular, uma audiência estrondosa, e seriacapaz de provocar um movimento nacional. Comprovávamos estefato a cada semana, e o governo também sabia dessa força, eprocurava abafar a sua voz. Dentro daquele regime político, qual-quer tipo de liderança era tolhido antes que tomasse mais vulto. Aestratégia oficial foi simples: a polêmica foi desviada para ahistória de José, Rita e João, e Flávio levou a pior, sendo punidopor todos os "Fora de Scripi" de sua vida.

Nove semanas sem Flávio, uma grande chance para a TVGlobo recuperar a sua audiência aos domingos. O "Senhor dosDomingos" acabava de ser conduzido ao altar dos sacrifícios emnome da moral e dos bons costumes. Ou em nome do silêncio dosseus "Fora de Script', ao menos por um tempo.

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"Sou estourado, faço muitas coisas dasquais depois me arrependo."

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Entre 70 e 73, Flávio faturava tanto na televisão queperdeu a noção do dinheiro. Este caso retrata bem a situação.Certo dia, ele me pediu que comprasse duas gravatas-borbo-letas, pois transpirava muito durante o programa e elas logoficavam feias. Quando entreguei as gravatas e a nota, Flávioolhou muito sério, me deu o talão de cheques e comentou:"Como as gravatas estão caras!" Achei estranho o pedido parafazer um cheque de 120 cruzeiros, pois eu acabara de colocar3 mil em sua mala. No entanto, ao devolver o cheque paraque ele assinasse, minha surpresa foi maior, com Flávioexclamando: "Por que a senhora não me disse que era 120?Pensei que fosse 1.200!"

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Com a suspensão do Programa Flávio Cavalcanti por ses-senta dias, a agência que produzia o programa, a TV EstúdioProduções, foi atingida de forma crucial. Com 31 funcionários,despesas fixas com a equipe, o prejuízo por dois meses de inativi-dade chegaria a alguns milhões de cruzeiros. Ninguém sabia o queia acontecer. Flávio só lamentava ter antecipado em uma hora aentrevista, liberada pela Censura para as 22 horas, o que provocouaquela enorme confusão.

O apresentador ficou extremamente surpreso com a decisão daCensura, por acreditar que competia àquele órgão autorizar ouvetar quadros. E era óbvio que os censores sabiam do teor daentrevista. Ele não era estreante, tinha dezoito anos de televisão, enão admitia que a punição também atingisse o diretor do programa,Wilton Franco. Estava ciente de que não fugira do script nemdesrespeitara ou desobedecera qualquer deliberação. A única res-trição que os censores haviam feito ao polêmico programa foraquanto à bailarina Vilma Vernont, que não poderia se apresentarvestindo um maiô cavado. A reivindicação fora prontamente aten-dida, e a bailarina se apresentou de forma não-atentatória à moral,de acordo com a Censura.

Flávio estava arrasado, e se recolheu à sua casa em Petrópolis.Pensou em viajar, ir à Itália tentar mais uma vez entrevistar SophiaLoren, mas acabou ficando em casa, pensando e repensando apunição que jamais admitiu, ou melhor, engoliu. Sabia, de fonte

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segura, que a puxada de tapete representava um cartão amarelo.Seria melhor ficar preparado, pois o esquema previa um arrochoainda maior quando retomasse à TV.

Uma parte da equipe, que não tinha ligações contratuais coma Tupi, como era meu caso, entrou em férias. O restante teve queproduzir um programa-tampão que, por ordem da Censura, nãopodia se assemelhar ao de Flávio Cavalcanti. Foi criado entãoDomingoÉDiadeShow, produzido e dirigido por Eduardo Sidney.Era um show de variedades apresentado por duplas, a maioriacontratada da Tupi, como Peny Sailes e Vera Fischer, AgnaldoRayol e Íris Lettieri, Lúcio Mauro e Íris Bruzzi, Corrêa de Araújoe Sandra Barsotti, Roberto Figueiredo e Maria da Glória, NilsonCondé e Renée de Vielmond, entre outros. A princípio o públicogostou dos números musicais, da apresentação de uma vaca queusava dentadura e de um quadro de humor muito famoso na época,com o casal Ofélia e Femandinho, interpretados por Sônia Mamedee Lúcio Mauro. Mas Eduardo Sidney sabia que, se o governomantivesse a punição de Flávio Cavalcanti por sessenta dias, estaestrutura não agüentaria, por melhor que fosse o desempenho dosapresentadores e produtores. Faltava a peça-chave, o carisma doapresentador, o que foi se confirmando aos poucos com os ponti-nhos do IBOPE caindo, caindo...

O Programa Flávio Cavalcanti voltou ao ar no dia 20 de maio,com restrições bem claras impostas pela Censura. A platéia nãopoderia aplaudir de forma entusiástica a entrada do apresentador,nem tampouco poderia haver qualquer referência ao período desupensão. Tinha que entrar em cena como se aqueles sessenta diasnão tivessem existido.

O mais difícil de tudo era decifrar o que a Censura entendiapor "aplaudir de forma entusiástica". Critérios pouco claros e,como sempre, muito pessoais. Era quase impossível controlar oaplauso do público, o assédio da imprensa e o misto de emoção erevolta do apresentador. Mas o programa foi ao ar, com júri,grandes atrações e um quadro que era um tapa com luva de pelica:"É Proibido Falar." Nada mais que 25 minutos só de boa música.

A Tupi se aproveitava dessa situação constrangedora entre oapresentador e a Censura atrasando os pagamentos. Alegava que aausência de Flávio por sessenta dias se refletira no faturamento da

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casa e em toda a programação. A bem da verdade, a audiênciasofrera uma queda vertiginosa, mas os atrasos nos pagamentosdatavam de muito antes. Flávio teria que levantar a Tupi de novopara voltar a receber seu salário, e ainda conviver com a Censuramuito mais enérgica.

No dia 3 de junho, duas semanas depois de o programa tervoltado ao ar, o censor de plantão enviou um longo parecer aoMinistério da Justiça, onde relatava:

"O programa do Sr. Flávio Cavalcanti, domingo, dia 3do corrente, foi iniciado após a apresentação nominal dosVips [jurados] com a apelação injustificável, proferida emtom declamatório pelo Sr. Lúcio Mauro, rememorando:

1. A punição recebida pelo Sr. Cavalcanti, 'chefe defamília e profissional bem-intencionado';

2. E as centenas de telegramas, naquela época, enviados.As imagens semânticas empregadas pelo Sr. Lúcio Mau-

ro, assim como o enfoque 'do caso', levantaram uma idéia decrítica à justiça da punição.

Logo em seguida ao jogo das equipes 'Eles e Elas', naparte segunda 'Isto Está Certo, Isto Está Errado', foram lidospela Sra. Márcia de Windsor, como fazendo parte do jogoacima, alguns artigos dos trinta da Declaração Universal dosDireitos do Homem (1948) - Assembléia-Geral da NaçõesUnidas.

1. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidadee direitos, são dotados de razão e consciência e devem agiruns em relação aos outros com espírito de fraternidade;

2. Todo homem tem direito à liberdade de opinião,expressão etc. etc.

Para finalizar as mensagens emitidas, a delegada dePolícia do Ceará, Srta. Margarida Maia Borges de Carvalho,possuidora de mais de dezenove cursos, declarou apreciarmuito os programas do Sr. Flávio Cavalcanti, principalmenteo de Natal.

Foi, assim, via Embratel, a imagem do apresentador comenunciados de protestos e recomendações ao seu programapor uma autoridade policial.

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Devemos salientar que a apresentação do Sr. Lúcio Mau-ro não estava no script.

Tendo em vista o exposto, e como o programa tem comonorma estabelecida (oficiosamente) a alteração do scriptquando de suas apresentações, tornando o trabalho da Cen-sura estéril, sugerimos:

a. Que seja comunicado a quem de direito que o scriptenviado à Censura deve ser completo, apresentando todos oselementos para que o mesmo possa se pronunciar;

b. Que, após o script haver sido liberado, não poderásofrer qualquer alteração;

c. Caso a produção não respeite esta orientação, o pro-grama passará a ser gravado em VT, com obrigação de serapresentado à Censura com 24 (vinte e quatro) horas deantecedência para ser aprovado e liberado."

Mas a Censura foi ainda mais longe no dia 17 de junho.Flávio gostava muito de ler e tinha mania de anotar as frases queachava interessantes. Algumas eram de pessoas famosas, outrasde anônimos, mas todas tinham o mesmo valor para o apresen-tador. As vezes, entre um quadro e outro do programa, Fláviomexia nos papéis que ficavam na estante, buscava algum pensa-mento e dizia: "Li não sei onde, guardei e dou de graça",passando a frase para o público. Não havia conotação política;apenas uma forma de se expressar. Naquela noite Flávio repetiuo "Li não sei onde" seguido do ensinamento: "Cada um var-rendo a frente de sua casa, o mundo será muito mais limpo." Ocensor, querendo encontrar algo que justificasse a sua presençano trabalho durante aquela noite de domingo, resolveu fazer umaanálise mais profunda, enviando para o Ministério da Justiça oseguinte parecer:

"Decodificação: técnica de conceituação que procuradistinguir a fofoca em todos os sentidos, político, mexerico,xingamento, desabafo etc. Alta rentabilidade emocional,transferência e encaixe dos seus [Flávio] problemas na esferados espectadores."

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Mas a esfera de atuação dos censores era ampla e acima detudo ridícula. No dia 24 de junho, o programa saiu do ar quatrovezes por falta de energia elétrica na Urca. Alguns quadros foramapresentados, mas, para evitar maiores complicações, resolveramsubstituir o programa ao vivo por um vídeo da entrega dos prêmiosdas Canções Medalha de Ouro. Como o censor nada tinha o queescrever em seu relatório para o Departamento de Censura Federal,sugeriu "que toda e qualquer canção que venha a ser apresentadaem idioma outro que não o português dê entrada neste serviço desua tradução. No quadro 'Esse ou Essa Está Realmente Botando praQuebrar', foi apresentado um cantor brasileiro fazendo sucesso noMéxico, cuja letra cantada não tivemos a tradução."

Era muito clara a postura da Censura, forçando a barra paraque os programas fossem gravados em videoteipe. Flávio eratotalmente contra, pois acreditava que perderia o calor do auditórioe a força da atualidade. Mas os relatórios que os censores enviavampara a Censura de Diversões Públicas, posteriormente encaminha-dos ao Ministério da Justiça, vinham acompanhados dessa suges-tão. Para o governo seria ótimo: continuaria a manipular asinformações, como já vinha fazendo há algum tempo com acensura na imprensa. Se conseguissem exigir a gravação em video-teipe dos programas de variedades, o controle seria ainda maior, esó seriam liberados os assuntos de interesse da ditadura.

No dia 12 de julho, a Censura fez cortes no scriptdo programa,proibindo o ator Valdir Maia, que interpretaria Abraham Lincolnem "Repórter da História", de mencionar o fato de Flávio ter umfilho adotivo negro, Washington. Proibia também que o apresen-tador usasse os termos "um herói da liberdade, um grande demo-crata" e "gigante da liberdade", com referência a Lincoln.

Mas a Censura não se restringia apenas a fatos como esses. Norelatório referente ao programa do dia 22 de julho, o censor dizianão lhe caber julgar "quanto ao quociente intelectual da equipe edo próprio apresentador", mas que "a tendência nossa é fazer odesaparecimento do quadro 'Flávio Confidencial', já que não po-demos proibir por amparo legal". Fechando o relatório, faziacomentários sobre a comunicação do apresentador, descrita como"fraca. Desde a suspensão sofrida, nota-se uma certa inibiçãopessoal". E não era para menos. Sobreviver à tensão semanal era

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muito duro. Toda a equipe sofria, e a adrenalina aumentava emconjunto. Hoje chego a pensar que dificilmente alguém teria saúdesuficiente para enfrentar tantas pressões. Flávio não era mais umgaroto, estava com cinqüenta anos, e às vezes se queixava de umcerto cansaço. Não lhe faltava pique para trabalhar, mas parasuperar essas perseguições declaradas.

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"Naquela mesa está faltando ele/e asaudade dele/está doendo em mim."

Sérgio Bittencourt

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Quando Flávio perdeu a casa de Petrópolis, e com issodeixou de ter a sua capela, um pequeno oratório passou aacompanhá-lo. Na entrada dos apartamentos em que morou,tanto no Rio quanto em São Paulo, em cima de uma antigamesa de jacarandá, ficavam as imagens de Nossa Senhora,Nossa Senhora da Conceição e Jesus Crucificado. Esta últi-ma, a favorita de Flávio, era uma peça valiosa, datada do finaldo século, esculpida em madeira com detalhes em marfim.Ao lado das imagens, uma vela de sete dias ficava acesaininterruptamente.

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26O jurado mais constante dos programas de Flávio Cavalcanti

era Sérgio Bittencourt. Jornalista e compositor, filho do instrumen-tista e também compositor Jacob do Bandolim, nasceu cercado demúsica. Aos dezoito anos, cansou de viver à custa do pai, deixoua casa da família em Jacarepaguá, no Rio, e foi tentar a vida. Em1968, já escrevia no Correio da Manhã e criticava duramenteFlávio Cavalcanti. Vendo o jeito desaforado do jovem colunista,que agredia a tudo e a todos, inclusive os seus programas, Flávioprocurou conhecê-lo. Logo descobriram muitos pontos em co-mum, principalmente no tocante à defesa da música popular bra-sileira, e da inimizade nasceu uma longa amizade. Flávio jápensava em fazer um programa com jurados, e Sérgio foi convida-do a participar do primeiro júri de TV em Um Instante, Maestro!A partir daí, nunca mais deixou abancada, passando paraA GrandeChance e depois para o Programa Flávio Cava/canil.

Como jornalista, escreveu a coluna "Rio à Noite", em OGlobo, colaborando depois para o jornal O Fluminense, revistaAmiga e rádios Capital (Rio) e Mulher (SP). Como compositor,venceu em 1968 o festival O Brasil Canta no Rio com Modinha,interpretada por Taiguara; foi classificado em quarto lugar noFestival da Record, com Canção de Não Cantar, interpretada peloMPB-4, e seu maior sucesso foi Naquela Mesa, em que homena-geava o pai. Tinha um jeito agressivo de se expressar, mas a almaera doce. Desde criança lutava contra a hemofilia, e, sempre

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apoiado por Flávio, foi um dos primeiros a fazer campanhas paralevantar fundos para a construção de uma casa que atendesse aosportadores da doença.

Se a sua crítica era dura, seu coração era temo e apaixonado.No dia 9 de julho de 79, pouco depois das três e meia da manhã,acabou de escrever uma crônica sobre a morte da jornalista MárciaMendes, acontecida três dias antes, e foi dormir pedindo paraEliane, sua companheira de tantos anos, que levasse o artigo aojornal O Fluminense bem cedo. Quando Eliane voltou, Sérgioestava dormindo, dessa vez para sempre. Sofrera um enfarte ful-minante.

Sérgio e Márcia tinham em comum uma vontade louca deviver. Márcia Mendes foi pianista, manequim, editora de moda ea primeira mulher no Brasil a fazer telejornalismo em horário nobrena Rede Globo, apresentando notícias mais sérias do que a previsãodo tempo ou o novo caso amoroso de Elizabeth Taylor. Erasurpreendentemente linda. Tinha os olhos de um azul inconfundí-vel, um sorriso perfeito e uma voz rouca, sua marca registrada.Durante sete anos, Márcia lutou pela vida. Primeiro surgiu umainflamação no menisco, depois um problema na garganta, umaendocardite e um sem-número de doenças. Foi emagrecendo, e seucorpo de 1,70m de altura chegou a pesar 36 quilos. Superou osproblemas e voltou ao vídeo.

Conheci Márcia Mendes em 1970, quando ela era produtorade moda da Bloch Editores na sucursal de São Paulo. Passamosalguns fins de semana juntas em Teresópolis, na casa de um amigocomum, Francisco Augusto Nascimento, e conversávamos até odia nascer. Em 1978, quando teve uma pequena melhora, como umsopro de vida, Márcia me deu um longo e comovente depoimentopara o jornal O Globo, onde falava sobre a doença:

"Temia que a morte me pegasse de surpresa. Vi que amorte era realidade maior que a vida. Eu tinha consciênciada morte como qualquer outra pessoa, mas ela não era palpá-vel. Agora, para mim, vida e morte são palpáveis, poisconheço as duas. Sei que a morte pode acontecer a qualquersegundo, por isso não quero perder mais um minuto de vida.Tenho uma sede quase adolescente de viver, e sei também

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que uma certa fase andei me boicotando, me deixando encos-tar pela doença."

Em outro trecho dizia:

"Nas duas vezes em que tive a sensação da morte, pudeconstatar depois que aqueles dias foram os mais críticos e osmédicos perderam a esperança. Tive uma leve sensação decegueira e surdez. Parecia que estava saindo mesmo algumacoisa de dentro do meu corpo e que ficava no ar. Acreditoque, a não ser que a pessoa morra num choque forte, semsentir nada, tem essa sensação."

Nove meses depois dessa entrevista, numa luta constante pelavida, Márcia foi tomada pelo câncer e ficou em coma durante trezedias. No dia 6 de julho de 1979, seu coração não resistiu e umenfarte levou-a para sempre.

Sérgio sofreu com essa perda. Não eram amigos, mas ele sabiao quanto era difícil driblar uma doença, pois a hemofilia a cada dialhe deixava mais seqüelas, e de longe acompanhava a luta deMárcia contra o câncer.

Sérgio não estava bem quando Márcia morreu. Seus dias eramdifíceis, às vezes melhores, outras vezes piores, e, como todo poeta,cultivava uma enorme solidão. Os dias lhe corriam pelos dedos,como se fossem teclas que escapavam de sua maquina de escrevernaquela última crônica para Márcia. Sérgio Bittencourt morreu aos38 anos, de enfarte e aneurisma cerebral. A crônica-poema queescreveu para Márcia é a seguinte:

"Morrer para Márcia sempre foi um exercício, uma sina,ou talvez quem sabe um ofício. Morrer para Márcia semprefoi viver sorrindo, fingindo, mentindo, fugindo, e Márciamorreu! Mas antes viveu. Cantou tudo o que a vida lhe deu.Sua arma entre outras era o sorriso preciso, o rosto iluminado,mesmo longe, sempre perto porque tudo estava certo, corretoescrito. Então, o jeito era viver no frio e calculado desafio àvida que de minuto a minuto vinha chegando. E Márcia lutou,lutou até perder. E a cada orgasmo de horror Márcia respon-

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dia à morte com toda a força de amor. Morrer Márcia morreu!Mas até o último segundo viver Márcia viveu. Com todos osrecursos que a vida sabe nos dar, para pelo menos nossa morteadiar. E Márcia adiou o quanto pôde, o quanto soube. A Mortefurava para o dia seguinte. Até porque dezenove não é vinte.Márcia menina Mendes, meio menina, meio menino, e bemsabia que um dia por quem dobraria os sinos. Atenção! Luz!Câmeras! Ação! da qualidade o padrão, da notícia a emoção.Agora não! Agora é sorrir. E o telespectador não merece asolidão. Scripr na mão, na voz, segurança e mansidão, man-sidão. Por mais que lhe doam o corpo, a alma e o coração. Eo remédio era fatal, não curava a dor do mal. É viva a vidaenquanto ela existe. Para Márcia era proibido ser triste. Doresmaiores que a dela, de microfone em punho, ela descia adesgraça, ela subia a janela. Tão livre, tão simples, nas suasnoites de horrores ela amou tantos amores, olhando a mortede frente. Sorrindo, calada, ou rezando, ela sabia que a Deusnão se mente. Sexta-feira dia 6 de julho ainda é o mês. Márciamenina Mendes foi ao chão. Morreu do que vinha vivendo.Do remédio que lhe adiava a última hora. O último instantede ação é hoje e agora, Márcia menina repórter, lá nas alturasdos céus, virou de repente notícia, notícia em primeira mão."

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"A tarefa do comunicador é combater.Por isso, sempre me envolvo em guerrassantas. A coisa cômoda me incomoda."

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Morro teso mas não perco a pose. Esta era uma das frasesque Flávio mais repetia. Ele não tinha noção do custo de vidae certo dia, com Belinha adoentada, resolveu fazer-lhe umasurpresa: foi ao açougue comprar uma galinha para ser pre-parada ao molho pardo. Belinha sempre reclamava da alta dospreços, e, quando Flávio perguntou ao açougueiro o preço dagalinha, achou muito barato. Pediu que embrulhasse oito, esó na hora de pagar constatou que o preço era por quilo, e nãounitário, como pensava. Ficou teso, mas não perdeu a pose.

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27Existem pessoas que não gostam de anos pares, outras de anos

ímpares, mas, predileções à parte, 1973 já trouxera sofrimentosdemais. Ninguém supera uma punição como a de Flávio com umsorriso nos lábios. Era preciso muita força de vontade para conti-nuar na luta. Hoje, vinte anos depois, quando meus pensamentosvoam longe e relembro tudo o que Flávio passou, sinto um orgulhoenorme de tê-lo conhecido. Muitos de seus colegas fizeram o jogodo governo, calaram-se, disseram sim quando preferiam dizer nãoe tiveram um caminho mais tranqüilo, apesar da consciência maispesada.

No sábado 28 de julho de 1973 acompanhei Flávio a Belo Hori-zonte. Ele daria uma entrevista no programa de Sérgio Bittencourt, naTV Itacolomi, que fazia parte das Emissoras Associadas. Fomos decarona num jatinho de Eron Alves de Oliveira, amigo e um dospatrocinadores de Flávio.

O programa de sábado à noite na TV Itacolomi tinha grandeaudiência em Minas, e há muito Flávio vinha prometendo umaentrevista. Sua chegada foi triunfal. Era a etapa final de umagincana e o programa acontecia num ginásio superlotado por umpúblico simpático e efusivo. Flávio estava radiante. Sem a Censurapor perto, Sérgio começou uma longa entrevista, como nos moldesdo "Flávio Confidencial". A Loteria Esportiva tinha sido lançadahá pouco tempo, e todos queriam ficar milionários fazendo os trezepontos. Entre as perguntas, Sérgio quis saber o que Flávio faria se

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acertasse os treze pontos. A resposta foi curta e objetiva: "Pagariaos atrasados da Tupi."

Flávio não conseguia segurar os impulsos, falava o que queria.Praticamente no mesmo momento a direcão da Tupi, no Rio, ficousabendo da crítica. A roupa suja estava sendo lavada em casamesmo. As mazelas, até então encobertas, estavam sendo reveladasao público. Desde a volta à TV, depois da sua suspensão, o climaentre Flávio e a direção da Tupi não era dos mais amenos, e antesmesmo de retornarmos ao Rio sabíamos que a situação estavapreta. Uma nova bomba iria estourar no domingo pela manhã, apósa nossa chegada: a Tupi resolvera punir o apresentador. Flávioestava suspenso mais uma vez. O próprio patrão, que não pagavaem dia, não admitia ser censurado em público. Estava selado oafastamento definitivo de Flávio da Rede Associada.

Ainda chegamos a ir à TV Tupi para Flávio tentar uma com-posição. Afinal, aquele domingo era muito especial. Havíamosdivulgado amplamente o lançamento do segundo LP CançõesMedalha de Ouro, com a presença do maestro francês Paul Mau-riat, que apresentaria as seguintes canções: Eu Só Quero um Xodó,de Dominguinhos e Anastácia; O Show Já Terminou e Proposta,de Roberto e Erasmo Carlos; Teimosa, de Antônio Carlos e Jocafi;Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho; Retalhos de Cetim, de Benitodi Paula; Joana Francesa, de Chico Buarque; Oração de MãeMenininha, de Dorival Caymmi, e Carinhoso, de Pixinguinha. Estaúltima não fazia parte dos lançamentos do ano, mas homenageavao compositor, falecido há pouco. Com a suspensão de Flávio, osjurados atuaram como apresentadores. Armando Pitigliani, queproduzira o LP, apresentou o maestro.

Foram dois meses vivendo um clima insuportável, e, assim queestes fatos chegaram aos ouvidos do grupo Record de São Paulo,Flávio foi procurado com a proposta de levar o seu programa paraa TV Rio. A idéia era revitalizar a Rede Record.

Nesse intervalo entre a saída da Tupi e a estréia na Record/Rio,com Flávio profundamente fragilizado e sem ter a quem recorrerpara revigorar o seu programa, a Globo lançou seu maior petardosobre as nossas cabeças. Preocupada com os altos índices deaudiência do Programa Flávio Cavalcanti, resolveu mudar a sualinha de programação. Retirou do ar Só o Amor Constrói e em seu

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lugar criou um programa de alto nível, utilizando toda a tecnologiadisponível, com um jornalismo ágil e correspondentes no exterior.Surgia assim o Fantástico, no dia 5 de agosto de 1973.

Estreamos na RecordlRio dia 23 de agosto. O programa eradirigido por Nilton Travesso, um superprofissional que acrescentoumuito à nossa equipe. Para alegria da Censura, o programa não eraao vivo, mas gravado às sextas-feiras e exibido aos domingos, nomesmo horário. O palco êra outro. A TV Rio estava precariamenteinstalada num edifício originalmente construído para ser um hotelna Rua Nascimento e Silva, em Ipanema. Era um prédio inacabado,meio fantasmagórico, e dava uma sensação horrível trabalhar lá.Flávio continuava com prestígio, mantendo os contratos de exclu-sividade com os mais importantes artistas nacionais, mas estavadiffcil aumentar a audiência. Não tínhamos mais auditório, e oprograma perdia muito com a falta do calor humano e a vibraçãodo público, que sempre gerava uma grande energia.

Apesar de tudo, continuávamos fazendo um bom programa.Buscávamos o máximo de criatividade com o mínimo de recursose técnica, e aproveitávamos as boas relações de Flávio com muitosartistas. Uma semana após a estréia, vieram os primeiros cortes daCensura. Teixeirinha e Fagner se apresentaram no quadro "Tribu-nal do Disco", e a Censura exigiu que fosse cortado do VT apalavra "estrangeira", referência feita por Fagner à gravadoraPhilips, hoje Polygram, com quem estava brigando. Para os cen -sores, o tom era de "revolta contra o sistema". Ainda nesseprograma, o caso que considero mais ridículo. O diretor NiltonTravesso resolveu reunir num musical Jair Rodrigues e GeraldoVandré. Jair entrava cantando Disparada e, sem saber, no meio damúsica, Vandré surgia no palco. A Censura aprovou o encontro,com a condição de que Vandré não falasse nada, só cantasse. Assimfoi gravado, mas Jair Rodrigues não conseguiu conter a emoção aoencontrar o autor da música que lhe deu tantas alegrias e chorou.O programa foi para a Censura e na volta veio a bronca. Por incrívelque pareça, o problema não se restringia à emoção do cantor, mastambém ao fato de o apresentador estar usando uma camisa ver-melha, o que foi considerado uma provocação. Acharam queFlávio estava apoiando os movimentos de esquerda, e por isso oencontro de Jair e Vandré jamais foi ao ar. Com isso, os encontros

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musicais passaram a ser mais simples, como o que reuniu SílvioCaldas e Roberto Carlos. Os censores adoravam-nos; eles nãoameaçavam o sistema, principalmente quando um cantava a músi-ca do outro.

No dia 2 de dezembro de 1973, três meses depois da estréia,foi exibido nosso último programa na RecordfRio. As cotas depatrocínio não tinham sido vendidas, e as condições técnicas daemissora estavam abaixo da crítica. Ao mesmo tempo, aTupi vinhase ressentindo da ausência do "Senhor dos Domingos" e lheacenava com o lenço branco da paz.

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"Fui muito bem-sucedido em outrasemissoras em que trabalhei, mas a Tupifoia minha casa."

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Numa viagem pelas ilhas gregas, acompanhado de Beli-nha e dos inseparáveis amigos Letícia e Djalina Sampaio,Flávio resolveu mostrar seus dotes de exímio nadador. Quan-do o barco fundeou próximo à ilha de Egina, para que ospassageiros fizessem o transbordo para visitar o Templo deNetuno, Flávio mergulhou da proa do barco e foi nadando atéa ilha. A distância era maior do que calculara e, cada vez quetentava colocar os pés no chão, só encontrava pedras. Nãodesistiu. Uma hora depois voltou, exausto, os pés sangrandopelos ferimentos. Aprendeu a lição e nunca mais nadou emáguas desconhecidas.

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N0 dia 5 de janeiro de 1974, o Programa Flávio Cavalcantivoltava à Tupi. Deixava o tradicional horário dos domingos, agoraocupado por Chacrinha, e passava para os sábados. O apresentadortinha total consciência da queda de audiência sofrida com a mu-dança para a 1V Rio e da forte concorrência da Globo. No entanto,sabia também que dava muito trabalho ao Fantástico, e que oconcorrente era uma bomba atirada com alvo certo; vinha paramatar, estralhaçar, acabar com a sua popularidade.

A situação na Tupi era caótica, um desastre total. Com muitasdívidas e um sem-número de ações judiciais, começaram os pedi-dos de penhora dos equipamentos técnicos, como câmeras e mi-crofones. E, para culminar, a Censura no nosso pé. Para o novoprograma na Tupi foi criado um quadro que entrava em substitui-ção ao "Flávio Confidencial". Seguindo o mesmo esquema deentrevistas, "Estúdio Fechado" era gravado em videoteipe, um diaantes de ser exibido, adoçando um pouco a boca da Censura, quenão se conformava pelo fato de o programa ter voltado a ser aovivo. Naquela época, o mais discutido assunto policial era odesaparecimento de Carlinhos, um menino com pouco mais de dezanos, uma história familiar muito controvertida, onde o pai eraapontado como seqüestrador do filho. A imprensa dava muitodestaque ao fato, talvez até pela falta de um assunto melhorliberado pela Censura. Artur Farias, então diretor do programa,gravou um "Estúdio Fechado" onde Flávio faria um apelo para o

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aparecimento do menino. Este apelo seria intercalado com flashesjornalísticos onde constariam depoimentos do delegado que cuida-va do caso, Dr. Belot; do suposto matador, Adilson; e do própriopai do menino. No relatório enviado dia 21 de janeiro de 1974 paraa Censura de Diversões Públicas referente ao programa do dia 19,o censor vetou o quadro integralmente.

A partir daí, entrevistas e jornalismo, assuntos de que Fláviotanto gostava, ficavam cada vez mais difíceis de serem liberados.Não bastando isso, a Censura resolveu atacar também os comer-ciais. No dia 4 de fevereiro chegou ao absurdo de o censor cortarum texto do comercial das bicicletas Monark onde Flávio faziauma comparação entre Rui Barbosa, a Águia de Haia, e a bicicletaMonark Águia Imperial. E por aí seguiam as barbaridades, comoa pérola do relatório do censor referente ao programa do dia 16 defevereiro:

"A presença da índia Poti, todavia, foi um imprevisto alamentar. Ostentava um biquíni escuro, aparentemente sobrea pele sem malha, vestia um casaco-blusão branco em tiras,aberto na frente, de comprimento à altura da articulaçãocoxofemoral. Poderíamos solicitar uma advertência, massendo a norma do biquíni demasiadamente esclarecida àstelevisões, o corte é uma penalidade profilática obrigatória àsfuturas reincidências."

Penalidade profilática! Não sei qual era a formação acadêmicados censores, mas sempre me passava a sensação de que eramsimples policiais, sem preparo intelectual, mas que tinham um bompistolão e sabiam datilografia. O pistolão para terem acesso aosestúdios de TV, visto por eles como um antro feérico de pecadose tentações, onde todas as mulheres eram prostitutas; e a datilogra-fia para escreverem seus relatórios. Até mesmo o juiz de menores,Dr. Alírio Cavalieri, foi picotado pela tesoura da Censura, noprograma do dia 2 de fevereiro. Por exigência da Censura, duranteuma entrevista, teve que substituir as frases "os adultos e ascrianças estão agredindo" por "estão dificultando"; e "onde estãoa lei e ajustiça" por "o que é certo e o que é errado".

Em abril deixei de trabalhar com Flávio. Nada pessoal, apenas

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um cansaço incurável. Ser secretária dele significava respirar suavida 24 horas por dia, inclusive sábados e domingos. Eu queriamuito voltar ao jornalismo. Tinha medo de me tomar a eterna"Dona Léa Penteado, minha secretária", e chegar a um ponto emque não conseguiria mais desligar o meu nome do dele. Esse carmanão resolvi até hoje.

Por essa época Chacrinha brigara com a Tupi, e Flávio voltavapara os domingos, mas desta vez o programa era feito em SãoPaulo. Após um acordo com o diretor da Rede Associada, OrlandoNegrão, Flávio conseguiu levar uma parte de sua equipe carioca:Eduardo Sidney novamente na direção, Ghiaroni na redação, Wil-son Rocha e Antônio BeIJo na produção.

Os paulistas já tinham demonstrado a sua aprovação ao apre-sentador quando fizemos o Flávio Especial, em 71 e 72. Fláviovoltaria a viver na ponte aérea. Mas qualquer esforço valia paramanter o programa no ar. Nesse período, no entanto, a televisãomudara muito, já que a transmissão via satélite fora implantada deforma definitiva nos meios de comunicação. Flávio comentava quea simples imagem do homem subindo à Lua não daria mais tantoibope e que a orelha decepada do jovem Paul Getty III, seqüestradopela Máfia italiana, só tivera audiência na primeira vez em que foramostrada. Na segunda já não causava impacto.

Aos 51 anos de idade, Flávio ainda buscava novas fórmulas.Lia muito, procurava se renovar e continuava a fazer televisão comos ingredientes que conhecia, valorizando a emoção. Acreditavano impacto da notícia, da música e do show. Não admitia ser umapresentador de laboratório, fazer programa sem auditório, umsimples locutor de notícias preso a um estúdio de TV. Necessitavada vibração, da empolgação do público.

A experiência em São Paulo foi ótima em audiência, maspéssima financeiramente. A dívida da emissora para com o apre-sentador ia aumentando. A princípio os atrasos eram de um mês,no máximo dois. Mas os intervalos foram crescendo, até chegar omomento em que ele não recebia mais nada. O programa sócontinuava por causa do prestígio do apresentador, e os artistas,que outrora recebiam cachês altíssimos, agora iam pela amizade,pelo respeito a Flávio.

A Tupi assinou algumas promissórias como parte do pagamen-

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to, mas, por falta de dinheiro em caixa, cancelou. O dinheiro deFlávio foi acabando, e ele iniciou então uma corrida aos bancos.Quando Flávio pedia empréstimos e apresentava como garantia oseu contrato com a Tupi, as negociações eram canceladas Osbancos não aceitavam as promissórias avalizadas pelos homensfortes da emissora, João Calmon e Martinho Luna de Alencar. Odescrédito era total. Mas tudo ficava mais fácil quando Flávio pediaempréstimos em seu nome, oferecendo como garantia seu patrimô-nio pessoal, que incluía uma casa construída num terreno de doisalqueires em Petrópolis. E assim foi assinando promissórias e maispromissórias, se endividando. Uma das últimas propostas da Tupifoi para pagar os atrasados a partir de 1976. Ainda estávamos em74!

Flávio não conseguia viver daquela forma. Para cumprir oscompromissos, deu sua grande cartada: a hipoteca da casa dePetrópolis. A casa, no alto do bairro de Caxambu, ficava na ruaque levava seu nome, um carinho dos petropolitanos, e fora heran-ça de sua sogra. No princípio era usada apenas nos fins de semana,mas em 67, depois de uma grande obra, a família deixou Copaca-bana e se estabeleceu na cidade serrana. Dezenas de reportagensmostraram a casa que, todos sabiam, era a paixão do apresentador.Tinha um viveiro construído com assessoria técnica do Ministérioda Agricultura, para permitir que os passarinhos se sentissem emliberdade. Nó viveiro, habitado por calafates, sabiás, pássaros-pre-tos, tuins, rolinhas, cardeais, bicos-de-lacre, galos-da-campina,uma variedade enorme de pássaros, havia córrego, árvores, repuxo,balanços e várias casinhas. E a casa ainda tinha uma piscinaenorme, uma adega, uma capela com um vitral em que a imagemde Cristo subindo ao céu se refletia sobre as paredes, e dezenas deárvores plantadas pelos amigos. Ali era o seu mundo, e ele colo-cou-o em jogo para manter a sua palavra. Com o dinheiro recebidopela hipoteca, pagou a equipe e os credores, e em outubro de 74mais uma vez saiu da Tupi. Sabia que iria ficar fora do ar, semperspectiva de contratação por outra emissora, pois o mercadoestava muito restrito, mas era bem mais digno.

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"Eu não dependo mais da TV"

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Enquanto Belinha era poliglota, Flávio só falava portu-guês. Quando viajava, sempre encontrava um brasileiro oualguém que falasse português. Assim foi no hotel em queficou hospedado em Jerusalém: a recepcionista era simpática,agradável, falava português fluentemente e ajudou-o bastantedurante a estada. Já no táxi para deixar o hotel, lembrou-seque não se despedira da moça. Voltou à recepção e atravésde gestos tentou se fazer entender, querendo localizar a moça.Seus gestos não foram bem compreendidos, e o gerente,pensando tratar-se de um conquistador, botou-o para correr.Durante anos Flávio contou essa história tentando descobrirque gesto obsceno fizera para causar tal ira.

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29Flávio estava profundamente decepcionado com tudo. Em

anos anteriores, diante de sua popularidade, fora convidado porquase todos os partidos a ingressar na política. Ele recusava,dizendo que não tinha vocação e não se metia naquilo que nãoentendia. A decepção com a saída da Tupi levava-o a consideraçõespolíticas. O síndico do Condomínio das Associadas, senador JoãoCalmon, integrava a panelinha do governo, e Flávio acreditava quea política da época era um rascunho que seguia por caminhos deperseguição pessoal e do interesse imediatista.

Com a casa hipotecada, precisava buscar alguma forma deganhar dinheiro, já sabendo que o caminho não era a televisão.Afinal, foi ali que tinha perdido tudo. Resolveu então virar essapágina da vida e iniciar uma nova carreira. Entendia de shows,espetáculos, tinha prestígio, amigos, e por isso decidiu se associara um grupo para abrir uma casa noturna. Resolveu tentar, pagoupara ver, apesar de não freqüentar a noite, não ser chegado à boemiae tampouco entender como funciona a cozinha de um restaurante.

Cercado pela família e muitos amigos, como Maysa, inaugu-rou no dia 13 de maio de 1975 o Preto 22, uma mistura de boate erestaurante, na Rua Visconde Pirajá, 22, em Ipanema. Com aexperiência de repórter, recriou na boate o quadro "Flávio Confi-dencial", e em dois banquinhos no palco entrevistava, entre outrosartistas, Chico Anysio, Agildo Ribeiro, Dercy Gonçalves e Mièle.Eram amigos que iam mais para prestigiá-lo, sem esperar por

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qualquer resultado financeiro ou projeção profissional. Além dis-so, com direção de Dori Caymmi, promoveu shows com Vanusa,Fafá de Belém, Maria Creuza, Alcione e Emilio Santiago, os doisúltimos artistas lançados em seu prograinaA Grande Chance (M1T- Mercado Internacional do Talento).

A festa era ótima, mas o trabalho, complicado. Como nadaentendia .de administração de uma casa noturna, foi roubado,passado para trás descaradamente. Lembro de uma vez em queFlávio contou como o pessoal da cozinha roubava. Peças inteirasde filé-mignofl eram embrulhadas em sacos plásticos e colocadasno fundo falso de uma lata de lixo. Depois que acabavam osserviços, de madrugada, a lata era deixada na porta do restaurante,à espera do caminhão do lixo. Quando o restaurante era fechado etodos saíam, o pessoal da cozinha voltava e retirava a carne,limpinha. Este foi um dos roubos descobertos. Por isso, e cansadoda vida noturna, no final do mesmo ano de 75 Flávio desfez asociedade e voltou para Petrópolis. Mais uma decepcão. Seu futurotambém não estava ali.

Por uma ironia do destino, no início de 1976 Flávio recebia umconvite. Era de Sílvio Santos, o homem que ameaçara a suaaudiência nos anos 70 e com quem só havia se encontrado umavez, numa incrível coincidência, num restaurante em Atenas, emjulho de 72. Flávio e Belinha, mais o casal Letícia e DjalmaSampaio, estavam em férias e, seguindo indicação de Iara e JucaChaves, com quem encontraram em outra cidade, foram àquelerestaurante. Era domingo de noite, e lá chegando encontraramSílvio Santos jantando com uma moça loura. Flávio ficou cons-trangido, pois sabia que Cidinha, a mulher de Sílvio, era morena,e fingiu não ver o concorrente. Na saída Sílvio, surpreendentemen-te, se aproximou da mesa de Flávio; a loura era ninguém menos doque a própria Cidinha de peruca.

Voltando a 1976, Sílvio conseguira a sua primeira concessão deTV, o Canal 11 no Rio, e precisava de programação para a novaemissora. Convidava Flávio a fazer um programa semanal, mas nãoaos domingos, pois estes eram seus, como até hoje.

Flávio e Sílvio tinham muitos pontos em comum, como afacilidade de comunicação com o auditório e um grande carisma.Assim como Flávio, ele era (e é) amado ou odiado, sem meito-ter-

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mo, e, apesar de fazer um programa popular, procurava manter umacerta dignidade. Entretanto, havia uma diferença fundamental:Sílvio passara de camelô a grande empresário, conseguindo até seupróprio canal de TV, enquanto Flávio, como jornalista, era total-mente incapaz de administrar suas finanças, desligar-se das emo-ções e controlar os impulsos de falar o que queria, o que o levou asair da Tupi e ficar desempregado.

Como o Canal 11 no Rio estava começando, ainda sem muitascondições técnicas, concluiu-se que seria impossível fazer umprograma do porte do Flávio Cavalcanti. A opção foi recriar UmInstante, Maestro!, o primeiro programa de Flávio na TV, quepoderia ir ao ar com menos recursos e investimento em produção.Dirigido por Roberto Jorge, o programa estreou em 31 de marçode 1976 e não resistiu um mês. As condições técnicas erampéssimas, a antena de transmissão estava com defeito, e por isso aimagem que chegava até as casas era muito ruim. O próprio Sílviodecidiu tirar o programa do ar e aproveitar o apresentador em outraocasião. Afinal, mesmo com todos os percalços, ter Flávio sobcontrato era um grande trunfo, e uma ameaça a menos. O saláriodo apresentador foi pago, religiosamente, durante um ano. Mas deque isso adiantava se ele estava fora do seu mundo?

O mundo de Flávio Cavalcanti dividia-se entre a televisão e afamília. Se no trabalho as coisas iam mal, com o mercado fechado,dentro de casa tudo funcionava muito bem. O casamento era sólido,estável, um love story como os que acompanhamos nas novelas.

Tudo começou por volta de 1920, em Uberaba, Minas Gerais,onde morava o médico, químico e farmacêutico Dr. Manoel Be-zerra Cavalcanti com sua mulher, Maria Eugênia Barbosa Caval-canti. Apesar de terem nascido e se casado no Rio, o casal foi morarem Minas, e lá nasceram os quatro primeiros filhos, Marilda, JoséLuiz e as gêmeas Maria Placidina e Maria Ceciliana. Maria Eugêniaestava na quinta gravidez quando conheceu um jovem casal cujaamizade iria perdurar durante muitos anos. Ascânio de MirandaQuintão estava recém-casado com Amair Horta Pereira Quintão efoi para Uberaba assumir o posto de gerente da agência do Bancodo Brasil. Estavam procurando uma casa para alugar quando sou-beram que o Dr. Bezerra Cavalcanti tinha um pequeno sítio dispo-nível. Alugaram o imóvel e tornaram-se amigos. Logo depois nascia

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mais um fil!io na família Cavalcanti, Celso; e alguns meses depoiso primeiro da família Quintão, João Paulo, cujo parto foi feito peloDr. Bezerra.

Alguns anos depois, coincidentemente, as duas famílias volta-ram para o Rio. Quintão foi para um novo posto no banco, e o Dr.Bezerra Cavalcanti foi ser professor da Faculdade de Medicina.Nessa época, além de amigos tomaram-se compadres, quando afamília Cavalcanti batizou Maria José, a segunda filha de Ascânioe Amair. No Rio, em 15 de janeiro de 1923, nascia o sexto filho deMaria Eugênia e do Dr. Bezerra Cavalcanti, Flávio Antônio Bar-bosa Nogueira Cavalcanti; e em 9 de abril de 1924, a terceira filhana família Quintão, Maria Isabel Horta Pereira Quintão.

Flávio e Belinha cresceram juntos, freqüentavam as mesmasfestas, mas não eram muito amigos. Belinha era uma menina-pro-dígio feia, gorda e desajeitada. Aos seis anos, deu o primeiroconcerto de piano no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Aos oitoentrou para o ginásio com licença especial do ministro da Educa-ção, Dr. Washington Pires. Aos nove anos fez concurso para aEscola Nacional de Música, conquistando o primeiro lugar. Flávioera alto, magro, galã das meninas de Copacabana, e D. MariaEugênia, nas festinhas familiares, dava-lhe uns trocados para quedançasse com Belinha. Era tão malandro que foi convidado gen-tilmente a se retirar dos colégios Mailet Soares, Aldridge, SãoBento, Santo Inácio e São José.

Foi nessa época que a família Quintão voltou para MinasGerais, indo morar em uma fazenda em Barbacena, e Belinha ficouestudando como interna no Colégio Sacré-Coeur de Marie emCopacabana. Enquanto isso, o Dr. Bezerra Cavalcanti decidira queo único jeito de Flávio estudar era colocá-lo num internato rigoro-so, e o rapazola foi para a Academia de Comércio, em Juiz de Fora.Durante vários anos, Belinha e Flávio não se encontraram, excetouma vez, rapidamente, na estação Matias Barbosa, perto de Juiz deFora. Ela ia do Rio para a fazenda em Barbacena, e ele voltava emférias para o Rio.

A Academia de Comércio colocou Flávio nos eixos. Em poucotempo se tornou líder da turma, e foi lá que escreveu, dirigiu eencenou no palco do colégio duas peças de teatro, RapsódiaBrasileira, tendo como tema a música popular, e Homens de Fibra,

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baseada nas aventuras dos bandeirantes à procura de esmeraldas.Belinha saiu do Sacré-Coeur de Marie, entrou para o curso delínguas anglo-germânicas na PUC e foi fazer doutorado no Mary-mount Coilege, em Nova York. Em 1945, Fláviojá tinha terminadoos estudos em Juizde Fora, voltara para o Rio, prestara concurso parao Banco do Brasil e dividia-se entre o trabalho no banco e no jornalA Noite como repórter. Belinha voltava diplomada dos EstadosUnidos e foi trabalhar como tradutora e secretária no Itamaraty.

Reencontraram-se numa visita que Belinha foi fazer à famíliaCavalcanti. Flávio entrou apressado pela cozinha, ia trocar deroupa para se encontrar com Risoleta, de quem estava noivo, e aopassar pela sala viu uma moça loura que o cumprimentou efusiva-mente. Não podia imaginar que a menina feia, gorda e desajeitadatinha emagrecido 25 quilos e se transformara em uma mulher muitoatraente. Flávio esqueceu o compromisso com a noiva e ficouconversando com Belinha. Foi levá-la em casa e a partir daípassaram a se encontrar às escondidas, tanto das famílias quantoda noiva de Flávio. Em 1947, Flávio foi com Belinha passar oferiado de Finados em Petrópolis, na casa de D. Amair, e na voltaperceberam que não dava mais para esconder o romance. Resolve-ram comunicar às famílias, e no dia dia 13 de dezembro do mesmoano ficaram noivos. No dia 31 de dezembro Belinha deixou oItamaraty; estava disposta a casar e ter filhos. Flávio pediu demis-são do Banco do Brasil, pois fora nomeado tesoureiro da Alfânde-ga. O casamento aconteceu dia 13 de maio de 1948, e foram morarna Ladeira dos Tabaj aras, em Copacabana.

O pequeno apartamento servia de ponto de encontro dosamigos, surgindo assim um grupo que se reunia mensalmente paraconversar sobre poesia, literatura, música e vida. Este grupo eraformado por Dinah Silveira de Queirós e seu marido Narcélio deQueirós; Manuel Bernardez MüIler (Jacinto de Thormes) e GildaMüller; Neném, irmã caçula de Flávio, e seu marido ArmandoMascarenhas; e convidados especiais como Guilherme Figueiredoe Alvaro Moreyra.

As reuniões eram ótimas, havia leitura de textos, comentavamsobre os novos lançamentos literários, e o apartamento acabouficando pequeno demais com o nascimento, em 9 de março de1949, da primeira filha do casal, batizada de Amair em homenagem

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todos agredia usando a criança como escudo. Flávio desceu docarro e atirou-se contra a mulher, conseguindo pegar a criança, queembrulhou em seu paletó e levou para o consultório do Dr. RinaldoDelamare, então um dos mais importantes pediatras da cidade. Omenino, segundo o Dr. Delamare, tinha aproximadamente novemeses. Seu estado de saúde era lastimável; além de o piche estarcolado ao corpo, estava desnutrido. Quando o menino ficou cura-do, Flávio levou-o para casa. Foi registrado como Washington,pois Flávio achava que era mais ou menos esse o nome que a mãegritava enquanto tentava afogá-lo e recebeu o sobrenome SouzaLima, em homenagem à rua em Copacabana onde a família Caval-canti morava.

Em 1966, Flávio iniciou uma grande obra na casa de Petrópo-lis, herança de D. Amair, que só era utilizada nas férias. O climafrio amenizava os problemas circulatórios de Belinha, e em janeirode 1967 foram todos morar lá. Os distúrbios circulatórios voltavama acontecer com maior freqüência e seriedade. Belinha não sedeixava vencer pela doença, aprendia a conviver com ela. Numacrise surgiu um novo problema: uma arterite temporal, que resultouem uma operação para a retirada de uma artéria necrosada queimpedia a circulação do sangue. Ao longo dos seus 63 anos de vida,com muitos altos e baixos, Bela, como carinhosamente Flávio achamava, jamais esmoreceu ou se queixou das sequelas que adoença lhe deixou. Perdeu a audição e aprendeu leitura labial; ficouparalisada e voltou a andar. Tocava piano, mesmo sem ouvir o somque emitia, era muito vaidosa, engraçada, e dizia que desejava atodos uma boa surdez quando os filhos ficassem adolescentes paranão ouvir o barulho que eles faziam.

Em Petrópolis, Belinha e Flávio ganharam mais um "filho",Francisco José, o Zé. Louro de olhos azuis, o menino ficara órfãoaos dois anos e era sobrinho de Maria do Carmo, uma antigaempregada da família, um verdadeiro anjo da guarda. Não foiassinado nenhum documento de adoção, apenas um acordo de quecuidariam do menino. Mas Zezinho viveu pouco: morreu em 1975alguns dias antes de completar nove anos, asfixiado no gás dobanheiro.

Nos anos 70 surgiu um boato que deixou muita gente intrigada,inclusive amigos próximos da família. O boato dizia que Flávio

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à avó, mas logo apelidada de Marzinha. Com um novo membro nafamília, Flávio e Belinha deixaram Copacabana e foram morarnuma bucólica casa em Jacarepaguá, na Rua Caniú 90, perto doLargo da Pechincha. No início dos anos 50, Jacarepaguá era o fimdo mundo. As ruas não tinham calçamento, e para chegar até láFlávio comprou um jipe Land Rover. A luz era de lampião, o fogãoera a lenha, mas tinha tudo o que eles queriam: árvores e muitoespaço para criar os filhos que viriam. Aos poucos a casa setransformou num sítio muito charmoso e Flávio voltou a reuniramigos para memoráveis almoços nos fins de semana, onde come-çou a gravar os Discos Impossíveis, que vieram a se transformarem programa de rádio. Ainda nesta casa nasceram os outros doisfilhos do casal, Flávio Cavalcanti Júnior, no dia 3 de setembro de1950, e Fernanda, dia 31 de agosto de 1951. Em 1953, comMarzinha em idade de ir para a escola, Flávio e Belinha deixaramJacarepaguá e foram morar na Rua Carlos de Campos, em Laran-jeiras, onde Dolores Duran ia visitá-los nas madrugadas pós-boa-tes.

Belinha era uma mulher muito culta, inteligente, e servia deretaguarda para todas as investidas profissionais de Flávio. Deli-beradamente, por amor ao marido e aos filhos, abriu mão de todaformação que havia recebido para cuidar da casa. Falava fluente-mente inglês, francês, alemão, italiano e espanhol, era a compa-nheira perfeita, às vezes dona-de-casa, outras secretária, atuandode acordo com as necessidades da família.

Em 1956, aos 32 anos de idade, Belinha teve um espasmocerebral provocado por um distúrbio circulatório, o que resultouem perda parcial da visão esquerda e deixou-a quase surda. Apesardisso, não perdeu o bom humor. Continuava se esforçando para sera melhor companheira e mãe, e o ano de 1964 provou isso aoreceber em casa mais um filho.

Flávio já era sucesso como repórter de Noite de Gala, e umatarde, passando de carro pela Lagoa Rodrigo de Freitas, próximode onde havia a favela da Catacumba, presenciou uma cena cho-cante. Uma mulher totalmente embriagada jogava uma criança nopiche que estava sendo usado no asfaltamento da rua e, simulta-neamente, tentava afogá-la num tonel de água. Uma pequenamultidão assistia à cena sem conseguir segurar a mulher, que a

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estava brincando com um neto quando, ao jogá-lo para o alto, nãoconseguiu segurá-lo, deixando o menino cair no chão. Com a quedahouve fratura de crânio e morte instantânea. Contava-se essatrágica história com detalhes incríveis. Alguns chegavam a aflnnarque Flávio se afastara da televisão por esse motivo. O boato foidesmentido muitas vezes, mas até hoje me perguntam se tal fatoaconteceu, e, como todo boato, ninguém sabe de onde surgiu nemqual a razão. A verdade é que Flávio era apaixonado pelos quatronetos: Jarbas, Flávia, Rafael e Isabel. Brincava com eles como setivesse a mesma idade, tinha na estante de seu escritório váriosbrinquedos, como carrinhos, aviões, pequenos jogos que "empres-tava" para os netos quando iam visitá-los.

Como marido, era dedicado e romântico. No dia 13 de cadamês enviava rosas vermelhas para Belinha. Certa vez, estavamviajando de navio e, na falta de uma floricultura, comprou umquadro onde estava pintada a óleo uma cesta de rosas. Fláviogostava de quadros, gostava do efeito que produziam na parede,sem se preocupar com o valor que eles poderiam ter em caso deserem vendidos. Houve um tempo, antes da revolução de 64, emque Millôr Fernandes era amigo de Flávio e foi passar um fim desemana na casa de Petrópolis. No sótão havia muitos quadrosdeixados por D. Amair, e entre a poeira e teias de aranha Millôrreconheceu um estudo de Picasso valiosíssimo. Com isso o quadrofoi incorporado à pinacoteca da família, acrescida depois de doisquadros de Teruz —'um deles presente de Adolpho Bloch -,alguns de Monsueto e outros de pintores pouco conhecidos.

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"Eu não fico parado, não. Às vezes é queme param e isso acontece por váriosmotivos."

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Flávio era fascinado por relógios. Tinha uma coleçãoinvejável, onde incluíam-se um Vacheron Constantin e umPatek Philip. Gostava de relógios com pulseira de couro, ecada dia usava um modelo diferente, buscando combinar coma roupa. Algumas relojoarias, sabendo de sua coleção, envia-vam-lhe os novos lançamentos, e Flávio acabava comprandotodos. Quando morreu, os filhos separaram três relógios paradar aos amigos que estiveram mais próximos em seus últimosmomentos. O apresentador Sílvio Santos, o empresário JoséCamargo e o médico que o atendeu, Dr. Duprat, ficaram comessas lembranças. Os outros foram divididos entre a família.

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30Dona Belinha gostava de lembrar a passagem bíblica de José

do Egito que falava dos sete anos de vacas gordas e sete anos devacas magras. O mesmo fato se repetia com eles. As vacas estavammagérrimas. Os juros pagos pela hipoteca da casa aumentavam.Calculados em dólares, diante da desvalorização diária do cruzeiro,iam crescendo assustadoramente. Desde a saída da Tupi, em 74,eram quase três anos com prejuízo atrás de prejuízo. Flávio man-tinha-se de cabeça erguida, pagara todas as dívidas, só faltava ahipoteca da casa. O empresário Marcos Lázaro contou-me que noperíodo do programa na Tupi em São Paulo os atrasos nos paga-mentos eram constantes, e ele adiantava os pagamentos da produ-ção. Contou-me que o apresentador, durante um longo período,ficou lhe devendo uma vultosa quantia e pagou até o último tostão.Mas de qualquer maneira aquela situação era muito dificil para ohomem que fizera o Brasil parar, consagrado como o "Senhor dosDomingos", um campeão de popularidade.

Flávio não tinha medo do trabalho e saía em busca de alterna-tivas. Junto com Oswaldo Miranda, ex-produtor do programa evelho amigo, tentou inovar no rádio. Quem sabe se, voltando aoponto de partida, o rádio, conseguiria melhores resultados? Assim,criou um programa de rádio para ser vendido para todo o país.Ainda acreditava na força de seu nome, em honra a um passado tãorecente. Gravou o programa-piloto, distribuiu para as principaisrádios, mas a resposta ficou aqiiiém do esperado.

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Às vezes pingava um pagamento atrasado da Tupi, mas nãoera suficiente. A luzinha no final do túnel veio de São Paulo. ARádio Mulher, onde Hebe Camargo fazia um programa, ofereciaum contrato. Voltaria ao rádio num programa diário, de segunda asábado. Topou a proposta. Mais do que um contrato, era uma formade começar de novo aos 54 anos de idade. Sentia-se jovem paraenfrentar o novo desafio de acordar cedo e usar só a voz. A imagemficava congelada.

Junto com Belinha, deixou para trás a casa de Petrópolis ecomeçou vida nova num pequeno apartamento. No dia l 9 de outubrode 1977, ele estreava na Rádio Mulher. Os paulistanos foramgenerosos. Reverenciaram sua volta retribuindo o programa comboa audiência. Finalmente ele voltava a ser notícia.

Novos amigos surgiram e velhos voltaram a procurá-lo. Entreeles, a TV Tupi, um caso de amor e ódio malresolvido, que agoralhe acenava com nova proposta de trabalho para remontar o Pro-grama Flávio Cavalcanti em São Paulo. Gato escaldado tem medode água fria, e por isso Flávio procurou se cercar dos melhoresadvogados para garantir um bom contrato. Não tinha mais idadepara errar. Pensou muito, consultou amigos e família, e resolveuencarar novamente a telinha da TV. No rádio não se sentia com-pleto. Pelo novo contrato, poderia faturar um extra com os comer-ciais, e isso lhe dava mais estímulo.

Mas a mudança geográfica não mudara aTupi. A empresa maisparecia um saco de gatos. A tradicional logomarca das Associadas,um jovem índio, não representava a realidade da tribo, repleta decaciques. Todo mundo apitava, dava ordens, e ninguém fazia nada.Depois de acertado que o programa seria feito em São Paulo, a Tupiresolveu que o melhor seria gravá-lo no Rio. E dá-lhe ponte áerea.A Tupi, querendo reparar todas as mancadas dos últimos quatroanos, preparou uma grande campanha para a volta do apresentador,publicando o seguinte anúncio nos principais jornais:

"O Caso Especial da TupiEle criou um caso quando começou a quebrar discos na TV.

Criou um caso quando participou do resgate do cônsul AloísioGomide das mãos dos tupamaros. Criou um caso quando inven-tou o júri de televisão. Criou um caso quando entrevistou os

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sobreviventes do desastre aéreo nos Andes. Criou um casoquando entrevistou o Papa Paulo VI. Criou um caso quandoajudou a eleger o homem mais bonito do Brasil e descobriua Rose mais salgada do país.

Casos que agradaram e desagradaram a muita gente, masque chamaram a atenção, foram discutidos, não passaram embranco, e foi criando caso que ele criou os maiores índices deaudiência da televisão brasileira. Agora a Rede Tupi resolveutrazer de volta Flávio Cavalcanti e colocá-lo no ar outra vez.Pelos mesmos motivos que ele saiu do ar: por falar às claras,por dizer o que pensa, por defender a chance de muita gente,inclusive sua própria chance. Aguarde os próximos casos deFlávio Cavalcanti. Talvez o maior deles seja a sua volta.Neste domingo, 8 da noite, Flávio Cavalcanti, o criador decasos, ao vivo."

Flávio deixou a Rádio Mulher no final de 78, ao sentir-seestabilizado na Tupi, apesar de todas as dificuldades que encontra-va na emissora, principalmente quanto à falta de apoio técnico parao programa. Em agosto de 79, voltou a morar no Rio, desta veznum apartamento alugado na Avenida Atlântica, em Copacabana.A casa de Petrópolis não era mais sua. Perdera-a na hipoteca feitacom um banco. A diretoria do banco se comoveu com a história etentou de todas as maneiras ajudar o apresentador a manter seupatrimônio, mas não adiantou. Vão-se os anéis e ficam os dedos.Ao menos as vacas estavam pastando menos magras em seu jardim,o otimismo e a fé em dias melhores jamais o abandonaram. Eleacreditava e gostava do que fazia. Melhor ainda, voltava para osseus domingos.

Com a volta ao Rio, a convite de Edvaldo Alves da Silva, Flávioassumia também uma outra função: diretor da Rede Capital. Alémde dirigir a rede de rádio no Rio, apresentava um programa diário,de segunda a sábado. Na Tupi, entretanto, os problemas não demo-raram a começar. Em janeiro de 80, os pagamentos novamentevoltaram a atrasar, e, pior ainda, não havia condições para produziro programa. Se Flávio conseguia bons jurados e boas atraçõesmusicais era apenas pelo seu prestígio pessoal. Pagava do própriobolso as passagens de avião e as despesas de hotel de seus convida-

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dos. A Tupi também passara a atrasar os salários menores, dostécnicos e da produção, o que provocou uma greve geral no Rio,em junho. Eram os estertores da televisão pioneira no país. Sofriauma morte lenta, gradual, triste, sem a menor elegância.

Antes da greve, Flávio tirou o programa do ar e se aliou aoscompanheiros do Sindicato dos Artistas e dos que participavam daluta. O movimento carioca era liderado por Paulo Celestino e JoãoRoberto Kelly. Com a greve, a Tupi do Rio ficou fora do ar, e asimagens que chegavam eram transmitidas de São Paulo. O grupocarioca tentava de todas as formas denunciar às autoridades a crise daempresa. Uma equipe se reuniu e foi a Brasilia pedir a destituição dosíndico geral do Condomínio das Associadas, João Calmon. Fláviofoi junto, mas nada foi conseguido.

Finalmente a Tupi de São Paulo aderiu à greve, ejá não haviaimagens a serem geradas. Em 17 de julho de 1980, o governocancelou a concessão dos canais de televisão da Rede Associada.Num último suspiro, saudosos, os profissionais da emissora fica-ram em vigília durante 24 horas, até a imagem do pequeno índiosair do ar e entrar para a história.

A amizade e a união na família sempre foram motivo deorgulho para Flávio Cavalcanti. No dia 10 de janeiro de 1969, como casamento de sua primeira filha, Marzinha, com Jarbas LuizBraga, na Catedral de Petrópolis, Belinha e Flávio ficaram realiza-dos. Não apenas pela cerimônia, oficiada por Dom Valdir Calhei-ros, bispo de Volta Redonda, como também pela certeza de quetinham ganhado mais um filho. Era fundamental que a famíliaestivesse unida e a chegada de um novo membro representava umasoma de amor, carinho e fraternidade.

Esse conceito, forjado em bases cristãs, era muito forte entreos Cavalcanti. Eram como um clã e, por isso, da mesma' maneiraque usufruíram das regalias do apogeu do Senhor dos Domingos,agora, em 1975, dividiam as tristezas. A frustração com a boate erestaurante Preto 22, uma tentativa de não depender mais datelevisão, e a malfadada experiência com a primeira emissora deSilvio Santos foram terríveis. No entanto, uma dor ainda maisprofunda surgiu quando um elo na família se rompeu. Flávio pai eFlávio filho se afastaram.

Centenas de casos são analisados por psicólogos mostrando

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como é diffcii ser filho de pai famoso. Principalmente quando setem o mesmo nome do pai. Quando conheci Flavinho - como erachamado -, ele tinha pouco mais de vinte anos. Era um garotoalto e magro, fisicamente muito parecido com o pai. Durante o diatrabalhava na produção do programa, à noite estudava na Faculda-de de Direito. Apesar de ser o filho do patrão, não tinha muitasregalias. Flávio era muito exigente com a equipe, e isso tambémse repetia com o filho. Os profissionais que produziam o ProgramaFlávio Cavalcanti eram experientes e ainda tinham a opção de irtrabalhar em outra emissora caso discordassem do patrão. MasFlavinho não tinha essas alternativas. Muitos acreditavam que eleseria a continuidade do pai nos programas de televisão, e em 1971os primeiros testes foram feitos. Naquela época o Programa FlávioCavalcanti tinha seis horas de duração: começava às 5 da tarde,com o quadro "Enquanto Seu Flávio Não Vem", uma prévia doprograma, apresentado por Flavinho. Em outras ocasiões ele jáhavia substituído o pai, mas não era preciso ter muitos conheci-mentos de psicologia para perceber que aquela não era a suaessência.

Em 1975, Flávio Jr. já estava casado com Suzana, era pai deBebei, e a relação de dependência do paio incomodava. Apesar deter começado a trabalhar aos dezesseis anos na Prefeitura dePetrópolis, desde os dezenove seus rendimentos dependiam dire-tamente dos negócios de seu pai, ou seja, do sucesso na televisão.Com o fim do Preto 22, onde atuava como gerente, sentiu que erao momento de buscar seu próprio caminho. Tinha consciência deque seu nome, acompanhado de um Júnior no final, abriria muitasportas, mas também fecharia outras tantas. Flávio Cavalcanti esta-va fora da televisão, sem perspectivas de um novo contrato, edesconfiava da capacidade do filho de caminhar com suas própriaspernas. Um problema difícil de ser contornado, pois, ao admitirque o filho iria procurar outra forma de sobrevivência, indireta-mente teria que admitir o seu crescimento. Flávio Jr. manteveposição firme e foi procurar emprego através de anúncios nosjornais. Daí o rompimento nas relações.

Flávio Jr. conseguiu trabalho em uma empresa que organizavacongressos. O salário não era fixo, mas resultado dos negóciosconquistados. Trabalhou seis meses. Devido à pouca experiência,

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foi ludibriado pelo patrão e, ao deixar o emprego, recebeu umcheque pré-datado para dois meses depois. As dívidas se acumu-lavam e as despesas do apartamento onde morava com Suzana eBebei eram pagas com auxílio do sogro. Foi nessa situação que umdia, caminhando pelo calçadão de Copacabana, encontrou Adol-pho Bloch. A família Bloch sempre foi amiga dos Cavalcanti, e odiálogo entre Adolpho e Flávio Jr. foi curto e objetivo:

- Meu filho, você não está trabalhando porque é vagabundoou porque não tem emprego?

- Não tenho emprego, seu Adoipho.- Então passa amanhã na Manchete.No dia seguinte Flávio Jr. começava a trabalhar como contato

de publicidade da revista Fatos & Fotos. Ganhava salário-mínimo,mais 10% sobre as comissões dos anúncios vendidos. Em poucosmeses fechou um grande negócio com a edição especial dejeans:68 páginas vendidas. Um faturamento tão elevado que lhe valeu apromoção para gerente da sucursal da Manchete em Salvador.Menos de dois anos depois, assumia a direção da Manchete emBrasília, um cargo onde a diplomacia e os bons relacionamentoseram fundamentais.

Em 1980, ao completar trinta anos, Flávio Cavalcanti Jr. eraum vitorioso. A Manchete ofereceu em sua homenagem um jantar,com a presença de todos os ministros do governo Figueiredo. Fláviopai ainda passava por dificuldades, sonhava em voltar à televisão,e foi ver o sucesso do filho. Ficou emocionado ao perceber onde ofilho chegara através de seu próprio esforço. Este reencontro revi-talizou a relação estremecida entre os dois e fez com que o filhopassasse a ser o ídolo do pai.

Foi por estar nessa posição de prestígio que em 1981 Flávio Jr.conheceu Sílvio Santos. O grupo Manchete e o grupo Sílvio Santoshaviam conseguido a concessão de canais de televisão, o Canal 6do Rio e o Canal 4 de São Paulo, respectivamente, que tinhampertencido à TV Tupi. Em meio a essa negociação, o governotentava que os novos concessionários herdassem também o altíssi-mo passivo trabalhista da Tupi, e a proposta estava sendo rejeitada.Para que as duas novas emissoras chegassem a um resultado comumcom o governo, como o Grupo Silvio Santos não tinha representan-tes em Brasília, Flávio Jr. conduziu as negociações por ambas as

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partes. Como resultado, acabou recebendo uma proposta do SBT,onde se encontra até hoje, como diretor da rede em Brasília.

Quanto ao pai, este na verdade foi seu grande ídolo. Foi quemo ensinou a ter paixão pelo Fluminense, a fumar charutos, a rirbatendo as mãos, a cultivar amigos, a manter a família unida e abuscar a verdade onde ela estivesse, não importando o caminho aenfrentar.

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"Sou um homem de princípios que põe emprática seus valores."

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Flávio pediu a José Messias que criasse uma promoçãopara ajudar a APAE, e o produtor do programa organizou umjogo de futebol com artistas, convidando Armando Marquespara ser o árbitro e escalando o apresentador como goleiro.Flávio foi ao jogo acreditando que ia dar pontapé inicial,mas, ao saber que estava escalado, tentou de todo jeitoescapar. Como não conseguiu, entrou em campo vestindo acamisa do seu time, o Fluminense, e no primeiro minuto,antes mesmo que a bola chegasse ao gol, armou uma confusãopara ser expulso e ficar no banco de reservas.

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31Acabava a Tupi e, com ela, parte da vida de Flávio. Sua

imagem estava muito ligada à da emissora, pelas idas e vindas,brigas e pazes, como numa relação afetiva malresolvida. Desta vez,a dor era mais profunda; não havia retomo. Da Tupi restava ummonte de processos e discussões judiciais.

Sempre tive a impressão de que a emissora era como um serhumano portador de uma grave doença; a morte espreitando-a acada dia, e ela, já sem forças, não lutava mais para sobreviver.Apesar de todos os pesares, deixou na história a garra de seucriador, Assis Chateaubriand, foi pioneira e forjou grandes profis-sionais. Flávio foi um deles.

Mais uma vez fora do vídeo, Flávio continuou no ar através dorádio, na Rede Capital. Não era mais o "Senhor dos Domingos", nemde qualquer outro dia da semana. Passou a ter dificuldades financei-ras, mas jamais perdeu a esperança de que a vida pudesse melhorar.É dessa época uma historinha muito interessante. Em janeiro de1980, quando Frank Sinatra veio ao Brasil trazido por RobertoMedina, o velho Abraão, pai de Roberto, não esqueceu de seuantigo contratado de Noite de Gala e convidou-o, junto comBelinha, para a estréia do cantor no Rio Palace Hotel. Flávio erasimplesmente fanático por Sinatra, queria muito ver o show, mas,como o dinheiro andava curto, comprara ingressos para o espetá-culo popular no Maracanã. Com os convites do Rio Palace na mão,tirou seu smoking do guarda-roupa e rumou com Belinha para a

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grande noite. Não tinha mais carro, e por isso pediu à Rede Capitalque enviasse um para levá-los. Na hora combinada, o motoristaapareceu com o carro de reportagem, um fusquinha. E lá foi o casalvestido a rigor, apertado no fusquinha. Na porta do hotel, umaenorme multidão aguardava a entrada da seleta platéia, a famosaturma do sereno. Sem se sentir intimidado, como se estivesse numMercedes Benz, o apresentador saiu do carro. Os aplausos foramtantos que ele se comoveu. Não importava se estivesse rico oupobre, seu publico continuava fiel.

Até outubro de 1981,0 ano correu arrastado, o dinheiro curto,sem muitas perspectivas. Em dezembro desse ano fui morar emNova York, e Flávio se tornou um assíduo correspondente. Rece-ber suas cartas era um prazer enorme. Além de receber notícias doBrasil sob sua ótica, as cartas vinham acompanhadas de recortesde jornais, revistas, fotos, papéis coloridos, dando-me a sensaçãoque era colocado no envelope tudo que estava em sua mesa. Eracomo se eu entrasse um pouquinho em sua casa, e assim ficávamosmais próximos. A primeira que recebi veio datada de 4 de fevereirode 1982, e assim ele falava de sua vida e esperanças:

"Lia, meu amor.Sua carta, uma graça, uma alegria. Adorei. Como gosto de

você! Que o céu conserve você corajosa, com esta força, estadeterminação de ir em frente. Um beijo.

Bela, como sempre, maravilhosa. Fernanda um anjo de ternu-ra. Está morando conosco e tomando conta da casa, da mãe e meajudando muito. Washington com dezessete anos, um Sidney Poi-tier. Trabalha aos sábados no Oba Oba e durante o dia (de segundaa sexta) numa confecção de modas da Baby, mulher do Nanai.Pulando para Petrópolis: Marzinha e Binha vão muito bem com aacademia de ginástica. Mais de trezentos alunos. É o TrainingCenter. Binha, Flavinha e Rafael, uns amores. Adoram o vô Flávio.Eu babo. Em Brasilia Flavinho e Suzana, com a maravilhosaIsabel, vão ótimos. O Júnior é o diretor do Grupo Silvio Santos naCapital Federal. No Rio, mamãe, com seus 96 anos, espalhandosua bênção. Neném e Armando residindo novamente na JoãoBorges, poiso cunhado se aposentou no Itamaraty. Está trabalhan-

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do (um talento) numa grande empresa. A aposentadoria tira todaa graça do sábado... Euzinho fazendo o festival de música carna-valesca (sete programas) pro SBT e pro M. Sílvio me fez umaproposta através do Weltman, mas o Travesso e a Marilu estiveramaqui em casajantando, e ele mefez convite para a Globo. Mas nadaaté agora decidido.

Gostaria de estar aí com você. A seu lado, minha Ija. Ouvindovocê. Conversando com você. Sabendo de você. Vou procurar o'nosso' Bernardo. Deixa comigo. Sou 'cônsul', como dizia o meusaudoso Jorge Veiga. Mas e você? Onde eu posso 'entrar'? Vocêé maravilhosa, e todo mundo adora vocezinha. Tome lá meucoração e faça dele o que bem quiser. Mais um beijinho do seuamigo-pai,

Flávio."

O otimismo de Flávio era incrível. A conversa com Travesso(Nilton) à qual ele se refere na carta acabou não dando em nada,como também a sondagem de Weltman (Moisés), para um progra-ma no SBT. Apesar de tudo, estava atento a tudo que acontecia,era humilde em reconhecer seu desconhecimento em algumasáreas e era o amigo fantástico que, mesmo passando por grandesdificuldades financeiras, agradava meu filho com pequenos pre-sentes.

"SP, 16 de fevereiro de 198211 horas da manhãNo céu canta um sol lindo

Léa,Pra começar: tinha um complexo de inferioridade tão grande

que quando se olhava no espelho não via ninguém.Oi olha eu aqui de novo. Acabo de falar com D. Iaiá, que me

disse ter Bernardo acordado o vô às seis da manhã de ontem, paraque ele o levasse a Copacabana, no Excelsior, onde eu haviadeixado um presentinho na portaria. Bobagem. Mas enche os olhosde uma criança. Pela conversa que tive com sua mãe, tudo bem. Evocezinha? Tudo legal? Ontem à noite ouvi uma entrevista com José

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Guilherme Merquior. Um talento. Nunca ouvira falar no cara.Burrice minha. O homenzinho é crítico literário, ensaísta e autorde vários livros. Deu um banho de inteligência, cultura e Comuni-cação. Rodou a baiana pra cima do Eduardo Masca renhas. Nin-guém agrediu ninguém. Alto nível, O papo foi psicanálise.Concordei muito com o José Guilherme. Desconfio de certosrecursos e, principalmente, de certos senhores que se sentam aolado de um divã. Já não sei quem me havia dito que a psicanáliseé a doença mental que se considera terapia. Não há probleminhamais insignificante que um bom psicanalista não possa complicar.Enfim, este assunto, em geral éposto em discussão muito mais pelaemoção do que pela razão. Mas babo de ver dois talentos sedigladiando com idéias, ironias, sarcasmos, humor e muita erudi-çao.

Gostaria, amor, que você procurasse minha sobrinha aí. Filhada minha irmã, Neném, e Armando Mascarenhas. Maria Elvira(Virinha). Casada com Fernando Carvalho, os dois têm um filho,Fernandinho, que é uma graça. Você gostará deles, e eles de você.E, de certa forma, poderão ser úteis, nesta Nova York gelada.

Belinha muito bem. Fernanda ótima. Washington idem. FlavÍ-nho e Marzinha estiveram em visita trazendo a netalhada. Tudoazul com pintinhas cor-de-rosa. Recebeu minha carta? Ea revista?Será que eu estou escrevendo para o endereço certo? Antes decomeçara batucaresta, confirmei com sua mãe o endereço. Esperoque você esteja me lendo...

Mamãezinha, com seus 96 anos, é que me preocupa. Aquelagraça de velhinha parece que está apagando. Neném, Seu Francis-co, a enfermeira Márcia, Dr. Pontes, o neto Francisco Lui, todosnós cercando-a de carinho. Praticamente inconsciente. Espero queo céu lhe dê a passagem tranqüila e bendita que ela merece. Foiuma mãe realmente extraordinária. Um charme em meiguice, umabondade.

Que tudo em você e ao seu redor esteja bem. E continueacreditando na amizade do velho patrão que tanto bem lhe quer.

Flávio.

Mais duas: se no tempo de Cristo o cruzeiro fosse moedacorrente, Judas não teria frito aquele negócio...

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Finalmente: Um menino para o outro: 'Por mim, eu já teriafugido de casa. Mas papai precisa muito de mim para deduzir noImposto de Renda.

Uma carta animadora chegou em março de 82, e no final eleme contava:

"Ontem a TV Bandeirantes pediu um papo comigo. (WalterClark caiu, você soube?) Já mandaram aspassagens e quarta-feiravou conversar com a turma de 1d. Hebe telefonou convidando paraum jantar black-tie dia 5, lá no Morumbj. Belinha e eu devemos ir.A médica acha que Fernanda não. No mais, Lia, disponha desteseu amigo que a tem em alta conta. Beijo-a.

Flávio.São Paulo, 2 de março de 1982— 11h da manhtt"

A conversa com os Saad assim foi descrita:

My sweet friend, my unforgetable secretary.Chegou a sua do dia 17. Confesso que já estava preocupado

se o LP aterrissou em suas mãos. Escrevo de São Paulo, aqui destasimpatia do Itaim Bibi. Acabo de chegar de mais um papo com oSaad, ou, mais precisamente, os dois, o filho, Johnny, e o paLRecusei uma proposta: programa diário das 21 às 22 horas. Estoulouco mas nem tanto. Me agüentarem uma vez por semana já éduro. Diariamente, em horário nobre, com uma infra-estrutura senão pobre, também não pródiga, é um suicídio. A esta altura, osSaadfazem entrarna sala o Fernando Barbosa Lima, alçado ontema diretor de programação. Dentro do melhor bom senso, eviteiinteiramente o desastre sugerindo afixação do Programa FlávioCavalcanti às terças-feiras, das 21 às 23, ao vivo, diretamente doTeatro Bandeirantes. Parece-me que houve concordância do ple-nário... Na próxima terça tudo se decidirá. Eaívolto a escrever-lhesobre o assunto.

Com você, tudo bem? Por telefone sei que Bernardo está bem,como vão bem D. Iaiá e seu papai Alceu. Sua carta (estás escre-vendo bem, hein, moça?) tem dois trechos que gostaria de comen-tar: uma graça seu comentário sobre a chegada da primavera. A

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volta das plantas e das flores me lembra afigura tão simpática dojardineiro. Gosto de mexer com plantas, terra, vasos e flores. Ojardineiro é aquele otimista que acredita que tudo que vai parabaixo deve ir para cima. Receba em pensamento uma dúzia e meiade rosas. O outro trecho of your letter é quanto a seus planos deescrever um livro. Juro que dará certo. Bestseller na praça. Vaifundo nessa, vai Joga no que escrever sua vida, o bom e o ruim, oescuro e o iluminado, a alegria e a dor, os espantos e as constata-ções. Sem literatice. Conversa informal. Gol certo. Por falar em

livro, me lembrei de uma que me contaram: aquele cara comentavanuma roda: 'Sempre ouvi dizer que um homem totalmente realizadoé aquele que tem um filho, planta uma árvore e escreve um livro.Ele tinha um filho, um dia plantou uma árvore. O filho trepou naárvore, caiu e morreu. Não lhe restava alternativa: escrever o livrosobre o ocorrido.' Gostei daquela sua frasezinha: 'Deus estájogando no meu time. 'Agarre-se n'Ele então. Não há melhor Telêpor aí afora. Fernanda está bem. Minha Bela também. Marzinha,Flavinho, Washington e todos os netos. Ali nice. E a piadinha quecorre por aqui: 'As duas coisas mais desconcertantes do mundo:marido que surpreende e marido que não se surpreende.'

Um beijo estalado que mando por muito bem querer...FlávioSP, 2913182"

As cartas tão ternas que eu recebia mostravam um Flávio semsmoking ou gravata-borboleta. Ele era assim mesmo. Não tinhamedo de mudar de opinião e se rendia ao convite da TV Bandei-rantes.

"Léa, meu amor.Um arco-íris pra você também. Legal seu retratinho. Você está

lindinha. Torço pelo seu livro. Não fique a adiar. Começe. Hoje,22 de abril, são 9:30 da manhã, um dia lindo. Em São Paulo umcéu azulzinho assim é dtfícil. Mando um pedaço deste céu paraCarol, David e Willie e para o José Luiz também. Acabo de falarcom sua mamãe. 'Nosso'filho comendo bem, dormindo bem, masum tanto quanto aflito, sentindo a falta da mamãe. Já soube que

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ti

você não vem mais (chato), que arranjou um emprego no jornal(ótimo) e que Bernardo vai em maio de qualquerjeito (excelente).Não sei se você sabe que as aeromoças de vôos internacionais sãotreinad(ssimas em cuidar de menores que viajam sós. A criançavira um príncipe abordo, com mil mordomias, toma atépose e donode tudo lá em cima. Em que posso ajudar? Quer que eu o leve abordo? Quer que eu tente uma palavrinha com o Abreu, ou coisaparecida? Enfim, gostaria de ajudar. Me dê uma chance, vá! Jápensou Bernardo estudando aí? E daqui a um ou dois anosfalandoinglês? E fico a imaginar o sofrimento de vocês dois em matériade saudade. Vamos sorrir um pouco? Do talento do Millôr:

1. 'Me deu um sorriso tão artificial quanto uma perna de pau.'2. 'Um cara assim parecido mais ou menos com todo mundo.'3. 'Deus - agora, com os astronautas, se mudou para mais

longe.'4. 'Homem - que macaquinho mais FDP!'Acabou o recreio. Aqui em casa tudo bem. Meus netos de

babar. No trabalho, vamos indo, com o mesmo entusiasmo, com amesma garra, enfrentar esta 'loucura' que fechei com a Bandei-rantes de fazer um programa de segunda a sexta de 20 às 21h.Começaremos dia 13 próximo. Treze é o canal, é o dia em quecompleto 25 anos de TV, éo dia em que Belinha e eu nos amarramos(34 anos), e é o dia também que a Bandeirantes soprará quinzevelinhas de existência. Deus me dando uma mãozinha, meu anjoda guarda voltando da licença-prêmio, tudo há de sairbem. Recusonos meus 59 anos perder o entusiasmo. A perda de entusiamo éuma forma de morte prematura, é como aceitar a derrota antes deser derrotado; portanto, vamos em frente que atrás vem gente,como diria ofilósofo Sued...

Uma historinha bonitinha que me contaram ontem: Na primei -ra noite da segunda lua-de-mel, os dois pombinhos, ambos comoitenta anos, se deitaram na cama. O marido estendeu o braço parapegar na mão da noiva e ela procurou a dele. De mãos dadas,adormeceram serenamente. Na segunda noite, também entrelaça-ram as mãos com ternura. Na terceira, ele estendeu o braço parapegar na mão dela, mas ouviu esta brusca resposta: 'Hoje não,querido. Estou morrendo de dor de cabeça.'

A política partidária por aquiferve. Nesta questão eu Continuo

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confiando em todo mundo, mas cortando o baralho. Grêmio dandotrabalho ao Flamengo. Marzinha ampliando sua academia deginástica em Petrópolis. Sucesso, o comício lançando Lula àgovernança do estado-locomotiva. Maluf distribuindo mil meda-lhas. Minha mãezinha lá no Rio, com seus 96 anos, às vezes mereconhecendo e dando aquele sorriso que nunca vou ver outroigual. No mais beijo você com a maior ternura.

Flávio.

No dia 3 de maio de 82 estreou Boa Noite, Brasil, marcandosua volta definitiva para a televisão. Finalmente os tempos de vacasmagras tinham acabado, e assim ele me relatou esta experiência:

"Oi, belezinha do meu coração, tirintintim-tirintintão...Tudo bem? Estou no ar. Por enquanto está dando certo. Dia

13 foi noite de grande emoção. Trinta e quatro anos ao lado damulher que amo. Vinte e cinco anos de TV Quarenta e três anosde jornalismo. E a Rede Bandeirantes fazendo quinze anos. Tudoisso traduzindo em velinhas daria uma fogueira e tanto, pois não?Mas juro pelo Senhor que uma das maiores emoções que tive foiaquele seu telefonema. Perdi até afala. Chorei que me acabei. Semexagerar, não pude contar a ninguém, nem falar a respeito comninguém aqui em casa pois a voz não saía. Implosão completa.Beijo na testa e mais amigo me torno seu.

No Teatro Bandeirantes, na estréia, 1.300 lugares lotados.Amigos que vieram de longe. Parentes, convidados especiais,torcida do Fluminense, torcida do Corin-thians... todas as agênciasde publicidade se fazendo representar. Eu entrando pela platéiaadentro. Subindo no palco. E me dirigindo à estante num cenáriode Ciro dei Nero, simplesmente espetacular (atrás de mim 48aparelhos de TV funcionando). Tudo muito claro, muito limpo.Olha, amor, veio a taquicardia. Mas o velho aqui agüentou firme.Meu presidente, João Saad, homem frio e distante (dizem), achoua melhor coisa que ele já viu na TV Bandeirantes. Meus compa-nheiros ajudaram muito. Roberto Jorge esmerou-se, e toda aequipe técnica parece que se incendiou de entusiasmo. A turmatoda coesa e... claro, Deus deu uma mãozinha e consegui umexcelente timing nas apresentações de Márcia de Windsor, Mansa

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Urban, Armando Marques, S(lvio Caldos, Peri Ribeiro, Alcione,Juca Chaves, presidente Jânio Quadros e os etc. e tal.

O programa de uma hora e dez foi se lastrando, entrou pelohorário do programa seguinte porque dizia a direção geral que eunão parasse, que fosse em frente. E o Boa Noite, Brasil ficou emsua noite de parto duas horas e meia. Na sexta-feira (o segundo)consegui, a mim me parece, um bom chute ao gol. Novamenteapareceu um público enorme e, surpreendentemente, vários fun-cionários da emissora viram afigura fria e distante do Sr. JoãoSaad adentrando, feliz da vida, os bastidores.

Epensar que éde segunda a sexta, ao vivo, das 21 às 22 horas...Pretendo não darfolga um dia sequera meu anjo da guarda. Quemmandou Ele vir comigo? Cartas, telegramas, minha casa umaverdadeira floricultura... mais de dezoito corbeiles... mas, nesteambiente todo, sobressai um papelucho que vez por outra eu piscopara ele amorosamente... o telegrama de seu Alceu e D. Iaiá...conhece?

Ah, Leazinha! Que vontade de poder ajudá-la em seu escritó-rio. Acredito tanto em você que acho que mais cedo ou mais tardevai aparecer pelas suas bandas o sol do 'deu certo'. Me dê tempopara que eu me entrose mais com a alta direção do 13 que vousugerir alguma coisa com você. Me mande maiores detalhes decomo esta união Flávio-Léa-Bandeirantes se poderia realizar.

O único sujeito do mundo que pode dizer afrase que se segueé o consertador de TV: 'Estou em wn daqueles dias horr(veis emque nada pifa.'

No mais, sinta-se, considere-se abraçada carinhosamente porBela, Fernanda, Flavinho, Maninha, Maria do Carmo, Sr. Fran-cisco, Neném e a minha querida figurinha maior da mamãe MariaEugênia... Ah! o Bonifácio também. Tome lá outro beijinho.

Flávio

P.S. - Bonifácio é o meu papagaio moleque e lindo que sóele."

Em maio de 83 Flávio estava entusiasmado com o programa,apesar do cansaço, e assim me contava as novidades.

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"Lia, meu amor.Só agora recebo sua carta de 1411. Saudade. Obrigado pelo

telefonema do dia 15. Contente por saber que o 'nosso 'fi lho estáum rapagão, amigo, compreensivo e bem ao lado da mãe. Outrodia, no avião, o pai dele veio conversar comigo. Muito simpático,mas muito magro, e disse da sua pretensão de dar um pulo aí emjunho oujulho, não me lembro bem. Como vai esta brancura Rinso?Gosto tanto de você que não há cartinha sua que eu não meemocione até às raias de uma lagrimazinha. Belinha muito bem.Fernanda idem. Meus netos, uma graça. Marzinha em pleno vaporcom o sucesso de sua academia de balé e ginástica Training Center.Mais de quatrocentos alunos. Brinca-se em Petrópolis que é infazer parte da academia. Está com uma carinha e um corpinho dedezoito anos. Na verdade completou 33... Júnior diretor do GrupoSilvio Santos em Brasília. Ganha bem e Sílvio gosta muito dele.Chama-o de quebra-galho, o melhor que a empresa já teve, juntoàs autoridades governamentais.

Do meulado, as coisas vão ótimas. Apesar das reiteradaspromessas lá do Morumbi, na verdade na verdade estou segurandoa barra de uma segunda a sexta de 9 às 11, com mais de nove brakesde 'nossos comerciais, por favor'. Para falar a verdade, gosto dafamília Saad, sempre muito carinhosa comigo. Boa Noite, Brasiljá virou pichação contínua do Pasquim, caricatura do Jornal doBrasil. Um cidadão que não sei quem é imprimiu caricaturasminhas e vende pelas ruas de São Paulo (anexo). E mais, vireifrevodo carnaval de Recife, e ainda lá pelos lados do Nordeste vireiliteratura de cordel. Até agora, fora o Troféu Imprensa do SBT(ganhei por 7a 3), o Boa Noite ganhou mais nove troféus. Inclusiveda revista Amiga. Fechei contrato ontem com a CBS para produzirdois Ws. Um As 12 Canções Nota 10/Internacionais. Já fiz aseleção. E o segundo LP As 10 Canções Nota 10/Brasileiras. Estouelaborando. No mais, aguardo você em julho com uma ternuradeste tamanho.

Acredite sempre neste seu amigo.Flávio5/2/83Sábado —Ijhda manhã. "

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Em julho de 83, porém, depois de uma série de atritos com aprodução, Flávio pediu rescisão de contrato. Nesta época já haviaconquistado São Paulo, e aos poucos voltava a ter projeção em todoo Brasil. Eu estava passando férias no Brasil e fui visitar Flávio poralguns dias quando tudo isso aconteceu. A Globo sondou o apre-sentador, houve negociações, mas nenhum resultado satisfatório.A proposta feita por Walter Lacet e Edvaldo Pacote, dois diretoresglobais, era para um programa semanal, a estrear em março de1984. Flávio Jr., quando soube da proposta que o pai recebera,telefonou para Pacote. Uma conversa gentil e franca, mas percebeuque o interesse da TV Globo era tirar Fávio da TV Bandeirantes,pois o sucesso voltava a incomodar. Flávio pai, por sua vez, tinhamedo de ficar longe do vídeo por tanto tempo e recusou, apesar dehonrado com a proposta e fascinado em poder trabalhar com atecnologia global. Nunca ninguém quisera tanto fazer um progra-ma na Globo como Flávio Cavalcanti, mas o convite vinha tardedemais. Ele estava escolado, e não tinha muito tempo a perder.

Simultaneamente a esse telefonema para a TV Globo, FlávioJr. telefonou para Sílvio Santos, pois sabia do interesse do SBT emter seu pai como contratado. Mas Flávio se recusava a conversarcom Sílvio. Lembrava o desastre com seu contrato em 1976 e temiaque a história se repetisse. Sílvio concordou com o valor docontrato, hoje o equivalente a 100 milhões de cruzeiros, com acondição de que o programa fosse gravado. Flávio insistia noprograma ao vivo, e não chegavam a um acordo. Por fim LucianoCalegari prometeu que o programa seria ao vivo, sem consultarSilvio, e o contrato foi assinado. Curiosamente, as duas assinaturasque constaram do contrato foram de Flávio Cavalcanti Jr. Eleassinava pela contratante, SBT, e como procurador do pai.

Assim Flávio resumiu essa odisséia em uma carta para mimdatada de 27 de agosto de 1983.

"Lia, meu anjo.Toma lá um beijo. Obrigado pelo telefonema, pelas cartas. Do

Carmo ficou feliz. É sábado. São 10 e meia de uma manhã poucopaulista: linda e quente. Vai dar piscina. Mas senti vontade debatucar um pouco pra você nesta Olivetti. Por aqui a ópera se

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resume assim: depois de muita conversa com a senhora DonaGlobo (por sinal conversas longas e agradáveis) dentro de umclima surpresa pra mim, pois pude aquilatar o quanto estou valendo(?)na praça. Pacote e Lacet foram de uma distin ção fora de série.Ficamos amigos e na troca de telegramas (meu-pra-eles-eles-pra-mim) está patente que a porta ficou aberta. Antes asim.. Mas asvantagens do SBTforam bem melhores e atendiam mais aos meusinteresses do momento. Estréio dia 18, domingo, setembro, às 20horas até as 23. Ao vivo. Ser ao vivo faz parte do contrato. Será emgrande gala (na roupa, no cenário e espero em Deus na produ-ção...). Estou feliz Penso que o SBT também. São tantas as home-nagens, os convites para reuniões que posso antever dois anos detrabalho em harmonia, de que ambas as partes precisam para queo show seja um produtofinal válido para oprezadopablico... Anexoalguns recortes. Nada é totalmente como a gente quer. As viagensficam pra outra vez.. O calor p. na Europa (Roma) seria péssimopra Belinha. Sem ela fico manco. Ir até a( (NY) acabou dando emnada, pois a preparação do programa exige muito de minha orien-tação pessoal. Mas tudo bem, num legal, num olç, você venceu...Conhece estas? O garotinha pra mãe: 'Mãe, se eu morrer você mefaz de novo?' O mesmo garotinho: 'Vovó, a senhora é linda. É avelha mais nova que eu conheço'... Pra terminar, mando esta: Asorte mistura as cartas e nós jogamos depois...

Seu amigo mesmoFlávio."

O Programa Flávio Cavalcanti não estreou dia 18 de setembrocomo Fávio previa, mas sim 29 de outubro. Começava então aúltima etapa de sua vida.

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"Se eufosse no palco a atriz que eu sou navida, seria uma artista consumada econsagrada."

Márcia de Windsor

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Encontro com Ivone Kassu na ante-sala de Flávio, enossas barrigas se tocam. Ela grávida de sete meses, esperan-do André Luiz, e eu de cinco, esperando Bernardo. Kassujátrabalhava com Roberto Carlos há alguns anos e trazia umrecado do cantor para o apresentador. Estavam produzindoum quadro no programa em que Caymxni se reencontrariacom a filha Nana e Roberto Carlos se prontificava a partici-par cantando Acalanto. O recado foi dado, o programa foi aoar, e quem viu com certeza deve se lembrar da emoção. Éuma pena que esses vídeos se perderam no espólio da TVTupi.

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32Márcia de Windsor foi uma das presenças mais marcantes

nos programas apresentados por Flávio Cavalcanti. Eles se conhe-ceram no programa Noite de Gala, na TV Rio, ela cantora e elerepórter, surgindo daí uma longa e sincera amizade.

Márcia Couto Barreto, este era seu nome verdadeiro. Nascidade uma tradicional famflia mineira, aos dezoito anos se apaixonoupor um homem casado, deixou a casa dos pais e foi viver um belocaso de amor numa fazenda em Ilhéus, interior da Bahia. Oito anosdepois o amor acabou e Márcia voltou para Belo Horizonte comos dois filhos, Arlindo e Gilberto Márcio, frutos dessa união. Nosanos 50, não só em Minas mas como em qualquer parte do Brasil,ser mãe solteira significava a discriminação pela sociedade ecarregar um peso tão grande quanto o de ter praticado um crime.

Márcia deixou os filhos com a mãe em Belo Horizonte e veiopara o Rio, indo trabalhar como maquiadora no salão do cabelei-reiro Renault, no Copacabana Palace. Na intenção de ser mane-quim para aumentar o salário, matriculou-se num curso da Socila.Por coincidência, nessa mesma época, Oscar Ornstein, empresárioe produtor de grandes espetáculos, procurou Maria Augusta, dire-tora da Socila, pois estava tentando descobrir uma cara nova paracompletar o elenco do show de revista Turbillion, que reabriria oGolden Room do Copacabana Palace. Nos anos 50 os shows derevista tinham no elenco, além de cantoras e atrizes, coristas,mulheres bonitas que faziam fundo ao espetáculo. Márcia foi

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contratada, ensaiou duránte dois meses para andar sensualmente,carregar uma estola de peles sobre os ombros e estreou ao lado deTônia Carrero, Elizeth Cardoso e Carmem Verônica. O espetáculofoi um turbilhão de fracassos, e só ficou uma noite em cartaz. Masmesmo assim foi vista por Carlos Machado, o "Rei da Noite", econvidada a ser corista de um outro espetáculo, The Million DoliarBaby, ao lado de Norma Bengeil. Nascia assim a estrela, batizadapor Stanislaw Ponte Preta como Márcia de Windsor. Windsor emhomenagem à duquesa, a plebéia por quem o rei Eduardo V, daInglaterra, se apaixonou e renunciou à coroa.

Com esse contrato, Márcia conseguiu alugar um pequenoapartamento na Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana, etrouxe os filhos e a irmã mais nova para morarem com ela. Decorista dos shows de Carlos Machado foi para a TV Rio participardo programa Noite de Gala, e a sua carreira foi se solidificando.No final dos anos 60, estreou em novela como a espiã Frida, em OSheikdeAgadir, ao lado de Leila Diniz, Maneta Severo e HenriqueMartins, com direção de Régis Cardoso. Em teatro, participou dediversas montagens, entre outras Família Pouco Família e OBem-Amado.

Quando Flávio Cavalcanti criou o programa A Grande Chancena TV Tupi, chamou Márcia de Windsor para fazer parte do júri.Márcia acreditava que um ser humano não poderia julgar outro,mas, diante da insistência de Flávio, concordou em participar doprograma, estabelecendo que só daria nota 10. Ela partia do prin-cípio de que quem estava ali dava o melhor de si, e por isso recebeuo título de Rainha Nota Dez. Sua elegância em se vestir, sempreformal e chique, era sua marca registrada. Usava vestidos borda-dos, luvas e estava sempre impecavelmente penteada e maquiada.Tinha um público cativo que todos os domingos aguardava a suaentrada triunfal no Programa Flávio Cavalcanti.

Doce, meiga e generosa, Márcia encantava a todos, era apai-xonante, mas não conseguiu ser feliz no casamento. Tentou trêsvezes, a primeira com o pai de seus filhos, depois com o ator JardelFilho e por último com o empresário Afif Viagni. Em entrevistapara Hildegard Angel, publicada no jornal Última Hora, disse:"Não preciso de um homem para me dar nada. Casa, comida,roupa, nada. Isso, sei que sou capaz de conquistar sozinha. Acho

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que o amor é as pessoas aceitarem as outras como elas são.Conhecerem, de cor e salteado, os defeitos do outro, e aceitarem.Qualquer amor acaba quando você precisa se violentar, se modifi-car, amoldar-se a uma coisa que a outra pessoa quer que você sejae você não é."

Em 1982, Márcia estava morando num hotel em São Paulo.Fazia a novela Ninho de Serpentes, escrita por Ivani Ribeiro, naTV Bandeirantes, e na mesma emissora, às terças-feiras, participa-va do programa de Flávio Cavalcanti, Boa Noite, Brasil, ondeapresentava o quadro "Meu Neto É uma Graça". Estreou estequadro mostrando seu neto, Diego, filho de Arlindo e Zélia.

A admiração de Flávio por Márcia era tanta que ele fez paraela uma singela poesia, musicada por Hélio Matheus e gravada porMoacir Franco, em 1970, no LP Nosso Primeiro Amor, lançadopela Copacabana Discos e editada por Irmãos Vitale S/A. É aseguinte a letra de Minha Amiga Márcia:

Márcia amigaO tempo vem dizerQue eu vi você crescerComo irmão.

Tão df(ciiAgora eu lhe falarSó posso então lhe darEsta canção.

No dia 4 de agosto, depois do programa, Márcia jantou comamigos, foi para o hotel e dormiu para sempre. Sozinha, foifulminada por um enfarte do miocárdio. Seu corpo nu foi encon-trado pela camareira às 8:30 do dia seguinte. Os amigos maispróximos, Hebe Camargo, Kito Junqueira, Carluccio e Giovanicorreram para o hotel. Foi vestida como uma rainha, em um vestidoazul bordado em dourado, e seu corpo foi velado no Teatro Bandei-rantes, em São Paulo, sendo no dia seguinte transportado para o Rio,onde repousa no Cemitério São João Batista.

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Em 1986, ao completar quatro anos de sua morte, Artur daTávola escreveu, em sua coluna no jornal O Globo:

"Ontem fez quatro anos da morte de Márcia de Windsor,figura pregnante da comunicação popular via tevê no Brasil,espécie de madrinha geral, fada bondosa. Operou dentro doarquétipo da mãe generosa, razão pela qual era estimada,obtendo níveis altos de empatia pela afetividade exacerbadaque possuía e transmitia. Como atriz de telenovelas, Márciade Windsor se destacou, além, é óbvio, de locutora e apresen-tadora, mercê da belíssima voz grave e o belo porte."

Maga, fada, mãe, amiga, irmã, tia, Márcia era uma mulherespecialíssima, uma luz, uma estrela. A jurada Nota Dez foi adécima integrante do júri de Flávio Cavalcanti a morrer. Primeirofoi Leila Diniz (1972); depois o maestro Erlon Chaves (1974); apantera Angela Diniz, assassinada em Búzios (1976); a cantora ecompositora Maysa (1977); o costureiro Denner (1978); o jorna-lista José Fernandes (1979); o compositor e jornalista SérgioBittencourt (1979); o radialista Jorge da Silva, conhecido como"Majestade" (1979), e o cronista Fernando Leite Mendes (1980).Até na morte ela foi dez.

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"Maior que tudo isso éDeus lá em cima."

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O fato de Sílvio Santos ter grande visão de negócios nãoo transformou em um homem frio e calculista, O SBT deixoude faturar a audiência dos programas e os intervalos comer-ciais tirando do ar toda a sua imagem no dia 27 de maio de1986 e colocando apenas uma tarja preta, em luto pela mortede Flávio Cavalcanti.

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33Como Programa Flávio Cavalcanti no SBT,o apresentador

voltou a ter prestígio, sucesso e popularidade. A estratégia deSilvio Santos tinha como alvo combater Chico Anysio, o grandeconcorrente na 1V Globo. O programa estreou numa quarta-feira,mas alguns meses depois, a Globo, sentindo que a audiência deFlávio ameaçava o seu humorístico, transferiu Chico Anysio paraas quintas-feiras e em seu lugar colocou o Globo Repórter. Comisso Flávio também passou para as quintas, e nesse jogo disputa-va-se os pontinhos do IBOPE.

O Programa Flávio Cavalcanti tinha sua fórmula certa eimutável. Era ao vivo, mesclava música, reportagens, concursos,competições, jurados e auditório. Diversos quadros foram criados,como "Brincando com as Estrelas", uma competição entre artis-tas, onde Xuxa concorria com Sônia Lima; outros foram revividos,como as tradicionais entrevistas de "Flávio Confidencial" e ojulgamento de músicas, uma continuidade de Um Instante, Maes-tro! No corpo de jurados se destacaram, entre outros, o playboypaulista Chiquinho Scarpa, a ex-chacrete Sandra Matera, o repórterWagner Montes, a comediante Nair Beilo, o cabeleireiro Dorian eas jornalistas Alik Kostakis e Sônia Abrahão.

Em São Paulo, Flávio Cavalcanti reencontrou muitos amigoscomo Hebe Camargo e Lélio Ravagnani, Rosinha e Samuel Gold-farb, Labibi e Edevaldo Alves da Silva, e sempre elogiava agenerosidade dos paulistas. Era muito grato por ter conseguido

HI

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começar de novo aos 60 anos e se recuperado financeiramente.Além de ter um contrato milionário com o SBT, tinha liberdadepara explorar espaços de merchandising dentro do programa.Estava novamente abonado, e seus rendimentos eram aplicadoscom segurança. Entretanto, como nos velhos tempos, ele repetia amesma generosidade ao presentear os amigos. Um dos exemplosmais engraçados dessa fase foi quando comprou todos os móveispara o apartamento dos noivos Cíntia, sua secretária, e Luiz, umjovem advogado. Flávio sabia das dificuldades do jovem casal e,num ímpeto, entrou numa loja, comprando o mobiliário completo,da sala ao quarto. A vontade de ajudar era tanta que não sepreocupou em saber se o estilo escolhido agradaria aos noivos.Cíntia e Luiz receberam o presente constrangidos, chegaram apensar em trocar por algo mais de acordo com seus planos, maspreferiram respeitar o gosto do amigo.

Flávio era assim. Gostava de ter amigos por perto e recebiacom distinção. Em 1985 saiu do apartamento alugado e comprouuma linda casa no bairro do Morumbi. Um ano depois abriaalgumas garrafas de champanhe comemorando o pagamento daúltima parcela. Um fato digno de comemoração, pois jamais com-prara uma; todas as que teve vieram através de herança. O aparta-mento em Copacabana, presente de seus pais; a casa em Petrópolis,a base foi construída por sua sogra. Finalmente cumpria a promessaà sua família: uma casa comprada com seu próprio dinheiro. MasFlávio ainda queria um pouco mais. Dizia que a qualquer dia iaparar, largaria tudo para construir um pequeno hotel numa praia.Só queria o suficiente para viver. O projeto tomava conta de suacabeça. Queria ter passarinhos à sua volta e curtir a paz e a natureza.

Mas não houve tempo. Na quinta-feira, 22 de maio de 1986,começou a se sentir mal no ensaio do programa. Queixava-se defrio, apesar de o ar-condicionado estar desligado, e continuoufirme, para apresentar seus convidados daquela noite, entre eles oentão ministro Rafael de Almeida Magalhães. Há algumas semanaseu tinha pedido a Flávio para apresentar no programa ElymarSantos, um cantor que alugara o Canecão, e o assunto tinha sidoamplamente explorado pela imprensa. Naquela noite Flávio aten-deu ao meu pedido. Elymar cantou duas músicas, deu uma pequenaentrevista e, no final, antes de Flávio pedir o tradicional "nossos

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comerciais, por favor", deixou no ar sua última frase: "Um beijopara Léa Penteado." O programa saiu do ar, entraram os comer-ciais e Flávio começou a sentir falta de ar e uma forte palpitação.Foi chamada uma ambulância, que chegou em doze minutos e otransportou para o Unicor. No palco o show continuava, e oapresentador foi substituído por Wagner Montes, um dos jurados.

No dia seguinte telefonei para o hospital. Fernanda me disseque ele estava bem. No sábado liguei de novo e consegui falar comele:

- Eu vou até aí.- Não precisa, já estou melhor. É frescura do médico, que-

rendo que eu fique mais uns dias. Quando eu for pra casa te ligo,você vem passar um fim de semana comigo.

Esse fim de semana não aconteceu. Na segunda-feira, dia 26de maio de 1986, às 17:50, Flávio Cavalcanti faleceu. Causamortis: choque cardiogênico, enfarte agudo doíniocárdio. Seucorpo foi velado na Assembléia Legislativa de São Paulo, e durantetoda a noite centenas de amigos, novos e antigos, anônimos efamosos, foram levar um último adeus. No dia 27 de maio, pelamanhã, o seu corpo foi transportado para o Rio num jatinho cedidopelo empresário José Camargo. Fui buscá-lo no Aeroporto SantosDumont para levá-lo até o Cemitério Municipal de Petrópolis, ondeseu corpo repousa. Um ano depois, no dia 19 de junho, Belinha foificar ao seu lado. Flávio e Belinha viveram exatos 63 anos.

Sua última mensagem ainda está no ar, gravada em vídeo."Um beijo para Léa Penteado."Com carinho retribuo o teu beijo.

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15 de janeiro de 1923-

1945-

Nascia no Rio de Janeiro FlávioAntônio Barbosa Nogueira Ca-valcanti, filho de Maria Eugê-nia Barbosa Cavalcanti e domédico Manoel Bezerra Caval-canti.Começa a trabalhar no Bancodo Brasil e, quase simultanea-mente, estréia como repórter nojornal A Manhã.Fica noivo de Maria Isabel Hor-ta Pereira QuintAo, Belinha.Flávio se desliga do Banco doBrasil e é nomeado tesoureiro-auxiliar da Alfândega do Rio deJaneiro.Casa com Belinha.Nasce a primeira filha, AmairQuintão Barbosa Cavalcanti.Nasce Flávio Barbosa Caval-canti Júnior, o segundo filho.

13 de dezembro de 1947-

31 de dezembro de 1947-

13 de maio de 1948-9de março de 1949-

3de setembro de 1950—

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Início das gravações do que vi-ria a ser o programa de rádioDiscos Impossíveis.Nasce Fernanda Quintão Bar-bosa Cavalcanti, a terceira fi-lha.Sua primeira composição,Mancha de Batom, feita em par-ceria com o irmão Celso, é gra-vada pelo conjunto Os Cario-cas.Início do programa Discos Im-possíveis aos domingos, na Rá-dio Mayrink Veiga, Rio de Ja-neiro.Estréia Nós os Gatos, com Ja-cinto de Thormes, na RádioMayrink Veiga.A convite de Vítor Costa, levapara a Rádio Nacional o progra-ma Discos Impossíveis.Vai para a Rádio Tupi levandoDiscos Impossíveis.Substitui por três semanas oapresentador Jacinto de Thor-mes no programa Acontece Ja-cinto de Thormes, na 1V Rio.O programa Um Instante,Maestro! estréia na TV Tupi.Dolores Duran acaba de escre-ver A Noite do Meu Bem, nacasa de Flávio.

1950-

31 de agosto de 1951 -

1951-

1952-

1955-

1956-

1957-

4de junho de 1959—

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Estréia na TV Rio como repór-ter do programa Noite de Gala.Entrevista com Tenório Caval-canti para Noite de Gala.Entrevista o presidente norte-americano John Kennedy emWashington.Flávio pede demissão da Alfân-dega para se dedicar apenas aorádio e à TV.A rua onde mora em Petrópolispassa a se chamar Flávio Caval-canti.Estréia na TV Excelsior, noRio, e lança o júri em TV, pro-duzindo e apresentando os pro-gramas Um Instante, Maestro!,Os Dez Mandamentos de umShow, O Povo Pergunta naCopa do Mundo, Elza, Miltinhoe Samba e O Povo Pergunta aosPolíticos.Volta para a TV Tupi com UmInstante, Maestro! e lança osprogramas A Grande Chance eSua Majestade É a Lei.Primeira final de A GrandeChance no Teatro Municipal doRio de Janeiro. Primeiro lugar,Mansa Rossi.Realiza A Grande Chance emPortugal.

1960-

1961-

1964 -

17 de maio de 1964-

1965-

1966-

1967-

1968 -

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10 de janeiro de 1969 - Casamento da sua filha Amair(Marzinha) com Jarbas LuizBraga.

25 de outubro de 1969 - Nascimento de seu primeironeto, Jarbas Braga Neto.

5 de julho de 1970— Estréia do Programa FlávioCavalcanti na TV Tupi, Rio deJaneiro.

junho de 1971 - Estréia do programa Flavio Espe-cial na TV Tupi de São Paulo.

junho de 1972 - Fim do programa Flávio Espe-cial, em São Paulo.

18 de março de 1973 - O Programa Flávio Cavalcantié suspenso, ficando sessentadias fora do ar.

20 de maio de 1973 -

O Programa Flávio Cavalcantivolta ao ar.

29 de julho de 1973 - Flávio deixa a TV Tupi.23 de setembro de 1973 - Estréia do Programa Flávio

Cavalcanti na TV Rio.05 de janeiro de 1974 - Flávio volta para a TV Tupi.outubro de 1974 - Deixa a TV Tupi devido ao atra-

so dos pagamentos.30 de novembro de 1974 - Nascimento de Isabel Feman-

des Cavalcanti, filha de Suzanae Flávio Cavalcanti Júnior.

13 de maio de 1975 -

Inauguração da boate e restau-rante Preto 22.

31 de março de 1976 - Volta à televisão, estreando noCanal 11, TVS, Rio de Janeiro,com o programa Um Instante,Maestro!

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Sai da TVS por problemas téc-nicos.Muda-se para São Paulo.É contratado para um programadiário, de segunda a sábado, de

maio de 1976—

setembro de 1977 -1 de outubro de 1977 -

11 às 13 horas, na Rádio Mu-lher, em São Paulo.

7 de maio de 1978 -

Volta a fazer o Programa Flá-vio Cavalcanti na TV Tupi, Rio.

31 de dezembro de 1978 - Sai da Rádio Mulher.agosto de 1979 - Volta a morar no Rio.1979 - Assume a direção da Pt1 Pa-

17 de julho de 1980-3de maio de 1982-

29 de outubro de 1983 -

22 de maio de 1986-

pitaldrádio.A TV Tupi é fechada.Estréia na TV Bandeirantes, emSão Paulo, com o programa BoaNoite, Brasil.Estréia no SBT, em São Paulo,com o Programa Flávio Caval-canti.Passa mal quando apresentavao programa, sendo substituídopor Wagner Montes. É trans-portado para o Unicor.Morre às 17:50 no Unicor, emSão Paulo.É enterrado no Cemitério Mu-nicipal de Petrópolis.Morre Belinha Cavalcanti.

26 de maio de 1986 -

27 de maio de 1986-

19 de junho de 1987-

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