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DEBORA RUIZ OMAKI UM GRITO PARADO NO AR: A CRYPTO-ARGUMENTAÇÃO SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2013

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DEBORA RUIZ OMAKI

UM GRITO PARADO NO AR: A CRYPTO-ARGUMENTAÇÃO SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2013

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DEBORA RUIZ OMAKI

UM GRITO PARADO NO AR: A CRYPTO-ARGUMENTAÇÃO SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em atendimento à exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Orientadora: Profª. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda

PUC – SP 2013

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BANCA EXAMINADORA

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DEDICATÓRIA

À minha mãe, que tornou mais um sonho possível.

Aos meus amores, Mozer e Júlia, pela motivação em cada passo.

Às mulheres sempre presentes em minha vida, Noriko, Kyoko, Izabel e Clara Omaki, que me ensinaram

o significado das palavras dedicação e perseverança.

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AGRADECIMENTOS

À Profa Dra. Sumiko Nishitani Ikeda pela colaboração em meu desenvolvimento pessoal e intelectual com muita paciência e sabedoria.

Às Professoras Dra Maria Antonieta Alba Celani e Dra. Leila Barbara pelo incentivo e pela atenção dedicada.

Ao meu pai, pelo carinho e incentivo.

Aos meus colegas de palco, da peça Um Grito Parado No Ar, que me auxiliaram na pesquisa para esse estudo.

A Adal Viviani que, por inúmeras vezes, indagou-me sobre o mestrado.

A Fernando Effori por valiosas conversas e sugestões.

À Janaína Martins, pelo companheirismo e auxílio para conclusão deste trabalho.

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"É ingênuo perguntar se depois de ver uma peça teatral, pode transformar-se a opinião solidamente estabelecida de uma pessoa. [...] Uma criatura que tem pontos de vista sólidos dificilmente se transformará por obra de uma peça teatral. Seria mais viável, naturalmente se se tratasse de jovens ou de alguém cujas tendências se harmonizassem com a predisposição da peça.

O teatro brechtiniano abre especulações ao espectador, o que já é muito, o máximo, para uma obra que quer comunicar-se com o público."

Anatol Rosenfeld

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa, de cunho crítico, é examinar, sob o enfoque da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), a peça teatral Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1973). A peça está centrada nas tentativas de um grupo teatral de levar a termo sua realização, oferecendo por meio de metáforas - como afirmam vários autores - um retrato da situação de isolamento a que foi confinada a sociedade brasileira nos anos sessenta. Nesta pesquisa, tento entender o modo como o autor pôde traçar esse retrato, para transmitir uma mensagem que contrariava a ordem vigente. Notemos que o texto de Um grito parado no ar, não traz, na sua superfície, esse tropo da linguagem figurativa, definido como uma palavra ou frase que causa tensão semântica; e não há a ocorrência de metáforas como as tratadas em Metaphors We Live By. Diante desse contexto, decidi-me a seguir outro caminho, o da alegoria, uma "metáfora continuada". Uma alegoria é uma figura de linguagem de uso retórico, que produz a virtualização do significado, que consiste em transmitir um ou mais sentidos além da simples compreensão literal. Esse processo tem sido chamado de "crypto-argumentação", a argumentação secreta, construída por meio de instrumentos retóricos empregados no nível interpessoal como veículos discretos para expressar um argumento do nível do "não dito", o nível da coerência subjacente do texto. É nesse nível que estaria a meta do texto de Guarnieri. A pesquisa deverá responder às seguintes perguntas: (a) Como é construída essa alegoria em Um grito parado no ar? (b) Quais são as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo autor para essa construção? A pesquisa, apoia-se na Linguística Crítica, interessada no questionamento das relações entre signo, significado e o contexto sócio-histórico, que governam a estrutura semiótica do discurso, e tenta relacionar a noção macro da ideologia às noções micro dos discursos e das práticas sociais de membros de grupo, estabelecendo um elo entre o social e o individual, o macro e o micro, o social ao cognitivo, graças aos recursos oferecidos pela GSF. Essa teoria, através das contribuições que tem recebido, permite tratar das avaliações implícitas, por meio dos tokens de Atitude, que envolvem assuntos como 'o apito do cão' ou o 'contrabando de informação'. Palavras-chave: Peça teatral. Alegoria. Gramática Sistêmico-Funcional. Avaliatividade. Linguística Crítica.

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ABSTRACT

The aim of this research is to critically evaluate Gianfrancesco Guarnieri's play “A Scream Holding in Mid-air” (“Um grito parado no ar”, 1973) in the light of Systemic Functional Grammar (SFG). The play centers in the efforts of a theater group of accomplishing its goal, and offering - as many critics point out - a portrayal of the isolation to which Brazilian society was confined to the sixties. In this research I tried to understand how the author could sketch this portrait, and relay a message that was against the ruling order. It should be noted that the text of “A Scream Holding in Mid-air”, does not contain, in the surface, a trope of figurative language, defined as a word or sentence to cause semantic tension; and there are no metaphors as understood in 'Metaphors We Live By'. In this context, I decided to go another way, the way of the allegory, of an "extended metaphor”. An allegory is a rhetorical figure of speech that produces meaning by virtually conveying one or more meanings beyond the mere literal comprehension. This process has been called “crypto-argumentation” or secret argumentation, established through rhetorical devices that are employed at the interpersonal level as unobtrusive vehicles for conveying an argument at the level of 'the unsaid', the level of the underlying coherence of the text. It is in this level that the goal of Guarnieri's text lies. The research answers the following questions: (a) How are the allegories constructed in “A Scream Holding in Mid-air”? (b) What are the lexico-grammatical choices made by the author in said constructions? The research is based on Critical Linguistics, interested in questioning the relationship between sign, meaning and the social-historical context, which govern the semiotic structure of discourse and attempts to relate the macro notion of ideology to the micro notions of discourses and social practices of members of a group, establishing links between the social and the individual, the macro and the micro, the social and the cognitive, thanks to the resources provided by the SFG. This theory, through the contributions it has received, allows dealing with implicit evaluations through tokens of attitude that include subjects as 'dog whistle' or the 'smuggling of information'. Keywords: Play. Allegory. Systemic Functional Grammar. Appraisal. Critical Linguistics.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Estratificação de gênero, registro e língua............................................. 24

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Componentes do sistema de transitividade.......................................... 27

Quadro 2 - Recursos de Avaliatividade .................................................................. 32

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ......................................................................... 21 2.1 A perspectiva da Gramática Sistêmico-Funcional ................................ 21 2.2 A Teoria de Gêneros e Registros ............................................................. 24 2.2.1 Campo ................................................................................................ 26 2.2.1.1 A transitividade....................................................................... 26 2.2.1.2 A Seleção Lexical .................................................................. 28 2.2.2 Relações............................................................................................. 29 2.2.2.1 Os papéis sociais ................................................................... 29 2.2.3 Modo................................................................................................... 30 2.3 A Avaliatividade: sua realização prosódica e os tokens de Atitude ..... 31 2.3.1 Atitude ............................................................................................... 32 2.3.1.1 O "apito do cão" - O "mundo textual" - O "contrabando de

informação" ........................................................................... 34 2.3.2 Compromisso ..................................................................................... 36 2.3.3 Graduação ......................................................................................... 37 2.4 A persuasão ............................................................................................... 38 2.5 O dialogismo e suas ramificações........................................................... 39 2.6 A ambiguidade estratégica ...................................................................... 42 2.7 A Linguística Crítica ................................................................................. 44

3 METODOLOGIA ................................................................................................ 46 3.1 Dados ......................................................................................................... 46 3.2 Procedimentos de Análise ....................................................................... 47

4 A ANÁLISE CRÍTICA DE UM GRITO PARADO NO AR .................................. 52 4.1 A perspectiva histórica de Um grito parado no ar ................................. 52 4.2 O título: Um grito parado no ar ............................................................... 53 4.3 A primeira minialegoria: A dificuldade financeira como impedimento

da encenação da peça .............................................................................. 55 4.3.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis

sociais ................................................................................................ 55 4.3.2 Avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos .............. 61 4.3.3 A criação da minialegoria .................................................................. 63

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4.4 A segunda minialegoria: Alienação como impedimento da encenação da peça ....................................................................................................... 64

4.4.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais ................................................................................................ 64

4.4.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos ............................................................................................. 68

4.5 A terceira minialegoria: Dificuldades de relacionamento como impedimento da encenação da peça ...................................................... 71

4.5.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais ................................................................................................ 71

4.5.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos ............................................................................................. 74

4.6 A quarta minialegoria: Dificuldades consecução da arte como impedimento da encenação da peça ...................................................... 76

4.6.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais ................................................................................................ 76

4.6.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos ............................................................................................. 79

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 82

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 84

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Introdução 13

UM GRITO PARADO NO AR: A CRYPTO-ARGUMENTAÇÃO SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

1 INTRODUÇÃO

A peça teatral Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1973), classificada pelo autor como "teatro de ocasião", evidencia, segundo Peixoto (2009), a forte censura imperante no auge da ditadura militar, e está centrada nas tentativas de um grupo teatral de levar a termo sua realização, oferecendo através de metáforas (GUZIK, 2004; PRADO, 2001; MONTEIRO, 2007) um retrato da situação de isolamento a que foi confinada a sociedade brasileira nos anos setenta. A peça garantiu ao autor os prêmios de melhor autor da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA), o Molière e o Governador do Estado.

O caráter da expressão metafórica da peça é citado por vários autores. Assim, Guzik (2004), crítico teatral, afirma que:

Entre os textos que produziu nessa década destacam-se em especial, Castro Alves Pede Passagem, Um grito parado no ar e Ponto de Partida. São peças ímpares, que abriram caminhos de diálogo com a plateia através de metáforas, de história figuradas que, no entanto, passavam mensagens claras de resistência, de busca pela liberdade. (GUZIK, p. 204 apud ROVERI, 2004).

Almeida Prado (2001), em O Melhor Teatro de Gianfrancesco Guarnieri, diz:

só restavam após 1968 duas alternativas, ambas insatisfatórias: ou o silêncio, a peça guardada na gaveta, hipótese que não sorria a Guarnieri por assemelhar-se a uma demissão, a um ensarilhamento de armas, ou o emprego da metáfora, trabalhada em dois sentidos, como obra de arte autônoma e como índice, ainda que distante, daquilo que diria o autor se não lhe negassem esse direito (ALMEIDA PRADO, 2001, p.10).

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Introdução 14

E para Monteiro (2007):

Um grito parado no ar, a metáfora da resistência, discute no palco a problemática do esmagamento da classe teatral, e do teatro evidenciando, nas entrelinhas, a realidade objetiva de um sistema social que tirou do povo o direito de manifestar-se (MONTEIRO, 2007, p.24).

O que me leva a estudar essa peça, que foi apresentada no Teatro Commune, de 20 de janeiro a 25 de fevereiro de 2011, e em que fiz parte do elenco, é tentar entender, por meio da análise linguística do discurso, o modo como são criadas as metáforas por meio das quais o autor pôde traçar esse retrato, para transmitir uma mensagem que contrariava a ordem vigente. O autor teria recorrido à metáfora, que é, segundo Charteris-Black, (2004), uma dessas escolhas linguísticas que escondem processos sociais subjacentes, cuja análise pode ajudar a identificar o conteúdo textual implícito. Desse modo, a metáfora é um conceito relativo e não absoluto. É relativo porque os significados das palavras mudam no decorrer do tempo, tanto que o que era metafórico pode tornar-se literal e também porque a consciência da metáfora depende em parte dos usuários da língua, isto é, em sua experiência de língua. O que é pretendido como metáfora pode não ser interpretado como tal.

Dado que não há total consenso sobre o que seja ou não uma metáfora, ou sobre quanto o uso de uma palavra ou frase possa ser uma metáfora, pode ser que definições de metáfora precisem incorporar orientações linguísticas, pragmáticas e cognitivas, segundo Charteris-Black. O termo 'metáfora' pode referir-se a um conjunto de características linguísticas, cognitivas e pragmáticas, em que todas ou qualquer delas estarão presentes em graus variados. A metáfora não é, então, um fenômeno exclusivamente ou linguístico, ou pragmático, ou cognitivo.

Notemos, contudo, que o texto de Um grito parado no ar, não traz, na sua superfície, esse tropo da linguagem figurativa (VELASCO-SACRISTÁN, 2010), definido como uma palavra ou frase que causa tensão semântica. Não há ocorrência de metáforas como as tratadas em Metaphors We Live By, por Lakoff e Johnson (1980), tais como as metáforas estruturais, ontológicas, de orientação, em que, em geral, um alvo abstrato é explicado por uma fonte concreta. Cabe aqui uma constatação oportuna feita por Krennmayr (2012), que investigou via Internet várias

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metáforas citadas pelos dois autores, e que estariam "presentes na vida cotidiana" (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p. 3). Krennmayr verificou que, pelo contrário, a maioria delas vinha de trabalhos relacionados aos próprios autores. Assim, continua ele, "criamos uma classe de metáforas cujo aparecimento em 'dados de linguagem natural' é devido ao uso da linguagem de linguistas" (KRENNMAYR, 2012, p. 116).

Diante desse contexto, decidi-me a seguir outro caminho, o da alegoria, uma "metáfora continuada", segundo Lausberg, 1967, p. 283):

A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento (LAUSBERG, 1967, p. 283) OU: [...] expressão alegórica, técnica metafórica de representar abstrações (HANSEN, p. 7).

porém sem envolver a expressão de metáforas consagradas desde Metaphors we live by.

A alegoria (do grego , allos, "outro", e , agoreuein, "falar em público") diz b para significar a, segundo Hansen (2006). Uma alegoria é uma figura de linguagem, diz o autor, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, que consiste em transmitir um ou mais sentidos além da simples compreensão literal. Assim, pode-se considerar que, por meio da alegoria, Guarnieri denuncia, na peça, ou seja, a "micro" estrutura, nos termos de Li (2010), a situação por que passava o povo brasileiro da época, a "macro" estrutura (LI, 2010), do silêncio imposto pela ditadura militar, segundo os autores acima consultados.

A leitura de Kitis e Milapides (1997) pareceu-me indicar o caminho por onde eu poderia apoiar minha análise. Dizem os autores que, embora possa ser afirmado que a linguística crítica deve examinar a língua como discurso, i.e., como texto inserido nas condições sociais de produção e interpretação (FAIRCLOUGH, 1992; HODGE; KRESS, 1988), é possível também que, por meio de uma análise linguística completa, com o emprego de todos os métodos e instrumentos que a disciplina pode oferecer, se revelem essas condições. Dizem os autores que uma

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Introdução 16

"leitura detida" (close reading) de um texto pode contribuir significativamente para a realização das condições sociais que governam os atos de produção, bem como da interpretação e consumo de textos.

Mas, para conseguir esses resultados, i.e., continuam os autores, para desenredar essas condições e sua contribuição para a geração de complexos ideológicos, a análise linguística não pode restringir-se a examinar as unidades gramaticais como sentenças isoladas ou estruturas menores do texto, como se tem feito nas abordagens tradicionais, mas, sim, examinar essas estruturas gramaticais e lexicais incorporadas na formação geral do texto. Mais ainda, o foco deve recair em traços organizacionais de nível superior bem como nas estruturas retóricas, nas relações semânticas e pragmáticas que contribuem para o estilo geral do texto, produzindo assim versões da realidade e das ideologias.

Kitis e Milapides (1997), ao mesmo tempo em que prestam atenção às estruturas léxico-gramaticais do texto, visualizam essas estruturas dentro da estrutura de uma metáfora construída subjacentemente, que não somente permeia e domina todo o texto, mas também forma o esqueleto da estrutura argumentativa. O que é colocado em primeiro plano, nessa análise multi-nivelada é a preponderância de certas hipóteses de natureza ideológica, que, embora não forme parte da estrutura formal do texto, são aspectos de interpretações subrepticiamente inseridas no subtexto do texto. A esse respeito, FlØttum cita Eisenberg (apud Leitch e Davenport 2007, p. 444), que fala em "ambiguidade estratégica", para quem, essa estratégia serve para caracterizar situações nas quais a língua é "intencionalmente expressa de maneira ambígua para exercer certas metas".

A esse processo, Kitis e Milapides chamam de "crypto-argumentação", a argumentação secreta, construída por meio de instrumentos retóricos empregados no nível interpessoal como veículos discretos para expressar um argumento do nível do "não dito", o nível da coerência subjacente do texto. É nesse nível que estaria a meta do texto de Guarnieri.

Assim, coloco-me no terreno do que Fowler (1991) chamou de Linguística Crítica (LC), proposta interessada no questionamento das relações entre signo, significado e o contexto sócio-histórico, que governam a estrutura semiótica do discurso, usando um tipo de análise linguística, para a qual indicam a Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994, 2004). Segundo Fowler, na medida em que

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Introdução 17

há, sempre, valores implicados no uso da língua, deve ser justificável praticar um tipo de linguística direcionada para a compreensão de tais valores. A LC procura, estudando detalhes da estrutura linguística à luz da situação social e histórica de um texto, trazer para o nível da consciência - de quem aceita o discurso como "natural" os padrões de crenças e valores que estão codificados na língua – e que estão subjacentes ao texto.

Nesse sentido, recorro a Li (2010), que, com apoio em Van Dijk (1993, 1997), tenta relacionar a noção macro da ideologia às noções micro dos discursos e das práticas sociais de membros de grupo, estabelecendo um elo entre o social e o individual, o macro e o micro, o social ao cognitivo. Li, também, apoia-se a uma metodologia que se apoia na gramática-da-oração - a Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday (2004) - para explicar como os traços do texto na superfície e a estrutura superficial comunica ideologias específicas e identidades de grupo no nível profundo.

Para Halliday, a língua está estruturada para servir à função de construir significados - três, para ele - experiencial, interpessoal e textual, distintos, porém simultâneos. Essa concomitância é possível porque a língua possui um nível intermediário de codificação: a léxico-gramática. É esse nível que possibilita à língua estruturar conjuntamente três significados, e que entram no texto através das orações. Entendida assim, a teoria permite reunir a noção macro da ideologia com a noção micro das estruturas linguísticas, das escolhas léxico-gramaticais. Daí a razão de Halliday dizer que a descrição gramatical é essencial à análise do discurso. A GSF, através das contribuições que tem recebido, permite tratar das avaliações implícitas, por meio dos tokens de Atitude (Martin, 2000), que envolvem assuntos como 'o apito do cão' (COFFIN; O'HALLORAN, 2006) ou o 'contrabando de informação' (LUCHJENBROERS; ALDRIDGE, 2007).

Por outro lado, como se trata de uma peça teatral, um texto multimodal, que conjuga essencialmente dois meios de comunicação, a linguagem e o visual, poder-se-ia argumentar que uma análise cabal de Um grito parado no ar teria início no elemento linguístico, mas só se completaria quando representada no palco. Porém decidi-me a deixar a parte do exame da questão visual para uma etapa posterior ao estudo do elemento verbal.

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O objetivo desta pesquisa de cunho crítico, examina, sob enfoque da GSF, a alegoria que retrata nas situações mostradas na peça teatral Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1973), as situações vividas pelo povo brasileiro, com a qual o autor tenta conscientizar seu público a respeito da época da ditadura, nos idos de 60. A pesquisa deverá responder às seguintes perguntas: (a) Como é construída essa alegoria em Um grito parado no ar? (b) Quais são as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo autor para essa construção?

Antes de passar a tratar das teorias que embasam a minha análise, faço um parênteses para falar do contexto histórico da época da peça Um grito parado no ar e do autor, Guarnieri.

O CONTEXTO HISTÓRICO E O POSICIONAMENTO DE GUARNIERI

Para que possamos analisar a ideologia da época, faz-se necessário abordar a ditadura instaurada de 1964 a 1985. Período crucial da história brasileira – marcada pela tortura, coerção e extermínio - e que nos leva a entender a escolha de Guarnieri em lutar através da arte e das palavras, utilizando como principal recurso a mensagem implícita em seu texto.

O golpe militar teve início pelo receio das classes conservadoras de um golpe comunista. Durante o governo de João Goulart as organizações sociais ganhavam espaço. Isso fez com que a classe média organizasse uma manifestação – A "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" contra as intenções da Reforma de Base de João Goulart.

Guarnieri denominava-se como um artista que entendia o homem, principalmente o homem brasileiro – objeto de sua preocupação. Suas peças seguiam um movimento histórico e acompanhavam a realidade que estava sendo vivida no país. Assim, a partir de 1964 inicia-se também a sua luta contra a opressão.

Em seu livro Ditadura Escancarada, Elio Gaspari (2002) analisa o período de 1969 a 1974 e caracteriza-o como o mais duro período da ditadura militar. Ao mesmo tempo, relata que foi a época das alegrias da Copa do Mundo de 1970, do

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Introdução 19

aparecimento da TV em cores, das inéditas taxas de crescimento econômico e de um regime de emprego – o milagre brasileiro.

O milagre brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, coexistiram negando-se. Passados já há alguns anos, ainda continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita que houve o outro. Por essa razão, foram inúmeras as tentativas de Guarnieri em evidenciar ao seu público a ditadura dominante da época.

Em setembro de 69, o governo decreta a Lei de Segurança Nacional que ordenava o exílio e a pena de morte em casos de “guerra psicológica adversa ou revolucionária, ou subversiva”. Assim, neste mesmo ano, Marighella é morto pelas forças de repressão em São Paulo.

Na arte, esse período também mostrou o lado mais terrível da ditadura. Começaram as ameaças de bombas. Os grupos teatrais recebiam telefonemas informando que o teatro continha bombas escondidas. Isso fazia com que a companhia fosse obrigada a chamar o DOPS que jamais as encontrava, mas provocavam os atores afirmando que mesmo assim o teatro ainda poderia explodir. Guarnieri, no livro, Um Grito Solto no Ar, revela que as apresentações sempre continham quatro homens armados, com revólveres à mostra, encostados na parede. Por vezes, obstruíam a passagem para que os atores esbarrassem e notassem as armas carregadas. O elenco era obrigado a trabalhar em meio a ameaças, via telefone, e policiais armados na plateia. Nesse ano, Guarnieri se vê obrigado a fugir para Argentina, por três meses, com o amigo e ator Juca de Oliveira. Em poucas semanas de volta a São Paulo é intimado a prestar audiência no DOPS.

Em 1973, ano em que Um Grito Parado no Ar é escrito e encenado, o DOPS paulista prepara uma cartilha em que a palavra “Torturadores” apresenta o seguinte significado: “Expressão utilizada pela subversão para designar todos aqueles que se empenham ou colaboram na prisão de subversivos terroristas”. Documento de circulação interna que insinuava que os torturadores não seriam só aqueles que espancavam presos, mas todos os que colaboravam no combate à subversão (GASPARI, 2002 p.25). Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog á assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. Em janeiro de 1976, o operário Manuel

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Introdução 20

Fiel Filho aparece morto em situação semelhante. Em 1978, Geisel acaba com o AI-5, restaura o habeas-corpus e abre caminho para a volta da democracia no Brasil.

GIANFRANCESCO GUARNIERI

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri (1934 a 2006) foi um renomado ator, diretor e dramaturgo brasileiro. Nascido em Milão, filho de músicos, chega os Brasil em 1936 para dar brilho ao teatro brasileiro na época da ditadura.

Em seu livro Um grito solto no ar, Sérgio Roveri (2004) relata a história de Guarnieri. Nascido em 06 de agosto de 1934, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri entrou para a história do teatro, após exibir a realidade de um tipo de herói até aquele momento pouco afeito às encenações: o homem do povo, com tudo aquilo que ele poderia reunir de mais sublime e mais mesquinho de mais corajoso e mais covarde de mais divino e mais sorrateiramente humano. Um herói que o público iria aprender a reconhecer num ponto de ônibus, na fila do desemprego, nos piquetes, na casa ao lado, na quermesse da igreja e, acima de tudo, no espelho.

Guarnieri escreveu mais de 20 peças e atuou em perto de 40 espetáculos e igual número de novelas. Se tivesse de escolher entre as credenciais de autor, ator, diretor ou músico para se apresentar, é muito provável que Guarnieri não ficasse com nenhuma delas. Na certa optaria por outra atividade - a de sobrevivente. “Sou um privilegiado por ter vivido o que vivi e chegado até aqui. O resto é história”.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Apresento, aqui, as teorias que fundamentarão a minha análise de Um Grito Parado no Ar, de Guarnieri. A análise se apoia basicamente na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) (HALLIDAY, 1994), uma teoria e metodologia sugeridas por analistas críticos do discurso como a mais indicada para essa finalidade, graças à sua natureza multifuncional, abrangendo a informação, a interação e a construção do texto. A GSF envolve a proposta da Linguística Crítica (FOWLER, 1991) e também a noção de Avaliatividade (MARTIN, 2000; 2003), que trata das avaliações explícitas e implícitas, importantes na realização da persuasão. Outros recursos importantes na construção da retórica do texto também serão levados em consideração, tais como, o dialogismo e a ambiguidade estratégica, que apoiam a denúncia implícita da infra-estrutura repressiva que cercava a realização da peça de Guarnieri.

2.1 A perspectiva da Gramática Sistêmico-Funcional

Há quatro pontos que caracterizam a abordagem da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF): (i) o uso da língua é funcional; (ii) a função da língua é construir significados; (iii) a construção do significado é feita através de escolhas léxico-gramaticais: a noção de escolha é cara à GSF, segundo nota Eggins (1994); (iv) os significados sofrem a influência do contexto social em que são intercambiados.

A língua é vista na GSF como uma prática social, o resultado da interação entre os seus dois aspectos fundamentais – a sistematicidade e a funcionalidade (MARTIN, 1997). Crucial para esse estudo, segundo Gales (2011), é a funcionalidade, que se revela no discurso por meio da estrutura gramatical interna da língua, entendendo-se, assim, que as funções da língua ditam a sua forma e a sua estrutura (HALLIDAY, 1978).

A língua é considerada um recurso para fazer significado: o código como um recurso sistêmico, um potencial de significado; o comportamento como a realização desse potencial de significado em situações da vida real. Nesse processo de realização, a língua funciona para preencher uma série de necessidades humanas, e "a riqueza e a variedade de suas funções estão refletidas na natureza da própria

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língua, em sua organização como um sistema" (HALLIDAY, 1973, p. 20). Uma descrição sistêmica tenta interpretar simultaneamente tanto o código quanto o comportamento, para especificar os sistemas dos quais se deriva um item linguístico, isto é, as escolhas incorporadas naquele item (HALLIDAY, 1994).

As funções da língua, que preenchem uma série de necessidades humanas, estão categorizadas sob um guarda-chuva de três metafunções, a saber, a ideacional, a interpessoal e a textual, que são realizadas simultaneamente, segundo Halliday (1994). A metafunção ideacional refere-se à habilidade para construir experiências humanas, nomeando entidades e construindo categorias e taxonomias; a metafunção interpessoal permite que as pessoas interajam em relações pessoais e sociais; a metafunção textual refere-se à possibilidade da construção do texto para facilitar as outras duas metafunções, dando textura ao texto para fazê-lo operacionalmente relevante (HALLIDAY, 1973; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).

Como faz a língua para manipular três tipos de significados simultaneamente? A língua possui um nível intermediário de codificação: a léxico-gramática. É este nível que possibilita à língua construir três significados concomitantes, e eles entram no texto através das orações. Daí porque Halliday dizer que a descrição gramatical é essencial à análise textual.

Os diferentes aspectos de significado das três metafunções estão organizados em níveis. O nível mais básico (ou o mais concreto) do significado refere-se à realização fonológica; seguindo-se para uma camada mais abstrata, chega-se ao nível é o da léxico-gramática; em seguida o da semântica; e, finalmente, o do contexto como o nível mais abstrato (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). As escolhas feitas num nível mais básico realizam escolhas de um nível superior. Reciprocamente, as escolhas feitas no nível superior são realizadas por escolhas de nível inferior. A léxico-gramática é, literalmente, o contínuo do léxico e da gramática. A gramática é vista como um instrumento linguístico para ligar seleções feitas nos vários sub-sistemas da língua, realizando essas seleções em uma forma estrutural unificada (HALLIDAY, 1973).

Portanto, o processo envolvido no uso da língua é semiótico: um processo de construção do significado através de escolhas. Por outro lado, quando se faz uma escolha no sistema linguístico (escolha real), o que se escreve ou o que se diz

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adquire significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas (escolhas potenciais).

Alguns fatos mostram que língua e contexto estão interrelacionados, diz Eggins (1994):

a) somos capazes de deduzir o contexto de um texto: um texto carrega aspectos do contexto em que foi produzido;

b) somos capazes de predizer a língua através de um contexto (em uma receita culinária, podemos predizer o tipo de estrutura sintática e as palavras que ocorrerão na receita); e

c) sem um contexto não somos capazes, em geral, de dizer o significado que está sendo construído.

Portanto, ao fazermos perguntas funcionais, não é suficiente enfocarmos somente a língua, mas a língua usada em um contexto. Mas quais as feições desse contexto afetam o uso da língua? Para responder a essa questão, os sistemicistas lançam mão de dois conceitos: gênero (contexto cultural) e registro (contexto situacional, com suas variáveis de: campo, relações e modo), além do contexto ideológico. Gênero e registro constituem o contexto social: gênero (contexto cultural), registro (contexto situacional). Gênero, registro e língua são sistemas semióticos.

O gênero - contexto cultural - é um processo social (realizado através de interações entre falantes ou entre escritores e leitores), em etapas (passos funcionais interativos), orientado por metas, e realizado através de registros (Martin, 1992, p. 505).

O registro - contexto situacional - é constituído por três variáveis contextuais: campo, relações e modo, que realizam as metafunções ideacional, interpessoal e textual. Por sua vez, as variáveis de registro são organizadas pelas metafunções ideacional, textual e interpessoal. Mais especificamente, o campo põe os significados ideacionais em risco; as relações, os significados interpessoais; e o modo, os significados textuais (MARTIN, 1991, p. 125). Veja esquema dessa relação.

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Gênero

Registro

Língua

Figura 1 - Estratificação de gênero, registro e língua Fonte: Martin (1992, p. 495)

Para um entendimento desses conceitos, trago, a seguir, a Teoria de Gêneros e Registro, de Eggins e Martin (1997), que poderá ajudar a transposição da peça teatral para a realidade nacional da época.

2.2 A Teoria de Gêneros e Registros

Eggins e Martin (1997) propõem a Teoria de Gêneros e Registros (TGR), uma teoria da variação funcional. Uma TGR útil é aquela que permite tanto a predição textual quanto a dedução contextual. Isto é, dada a descrição de um contexto, deverá ser possível predizer os significados que estarão "em risco" (serão os mais possíveis de acontecer) e os traços linguísticos mais prováveis de serem usados para a sua codificação. Da mesma forma, dado um texto, deverá ser possível deduzir o contexto em que ele foi produzido, já que os traços linguísticos selecionados no texto estarão codificando as dimensões contextuais, tanto no seu contexto imediato de produção (registro) quanto na sua identidade do contexto cultural (gênero), ou seja, a tarefa que o texto está cumprindo em determinada cultura.

Para predizer e deduzir, o analista precisa ser capaz de relacionar categorias do contexto com uma especificação detalhada dos padrões linguísticos. Isto é, a TGR precisa fornecer uma metodologia para a análise textual e também precisa fornecer uma explicação de como os contextos tanto cultural quanto situacional são expressos sistematicamente nas escolhas linguísticas. Assim, um desenvolvimento completo da TGR envolve tanto uma explicação detalhada da linguagem quanto uma teoria do contexto e da relação entre ambas.

Um outro item da abordagem sistêmica, que trata do reconhecimento de que diferenças entre textos se devem ao reflexo de uma dimensão contextual mais

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abstrata, é aquele que poderíamos chamar ideologia, isto é, posições de poder, de vieses políticos e de suposições sobre o que os interlocutores trazem para seus textos, fato que julgo importante em Um grito parado no ar.

Segundo Eggins, dos traços contextuais, há três áreas principais a examinar num texto: (i) o conhecimento prévio trazido para os textos (campo); (ii) a quantidade de atitude/avaliação expressa pelo escritor (relações); (iii) e o grau de formalidade na linguagem usada (modo). O conhecimento prévio é também realizado por meio de outros contextos e outros textos aos quais o produtor pressupõe que a audiência tenha acesso. (Veja item sobre dialogismo mais adiante.)

A seguir, vem a explicação dessas características o que, como consequência, vai delinear o contexto social em que o texto foi escrito. Cada texto carrega consigo algumas influências do contexto em que foi produzido. Pode-se dizer que o contexto entra no texto influenciando as palavras e as estruturas que o produtor usa.

São essas noções de significado no texto e sua correlação com as dimensões contextuais, que dá à abordagem da TGR dois temas comuns. O que se deve ter em mente na análise de Um grito parado no ar, é que esse processo ocorre de maneira implícita, exigindo a atenção do leitor para a crypto-argumentação - a argumentação secreta, segundo Kitis e Milapides (1997) [Veja mais abaixo] - que vai sendo construída por meio de uma alegoria.

• Primeiro, o foco na análise detalhada da variação dos traços linguísticos do discurso: isto é, há especificações explícitas, idealmente quantificáveis de padrões gramaticais e semânticos do texto.

• Segundo, a abordagem TGR procura explicar a variação linguística pela referência à variação contextual: isto é, há elos explícitos entre traços do discurso e variáveis críticas do contexto social e cultural empregados para explicar o significado e a função da variação entre textos.

Ao aplicar este modelo, os sistemicistas apoiam-se na descrição sistêmico-funcional detalhada da gramática do inglês feita por de Halliday (1985, 1994) e Halliday e Matthiessen (2004) e que, igualmente, pode ser feita para o português, como veremos.

A seguir, explicamos cada variável do registro: campo, relações e modo.

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2.2.1 Campo

As diferenças no campo são realizadas através (i) tanto das seleções de transitividade (ii) quanto das seleções lexicais, que são – como mencionamos acima – organizadas pela metafunção ideacional. Essa parte constitui a primeira etapa da análise.

2.2.1.1 A transitividade

A transitividade é um conceito semântico fundamental em Halliday (1994). Segundo ele, quando olhamos para a metafunção ideacional, estamos olhando para a gramática da oração-como-representação, a língua como representação do mundo. Uma oração baseia-se num núcleo semântico constituído por um processo, além de papéis exercidos pelos participantes e pela circunstância na estrutura de transitividade de uma oração.

Para o autor, as línguas capacitam o ser humano a construir um quadro mental da realidade, para entender o que acontece ao seu redor e no seu interior. Nossa impressão mais poderosa da experiência é de que ela consiste de 'eventos' – acontecer, fazer, sentir, significar, ser e tornar-se. Todos esses eventos estão envolvidos na gramática da oração, por meio do sistema da transitividade.

A gramática distingue bem claramente entre experiência externa - os processos do mundo exterior - e a experiência interna - os processos da consciência. As categorias gramaticais são as de processos materiais e processos mentais. Mas há um terceiro componente a considerar: os de classificação e identificação: são os chamados processos relacionais. Além desses processos, existem outras categorias localizadas nos limites entre os três. No limite entre material e mental, estão os processos comportamentais: aqueles que representam manifestações exteriores de atividades internas, a externalização de processos da consciência e dos estados fisiológicos. No limite entre mental e relacional, está a categoria dos processos verbais: relações simbólicas construídas na consciência humana e efetivadas na forma de língua como: dizer e significar. No limite entre relacional e material, estão os processos que se referem à existência, os existenciais, pelos quais fenômenos de todos os tipos são reconhecidos como 'ser' – existir, ou acontecer.

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Os participantes e as circunstâncias relacionados a esses processos são:

Quadro 1 - Componentes do sistema de transitividade

Processo Participantes

MATERIAL Ator, Meta COMPORTAMENTAL Comportante

MENTAL Experienciador, Fenômeno EXISTENCIAL Existente

RELACIONAL Identificativo: Característica, Valor Atributivo: Portador, Atributo

VERBAL Dizente, Receptor, Verbiagem, Receptor, Alvo

Opcionais: Extensão, Beneficiário

C I r c u n s t â n c i a s

Fonte: Halliday (1994)

A transitividade tem-se provado extremamente iluminadora na linguística crítica. Ela é a base da representação: é o modo pelo qual a oração é usada para analisar eventos e situações como sendo de certo tipo. A transitividade tem a facilidade de analisar o mesmo evento sob ângulos diferentes, o que é de grande interesse na análise de um texto. Veja exemplos:

(a) Ele está sorrindo porque Maria chegou. (material) (b) Agrada-lhe que Maria tenha chegado. (mental) (c) Ele está feliz porque Maria chegou. (relacional)

Quando vemos alguma coisa, diz Halliday (1994), percebêmo-la como uma peça inteira, mas se formos falar dessa mesma coisa, precisaremos analisá-la como uma configuração semântica – isto é, precisamos representá-la como uma estrutura de significado. Já que a transitividade possibilita fazer escolhas, estaremos também omitindo algumas delas, de tal forma que a escolha que fazemos, ou melhor, a escolha feita pelo discurso – indica o nosso ponto de vista e é, portanto, ideologicamente significativa.

Nesse processo, Halliday cita como importantes duas transformações: passiva e nominalização.

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Passiva: Para a abordagem funcional, interessa saber por que existem as duas construções – ativa e passiva – se elas se equivalem na transitividade e no conteúdo proporcional. Por que é necessária a passiva? A passiva enfoca o paciente e permite suprimir o agente, o que é de particular interesse em relatos de natureza oficial ou burocrática, diz o autor.

Nominalização: Pela transformação de nominalização, verbos e adjetivos podem ser realizados sintaticamente como nomes; ao lado desses nominais derivados, há os nomes não derivados que designam ações e processos e, não, objetos. O uso tanto de um quanto de outro é endêmico em linguagem formal, e tem consequências estruturais extensas oferecendo oportunidades ideológicas substanciais. Em uma nominalização, pode-se: omitir os participantes (quem fez o que para quem?); omitir a indicação de tempo e de modalidade, como nome, o elemento resultante, pode ser avaliado ('leitura enfadonha').

Em Language and Control (FOWLER, HODGE, KRESS, TREW, 1979), a nominalização é considerada potencialmente mistificadora, permitindo o ocultamento, especialmente nas relações de poder, bem como o posicionamento do escritor, além da reificação, quando processos e qualidades tomam o status de coisa impessoal, inanimada.

2.2.1.2 A Seleção Lexical

O vocabulário pode ser considerado como uma representação do mundo para uma cultura: o mundo como é percebido de acordo com as necessidades ideológicas de uma cultura. O uso de cada termo cristaliza e normatiza as fatias essencialmente artificiais cortadas do bolo do mundo. Para o analista crítico, é uma tarefa elementar, mas fundamental, que ele mantenha constante atenção, no discurso que estuda, os termos que ocorrem mais frequentemente, além do segmento da sociedade analisado. Mesmo as palavras mais gerais são coloridas pelo contexto, de tal modo que, cumulativamente, elas contribuem para consolidar a variável campo do registro. É parte do nosso conhecimento comunicativo reconhecer um determinado registro, e ser consciente de que ele marca social e ideologicamente áreas da experiência: elas têm uma função categorizadora. O

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vocabulário não somente classifica a nossa experiência em termos gerais, mas faz uma distinção detalhada entre classes de conceitos. A categorização pelo vocabulário é uma parte integral da reprodução da ideologia.

Dois processos devem ser considerados: (a) a re-lexicalização, ou a promoção de um novo termo para um novo conceito; (b) a super-lexicalização, ou excesso de termos para entidades e ideias que constituam preocupação no discurso de uma cultura.

2.2.2 Relações

Segundo Halliday (1994), a oração, simultaneamente com sua organização como informação, está também organizada como um evento interativo, envolvendo falante, ou escritor, e a audiência. Os tipos fundamentais de papéis de fala, que ficam subjacentes a todos os demais tipos mais específicos que possam existir, são apenas dois: (i) dar, e (ii) pedir. Juntamente com essa distinção básica está uma outra distinção, igualmente fundamental, que se relaciona com a natureza do produto que está sendo permutado. Este pode ser (a) bens e serviços ou (b) informação. A função semântica da oração como permuta de informação é uma proposição; a função semântica da oração como permuta de bens & serviços é chamada de proposta.

2.2.2.1 Os papéis sociais

Thompson e Thetela (1995) examinam a metafunção interpessoal - que organiza as relações - e propõem a divisão da metafunção interpessoal (que organiza as variáveis relações, do registro) em duas funções: interacional e pessoal. Thompson e Thetela enfocam a função interacional, distinguindo:

a) papéis desempenhados realizados pelo ato de fala por si ('papéis de fala') examinando as perguntas (perguntador e responder) e as ordens (mandante e cumpridor).

b) papéis projetados referem-se à rotulação dos falante/ouvinte: nomeação (Senhor X Participantes do curso); atribuição (papéis atribuídos aos participantes no sistema da transitividade).

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É aqui, nos papéis projetados, notam os autores, que a metafunção interpessoal se sobrepõe ao ideacional no modelo da GSF. Nesse sentido, verifico em minha análise que, por exemplo, quando Euzébio, enfrentando os cobradores que querem levar o gravador do elenco por falta de pagamento, diz: "Tirei o gravador da mão deles", Euzébio tem para si atribuído o papel de Ator, no processo material 'tirar', aquele que faz a ação, mas no contexto humilhante em que se encontra, ele seria nomeado de 'devedor'.

2.2.3 Modo

Segundo Eggins e Martin (1997), diferenças em modo são realizadas através da escolha de Tema. Tema1 é, segundo Halliday (1985, p.38), "o elemento que serve como ponto de partida da mensagem; é aquilo ao qual se refere a oração2. O que for escolhido para Tema virá em primeiro lugar". O resto é o Rema. Uma mensagem consiste em um Tema combinado com um Rema (estrutura temática).

Consideremos as seguintes possibilidades para uma mesma situação real:

(a) João beijou Maria. (b) Maria foi beijada por João. (c) Foi João quem beijou Maria. (d) Foi Maria a que foi beijada por João. (e) O que João fez foi beijar a Maria. (f) Aquela que João beijou foi Maria. (g) A Maria, o João a beijou.

Se a estrutura sintática existisse apenas para expressar o conteúdo proposicional (a informação), seria difícil entender a razão da existência dessa variedade de formas. Há aí uma forma não-marcada: o exemplo (a), ativa declarativa; e formas marcadas: os exemplos de (b) a (g) e elas devem ter alguma razão de ser, segundo Halliday. Vejamos outra situação. Dada uma construção como: O primeiro-ministro desceu do avião, a continuação preferida será (b) e não (a) (embora ambas estejam corretas do ponto de vista gramatical):

1 Também chamado sujeito psicológico. 2 Halliday é criticado por não distinguir o critério sintático (primeiro lugar na oração, uma metáfora de lugar) e o critério semântico ('aboutness' , uma metáfora de assunto).

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(a) Os jornalistas o cercaram imediatamente. (b) Ele foi imediatamente cercado pelos jornalistas.

Nelas, interessa mais o modo como o conteúdo é expresso, a embalagem (packaging, segundo Halliday), do que o próprio conteúdo, a informação. Estaria em jogo, por exemplo, a avaliação que o falante faz da capacidade de processamento do ouvinte das coisas que lhe são ditas num dado contexto. Notemos a função importante da construção passiva e da nominalização nesse processo.

2.3 A Avaliatividade: sua realização prosódica e os tokens de Atitude

Uma das funções básicas da língua é a criação de relações interpessoais entre falante e ouvinte através do modo pelo qual um texto é expresso (escolhas léxico-gramaticais). O que tendeu a ser omitido pelas abordagens da GSF, diz Martin (2000), é a semântica da avaliação, que ele chama de Appraisal (doravante, Avaliatividade): o modo como os interlocutores estão sentindo, os julgamentos que fazem e o valor que põem em vários fenômenos de sua experiência. Sabemos que os atos de fala indicam se o falante está oferecendo, pedindo, ajudando ou atacando, criando solidariedade ou distância social. Mas, qualquer coisa que digamos sobre o mundo incluirá também o nosso ponto de vista sobre a coisa declarada.

A Avaliatividade é uma estrutura analítica do discurso que permite a análise das avaliações manifestadas linguisticamente, quando se desvenda o significado prosódico ao longo de todo o texto (MARTIN; ROSE, 2003; MARTIN; WHITE, 2005). Os sistemas de Avaliatividade abordam os recursos linguísticos nos textos como construções sistemáticas de significado interpessoal, que, por meio de análise cuidadosa do discurso, revelam muito sobre o significado subjacente posicional e atitudinal do autor, isto é, o funcionamento da avaliação (MARTIN; WHITE, 2005). Assim, Avaliatividade, segundo Bock (2011), não descreve simplesmente atitudes e sentimentos, mas procura explorar como os textos negociam as relações de solidariedade e poder com sua audiência e a posiciona como pró ou como contra as opiniões ou experiências descritas (MARTIN, 2003).

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O enquadre da Avaliatividade consiste de três sub-sistemas maiores, ou seja: Atitude, Graduação e Compromisso, que são diferenciados na base de critérios semânticos mais do que traços gramaticais (MARTIN; WHITE, 2005). Em termos dessa teoria, qualquer instância da Avaliatividade no discurso expressa simultaneamente três tipos de significados: (i) tipos de Atitude (Afeto, Julgamento e Apreciação); (ii) intensidade das Atitudes (Graduação), e como é expressa (Compromisso). Veja Quadro 2, que resume o sistema.

Quadro 2 - Recursos de Avaliatividade

COMPROMISSO monoglóssico [sem negociação] heteroglóssico [com negociação]

ATITUDE Afeto Julgamento Apreciação (que envolve a Avaliação Social)

FORÇA aumenta [completamente devastado] diminui [um pouco chateado]

AVALIATIVIDADE

GRADUAÇÃO

FOCO aguça [um policial de verdade] suaviza [cerca de quatro pessoas]

Fonte: MARTIN (2000)

2.3.1 Atitude

O sistema de Atitude apresenta três sub-divisões ou tipos de Atitude: AFETO, JULGAMENTO e APRECIAÇÃO. O Afeto refere-se aos recursos para a expressão de sentimentos ou emoções, enquanto que o Julgamento e a Apreciação, sugerem Martin e White (2005), referem-se à institucionalização dos sentimentos como propostas ou normas sobre como as pessoas devem ou não comportar-se (Julgamento), ou sobre como, produtos e performances são avaliados (Apreciação). O AFETO envolve um conjunto de recursos linguísticos para avaliar a experiência em termos afetivos, para indicar efeito emocional positivo ou negativo de um evento.

A AVALIAÇÃO SOCIAL- uma sub-categoria de APRECIAÇÃO, refere-se à avaliação positiva ou negativa de produtos, atividades, processos ou fenômenos sociais.

A GRADUAÇÃO envolve um conjunto de recursos para aumentar ou diminuir a intensidade da avaliação.

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O COMPROMISSO é um conjunto de recursos que capacita o escritor (ou o falante) a tomar uma posição pela qual sua audiência é construída como partilhando a mesma e única visão de mundo ou, por outro lado, a adotar uma posição que explicitamente reconhece a diversidade entre várias vozes.

A Avaliatividade permite não somente expressões de significado avaliativo direto ou indireto, mas também explica os modos pelos quais padrões de significado avaliativo se acumulam dinamicamente através do texto. Assim, a Avaliatividade pode apresentar-se de forma:

a) Inscrita (explícita). As crianças estavam falando alto.

b) Evocada (implícita). As crianças conversavam durante a aula.

c) Provocada (alguma linguagem avaliativa). A professora já estava na sala, mas as crianças continuavam falando.

Martin explica que a avaliação evocada é feita através do que ele chama de token de atitude em que um significado ideacional, portanto neutro em termos avaliativos, pode se investir de função interpessoal. Os tokens de atitude são também sujeitos à influência do contexto, continua o autor, e uma estratégia importante no estabelecimento de posicionamento interpessoal num texto é colocar avaliações inscritas e evocadas de tal modo que o leitor partilha da interpretação do escritor sobre os tokens do texto. É assim que, evocado por uma descrição de um token, um Julgamento, por exemplo, pode se tornar tão naturalizado numa dada situação cultural que é provável que seja considerado como Julgamento explícito em vez de implícito.

A importância dos tokens de Atitude pode ser sentida na afirmação de Hunston (1993a; 1993b; 1994). A autora, com base nos trabalhos de sociólogos da ciência (i.e. LATOUR; WOOLGAR, 1979), mostra que é possível persuadir uma comunidade a aceitar as afirmações de novos conhecimentos sem o uso de meios explícitos para essa finalidade. Hunston (1994, p. 193) propõe que:

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Para ser convincente a persuasão deve parecer ser uma reportagem. Segue-se que a avaliação, através da qual a persuasão é realizada, deve ser altamente implícita e, assim, evitará a linguagem atitudinal normalmente associada ao significado interpessoal3.

Por outro lado, a Avaliatividade não somente permite expressões de significado avaliativo direto ou indireto, mas também explica os modos pelos quais padrões de significado avaliativo se acumulam dinamicamente através do texto, que tem sido chamado de realização logogenética da Avaliatividade. Assim, os significados de Avaliatividade não agem isoladamente, mas sim "tendem a se espalhar e colorir uma fase do discurso como falantes e escritores ocupam uma posição" em relação ao tema da comunicação (MARTIN; WHITE, 2005, p. 43). Ao se identificarem diferentes itens atitudinais, é necessário, por conseguinte, olhar para o item no seu contexto textual, bem como para a consideração da 'prosódia' de significados que se acumularam ao longo do texto.

Os recursos léxico-gramaticais permitem expressar a atitude do falante não somente em relação ao interlocutor, mas também em relação ao conteúdo ideacional de suas proposições e propostas, diz Lemke (1998). Lemke (1998) chama de realização prosódica (também chamado logogenética) a esse significado atitudinal que se estende pelo texto e sugere que esses significados avaliativos tenham um papel importante na análise do discurso da heteroglossia social e da identidade individual e coletiva.

Vejamos alguns modos de efetivar a avaliação implícita.

2.3.1.1 O "apito do cão" - O "mundo textual" - O "contrabando de informação"

Vejamos um exemplo de token de Atitude, ou seja, de avaliação implícita, num trecho de artigo publicado no The Sun (01/05/04):

(7) Setenta e um LETONESES sorriam enquanto embarcavam num ônibus de dois andares, na capital Riga, para uma viagem de 24 horas para o ocidente.

3 To be convincing what is persuasion must appear only to be reportage. It follows that the evaluation through which the persuasion is carried out must be highly implicit and will, in fact, avoid the attitudinal language normally associated with interpersonal meaning.

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Nesse exemplo, de Coffin e O'Halloran (2006), nenhum termo indica que o seu conteúdo seja avaliado de modo negativo, sendo, pois, uma informação neutra em termos avaliativos (i.e., tem significado experiencial); porém, se se considerar que o artigo foi escrito para uma Inglaterra, que não via com bons olhos hordas de europeus orientais, entrando em seu país para competir no mercado de trabalho aceitando baixos salários, então veremos que as escolhas léxico-gramaticais que compõem o texto têm Avaliatividade (de Apreciação Social, segundo as autoras) negativa. É o que as autoras chamam de política 'do apito do cão' ('dog whistle' politics), frase cunhada recentemente para capturar uma forma de avaliação implícita, que se refere ao uso de significados aparentemente neutros, mas que serão ‘escutados/entendidos’ como uma mensagem negativa (ou positiva, dependendo do contexto) apenas pela comunidade alvo, da mesma forma que apenas os cães ouvem o referido apito, inaudível ao ser humano, devido a elevada frequência desse objeto. Esse recurso tem alta incidência na comunicação política, segundo as autoras.

Cabe aqui a menção do conceito de 'mundo textual', tal como apresentado por Semino (1997: 1) que o defende assim: “Quando lemos, inferimos ativamente um mundo textual ‘atrás’ do texto. Por ‘mundo textual’ ele se refere ao contexto, ao cenário ou tipo de realidade que, evocado em nossas mentes durante a leitura, e que é referido pelo texto.” O mundo textual não é uma entidade fixa que é percebida da mesma maneira pelos leitores; de fato, nem há garantia de que os receptores construirão o mundo textual pretendido pelo produtor.

Do ponto de vista da linguística cognitiva e da semântica cognitiva do significado lexical, Luchjenbroers e Aldridge (2007) afirmam que o significado é ‘enciclopédico’ por natureza: o sentido de uma palavra não está divorciado do seu contexto de uso. O significado linguístico está codificado na memória como um tipo de rotina cognitiva que se apoia em experiências no mundo.

Os autores tratam da noção de frame. Os frames são conjuntos de informações aceitos culturalmente que envolvem qualquer termo lexical. Componentes adicionais de significado são derivados dos frames de referência associados com cada escolha lexical, i.e., cada escolha desencadeia uma rede mais ampla de associações prototipicamente presentes no uso desse termo. O acesso do

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interlocutor a essas associações é dependente de sua experiência e compreensão das normas sociais das quais as escolhas lexicais são derivadas.

A adequação do frame escolhido é também muito importante para ‘contrabandear uma informação’, um termo usado quando uma informação (negativa) é sub-repticiamente inserida no texto, com o óbvio intento de manipular o modo como os ouvintes avaliam a informação que lhes é apresentada.

2.3.2 Compromisso

Diz White (2003) que para examinar e descrever adequadamente a funcionalidade comunicativa desses recursos léxico-gramaticais é necessário vê-los como fundamentalmente dialógicos ou interativos. Em termos amplos, o autor distingue entre enunciados monoglóssicos (afirmações não-dialogizadas e enunciados heteroglóssicos ou dialogísticos (nos quais se sinaliza algum compromisso com posições alternativas/voz). Além disso, o termo 'compromisso heteroglóssico' envolve duas amplas categorias: dialogicamente expansivos (possibilitam alternativas) ou dialogicamente contráteis (restringem as possibilidades).

O sistema de Compromisso está preocupado com os recursos linguísticos que falantes e escritores usam para adotar uma postura em relação não só às proposições ou valores que eles expressam, mas também à sua audiência. Segundo a noção de heteroglossia de Bakhtin e Voloshinov, toda comunicação verbal é vista como dialógica e moldada por afirmações anteriores, pontos de vista alternativos e respostas antecipadas. Esse sistema está interessado em como e em que extensão falantes e escritores reconhecem essas vozes anteriores e se envolvem com elas. Ele também está interessado nas maneiras pelas quais falantes ou escritores sinalizam como eles esperam que seus públicos respondam às proposições que elas expressam.

Conceitos importantes para uma exploração do Compromisso incluem "alinhamento", "solidariedade" e "construção do leitor". Os analistas do Compromisso estão interessados no modo como os textos alinham seus leitores ou ouvintes nas relações de concordância ou de discordância. Quando os escritores ou falantes explicitam seu próprio ponto de vista e atitudes, eles, simultaneamente,

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convidam o receptor a alinhar-se com uma série de valores e crenças compartilhados . Essa negociação tem o efeito de construir um leitor imaginário ou ideal, pois é com esse leitor ideal que o escritor se apresenta como mais ou menos alinhado. Dessa forma, o escritor procura estabelecer uma solidariedade com o seu público (MARTIN; WHITE 2005).

2.3.3 Graduação

A terceira e final dimensão da Avaliatividade é a Graduação, que se refere à medida em que qualquer avaliação é graduada ao longo de uma escala de força ou intensidade de baixo para o alto (por exemplo, como - o amor - adoro; conturbado - com medo - aterrorizado). A Graduação refere-se aos recursos da linguagem, em termos de Martin e Rose (2003, p. 38), aumentando o volume para cima ou para baixo. O enquadre inclui duas categorias principais de graduação: 'foco' e 'força’: ‘foco’ se refere à classificação de significados como mais ou menos precisa ou categórica (isto é, como protótipo de algo é) e ‘força’ refere-se à classificação de significados de baixa a alta intensidade (por exemplo, muito magoada).

Martin e White (2005) exploram o modo como as configurações dos três sub-sistemas de Avaliatividade constroem diferentes posições interpessoais e constroem registros ou 'chaves'. Nessas análises, chamam a atenção para a forma como os mesmos dizeres linguísticos podem, por exemplo, ao mesmo tempo, expressar significados de Atitude e de Graduação; muitas vezes esses elementos podem ser dialogicamente significativos - por exemplo, eles podem ser atribuídos a fontes externas, e, assim, também ser funcionais como recursos de Compromisso.

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2.4 A persuasão

Em termos etimológicos, segundo Abreu (2002), argumentar significa ‘vencer junto com o outro’ (com + vencer) e não ‘contra o outro’. Persuadir é saber gerenciar uma relação, é falar à emoção do outro. A origem dessa palavra está ligada à proposição ‘por’ (por meio de) e a ‘Suada’ (deusa romana da persuasão). Significava ‘fazer algo por meio do auxílio divino’. Convencer é construir algo no campo das ideias: quando convencemos alguém, esse alguém passa a pensar como nós, esse alguém realiza algo que desejamos que ele realize.

A esse respeito, Kitis e Milapides (1997) propõem uma distinção envolvendo a persuasão: a convicção e a sedução seriam processos incluídos numa relação de espécie-para-gênero, no hiper-processo da persuasão. Não é preciso dizer que, para persuadir, as reportagens de notícias e comentários sobre assuntos políticos precisam ser mostradas como verdadeiras e plausíveis através da incorporação de feições persuasivas (VAN DIJK, 1988).

A convicção envolve uma lista de passos argumentativos que – espera-se - deverão ser aceitos pelo leitor. Pelo fato de incluir a ativação e a participação do sistema cognitivo, essa recepção constitui-se num processo cognitivo. Mas, frequentemente, a persuasão cerceia a participação cognitiva do leitor no processo de aceitar a perspectiva do autor e, nesses casos, podemos falar de 'sedução' em vez de convicção. Sornig (1988, p.97, apud KITIS e MILAPIDES,1997, p.560) nota que:

“enquanto os mecanismos de convencimento e de convicção trabalham obviamente ao longo de linhas cognitivo-argumentativas, a sedução, em lugar de se apoiar na verdade e/ou na credibilidade dos argumentos, explora a aparência externa e a aparente confiabilidade daquele que persuade".

Pode-se conjecturar, continuam os autores, que os mecanismos de sedução na relação entre o que persuasor e sua 'vítima' ou 'cúmplice' sejam identificáveis tanto no nível do texto quanto no do sub-texto, i.e., não somente no nível do léxico, estruturas e figuras de linguagem como componentes da estrutura local do texto, mas também no nível de sua coerência geral. Os mecanismos de sedução, portanto, podem ser isolados tanto no nível da coesão quanto no da coerência (entendidos

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como nível de suposições inferidas ou ativadas para tornar coerente o texto). Em outras palavras, não só estamos lidando com escolhas linguísticas feitas no texto, mas também com um tipo de suposição que apoia aspectos da coerência. O que está implícito em tudo isso é a seleção de um certo estilo. Devemos supor que há algo que não varia: "o significado subjacente ou referência deve ser conservado constante" (VAN DIJK, 1988, p. 73). Van Dijk conclui: "O estilo, assim, parece ser capturado pela conhecida frase "dizer a mesma coisa através de diferentes modos" (ibid.: 73).

Dito isso, torna-se imprescindível examinarmos a noção de "dialogismo", noção que, aliada à importância do contexto, terá papel básico para a minha análise de Um grito parado no ar, como já me referi acima no item sobre dialogismo, e que apresento a seguir.

2.5 O dialogismo e suas ramificações

A noção de dialogismo está ligada ao conceito de enunciado, que possui relações com o contexto e com os sujeitos envolvidos. Para entendermos as relações dialógicas, temos, então, de compreender o que é enunciado na acepção bakhtiniana.

O enunciado é a real unidade da comunicação discursiva. Diferentemente da oração, que é a unidade da língua, o enunciado é indissociável ao contexto, sendo seu sentido dependente do momento histórico em que foi produzido e do autor que o produziu. Cada enunciado remete a outro(s), formando um “elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo” (BAKHTIN, 2003, p. 296). Para Bakhtin (2003), “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 297), ou seja, todo enunciado reclama sentidos já postos em circulação, ao mesmo tempo em que aponta para novas possibilidades de sentido. Embora recupere o já-dito, o enunciado sempre cria algo novo e irreprodutível, já que ele está ligado ao contexto histórico e ao autor que o produziu. Com isto, o seguinte título, publicado no início da ditadura militar de 1964, aciona determinadas regiões de sentido,

"MAIS DE TRINTA ASILADOS NAS EMBAIXADAS ATÉ AGORA"

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fazendo falar, dessa forma, sentidos de perseguição política, de descontentamento com o regime nacional, etc.

Se estes mesmos dizeres estivessem em outro contexto, tratando de um país pobre africano, por exemplo, os sentidos seriam outros, como fuga da fome, dos horrores da guerra civil, entre outros, surgindo, assim, um novo enunciado. Mesmo se for dito na mesma época, mas por sujeitos diferentes, o enunciado não seria igual, pois haveria diferenças entre os instantes, as circunstâncias, as entonações e os sujeitos que a proferiu. Esses dizeres, oriundos de uma notícia do jornal Última Hora, publicado em abril de 1964, não teriam a mesma carga de sentidos se fossem ditos por um embaixador a um general, ou de um militante esquerdista para seu grupo. Isso porque o enunciado “sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza, etc.)” (BAKHTIN, 2003, p. 326).

Dessa forma, nenhum enunciado surge solitário e isolado, mas nasce de outro(s) enunciado(s). E quando dois ou mais enunciados são confrontados em um plano de sentido, resultam em relação dialógica.

Essas relações se estabelecem não apenas entre enunciados inteiros, mas também são possíveis em qualquer parte do enunciado, até mesmo em uma palavra, desde que nela se possa ouvir a voz do outro. Igualmente possíveis são as relações dialógicas entre estilos de linguagem, dialetos, entre outros, desde que entendidos como determinadas posições semânticas (MIOTELLO, 2002).

Com isso, o dialogismo pode ser concebido como constitutivo da linguagem, dado que todo dizer possui relações com outros dizeres, resgatando os já ditos e, ao mesmo tempo, embasando o que ainda está por ser dito. Bakhtin afirma que ao “se constituir na atmosfera do ‘já dito’, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim, é todo diálogo vivo” (BAKHTIN, 2002, p. 89).

Dessa forma, no mesmo instante em que constitui o dizer, o caráter dialógico do discurso provoca uma compreensão ativa e responsiva do interlocutor. Aqui, Bakhtin rompe com o conceito de comunicação de apenas uma via de direção, baseado em um emissor (um jornalista, por exemplo) que transmite uma mensagem

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(notícia) ao receptor através de um código linguístico (texto verbal e não-verbal), o que torna o interlocutor (o leitor) um sujeito passivo no processo comunicacional.

Com isto, vimos que o dialogismo envolve, além do caráter constitutivo da linguagem, a compreensão ativa, que aciona os signos do interlocutor que vão ao encontro aos signos do locutor, instigando uma atitude responsiva (de resposta e responsável por seus dizeres) de ambas as partes. Ao produzir um enunciado visando a uma resposta, uma réplica, o locutor constrói uma imagem de seu interlocutor, moldando seu dizer conforme a ideia que o primeiro tem em relação ao segundo. O locutor, ao prever e antecipar a resposta do Outro, permite que o enunciado receba influências, modelando a forma do enunciado de acordo com seu interlocutor. Sobre isso, Bakhtin discorre que, ao

[...] construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.) (BAKHTIN, 2003, p. 302).

Portanto, o enunciado é orientado por uma suposta reação do destinatário, contendo comentários e réplicas conforme a imagem que o locutor tem da resposta de seu interlocutor. Além desse destinatário, entretanto, há uma terceira pessoa, um supradestinatário superior, “a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas” (BAKHTIN, 2006, p. 149), ou mesmo aquele destinatário que se encontra afastado no tempo e no espaço de produção do enunciado.

Trago a seguir a noção de "ambiguidade estratégica", que contribui para entender a construção da alegoria que relaciona as situações de Um grito parado no ar com a situação do Brasil sob a ditadura nos idos de 60.

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2.6 A ambiguidade estratégica

Flottum (2010) afirma que a polifonia4 é uma abordagem útil no sentido de que ela revela tipos diferentes de interação camuflada e assim expõe mensagens implícitas e obscuras. A autora apresenta uma seleção de traços linguísticos que indicam a presença de vozes diferentes em textos formalmente monológicos. A análise ajuda a identificar a natureza da obscuridade no discurso e tornar explícita a complexa relação entre texto e contexto. O uso da língua é constitutiva na maneira como modela identidades, coletividades e instituições.

A autora fala de 'obscuridade criativa', que poderia, segundo ela, ser caracterizado como 'ambiguidade estratégica' (EISENBERG, 1984; LEITCH; DAVENPORT, 2007). De quem são as vozes incluídas numa expressão coletiva? Leitch e Davenport (2007) afirmam que, de acordo com Eisenberg (1984, p. 230), 'há muitas situações nas quais a comunicação ambígua pode ser mais útil do que a comunicação explícita. Eisenberg usa o termo 'ambiguidade estratégica' para caracterizar situações nas quais a língua é 'intencionalmente expressa de maneira ambígua para exercer certas metas organizacionais' (LEITCH; DAVENPORT, 2007, p. 44). Contudo, a ambiguidade estratégica ou obscuridade pode ser considerada como uma estratégia discursiva geral, que van Dijk (1997) define como um modo de atingir metas através do discurso. A obscuridade permite que metas e interpretações diferentes e divergentes possam coexistir.

Segundo Eisenberg (1984), a ambiguidade estratégica pode promover a 'diversidade unificada' (LEITCH; DAVENPORT, 2007, p. 44). Assim, há um elo evidente entre a noção de ambiguidade estratégica e de polifonia linguística, em fenômenos representados nos textos. Com o emprego de diferentes expressões linguísticas, o falante pode apresentar diferentes vozes, ou explicitamente marcadas como sendo distinta de outras, ou ambiguamente tecidas entre si.

A presença de 'múltiplos pontos de vista' é típico de discurso político. Isso pode ser feito dando lugar a outras vozes, com atribuição explícita a fontes distintas 4 O dialogismo não deve ser confundido com polifonia, porque aquele é o princípio dialógico constitutivo da linguagem e esta se caracteriza por vozes polêmicas em um discurso. Há gêneros dialógicos monofônicos (uma voz que domina as outras vozes) e gêneros dialógicos polifônicos (vozes polêmicas). Segundo Brait (2000), o texto irônico é sempre polifônico, mas um artigo de opinião não é polifônico porque há uma voz dominante, não há polêmica. O gênero romance, para Bakhtin (apud BRAIT, 2000), apresenta diferentes vozes sociais que se defrontam, se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto; portanto, é gênero polifônico por natureza.

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ou confusas, ou com indicação implícita por meio de sinais específicos, sem nenhuma clareza quanto à atribuição de fonte. A polifonia explícita é em geral realizada por meio de discurso relatado; o método implícito de dar lugar a outras vozes envolve frequentemente o uso de vários marcadores linguísticos (FLOTTUM, 2010), tais como partículas negativas, conectivos diversos, advérbios epistêmicos, etc. Essas vozes podem ser rejeitadas ou aceitas de vários modos, e elas são usadas em um conjunto complexo de estratégias de controvérsia e estratégias de persuasão, com elementos claros de ambiguidade estratégica e orientação de consenso.

Em qualquer texto, haverá traços explícitos ou implícitos de diferentes vozes. O que não é diretamente expresso no texto, embora implicitamente presente por meio de diferentes marcadores linguísticos, é importante para a interpretação do texto como um todo. A identificação desses marcadores pode também tornar o analista sensível a fatores contextuais relevantes, e assim ser um bom ponto inicial para uma análise sócio-política mais ampla de um texto. A abordagem polifônica pode revelar algumas das interações sutis que acontecem por meio de vozes e argumentos implícitos. De fato, o conceito de vozes constitui um ponto de convergência metodológica, e é um instrumento analítico útil para captar a natureza dialógica da linguagem.

Elementos de diferentes níveis da descrição linguística contribuem para a estrutura polifônica de um enunciado: pronomes, conectivos, orações adverbiais, negação, pressuposição, estrutura informacional, discurso relatado e outros. Quando a estrutura polifônica é identificada no nível micro-linguístico abstrato, ele dá instruções referentes a possíveis interpretações do enunciado relacionado ao contexto discursivo, o que permite falar em diferentes configurações polifônicas. A identificação de configurações polifônicas corresponde ao nível analítico no qual a análise abstrata se relaciona com o mundo real e o contexto extra-linguístico; este é o nível de análise em que o analista verifica as possibilidades de ligar a voz abstrata atestada linguisticamente à pessoa ou ao grupo de pessoas reais.

O estudo das expressões polifônicas e a configuração criada por essas expressões contribui para a identificação do 'self' visível e um ou mais 'outros' visíveis do texto. Ele ajuda a esclarecer as complexas sequências multi-vozeadas com posições explícitas ou implícitas, o eu e os outros, manifestadas explicitamente

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na presença dos indivíduos citados ou nomeados ou implicitamente com marcadores polifônicos linguísticos como a negação, orações adverbiais e conectivos.

Dito isso, posso agora tratar da Linguística Crítica (FOWLER, 1991) já que esse tipo de análise, que

está interessada no questionamento das relações entre signo, significado e o contexto sócio-histórico que governam a estrutura semiótica do discurso, usando um tipo de análise linguística. Ela procura, estudando detalhes da estrutura linguística à luz da situação social e histórica de um texto, trazer, para o nível da consciência, os padrões de crenças e valores codificados na língua – que estão subjacentes à notícia e que são invisíveis para quem aceita o discurso como algo “natural” (FOWLER, 1991, p. 67).

2.7 A Linguística Crítica

A tentativa de Fairclough (1992) de reunir a análise linguística e a teoria social está centrada numa combinação desse sentido mais socioteórico de 'discurso' com o sentido de 'texto e interação' na análise de discurso orientada linguisticamente. Esse conceito de discurso e análise do discurso é tridimensional, ou seja, qualquer 'evento' discursivo é considerado simultaneamente como um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. A dimensão do 'texto' cuida da análise linguística de textos; a dimensão da 'prática discursiva', como 'interação', na concepção 'texto e interação' de discurso, especifica a natureza dos processos de produção e interpretação textual; a dimensão de 'prática social' cuida de questões de interesse na análise social.

Para que um método e uma análise do discurso seja útil teria de preencher algumas condições mínimas, segundo Fairclough. (1) seria necessário um método para análise multidimensional; (2) seria necessário um método de análise multifuncional, tal como a teoria sistêmica da linguagem (HALLIDAY, 1994, 2004) que considera que os textos simultaneamente representam a realidade, ordenam as relações sociais e estabelecem identidades; (3) seria necessário um método de análise histórica, focalizando a constituição a longo prazo de 'ordens de discurso' (isto é, configurações totais de práticas discursivas em uma sociedade; (4) seria

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necessário um método crítico. 'Crítico' implica mostrar conexões e causas que estão ocultas; implica também intervenção - por exemplo, fornecendo recursos por meio da mudança para aqueles que possam encontrar-se em desvantagem.

Segundo Caldas-Coulthard (1996), embora Bakhtin/Voloshinov em publicação de 1994 tenha estabelecido no início do século XX os princípios para uma análise crítica, e Firth (1935) tenha sugerido que a língua é não só um modo de uma pessoa se comportar, mas também de fazer os outros se comportarem, foi somente nos anos oitenta que a orientação crítica começou a se impor.

A abordagem crítica inclui a Linguística Crítica, de Fowler et al. (1979, 1991), o trabalho de Fairclough sobre linguagem e poder (1989, 1992a, 1992b), a abordagem da análise do discurso desenvolvida por Pêcheux (1982), estudos culturais desenvolvidos mais recentemente e os trabalhos sobre linguagem e gênero social (CAMERON, 1985, 1990; CALDAS-COUTHARD e COUTHARD, 1996; entre outros).

A Linguística Crítica, uma das correntes formadoras da Análise Crítica do Discurso, é uma abordagem que foi desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia, Inglaterra, na década de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS e HODGE, 1979). Segundo Fairclough (1992a, p. 46): “Eles tentaram casar um método de análise linguística e textual com uma teoria social da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à teoria linguística funcionalista associada a Michael Halliday (1978, 1985) e conhecida como ‘linguística sistêmica’".

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Metodologia 46

3 METODOLOGIA

3.1 Dados

Um Grito Parado no Ar, uma das principais obras de Guarnieri, se não a mais importante, foi escrita em 1973. Essa peça de um ato, que se estende por quarenta e quatro páginas, relata a história de um diretor (Augusto) e cinco atores (Euzébio, Fernando, Amanda, Flora e Nara) que ensaiam uma peça a dez dias da estreia.

Na metalinguagem da peça – uma peça teatral que descreve os percalços de uma companhia de teatro – podemos analisar o enredo em camadas, segundo Monteiro (2007).

Em primeiro plano, deparamo-nos com o elenco, essa companhia teatral que se preocupa apenas com os problemas individuais e superficiais em primeira instância, como o pagamento ou mesmo uma posição superior ou inferior perante o grupo.

Em segundo plano, os atores da ficção encenam personagens através dos laboratórios e exercícios de improvisação – são as personagens das personagens. Assim conhecemos fragmentos da peça a ser montada, mas nunca, todo o enredo.

Em terceiro plano, os exercícios de improvisação são impulsionados por entrevistas realizadas nas ruas. Essas entrevistas, com as pessoas do povo, não são transcritas no texto, não fazem parte integrante do texto escrito, mas apenas sugeridas pelo autor, o que faz com que a peça seja única a cada vez encenada. Assim, Guarnieri recorria ao dialogismo, para denunciar, por meio da voz do povo. Veja, a seguir, as rubricas feitas por Guarnieri o que evidenciam a natureza de entrevistas:

Fernando – Tá bom… Manda ele… Olha, vai sem tijolinho mesmo… (liga o gravador, ouve-se

entrevista real com pedreiro falando sobre a cidade e suas condições de vida… Enquanto ele fala, Nara e Augusto fazem uma verdadeira dança comentando o que ouvem. Flora ajeita refletores sobre eles…)

Augusto – (ao final da entrevista) Este cara é um sarro!... Vidão que ele leva!... Sorte que tem o poder de adaptação, não é… Senão não dava!... (Cospe no chão repetidas vezes)

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Metodologia 47

Fernando – Augusto, ele te dá algum elemento para o teu personagem?

Augusto – Ora, porra. Ele é o personagem!... Põe aí no programa… Um Grito Parado no Ar Justino, pontinhos, o nome do distinto aí… Como é o nome dele…

Fernando – É… (diz o nome real do entrevistado.)

Augusto – Pois então… Só me resta pegar meu boné e ir embora…

Fernando – Nada… Você vai fazer o personagem baseando-se nesse cara e nos outros que vêm aí… Só isso não basta… Vai ter muito de teu nessa personagem que você vai fazer… Esse Justino é o Justino real… pequeno e sumido no meio de muitos Justinos… O teu vai ser um Justino…

Uma vez que o terceiro plano, justamente por essa característica, criativa e

transitória, depende do contexto de cada apresentação da peça, decidi-me a deixar essa parte para outro trabalho, concentrando-me, na presente pesquisa, nos dois primeiro planos fixos.

3.2 Procedimentos de Análise

Tendo em vista as perguntas de pesquisa: (a) Como é construída essa alegoria em Um grito parado no ar? (b) Quais são as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo autor para essa construção? apresento os passos que foram seguidos na análise. Mas, antes, tenhamos em vista algumas considerações, que julgo serem necessárias para o entendimento da análise que aqui será feita.

A língua é um sistema de signos que não pode mais ser vista como um sistema autônomo de signos, regras e estruturas. Esse tipo de visão não leva em conta o fato que seus usuários não possam manipulá-la para controlar as circunstâncias e relações, desconsidera as dimensões sociais e ideológicas da língua (HODGE; KRESS, 1988, p.2). Assim, a língua está inserida em estruturas e processos sociais, políticas e ideológicas, ficando tanto na dependência delas quanto constituir, ela mesma, determinados contextos (EGGINS, 1994).

A visão de discurso e de análise do discurso que, então, adoto aqui está em consonância com a de Hodge e Kress (1988), Fairclough (1989), Thompson (1984; ou Lacrau (1988). O que Lacrau diz, a seguir, sobre a palavra 'mulher',

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ajuda a entender o processo de construção de vários significados para uma mesma palavra, dependendo do contexto em que for pronunciada. Diz Lacrau:

Considere o significado de 'mulher': qual é o seu significado? Tomada isoladamente, esta palavra não possui significado; ela precisa entrar em uma relação discursiva para adquirir um significado. De um lado 'mulher' pode entrar em uma relação de equivalência com família: subordinada ao homem, etc; por outro, 'mulher' pode entrar na relação discursiva de 'opressão', de 'negro', de 'gay', etc. O significado de 'mulher' por si não possui significado. (254)

Para Kitis e Milapides (1997):

Meanings are not frozen entities, but are generated and regenerated as they are immersed in the processes and structures constituting them, on the one hand, but also being

constituted by them, on the other. 5

Dito isso, explico alguns conceitos básicos que guiarão os passos que compõem a minha análise de Um grito parado no ar.

(a) A representação da realidade Não há representação neutra da realidade (FOWLER, 1987, p. 67). Na

análise da peça teatral devemos focar nossa atenção no modo como a língua representa o mundo na peça, fato que gerará certos efeitos ideológicos. Por outro lado, não se pode escapar de compreender a realidade no mundo senão através da língua, pois a realidade é estruturada e reconstruída por meio dela.

Essa parte será feita com apoio da transitividade, da metafunção ideacional, da GSF, seguindo os passos de Kitis e Milapides (1997) e de Li (2010). Também serão considerados os papéis sociais (THOMPSON; THETELA, 1995), em especial os papéis projetados de nomeação e de atribuição. Com a análise da transitividade da peça, dou o primeiro passo em

5 Significados não são entidades congeladas, mas são geradas ou regeneradas assim como estão imersos nos processos e estruturas que os constituem, por um lado, mas também por serem constituídos por estes, por outro.

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direção de uma das partes constitutivas dessa alegoria que domina a peça e contribui para atribuir coerência ao texto.

Faço aqui, então, um exame "detido", nos termos de Kitis e Milapides, e para tanto recorro à noção de transitividade, da metafunção ideacional, da Gramática Sistêmico-Funcional. Estou interessada nas estruturas linguísticas como instrumentos de representação de certo tipo de realidade e, assim, como possíveis instrumentos de controle indiretos de percepção da 'realidade' e articulação da ideologia, o que faz necessário focar a atenção para o conteúdo semântico dessas estruturas.

Passo a analisar as várias expressões que mostram a difícil situação em que os atores - ou o povo brasileiro - se encontram, como: "Amanda arrasta-se como 'bicho'"ou "Não enche, Amanda" (p.199); "Já não bastam as dificuldades" (p.199); "Uma bosta de quatrocentos contos!" (p.195); "Diz que não protestam as promissórias pra não prejudicar ninguém. Mas querem os aparelhos de volta" (p.194); "disse que o senhor não pagou. Chamou o senhor de Ruth. .. Está fazendo um escarcéu lá em cima ... " (p. 197).

Por outro lado, as personagens que impedem a voz de dar o grito são caracterizados os credores, impacientes, cobradores impiedosos, como em: "Os homens vieram para levar tudo... Queriam levar hoje mesmo." (p. 194); "É da agên-cia. .. Diz que sem tutu não dá pra sair nenhum tijolinho no jornal. .." (p. 201); "Nem descarregaram. .. Pagamento à vista. Levaram de volta! ..." (p. 199); "Diz que a conta já esta muito alta (p. 201)".

Para os propósitos da minha análise, incluo todos os processos na análise, mas discuto apenas dois: material e relacional, pois julgo que esses processos bastam para o exame da alegoria construída no texto: o primeiro que envolve os papéis atribuídos (THOMPSON; THETELA, 1995) e que caracterizam os personagens como Ator ou Meta (HALLIDAY, 1994) e os processos relacionais que descrevem os personagens e as situações que os cercam. Com referência aos papéis projetados, falante pode nomear o ouvinte (você, moleque, alteza etc.), além de atribuir a ele uma função na oração (Ator, Portador, Meta etc.).

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(b) A avaliação da realidade Sabe-se que há diferenças entre uma linguagem neutra e outra saturada

emocionalmente, que apela mais para nossas emoções do que para a nossa cognição. Esta questão está ligada primordialmente às nossas escolhas linguísticas, representando eventos, processos e estados, e que, sabe-se hoje, são significativas do ponto de vista da ideologia. Assim, alguns aspectos da linguagem ajudam a mediar e construir um tipo específico de universo (DOWNING, 2003).

Esta parte terá o apoio da teoria da Avaliatividade (MARTIN, 2000), que ampliou o alcance da metafunção interpessoal, de Halliday (2004). A Avaliatividade tanto explícita, quanto implícita que incide nos participantes e situações de Um grito parado no ar constitui outro passo da construção da alegoria. Esta parte envolverá considerações sobre: persuasão, dialogismo, ambiguidade estratégica.

O que chama a atenção na peça é, também, o uso abundante de léxico e estruturas gramaticais que, gradual, mas consistentemente, imiscuem-se na construção da alegoria da peça. Nessa alegoria, as circunstâncias que cercam o elenco da peça são na maioria das vezes, em especial no início, negativas para o elenco. A escolha lexical, segundo van Dijk (1988, p. 177), é um eminente aspecto do discurso em que se escondem opiniões ou ideologias. A peça é chamada de 'merda'; Euzébio é 'escravo', 'servil', 'ralé', 'inculto', 'bicha'; os atores em geral de 'borra', 'vadios', 'irresponsáveis' (p.193).

(c) A alegoria Os aspectos estruturais, além de construir uma certa versão da realidade

(com os concomitantes efeitos ideológicos), são considerados aqui como agentes da transformação discreta de um estilo em outro ao alimentar a construção da alegoria no texto.

Essa alegoria assegura a compreensão do texto dentro de uma certa perspectiva ideológica. Essa perspectiva é construída por analogia, i.e., pelas

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relações intertextuais entre a alegoria construída, de um lado, e pelas interpretações analógicas (em termos de convenções, mitos e paradigmas), de outro.

A construção dessa alegoria é, além disso, formada por 'minialegorias' (em geral manifestadas nos níveis semânticos e sintáticos), peças de um mesmo quebra-cabeça. Assim, analiso as estruturas e formações (léxico-gramaticais) implicadas no procedimento.

Mais especificamente, trato primeiramente dos aspectos da estrutura nos níveis sintático-semânticos. Trato também da análise de itens no nível da pragmática, da retórica e da intertextualidade textuais, na medida em que esses elementos proporcionam um estilo colorido à argumentação.

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4 A ANÁLISE CRÍTICA DE UM GRITO PARADO NO AR

A análise inicia-se com a descrição da perspectiva histórica da peça e o título da peça, que é, a meu ver, o único espaço em que se pode entrever a verdadeira intenção de Guarnieri ao escrever a peça. É ele que proporciona coerência à alegoria que efetiva a crypto-argumentação que subjaz à peça. A seguir, passo a analisar sob os critérios acima: (i) a representação da realidade; (ii) a avaliação da realidade; (iii) a alegoria, os trechos que selecionei como sendo os mais adequados para examinar a alegoria, já que não seria necessário para o propósito desta pesquisa o exame de toda a peça.

Esses trechos mostram as dificuldades que o grupo teatral enfrenta para encenar a peça - daí o grito parado no ar -, e são as seguintes: (a) situação financeira precária; (b) esforço insuficiente dos atores, alienação; (c) relações pessoais problemáticas; e (d) montagem da própria peça. A análise de cada uma dessas situações mostra o paralelo entre elas e as situações vividas pelo povo brasileiro sob a ditadura, que, igualmente, impedem a voz da denúncia de se elevar no ar, criando assim a alegoria que responde pela crypto-argumentação da peça.

Inicio, portanto, com a perspectiva histórica da peça, seguida da análise do título: Um grito parado no ar.

4.1 A perspectiva histórica de Um grito parado no ar

Segundo Décio de Almeida Prado (2001), Um grito parado no ar retrata bem o beco sem saída em que o teatro estava se metendo, em parte por sua culpa. Que o texto não faça menção alguma à censura é a prova mais cabal do poder que ela detinha. Mas já o título com a sugestão de um protesto que não deixa chegar a seu termo, paralisando em pleno voo, predispunha o espectador a enquadrar os fatos na moldura que ficava apenas subentendida. O que se via no palco eram seis atores, três homens e três mulheres, que ensaiavam, a dez dias da estreia, uma peça que nunca chegamos a conhecer. As pressões de fora interrompem a todo momento esses exercícios preparatórios. São credores que retiram, aos poucos, como numa

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peça do absurdo, os próprios elementos sobre os quais deveria erguer-se a representação.

À medida que o palco se esvazia, perdendo o gravador, o tapete em cena, os fusíveis - símbolo das condições econômicas em que no mais das vezes trabalha o nosso teatro -, cresce a determinação do responsável pelo espetáculo de levá-lo a cabo a qualquer custo e no dia marcado. Não são menores as pressões vindas de dentro, desde a tentação de simplificar o desempenho, de tudo resolver em termos de sim e não, evitando a complexidade inerente ao real, até a crença, espalhada por alguns entre os mais influentes, de que o teatro morreu, as palavras não têm significação e nada há a dizer sobre o mundo.

Contra esse insidioso adversário interno, no qual não custa reconhecer alguns dos principais modismos correntes nos anos 70, levanta-se Fernando, empresário pela força das circunstâncias e encenador por vocação, que resiste heroicamente a todas as ameaças que pesam sobre o teatro, enquanto instituição artística e enquanto confiança depositada no homem. Ele se propõe a fazer:

um espetáculo que tenha gente falando e que se entenda o que estão dizendo”. Se nos oprimem, se tentam nos aniquilar, que ao menos facilitemos a tarefa ao inimigo, através de solipsismos ou da atração secreta pelo suicídio (uma das presenças na peça). “O amor ao teatro” – adverte Fernando – “não se confunde com a necrofilia" (PEIXOTO, 2009, p.200).

4.2 O título: Um grito parado no ar

O título não é apenas um chamariz, mas é um macrocomponente, i.e., uma categoria do padrão geral de organização, segundo van Dijk (1988, p. 27). Os títulos expressam e sinalizam os tópicos dos textos, funcionando como sumários. Esses tópicos pertencem ao nível macro, global da descrição do discurso e o autor usa a noção teórica de "macroestrutura semântica" para descrevê-los e, em geral, esses tópicos consistem de proposições.

No caso de Um grito parado no ar, o título topical da peça consiste em uma declaração, em que se pode supor a omissão de um processo relacional (ser): 'Um grito está parado no ar', expresso de maneira monoglóssica, sem

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negociação. As estruturas relacionais estabelecem relações entre nomes e atributos e assim estão na base do sistema classificatório de uma língua, dizem Kitis e Milapides. No caso em discussão, o que importa é notar que, sendo uma estrutura relacional em que o Portador do atributo é 'uma voz', não há a menção de um Ator, responsável pela situação.

Esse fato pode suscitar as perguntas: Por que estaria o grito parado no ar? por que não continua sua trajetória? quem o faz parar? e de quem é essa voz, indeterminada pelo artigo indefinido 'um'? Vemos, assim, que o título dá margem a várias perguntas, que não poderão ser respondidas ao menos de maneira explícita, pois a voz está impedida de dar seu grito. Então as respostas virão disfarçadas, na peça, com o uso de situações que não citem os personagens que integraram a época da ditadura que foi imposta ao povo brasileiro.

O título, incluindo 'um grito que é impedido de gritar', traz um frame (MINSKY, 1975) - uma representação mental do nosso conhecimento de mundo -(BEDNAREK, 2005), de opressão, ativando em nosso conhecimento certas expectativas referentes ao léxico do texto vindouro. Como dizem Luchjenbroers e Aldridge (2007): os frames de referência associados a cada escolha lexical derivam componentes adicionais de significados, i.e., cada escolha desencadeia uma rede ampla de associações prototipicamente presentes no uso do termo escolhido.

Esse frame de opressão envolve o opressor e o oprimido, conduzindo a audiência a tomar parte do mais fraco, traço, em geral, existente em nossa cultura. A Linguística crítica não pode deixar de notar que esse fato faz conseguir a adesão que a peça e seu autor desejam do povo brasileiro contra os militares no poder. Por outro lado, inicia-se, aqui, a construção da alegoria dominante. A alegoria opera aqui substituindo o governo ditatorial e o povo brasileiro, pelo diretor da peça e seus atores, respectivamente.

Dito isso, passo a analisar quatro situações que correspondem a quatro minialegorias selecionadas, que constroem a alegoria dominante da peça. Iniciamos analisando o trecho que mostra a situação financeira para, depois passar a outras questões que afligem o grupo, e tornam-se empecilhos para a realização de Um grito parado no ar. A análise para cada minialegoria constará

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de três partes: (i) transitividade/papéis sociais; (ii) Avaliatividade/recursos retóricos; e (iii) a construção da alegoria.

4.3 A primeira minialegoria: A dificuldade financeira como impedimento da

encenação da peça

4.3.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais

A análise da transitividade pode esclarecer os tipos de processos que constroem o texto da peça, além dos participantes e circunstâncias que a eles estão relacionados. Assim, é possível verificar o modo como Guarnieri caracteriza atores e situações na sua tentativa de levar ao público, através da peça, a sua preocupação com o estado vigente no Brasil dos idos de 70.

Os papéis projetados serão indicados, por exemplo, assim: nomeação/Ator (envolvendo o papel e de nomeação e de atribuição).

Selecionei as três primeiras páginas da peça (da página 193 a 195) tal como está no livro em que se encontra inserido). Sublinho os trechos (em tipo 10) que serão analisados via sistema da transitividade. Para o entendimento do trecho analisado, incluo o seu co-texto (em tipo 8). AUGUSTO

Como é, poxa! Ninguém aí! . .. Vamo trabalhá, ora porra! Vamos começar essa merda!. .. (Bate palmas chamando.) Como é que é, ninguém aí? .. Somos profissionais! Pro-fis-sio-nais! Mais de meia hora de atraso, porra. Ensaio de merda! (Chama.) Euzébio! ... Euzébio! ... Até tu, Euzébio? .. Escravo. Servil! Ralé! Inculto! Bicha! Até tu não estás no posto ... Ora, porra! Profissionais de borra!. .. Eu disse borra, ora porra! ... Vadios! ... Irresponsáveis! (...) Ah, teatro! Teatro! ... Teatro! ... Fazer teatro é sofrer num paraíso ... Mas se não fazê-lo como sabê-lo, ora porra!

EUZÉBIO Ô matusca!...Falando sozinho? AUGUSTO

Veja lá como fala comigo, lacaio... Matusca é a digníssima progenitora que teve o mau gosto de pôr no mundo esse excremento circense que você é...Euzébio!...Euzébio!...do meu coração...que belo rabão!... Zangadão?... Qual é a questão?

EUZÉBIO Não enche, não, vá, Augusto.... AUGUSTO Qual é o grilo, ora porra? EUZÉBIO Não é da tua conta...Estuda o texto, vai!... AUGUSTO Sem essa... Nunca te vi assim... Diz lá... EUZÉBIO Os homem aí... AUGUSTO Estás com dificuldade com algum homem? EUZÉBIO Chi, rapaz... Você tá sempre a cento e oitenta... Vê se relaxa!...

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A análise crítica de um grito parado no ar 56

AUGUSTO Se relaxo, vem alguém e me come. Diz lá. Conta pro titio o que aconteceu... EUZÉBIO

Aconteceu que já estou cheio. Tudo sempre em cima de mim... Vocês ficam tudo nas altas esferas, discutindo, laboratório e o esquimbau... E eu aguentando os home...

AUGUSTO Querido, o que é de gosto regalo da vida!

EUZÉBIO Vai gozando ... vai gozando! ... Se o moço aí não toma uma providência urgente... não tem estréia... Os homens vieram para levar tudo... Queriam levar hoje mesmo. Tirei a gravador da mão deles. .. Usei de muita lábia. .. Se não, tchau!

AUGUSTO Estão devendo muito?

EUZÉBIO Estou te dizendo. Estão devendo tudo. Deram a entrada e nada mais. Os homens estão loucos, rapaz ... Diz que não protestam as promissórias pra não prejudicar ninguém. Mas querem os aparelhos de volta. .. De camaradagem, hein ...

AUGUSTO E não deixa de ser, convenhamos... Ora porra... E agora... EUZÉBIO E agora, sei lá... AUGUSTO O gênio, aí, não se explica?... EUZÉBIO Não...Aquele jeitão dele...”Calma, tudo se resolve...Subvenção...Vai entrá dinheiro...” O mesmo blá! AUGUSTO Quer dizer o gênio perpassa calmamente pela tormenta...E o meu será que vem? EUZÉBIO E eu vou lá saber?! AUGUSTO Sem essa, viu ... o meu eu quero! Mas quero mesmo ... Uma bosta de quatrocentos contos!. .. Será que não tem quatrocentos contos pra me pagá? Quatrocentos. .. Mete um tiro na cabeça, poxa... Quem não tem quatrocentos contos pra pagar um infeliz ator pro-fis-sional... está morto... morto! EUZÉBIO Cuidado, eles já estavam vindo pra cá! AUGUSTO Agora, pra gastá em cachaça no boteco o gênio tem... EUZÉBIO Uísque... AUGUSTO

Uísque? Ah, então está escondendo o leite... Saiu a subvenção... Só pode ser... E tomando uísque no bar não vai pagar os meus quatrocentos contos? Ah, vai sim senhor... Vai ou quebro essa merda todinha...Quebro mesmo...Quatrocentos contos, pô... Não é nem salário de fome... É salário de defunto... Eu só queria saber qual foi o grandessíssimo filho de uma puta que

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A análise crítica de um grito parado no ar 57

inventou esse negócio de pagar só 50% nos ensaios... Viado eu sei que é... Agora quem? Qual o nome do financista... do salvador!... 50%! Filhos da puta!... Vai me pagá e é hoje!...

FERNANDO Oi, Augusto, você já está aí... AUGUSTO Oi, como é que vai? FERNANDO Trabalhando que nem um danado, bicho! ... Dormi só duas horas ...Não atrasei muito, não, não é? AUGUSTO Que o que ... Cheguei agorinha também ... (Fazendo carinhos em Amanda.) Amandinha do meu coração, melhorou ... (Dá um beijo em Flora.) AMANDA Que nada, tomei a farmácia inteira, mil injeções e nada. .. Ó, como é que estou rouca, ó, ó ... FERNANDO É bom poupar a voz, viu, Amanda! AMANDA Poupar o que, não tenho mais ... Ó,ó ... Hum! ... Mini! ... Mini!

Os trechos, em especial os sublinhados, mostram a parca situação financeira do grupo, o que prejudica a realização da peça.

EUZÉBIO Os participantes dos processos

(1) Vai gozando ... vai gozando! ... verbal verbal

(2) Se o moço aí não toma uma providência urgente... nomeação/Ator material (=providenciar)

Fernando: Ator ( porém em situação desfavorável)

(3) não tem estreia... existencial

(4) Os homens vieram para levar tudo... nomeação/Ator material material

Os homens: Ator Os homens: Ator

(5) Queriam levar hoje mesmo. material Os homens: Ator

(6) Tirei a gravador da mão deles. material

Euzébio: Ator (em situação humilante)

(7) Usei de muita lábia. .. Se não, tchau! (= expliquei) verbal

AUGUSTO

(8) Estão devendo muito? Material

O processo é material (os cobradores cobram), mas o elenco, como resultado disso, é Meta.

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A análise crítica de um grito parado no ar 58

EUZÉBIO (9) Estou te dizendo. Estão devendo tudo. verbal material O elenco: Meta

(10) Deram a entrada e (não deram) nada mais. material material

O elenco: Ator O elenco: Ator (mas em situação negativa)

(11) Os homens estão loucos, rapaz ... nomeação/Portador relacional Os homens: Portador

(12) Diz que não protestam as promissórias pra não prejudicar verbal material material

ninguém.

Os homens: Ator Os homens: Ator (Meta: o elenco)

(13) Mas querem os aparelhos de volta. De camaradagem, hein ... (tomar de volta) material

Os homens: Ator

AUGUSTO

(14) Sem essa, viu ... o meu eu quero! mental mental

(15) Mas quero mesmo ... Uma bosta de quatrocentos contos! mental

(16) Será que não tem quatrocentos contos pra me pagá? relacional material

Fernando: Portador (em situação negativa) Augusto – Meta

(17) Quatrocentos. Mete um tiro na cabeça, poxa... material

Fernando – Ator

(18) Quem não tem quatrocentos contos relacional Fernando – Portador

(19) pra pagar um infeliz ator pro-fis-sional... material nomeação/Meta Augusto – Meta

(20) está morto... morto! existencial

AUGUSTO (21) Vai ou quebro essa merda todinha...Quebro mesmo... material material

Augusto: Ator Augusto: Ator

(22) Quatrocentos contos, pô... Não é nem salário de fome... Relacional

Quatrocentos contos: Portador Salário de fome: Atributo

(23) É salário de defunto... relacional

Quatrocentos contos: Portador Salário de defunto: Atributo

(23) Eu só queria saber qual foi o grandessíssimo filho de uma puta mental relacional nomeação/Atributo

Fernando: Portador Atributo: Grandessíssimo filho de uma puta.

(24) que inventou esse negócio de pagar só 50% nos ensaios... material material Fernando: Ator

(25) Viado eu sei que é... Agora quem? Mental Relacional

Fernando : Portador Atributo: Viado

(26) Qual o nome do financista... do salvador!... 50%! Nomeação/Identificado nome/Identif.

(27) Filhos da puta!... Vai me pagá e é hoje!... nomeação/Portador material material NOTA: O “é”, em “é hoje”, é um verbo vicário, ou seja, substitui “pagar”.

Fernando – Ator, Portador de “filhos da Puta” (inclui a mulher dele)

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A análise crítica de um grito parado no ar 59

DISCUSSÃO

Os trechos em foco tratam do diálogo entre Euzébio (contrarregra do grupo) e Augusto (protagonista do elenco) diante da situação de dívida financeira em que o grupo teatral se encontra, e a exigência dos cobradores da respectiva quitação. A análise da transitividade, referente aos processos material e relacional revela a seguinte situação, considerando os homens - os cobradores da dívida - e os atores.

Os homens

Vejamos como os cobradores, nomeados de 'homens' estão representados no sistema da transitividade:

(em 4,5) os "homens", assim nomeados, surgem como Atores, quando vêm para levar o material cujo pagamento estava atrasado e são, assim, os donos da situação.

(em 12 e 13), os homens, novamente Atores, prometem sustar o protesto dos títulos atrasados, situação que afinal em nada engrandece o elenco da peça, que se coloca como Meta do processo “'prejudicar' ninguém". Mas querem a devolução do gravador (13), e em estão loucos, sendo eles Portadores, no processo relacional (11).

Os atores

Notemos que também os membros do elenco caracterizam-se como Atores de processos materiais, mas em geral, em situação em que involuntariamente, são obrigados a assumir esse papel:

(em 6): quando Euzébio tira o gravador das mãos dos cobradores, em situação de fragrante inferioridade na interação;

(em 8 e 9): creio que quem "deve" é Meta, decorrente do processo material "cobrar": alguém cobra [Ator] e nesse processo, outrem "deve" [Meta];

(em 10): o elenco é Ator do processo material "deram" a entrada, mas logo a situação se torna negativa, mas "não deram mais nada";

(em 19): Augusto é Meta do processo material "pagar".

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(de 21): Augusto é Ator em situação de desespero, e, além disso, apenas ameaça.

(em 2): Fernando, nomeado, 'o moço aí', é chamado a atenção para "tomar uma providência urgente";

(em 16 e 18): Fernando é Portador em situação negativa, já que "não tem o dinheiro para pagar os serviços de Augusto, nomeado, 'um infeliz ator profissional';

(em 17): Fernando também é Ator, pois como não possui o dinheiro pra pagar os serviços, o personagem Augusto sugere que ele meta um tiro na cabeça.

(de 22, 23 e 24): Fernando, Portador de 'grandessíssimo filho de uma puta', pode estar representando o poder público, que por negar a verba necessária para a encenação da peça, impede o grito de protesto de sair do peito do brasileiro.

(em 27): Fernando é Ator, mas de mau pagador. Além disso, é Portador de "filhos da puta".

O que a análise da transitividade mostra é a desigualdade - no caso,

financeira - entre os cobradores e os atores da peça: (i) os cobradores exigem o que o grupo teatral não possui, ameaçando levar o material não pago e, com isso, impedindo a encenação da peça; e (ii) os atores, vítimas da falta de recursos fica nas mãos dos 'algozes'. Evidentemente, essa situação de inadimplência é uma barreira para a realização da peça.

Notemos que a análise superficial da transitividade resulta na atribuição do papel de Atores, tanto aos cobradores, quanto ao elenco da peça. Os cobradores são Atores porque "fazem" (HALLIDAY, 1994) algo. Já no caso do elenco da peça, pode-se notar, por meio de uma "leitura detida" (KITIS; MILAPIDES, 1997), que os membros do elenco, embora Atores (porque fazem alguma ação), assim o fazem em situação humilhante ou como Metas, decorrentes de um processo material. Notemos também que esses algozes - cobradores e promotores da peça - são assim caracterizados, pois atuam no papel projetado de Atores, donos da situação, ou Portadores, de papel de nomeação em termos pejorativos de Julgamento negativo de força aumentada.

Vejo aqui uma minialegoria, que remete à situação do País: os mandantes a serviço da ditadura que, impedindo a livre expressão da arte, impede a voz do povo

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A análise crítica de um grito parado no ar 61

de se elevar no ar e denunciar as injustiças cometidas na época. Assim, o elenco de Um grito parado no ar, por falta de subvenção, por não poder exercer sua profissão, está em situação de penúria financeira, está de mãos atadas, assim como o povo brasileiro.

4.3.2 Avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos

Voltamos a analisar os mesmos trechos examinados acima, agora sob o enfoque da Avaliatividade (MARTIN, 2000) e dos papéis sociais (THOMPSON; THETELA, 1995). Como vimos, a Avaliatividade mostra o posicionamento do falante em relação ao conteúdo da mensagem, bem como em relação ao interlocutor, em termos de Afeto (questão de bem/mal estar), Apreciação (questão estética), Avaliação Social (um item da Apreciação) e Julgamento (questão ética), que podem ser enunciados de maneira monoglóssica (sem negociação) ou de maneira heteroglóssica (levando em conta as necessidades do interlocutor). Além disso, a Avaliatividade pode ser graduada para mais ou menos intensidade, e se apresentar de maneira explícita ou implícita.

Indico com (+) e com (-), as Avaliatividades positiva e negativa, respectivamente; quanto à Graduação da Avaliatividade, indico com setas: ou para maior ou menor intensidade respectivamente.

EUZÉBIO

(1) Vai gozando ... vai gozando! ... (2) Se o moço aí não toma uma providência Julgamento (-) Julgamento (-) Julgamento (-)

(3) urgente... não tem estréia... (4) Os homens vieram para levar tudo... Graduação Avaliação Social (-) Julgamento (-)

(5) Queriam levar hoje mesmo. (6) Tirei a gravador da mão deles. Julgamento (-) Graduação Julgamento (+), [mas Julgamento (-) considerado o contexto]

(7) Usei de muita lábia. .. Se não, tchau! Julgamento (+) Julgamento (-)

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A análise crítica de um grito parado no ar 62

EUZÉBIO

(8) Estou te dizendo. Estão devendo tudo. (9) Deram a entrada e nada mais. Julgamento (-) Graduação Julgamento (+) Julgamento (-)

(10) Os homens estão loucos, rapaz ... (11) Diz que não protestam as promissórias Julgamento (-) Julgamento (+)

pra não prejudicar ninguém. (12) Mas querem os aparelhos de volta. Julgamento(+) Julgamento (-)

De camaradagem, hein ... Julgamento (+), [mas Julgamento (-) considerado o contexto]

AUGUSTO

(13) Sem essa, viu ... o meu eu quero! (14) Mas quero mesmo ... Uma bosta de Apreciação (-)

Quatrocentos contos! (14) Mas quero mesmo ... Uma bosta de quatrocentos contos! Apreciação (-)

(15) Será que não tem quatrocentos contos pra me pagá? Quatrocentos. Julgamento (-)

(16) Mete um tiro na cabeça, poxa... (17) Quem não tem quatrocentos contos Julgamento (-) Julgamento (-)

(18) pra pagar um infeliz ator pro-fis-sional... (19) está morto... morto! Julgamento(-) Julgamento (+) Julgamento (-)

AUGUSTO

(20) Vai ou quebro essa merda todinha...Quebro mesmo... Julgamento(-) Apreciação (-) Julgamento(-) Graduação

(21) Quatrocentos contos, pô... Não é nem salário de fome... (22) É salário de defunto... Apreciação (-) Apreciação (-)

(23)Eu só queria saber qual foi o grandessíssimo filho de uma puta Julgamento (-)

(24) que inventou esse negócio de pagar só 50% nos ensaios... Julgamento(-) Apreciação (-)

(25) Viado eu sei que é... Agora quem? (26) Qual o nome do financista... do salvador!..50%! Julgamento(-) Julgamento (+), [mas Julg. (-) considerado o contexto]

(27) Filhos da puta!... Vai me pagá e é hoje!... Julgamento(-) Graduação

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A análise crítica de um grito parado no ar 63

DISCUSSÃO

A peça, nesse trecho, fala, pela voz de Euzébio, da situação de inadimplência do elenco de Um grito parado no ar, traduzida por promissórias vencidas e a tentativa pelos cobradores de exigir a devolução de objetos adquiridos, no caso, um gravador.

Ao ouvir a situação descrita por Euzébio, Augusto se irrita e lança sua raiva contra os promotores da peça, pelo baixo salário e o atraso de pagamento à equipe da peça.

Notemos que, na análise da Avaliatividade que foi feita desse trecho, fica patente o Julgamento - a avaliação de pessoas - na maioria das ocorrências de caráter negativo, condenando os cobradores e os promotores da peça. Porém, a julgar pela proposta da construção da crypto-argumentação, e o uso de vozes do processo dialógico, fica claro que esses Julgamentos, são na realidade, Avaliações Sociais negativas, referindo-se ao poder público da ditadura, que implantara forte censura à liberdade de expressão. Portanto, as avaliações de Julgamento devem ser entendidas como sendo de Avaliação social negativa, nesse contexto.

Acredito que, usando da "ambiguidade estratégica", Guarnieri pode nos fazer pensar sobre: - De quem seriam as vozes incluídas numa expressão coletiva? Eisenberg (1984, p. 230) afirma que, 'há muitas situações nas quais a comunicação ambígua pode ser mais útil do que a comunicação explícita". Para mim, esse é um recurso usado pelo autor para, ao mesmo tempo em que se resguarda de possíveis sanções sobre obra, denunciar as arbitrariedades cometidas pela ditadura.

4.3.3 A criação da minialegoria

A análise "detida", de que nos fala Kitis e Milapides, bem com Li, ajuda a identificar a natureza da obscuridade no discurso e tornar explícita a complexa relação entre texto e contexto, como prega a Linguística Crítica. O uso da língua é constitutiva na maneira como modela identidades, coletividades e instituições. Foi isso que a análise da transitividade e dos papéis projetados de nomeação e de atribuição nos permitiu verificar.

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A análise crítica de um grito parado no ar 64

Guarnieri lança mão do que foi chamado de 'obscuridade criativa', uma estratégia discursiva geral, que van Dijk (1997) define como um modo de atingir metas através do discurso. A obscuridade permite que metas e interpretações diferentes e divergentes possam coexistir.

4.4 A segunda minialegoria: Alienação como impedimento da encenação da

peça

4.4.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais

Selecionei um trecho entre as páginas 199 e 201 (tal como no livro que está inserido) para analisar a segunda minialegoria que perpassa a peça.

Fernando (diretor) – (num acesso de raiva muito real) Chega, está bem! Chega!...Que é que estão pensando! É pra trabalhar ou pra que é?... Na hora do pagamento todo mundo quer receber… E na hora de trabalhar? Vamos deixar de frescura, está bem…É todo mundo muito espirituoso, muito entediado, muito na sua, mas pra mim encheu!...Encheu! Vocês são contratados…são artistas…são gente, diabo!...Vamos trabalhar…E quem não quiser é bom avisar já…Assim dá tempo de substituir… Augusto – Falô, chefinho…Não se aborrece, não, se não mela tudo…Vamo lá…É tudo de mentirinha…Tá um sol lindo lá fora…Calor…Preguiça…Mormaço…Falô, chefinho…

Fernando – Vocês me desculpem, não é…Mas se a gente não encarar seriamente isso…Não sai…Eu não quero construir uma catedral aqui dentro, entende? Eu quero fazer um espetáculo que tenha gente falando e que se entenda o que estão dizendo…Esse texto aqui é importante…Ou vocês não acham? Nara – Maravilhoso!... Fernando – Não é isso que eu quero…Adjetivo, pra quê? O que foi que esse texto disse pra você…O que é que você sentiu?...Em que é que você se modificou? Nara – Eu sei lá, eu gostei… Fernando – O que é que você entendeu… Nara – Ih, mas por que comigo? É picadeiro, é? Augusto – Liga, nao, chefinho…É burrice mesmo…Não tem cura, não! Nara – Cala a boca, gay power … Augusto – Estudando ingles, boneca… Amanda – Não, espera aí…Vamos trabalhar a sério, ou não vamos…(Toca o telefone) Augusto – Desculpe, desculpe, desculpe, desculpe, desculpe…

Fernando – Pombas, mas não é pra pedir desculpas…Eu só estou querendo falar a sério um pouco…Que diabo…Tá um sol bonito lá fora… calor… mormaço… piscina ou mar – que é de graça… E nós estamos aqui. Endividados… Sem saber como fazer realmente… pra ter… pra ter… a profissão da gente… Mas estamos aqui, não estamos?... Há uma razão!... O comportamento de vocês é como o do marido, do amante, sei lá… que procura ferir a

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A análise crítica de um grito parado no ar 65

mulher que ama… É como o outro que está por aí... que é um necrófilo, não é... Vive apregoando que o teatro morreu ... E faz teatro adoidado... ama o teatro ... Não vive sem ... Põe até gravata pra salvar o teatro ... E os teatros, com seu público de teatro, fazem teatro para salvar o teatro dele, que quase deixa de ser teatro ... Mas estão lá, fazendo teatro e podendo salvar um teatro. Que que há, minha gente? Flora – Não há nada… Nada, Fernando… É só trabalhar… Fernando – Só…

Os trechos, em especial os sublinhados, evidenciam a alienação do grupo teatral em relação à dificuldade de se encenar a peça.

FERNANDO Os participantes dos processos

(28)(...)Que é que estão pensando! É pra trabalhar ou pra que é?... Relacional mental material relacional

Elenco: Portador Elenco: Portador

(29) Na hora do pagamento todo mundo quer receber… E na hora de mental

(30) trabalhar? Vamos deixar de frescura, está bem…É todo mundo material mental relacional

Elenco: Ator Elenco: Portador

(31) muito espirituoso, muito entediado, muito na sua, mas pra mim

(32) encheu!...Encheu! Vocês são contratados…são artistas…são mental mental relacional relacional relacional

Elenco: Portador Elenco: Portador Elenco: Portador

(33) gente, diabo!...Vamos trabalhar…E quem não quiser é bom avisar material mental relacional verbal

Elenco: Ator Elenco: Portador

(34) já…Assim dá tempo de substituir… existencial material

Fernando: Ator Elenco: Meta

FERNANDO

(35) Vocês me desculpem, não é…Mas se a gente não encarar Comportamental

(36) seriamente isso…Não sai…Eu não quero construir uma catedral (não acontece) – existencial material Fernando: Ator

(37) aqui dentro, entende? Eu quero fazer um espetáculo que tenha material existencial Fernando: Ator

(38) gente falando e que se entenda o que estão dizendo…Esse texto verbal mental verbal

(39) aqui é importante…Ou vocês não acham? Relacional mental Texto: Portador

NARA

(40) Maravilhoso!...

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A análise crítica de um grito parado no ar 66

FERNANDO (41) Não é isso que eu quero…Adjetivo, pra quê? O que foi que esse Relacional mental relacional Adjetivo: Portador

(42) texto disse pra você…O que é que você sentiu?...Em que é que (significa) mental relacional comportamental relacional

Texto: Portador Nara: Portador

(43) você se modificou? Comportamental

FERNANDO

(44) Pombas, mas não é pra pedir desculpas…Eu só estou querendo Relacional comportamental mental Nara: Portador

(45) falar a sério um pouco…Que diabo…Ta um sol bonito lá fora… verbal existencial

(46) calor… mormaço… piscina ou mar – que é de graça… E nós relacional

Piscina ou mar: Portador

(47) estamos aqui. Endividados… Sem saber como fazer realmente… existencial material mental material

(48) Pra ter… pra ter… a profissão da gente… Mas estamos aqui, não existencial existencial existencial

(49) estamos?... Há uma razão!... O comportamento de vocês é como existencial existencial relacional Elenco: Portador

(50) o do marido, do amante, sei lá… que procura ferir a mulher que comportamental

(51) ama… É como o outro que está por aí... que é um necrófilo, não mental relacional existencial relacional

Crítica a algum diretor: Portador

(52) é... Vive apregoando que o teatro morreu ... E faz teatro verbal existencial material Algum diretor: Ator

(53) adoidado... ama o teatro ... Não vive sem ... Põe até gravata pra mental existencial material Algum diretor: Ator

(54) salvar o teatro ... E os teatros, com seu público de teatro, fazem material material

Algum diretor: Ator Os teatros: Ator

(55) teatro para salvar o teatro dele, que quase deixa de ser teatro ... existencial

(56)Mas estão lá, fazendo teatro e podendo salvar um teatro. Que que Existencial material material

Os teatros: Ator Os teatros: Ator

(57) há, minha gente? existencial

DISCUSSÃO

Este trecho refere-se à tentativa do diretor Fernando de conscientizar seu elenco de que o trabalho deles é de suma importância para a realização da peça. Em seu discurso, pode-se observar que inúmeras vezes chama a atenção para o trabalho do ator e também para a situação do teatro. Ao analisar os processos material e relacional, encontra-se em evidência o elenco e o teatro.

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A análise crítica de um grito parado no ar 67

O elenco

Vejamos como o elenco está representado no sistema da transitividade:

(em 28, 30, 32, 33 e 49) o elenco é Portador de todas as características que o diretor Fernando necessita para trabalhar, como – “é pra trabalhar ou pra que é?”, “vocês são artistas, são contratos (...)”. Esses são alguns exemplos dos argumentos de Fernando para chamar a atenção da trupe ao trabalho.

Ainda para enaltecer essa alienação do grupo, Fernando utiliza a personagem Nara, também atriz do elenco, para criticar a postura dos atores quanto ao trabalho. Assim em (40 e 42) Nara é portador, no processo relacional, de “o que sentiu” e “o que te modificou para evidenciar a leviandade da leitura do texto da peça.

Percebe-se que Fernando é Ator em:

(34) “assim dá tempo de substituir” – novamente uma ameaça aos atores, porém desta vez na voz de Fernando.

(36) ‘não quero construir uma catedral”. Fernando se coloca na posição de mandante do grupo

(37) “quero fazer”. Neste trecho, entretanto, torna-se nítido que o personagem Fernando é quem quer realmente fazer a peça.

Após a articulação de Fernando para demonstrar a inerência do grupo, Fernando infere portanto sobre a situação do teatro brasileiro.

O teatro

“O teatro” surge como Ator em (54 e 56), como “fazer teatro” e “salvar o teatro”. Evidencia-se a ideologia de Fernando ainda acreditar no teatro. Principalmente pela forma que critica algum diretor da época (em 52 e 53) que apregoa que o teatro morreu.

O que a análise da transitividade mostra é a alienação do grupo perante à situação do teatro: (i) em diversos momentos, Fernando, diretor da peça, chama a atenção para que os atores prestem atenção ao texto, principalmente no que pode modificá-los, assim como espera que acordem para a realidade, para a importância do papel desempenhado por eles na peça; e (ii) o teatro como o lugar onde estão

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A análise crítica de um grito parado no ar 68

inseridos esses personagens está passando por um momento de dificuldade, ou seja, é necessário “salvar o teatro”.

Assim, nesta análise da transitividade podemos observar que o elenco encontra-se novamente como Atores, porém ainda em situações humilhante. Porém, a figura do diretor, antes considerado como algoz desse grupo, agora é visto como Ator porque quer “fazer” (HALLIDAY, 1994), quer salvar o teatro.

Notemos que a análise superficial da transitividade resulta na tentativa de Fernando, diretor da peça, conscientizar seus atores de que eles precisam demonstrar atitude em meio a uma situação difícil a que perpassa o teatro. Dessa forma, podemos observar o dialogismo no enunciado criado por ele em oposição ao outro diretor que apregoa que o teatro morreu, pois para FIORIN (2008, p.21) as relações dialógicas podem ser contratuais ou polêmicas, de convergência ou divergência. Portanto, neste trecho observamos que a figura do diretor deixa de ser algoz do elenco e passa a ser a personagem que manifesta sua ideologia ao longo do texto.

Vejo aqui uma minialegoria, que remete à conscientização do povo. O grito de Fernando ainda não encontra eco em seus colegas de palco. Sua ideologia ainda é solitária e encontra-se parada no ar. Sua luta é contra a alienação do elenco, ou seja, do povo, para que possam ver a realidade da difícil situação do teatro, ou do país, como podemos averiguar na análise do contexto da peça.

4.4.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos

Indico com (+) e com (-), as Avaliatividades positiva e negativa, respectivamente; quanto à Graduação da Avaliatividade, indico com setas: ou para maior ou menor intensidade respectivamente. Os papéis projetados serão indicados, por exemplo, assim: nomeação/Ator (envolvendo o papel e de nomeação e de atribuição).

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A análise crítica de um grito parado no ar 69

FERNANDO (28) (...)Que é que estão pensando! É pra trabalhar ou pra que é?... Avaliação Social(-) Avaliação Social(-) (29) Na hora do pagamento todo mundo quer receber… E na hora de Avaliação Social (30) trabalhar? Vamos deixar de frescura, está bem... É todo mundo Julgamento (+), [mas (-) considerado o contexto] (31) muito espirituoso, muito entediado, muito na sua, mas pra mim Graduação Julgamento (+),GraduaçãoJulgamento(-),GraduaçãoJulgamento (-), [mas (-) considerado o contexto [mas (-) considerado o contexto] (32) encheu!...Encheu! Vocês são contratados…são artistas…são Afeto(-) Afeto(-) Julgamento(+) Julgamento(+) (33) gente, diabo!...Vamos trabalhar… E quem não quiser é bom avisar Julgamento(+) Julgamento(-) (34) já…Assim dá tempo de substituir…

FERNANDO (35) Vocês me desculpem, não é…Mas se a gente não encarar Julgamento(+) Apreciação(+) (36) seriamente isso…Não sai…Eu não quero construir uma catedral Apreciação(+) Apreciação (+) [mas (-) considerado o contexto] (37) aqui dentro, entende? Eu quero fazer um espetáculo que tenha Apreciação(+) (38) gente falando e que se entenda o que estão dizendo…Esse texto Apreciação (+) Apreciação (+) (39) aqui é importante…Ou vocês não acham? Apreciação (+) Avaliação Social(-)

NARA (40) Maravilhoso!... Apreciação (+)

FERNANDO (41) Não é isso que eu quero…Adjetivo, pra quê? O que foi que esse Afeto(-) Julgamento(-) (42) texto disse pra você…O que é que você sentiu?...Em que é que Afeto(+) (43) você se modificou? Afeto(+)

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A análise crítica de um grito parado no ar 70

FERNANDO (44) Pombas, mas não é pra pedir desculpas…Eu só estou querendo Avaliaçao Social (-) (45) falar a sério um pouco…Que diabo…Tá um sol bonito lá fora… Julgamento(+) Apreciação(+) (46) calor… mormaço… piscina ou mar – que é de graça… E nós Apreciação (+) Apreciação (+) Apreciação (+) (47) estamos aqui. Endividados… Sem saber como fazer realmente… Julgamento(-) Julgamento(-) (48) pra ter… pra ter… a profissão da gente… Mas estamos aqui, não Avaliação Social(+) (49) estamos?... Há uma razão!... O comportamento de vocês é como Avaliação Social(+) (50) o do marido, do amante, sei lá… que procura ferir a mulher que Julgamento(+) Julgamento(+) Julgamento(-) [mas (-) considerado o contexto] [mas (-) considerado o contexto] (51) ama… É como o outro que está por aí... que é um necrófilo, não Afeto(+) Nomeação/Ator Julgamento(-) (52) é... Vive apregoando que o teatro morreu ... E faz teatro Julgamento(-) (53) adoidado... ama o teatro ... Não vive sem ... Põe até gravata pra Julgamento(+) Afeto(+) Afeto(+) Julgamento(+) (54) salvar o teatro ... E os teatros, com seu público de teatro, fazem Avaliação Social(+) (55) teatro para salvar o teatro dele, que quase deixa de ser teatro ... Julgamento(-) Julgamento(-) (56) Mas estão lá, fazendo teatro e podendo salvar um teatro. Que que Avaliação Social(+) Avaliação Social(+) (57) há, minha gente? Nomeação DISCUSSÃO

Este trecho trata-se do discurso de Fernando para seu elenco, com exceção de apenas uma exposição de Nara. Indaga sobre o que representa o elenco naquele lugar, qual a posição que eles querem tomar e o que entendem sobre o assunto.

Notemos, através da Avaliatividade, que ora Fernando utiliza o Julgamento(-) para se referir aos atores, como explicitado de (28) a (34), ora utiliza Julgamento(+), como em (32) e (33), ou mesmo Afeto e Apreciação como visto de (35) a (39). Inicia o discurso repleto de Julgamento(-), mesmo quando utiliza Julgamento(+), podemos observar pelo contexto que trata-se de uma ironia tornando o Julgamento(-).

Podemos atribuir essa oposição no enunciado de Fernando, ao que BAKHTIN (2006) denomina de “oposição dialógica”, pois há no discurso, pelo menos duas

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A análise crítica de um grito parado no ar 71

vozes: a sua própria e aquela em oposição “a qual se constrói”. Esse recurso utilizado pelo autor, acentua a sua posição ideológica.

Por vezes, o discurso de Fernando aparece em tom monoglóssico e logo é modalizado quando se dirige ao elenco. Aqui, mais uma vez, podemos constatar a ambiguidade estratégica no termo adjetivo (aparentemente neutro), mas utilizado para criticar a personagem Nara sobre sua visão leviana da peça. Dessa forma, utiliza as expressões “sentir”, “modificar” como Avaliação Social negativa como uma tentativa direta de modificação para a plateia, ou seja, o povo.

Para amenizar o conflito estabelecido, nota-se que o autor utiliza apreciações positivas na voz do diretor quando ele se refere à peça a ser montada. A persuasão para o discurso que tem com os atores envolve um token de atitude - O token de Atitude é uma expressão com aparência de informação neutra, mas que - de acordo com a posição do leitor - pode significar algo diferente (MARTIN 2000). A expressão caracteriza uma ironia: a atitude nela expressa é oposta em tom ao da atitude do significado literal (DEWS; WINNER 1999 apud EL REFAIE 2005). E mais uma vez quando refere-se aos atores utiliza de uma apreciação negativa. Guarnieri utiliza a expressão metafórica “que tenha gente falando e que se entenda o que estão dizendo” como uma Avaliação Social positiva, utilizando o apito do cão, explicita que “gente falando” vai contra a ditadura imperante da época e - “se entenda o que estão dizendo” enaltece que existe uma mensagem implícita em toda a obra da peça. Por isso, segue com um julgamento positivo sobre a peça e através da polifonia faz uma pergunta direta ao povo – “Ou vocês não acham?”

4.5 A terceira minialegoria: Dificuldades de relacionamento como

impedimento da encenação da peça

4.5.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais

Selecionei um trecho entre as páginas 196 e 197 (tal como no livro que está inserido) para analisar a terceira minialegoria que perpassa a peça.

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A análise crítica de um grito parado no ar 72

FERNANDO - É bom poupar a voz, viu, Amanda! AMANDA - Poupar o que, não tenho mais ... Ó,ó ... Hum! ... Mini! ... Mini! ... AUGUSTO – É melhor não forçar... Fica quietinha... Cochicha... Fica sexy! FLORA – Eu já disse pra ela ter aulas com a Madalena... Ela não vai... AMANDA – Isso é gripe... Não é falta de aula. FLORA – Uma tecnicazinha sempre ajuda. AMANDA – Técnica, imagina... Pra cima de mim, Flora... Sou atriz de praça pública, eu! Que é que você está pensando. Na época que ainda se fazia teatro em praça pública, eu representava e todo mundo ouvia, meu anjo. E sem colher de chá de microfone. Não tinha disso, não. Era no peito mesmo... E até o infeliz lá do fundo, montado no cavalo, me ouvia... e muito bem... Não vem com essa, não... FLORA – Santo céu! Não quis ofender, só ajudar... AMANDA – Você tem mania de espicaçar a gente! FERNANDO – Que é isso, Amanda... Criando caso? AMANDA – Como se eu não conhecesse a Florinha... Ela está sempre pondo defeito em tudo... AUGUSTO – Flora é recalcadinha... Tem cinquenta anos e quer fazer papel de mocinha amada, não é Florinha, hein, diz a verdade? FERNANDO – Que é isso, gente... já estamos em outro assunto... AUGUSTO – O assunto é a rouquidão da Amanda... Que por sinal é uma rouquidão sagrada! FERNANDO – Vocês parecem crianças... Vamos trabalhar, vai... AMANDA _ É o tal negócio, a gente não pode ficar doente que cai todo mundo em cima... FLORA – Não estou dizendo nada, meu amor... Só dei um conselho... Umas aulinhas de colocação de voz não fazem mal pra ninguém. AMANDA – Sempre tive minha voz colocada, meu Deus do céu... Preciso gritar para que me entendam... Na praça pública... FLORA – Pois é, meu bem... Vai ver que do esforço criou um calozinho nas cordas vocais... AMANDA – Ah, com franqueza... AUGUSTO – Tá com vontade que a pobrezinha tenha um calo nas cordas, é... Recalcada! FLORA – Recalcada, mas emissão de voz perfeita! Ó!

FLORA Os participantes dos processos

(58) Uma tecnicazinha sempre ajuda comportamental

AMANDA

(59)Técnica, imagina... Pra cima de mim, Flora... Sou atriz de praça Existencial

(60)pública, eu! Que é que você está pensando. Na época que ainda relacional mental Flora: Atributo

(61) se fazia teatro em praça pública, eu representava e todo mundo material material

Teatro: Ator Amanda: Ator

(62) ouvia, meu anjo. E sem colher de chá de microfone. Não tinha mental existencial

(63) disso, não. Era no peito mesmo... E até o infeliz lá do fundo, existencial

(64)montado no cavalo, me ouvia... e muito bem... Não vem com essa, material mental comportamental

O infeliz lá do fundo: Ator

(65) não...

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A análise crítica de um grito parado no ar 73

FLORA

(66) Santo céu! Não quis ofender, só ajudar... Verbal mental

AMANDA

(67) Você tem mania de espicaçar a gente Existencial material Flora: Ator

FERNANDO

(68) Que é isso, Amanda... Criando caso? Relacional comportamental Amanda: Atributo

AMANDA

(69) Como se eu não conhecesse a Florinha... Ela está sempre pondo Mental relacional mental Flora: Portador

(70) defeito em tudo... mental

AUGUSTO

(71) Flora é recalcadinha... Tem cinquenta anos e quer fazer papel de Relacional existencial mental Flora: Portador

(72) mocinha amada, não é Florinha, hein, diz a verdade? Mental verbal

DISCUSSÃO

Este trecho demonstra os conflitos pessoais do elenco, principalmente das atrizes da peça, Amanda e Flora. Ambas desejam enaltecer seu papel na peça e sua posição dentro do grupo. A análise da transitividade, referente aos processos material e relacional destacam essa discussão.

Flora

(em 60) Flora é atributo, no processo relacional, do esbravejamento de Amanda, que enaltece suas qualidades como atriz em resposta à ofensa anterior de Flora

(em 67) Flora é Ator, no processo material, que tem mania de “espicaçar a gente”, ou seja, possui a mania de criticar o elenco.

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A análise crítica de um grito parado no ar 74

(em 69 e 71) Flora é Portador em processo relacional. Em (69) no discurso de Amanda – “está sempre pondo defeito em tudo”. E em (71) na voz de Augusto, Flora é “recalcadinha”.

Amanda

Percebe-se que Amanda é também alvo das críticas de Flora, porém de maneira implícita.

(em 61): Amanda é Ator em processo material em sua própria voz demonstrando o quanto já trabalhou para o teatro.

(em 68): Apenas na fala de Fernando, seu marido e diretor da peça, é que Amanda é Atributo em processo relacional de “criando caso”.

O que a análise da transitividade mostra é uma discussão pessoal entre os atores, principalmente Flora e Amanda, com contribuições de Augusto para aumentar a tensão. O autor demonstra neste trecho a mesquinharia destes atores em detrimento a uma preocupação maior – a de montar a peça.

É notória a falta de união deste elenco que se preocupa apenas com as questões individuais e não coletivas para que o objetivo do grupo seja alcançado.

Vejo aqui uma minialegoria, que remete à situação do País: mesmo com a ditadura imperante, o povo preocupa-se apenas com questões pessoais, ao invés de fortalecer uma união para lutar contra o que pode reprimi-los.

4.5.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos

Indico com (+) e com (-), as Avaliatividades positiva e negativa, respectivamente; quanto à Graduação da Avaliatividade, indico com setas: ou para maior ou menor intensidade respectivamente. Os papéis projetados serão indicados, por exemplo, assim: nomeação/Ator (envolvendo o papel e de nomeação e de atribuição).

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A análise crítica de um grito parado no ar 75

FLORA

(58) Uma tecnicazinha sempre ajuda. Graduação Apreciação(+)

AMANDA

(59) Técnica, imagina... Pra cima de mim, Flora... Sou atriz de praça Avaliação Social(-) Julgamento(+) (60) pública, eu! Que é que você está pensando. Na época que ainda Julgamento(+) Avaliação Social(-) (61) se fazia teatro em praça pública, eu representava e todo mundo Apreciacao(+) (62) ouvia, meu anjo. E sem colher de chá de microfone. Não tinha Nomeação Julgamento(-) (63) disso, não. Era no peito mesmo... E até o infeliz lá do fundo, Julgamento(-) Julgamento(-) (64) montado no cavalo, me ouvia.. .e muito bem... Não vem com essa, Julgamento(-) Graduação Julgamento(+) Avaliação Social(-) (65) não...

FLORA

(66) Santo céu! Não quis ofender, só ajudar... Afeto(+) Afeto(+)

AMANDA

(67) Você tem mania de espicaçar a gente! Julgamento(-) Julgamento(-)

FERNANDO

(68) Que é isso, Amanda... Criando caso? Julgamento(-)

AMANDA

(69) Como se eu não conhecesse a Florinha... Ela está sempre pondo Nomeação Graduação

(70) defeito em tudo... Julgamento(-)

AUGUSTO (71) Flora é recalcadinha... Tem cinquenta anos e quer fazer papel de Julgamento(-)

(72) mocinha amada, não é Florinha, hein, diz a verdade? Apreciação(+) Nomeação

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A análise crítica de um grito parado no ar 76

DISCUSSÃO

Este trecho, em que podemos observar o confronto de Flora e Amanda pela disputa de atriz principal do grupo, relata a importância do “eu” dentro do grupo social. Esta necessidade de sobrepor-se ao outro, torna-se maior do que os problemas que devem ser encarados pelo grupo para que a peça aconteça.

Isso pode ser avaliado na análise da Avaliatividade que foi feita desse trecho, fica patente o Julgamento - a avaliação de pessoas – principalmente na fala da personagem Amanda ao se referir à Flora. Por sua vez, Flora utiliza a ironia nos enunciados direcionados à Amanda, como em (58) “uma técnica sempre ajuda”, avaliado como apreciação positiva, é na realidade um Julgamento(-) ao especular que Amanda ainda precisa de uma técnica para ajudá-la, ou seja, ainda não é uma atriz profissional. Pode-se inferir que os enunciados de Flora sejam emitidos de forma implícita - apito-do-cão” (COFFIN; O’HALLORAN, 2006), por ser, a personagem Amanda, esposa do diretor do grupo. Esse por sua vez utiliza o Julgamento(-) para falar com Amanda para que possa acabar com o conflito.

Neste trecho também é evidenciado pela proposta da construção da crypto-argumentação, e o uso de vozes do processo dialógico, que esses Julgamentos, são na realidade, Avaliações Sociais negativas, referindo-se ao povo que emana maior atenção às questões pessoais que às coletivas, como por exemplo a ditadura vigente da época.

Para Bakhtin (2006) a comunicação transcende a esfera do linguístico e se carrega de caráter histórico e cultural. Assim, considerando o contexto histórico da peça, Guarnieri faz a plateia refletir sobre sua posição perante o regime militar.

4.6 A quarta minialegoria: Dificuldades consecução da arte como

impedimento da encenação da peça

4.6.1 Análise da representação da realidade: transitividade e papéis sociais

Selecionei um trecho entre as páginas 201 e 202 (tal como no livro que está inserido) para analisar a quarta minialegoria que perpassa a peça.

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A análise crítica de um grito parado no ar 77

Augusto – (ao final da entrevista) Este cara é um sarro!... Vidão que ele leva!... Sorte que tem o poder de adaptação, não é… Senão não dava!... (Cospe no chão repetidas vezes) Fernando – Augusto, ele te dá algum elemento para o teu personagem? Augusto – Ora, porra. Ele é o personagem!... Põe aí no programa… Um Grito Parado no Ar… Justino, pontinhos, o nome do distinto aí… Como é o nome dele… Fernando – É… (diz o nome real do entrevistado.) Augusto – Pois então… Só me resta pegar meu boné e ir embora… Fernando – Nada… Você vai fazer o personagem baseando-se nesse cara e nos outros que vêm aí… Só isso não basta… Vai ter muito de teu nessa personagem que você vai fazer… Esse Justino é o Justino real… pequeno e sumido no meio de muitos Justinos… O teu vai ser um Justino… Augusto (gozando com modos afetados)- Que só eu posso fazer! Fernando – Que um artista pode fazer… Mais amplo, mais comunicativo… típico… Augusto – Não me vem com teu Lucaks pra cima de mim não… Já me disseram que ele já era. Agora como eu não sei de nada… Dá o tom pra mim… Só o tom eu vou… Você diz assim,

quero um Justino bobo, quero um Justino agressivo, irônico, doente, saudável, valente, covarde… Quer dizer em cada hora que ele for essas coisas você fala pra mim… Atenção! Nessa fala ele é covarde, nessa outra é irônico até súbdulo, ele pode ser… Não é?... Que é que quer dizer súbdulo? Amanda – Augusto, deixa de ser criança! Augusto – Ué só porque eu fiz uma pergunta… Aposto que você não sabe, primeira-dama! Fernando – Quero um Justino-Pedro, Justino-Antonio, Justino-Juvenal, um Justino, Pedro, Antonio, Juvenal… Augusto – Olha, parece incrível, ninguém vai acreditar, mas agora eu entendi. Simples. Não precisa nem mais ensaiar… Justino, Pedro, Antonio, Juvenal, Jacinto, o que tiver de Justino danado por aí… Entendi… Fernando – Então vamos lá… Baseando-se na cena da peça: Justino preso: Identificação! Augusto – O texto eu não sei de cor! Fernando – Vai… Não precisa saber de cor… Não quero o texto… Quero o Justino, na situação… Vamos lá!....

FERNANDO Os participantes dos processos

(73) Augusto, ele te dá algum elemento para o teu personagem? (inspira) - mental

AUGUSTO

(74) Ora, porra. Ele é o personagem!... Põe aí no programa… Um Grito Relacional material

Justino:Portador Fernando: Ator

(75) Parado no Ar… Justino, pontinhos, o nome do distinto aí… Como Comportamental

(76) é o nome dele… relacional Justino:Portador

AUGUSTO

(77) Pois então… Só me resta pegar meu boné e ir embora… Material material

Augusto: Ator Augusto: Ator

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A análise crítica de um grito parado no ar 78

FERNANDO

(78) Nada… Você vai fazer o personagem baseando-se nesse cara e Material mental Augusto: Ator

(79) nos outros que vêm aí… Só isso não basta… Vai ter muito de teu (surgirão) - existencial mental existencial

(80) nessa personagem que você vai fazer… Esse Justino é o Justino material relacional

Augusto: Ator Justino:Portador

(81) real… pequeno e sumido no meio de muitos Justinos… O teu vai relacional

(82) ser um Justino… relacional Augusto:Portador

AUGUSTO

(83) Que só eu posso fazer! Material Augusto: Ator

FERNANDO

(84) Que um artista pode fazer… Mais amplo, mais comunicativo… Material Artista: Ator

(85) típico…

AUGUSTO

(86) Não me vem com teu Lucaks pra cima de mim não… Já me Comportamental

(87) disseram que ele já era. Agora como eu não sei de nada… verbal existencial

(88) Dá o tom pra mim… Só o tom eu vou… (diz) - verbal

DISCUSSÃO

Os trechos em foco tratam da primeira improvisação do grupo para o ensaio da peça. O elenco acaba de ouvir a entrevista de um feirante chamado Justino, e Augusto fará sua cena baseada no entrevistado.

A análise da transitividade, referente aos processos material e relacional revela, em maior parte, Augusto como Ator, que fará a cena de improvisação e Justino como Portador, pois ele quem possui as características que motivarão Augusto às suas ações.

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A análise crítica de um grito parado no ar 79

Augusto

Vejamos como Augusto está representado no sistema da transitividade:

(em 77, 78, 80, 83) Augusto surge como Ator, pois ele quem fará a ação de interpretar o feirante Justino.

(em 82) Augusto é Portador no processo relacional de “ser um Justino”, ou seja, à medida que a cena acontece, ele recebe os atributos de Justino, personificando a figura do feirante.

Justino

(em 74, 76 e 80) Justino é portador em processo relacional de “é o personagem”, “é o nome dele” e “é o Justino real” respectivamente. Todas essas informações sobre o objeto de estudo do grupo. Assim, são enaltecidas as informações do homem do povo que foi entrevistado pelo elenco.

O que a análise da transitividade mostra é Augusto, ator da peça, desempenhando seu papel de forma leviana e jocosa, chamando para si a atenção do que está acontecendo no palco. Em contrapartida, temos a história de um feirante, colocada em segundo plano, apresentada apenas pelas vozes de Fernando e Augusto.

Como minialegoria, podemos observar que a voz do povo, acaba ficando como segundo plano dos interesses de quem está representando. O personagem de Justino sempre qualificado, enquanto Augusto levanta a questão da importância do seu trabalho perante os demais colegas. Mais uma vez, a voz do povo não chega a se elevar no ar.

4.6.2 Análise da avaliação da realidade: Avaliatividade e recursos retóricos

Indico com (+) e com (-), as Avaliatividades positiva e negativa, respectivamente; quanto à Graduação da Avaliatividade, indico com setas: ou para maior ou menor intensidade respectivamente. Os papéis projetados serão indicados, por exemplo, assim: nomeação/Ator (envolvendo o papel e de nomeação e de atribuição).

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A análise crítica de um grito parado no ar 80

FERNANDO (73) Augusto, ele te dá algum elemento para o teu personagem? Avaliação Social(+) Avaliação Social(+)

AUGUSTO

(74) Ora, porra. Ele é o personagem!... Põe aí no programa… Um Grito Julgamento(+)

(75) Parado no Ar… Justino, pontinhos, o nome do distinto aí… Como Julgamento(+) (76) é o nome dele…

AUGUSTO

(77) Pois então… Só me resta pegar meu boné e ir embora… Avaliação Social(-)

FERNANDO

(78) Nada… Você vai fazer o personagem baseando-se nesse cara e Nomeação (79) nos outros que vêm aí… Só isso não basta… Vai ter muito de teu Nomeação Graduação Julgamento(-) Apreciação(+) (80) nessa personagem que você vai fazer… Esse Justino é o Justino real ... Avaliação Social(+) (81) pequeno e sumido no meio de muitos Justinos… O teu vai Julgamento(-)

(82) ser um Justino…

AUGUSTO

(83) Que só eu posso fazer! Julgamento(+)

FERNANDO

(84) Que um artista pode fazer… Mais amplo, mais comunicativo… Julgamento(+) Graduação Julgamento(+)Graduação Julgamento(+)

(85) típico… Julgamento(+)

AUGUSTO

(86) Não me vem com teu Lucaks pra cima de mim não… Já me Julgamento(-)

(87) disseram que ele já era. Agora como eu não sei de nada… Julgamento(-) Julgamento(-) Graduação

(88) Dá o tom pra mim… Só o tom eu vou… Graduação

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A análise crítica de um grito parado no ar 81

DISCUSSÃO

A peça, nesse trecho, fala, pela voz de Augusto e Fernando sobre a primeira tentativa de improvisação para execução da peça que pretendem montar. Augusto, após ouvir a entrevista do Justino feirante reflete sobre como esses elementos irão repercurtir na personagem que ele criará. Sempre utilizando ironia, pede que o diretor Fernando indique qual forma deve utilizar para representar o personagem.

Notemos que, na análise da Avaliatividade que foi feita desse trecho, fica patente o Julgamento - a avaliação de pessoas - na maioria das ocorrências de caráter positivo, pois Augusto fala de si, enaltecendo seu trabalho como artista; ou então, o Julgamento positivo apresenta-se como ironia, o que no contexto podemos avaliar como Julgamento(-) como em (75) – “o nome do distinto aí”. Por se tratar da voz do povo, traduzida na personagem do feirante Justino, o trecho contém também a Avaliação Social.

Podemos observar novamente, a dificuldade do grupo, principalmente do diretor Fernando, em montar a primeira cena de improvisação. Este trecho contém as minialegorias observadas anteriormente, como se vê claramente em Augusto, sua alienação em pensar o homem do povo e a demasiada atenção que despende para a sua importância no elenco e na peça. Mais uma vez, a alienação e a individualidade atrapalham o desempenho para elaborar essa peça teatral.

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Considerações finais 82

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O meu objetivo nesta pesquisa era examinar criticamente a peça teatral Um grito parado no ar, para mostrar que Guarnieri recorre à figura da alegoria para poder externar seu descontentamento frente à forte censura imperante no período da ditadura militar no Brasil nos anos sessenta. Segui a proposta de Kitis e Milapides (1997) para quem é possível revelar a argumentação secreta - a Crypto-argumentação - que perpassa o discurso, por meio de uma análise linguística completa, com o emprego de todos os métodos e instrumentos que a disciplina pode oferecer. Para tanto recorri à Gramática Sistêmico-Funcional, que me permitiu capturar o argumento do nível do "não dito", o nível da coerência subjacente do texto. Tive, nessa caminhada, o apoio da Linguística Crítica, e também da proposta de Li (2010), para relacionar a noção macro da ideologia às noções micro dos discursos e das práticas sociais de membros de grupo, graças aos recursos oferecidos pela GSF.

A pesquisa deveria responder às perguntas: (a) Como é construída essa alegoria em Um grito parado no ar? (b) Quais são as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo autor para essa construção? Para cumprir essa meta, distingui quatro minialegorias: (1) A dificuldade financeira como impedimento da encenação da peça; (2) Alienação como impedimento da encenação da peça; (3) Dificuldades de relacionamento como impedimento da encenação da peça; e, finalmente, (4) Dificuldades de consecução da arte como impedimento da encenação da peça, que no conjunto formam a alegoria dominante sobre a censura na arte, e consequentemente o grito impedido de encher os ares nacionais.

Creio que pude demonstrar que a análise da metafunção ideacional - que trata da informação propriamente dita - que atua por meio do sistema da transitividade, pôde resgatar os vários tipos de impedimentos que a falta de recursos governamentais - por motivos óbvios - traz para o elenco da peça no seu objetivo de conscientizar o público sobre a realidade do País.

Por outro lado, a teoria da Avaliatividade, que capta o posicionamento do autor sobre o conteúdo da mensagem, na sua interação com o público, permitiu

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Considerações finais 83

delinear tanto a avaliação positiva ou negativa explícita, quanto a implícita - os tokens de Atitude -, auxiliando na construção da referida crypto-argumentação.

Por meio desses recursos, Guarnieri mostra como as imposições externas ao elenco podem causar desgastes erosivos no relacionamento entre os integrantes da equipe teatral. Com isso, creio que ele quis alertar seus compatriotas a perceber a dimensão dos efeitos da censura imposta pela ditadura não só no que é constatável concretamente, mas também o que corrói os ideais de um povo que tem sua voz calada por forças ditatoriais.

Por fim, esta pesquisa abriu-me os olhos para possibilidades incalculáveis que a peça nos oferece, fato que não havia percebido quando participei de sua encenação em palcos paulistas. Fosse hoje, sei que outra seria a profundidade que poderia imprimir à sua realização. Na verdade, para mim, não foi somente no campo da dramaturgia que esse fenômeno ocorreu. Sei que vejo com outros olhos o mundo, as pessoas, o visível e o subjacente a ele, o que me tem possibilitado uma reflexão sobre os vários elementos que me rodeiam, tanto como pessoa, quanto como alguém em constante interação com o outro.

Termino aqui sabendo que este trabalho está ainda incompleto e essa sensação me é inevitável, pois as áreas de estudo da Linguistica Aplicada são inúmeras. Para este trabalho, contei com a força e a ajuda dos meus companheiros do LAEL, a quem deixo meu reconhecimento. E, agora, é partir para o doutorado.

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