um estudo das manifestações da literatura high fantasy no brasil

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1 ROMAN SCHOSSIG Masmorras e Dragões do Brasil: um estudo das manifestações da Literatura High Fantasy no Brasil Monografia apresentada como requisito à conclusão do curso de Letras – Português, tendo como habilitação o Bacharelado em Estudos Literários. Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Patrícia Cardoso Curitiba 2013

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ROMAN SCHOSSIG

Masmorras e Dragões do Brasil: um estudo das manifestações da Literatura High Fantasy no Brasil

Monografia apresentada como requisito à conclusão do curso de Letras – Português, tendo como habilitação o Bacharelado em Estudos Literários. Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Patrícia Cardoso

Curitiba

2013

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Sumário

Resumo.............................................................................................3

Introdução.........................................................................................4 1. Delimitação do Tema........................................................................5 2. A Gênese da fantasia.........................................................................8

2.1 – Das cavernas à Babel...............................................................8 2.2 – O século XIX..........................................................................11 2.3 – O Romance Histórico e A Idade Média...................................13 2.4 – A Idade Média.........................................................................15 2.5 – A Idade Média aos olhos do Romantismo...............................18 2.6 – Tolkien.....................................................................................21

3. Aspectos formais da High Fantasy...................................................24 3.1 – A high fantasy tolkeniana e sua herança.................................24 3.2 – A esquematização do enredo...................................................27 3.3 – A High Fantasy em outras mídias...........................................29

4. A High Fantasy no Brasil.................................................................33 4.1 – De Lobato à Draccon...............................................................34 4.2 – Dragões de Éter........................................................................36

Conclusão..........................................................................................51

Bibliografia.......................................................................................52

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Resumo

O presente trabalho faz um apanhado geral das manifestações literárias do estilo

high fantasy, buscando antes suas origens históricas da antiguidade, passando pelo

romance histórico do século XIX, sua consolidação no século XX e enfim suas

manifestações no Brasil do século XXI. Tomando como base o romance Dragões de Éter

de Raphael Draccon, o trabalho faz uma breve análise de como ela se manifesta na forma

e no conteúdo em solo brasileiro, suas influências, e levanta a questão sobre seu lugar

enquanto Literatura canônica.

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Introdução

O ano de 2013 foi a vez de o Brasil ser homenageado na Feira Literária de Frankfurt.

Como de costume, uma organização no país se responsabilizou por convocar os grandes

nomes da literatura brasileira atual. A grande lista de setenta escritores contou com figuras

célebres do cenário brasileiro contemporâneo, como Cristóvão Tezza, Ignácio de Loyola

Brandão e João Ubaldo Ribeiro.

Porém, muitos mostraram-se descontentes por esta lista não contemplar alguns dos

segmentos literários. Foi o caso dos autores da chamada Literatura Fantástica Brasileira

que, embora tenha alcançado consideráveis recordes de vendas e aceitação popular,

sentiram-se ignorados. Um de seus maiores nomes e porta-voz, o escritor Raphael

Draccon, chegou a escrever diretamente para o Comitê Organizador mostrando seu

descontentamento. Intensificando a polêmica, outros autores manifestaram seu apoio,

dentre eles alguns contemplados pela lista, como foi o caso de Paulo Coelho que,

inclusive, recusou o convite e apontou a escolha do Comitê como nepotismo.

O ruidoso protesto, em grande parte extremista e simplista do autoproclamado

“mago”, acabou por exercer um efeito quase contrário ao inicialmente proposto. Ao invés

de se discutir a importância da Literatura Fantástica Nacional e seu merecimento de se

figurar ao lado de grandes nomes, perdeu-se, e o debate ficou preso à velha troca de

fagulhas. O argumento do defensor ficou restrito basicamente à aceitação e vendas dos

autores de fantasia.

Para nós, pesquisadores de Literatura, importa-nos responder às várias perguntas

que ficaram no ar. Que Literatura é esta? A que Literatura Fantástica Brasileira estamos

nos referindo ao falar de Raphael Draccon, Eduardo Spohr, André Vianco ou Jorge

Tavares? Estamos de fato diante de um fenômeno literário sólido, que merece não só a

atenção como também o devido reconhecimento da academia, e seu lugar no cânone?

Esta primeira tentativa de se entender o fenômeno resultou principalmente numa busca

pelas origens e formas que este gênero literário assumiu até chegar no Brasil, e como ele

se manifestou nas páginas de seu principal porta-voz, a trilogia Dragões de Éter,

publicado em 2007 por Raphael Draccon

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Capítulo 1

Literatura Fantástica: Delimitando o tema.

O termo Literatura Fantástica é por si só problemático. Comecemos procurando

uma definição e consideremos como “Literatura Fantástica” toda aquela em que a fantasia

se faz presente. O resultado é praticamente todos os autores da Literatura Universal: Se a

Literatura é uma tentativa de ver se a vida é possível em outras condições, então toda a

Literatura vem, em maior ou menor grau, da Fantasia.

Mudemos então a definição, e troquemos “fantasia” por “sobrenatural”. O resultado

se afunila, mas ainda é imenso. Por sobrenatural entendemos o que está além da natureza,

o extraordinário, excessivo e muitas vezes ligadas a fatores extraterrenos. A esta categoria

encontramos um E.T.A Hoffmann, um Allan Poe, um Jorge Luis Borges e também um

Kafka, cuja relação com o sobrenatural tende a ser mais sutil e psicológica. Do mesmo

modo, também pertence à esse gênero um H.P. Lovecraft, um Asimov e um Bradbury,

onde o sobrenatural se faz no contato com outro mundo. E por falar em outro mundo,

incluímos nesse gênero ainda Tolkien, um C.S. Lewis e também George S. Martin, cujo

fantástico se encontra em toda a construção de um novo mundo com elementos mágicos

e mitológicos.

Podemos ir além. Podemos incluir as mitologias, e assim temos Homero, Virgílio

e Sturludson. Autores conhecidos antes por dar forma à tradições populares do que por

de fato terem criado suas histórias. Assim sendo, as fábulas poderiam também se encaixar

aqui: nada mais sobrenatural do que um boneco de madeira ganhando vida através de uma

fada, ou de uma sereia apaixonando-se por um humano, ou mesmo duas crianças perdidas

na floresta encontrando uma casa de doces.

As tradições orais, segundo alguns historiadores como Darnton, eram alegorias

com fins pedagógicos, e se estamos falando de alegorias, por que não incluir aqui também

Geroge Orwell , Huxley e Golding?

Sob essa ótica, também grande parte dos autores brasileiros se encontram nessa

definição. Joaquim Manuel de Macedo, Claudio Manoel da Costa, José de Alencar,

Machado de Assis, Guimarães Rosa, Mario de Andrade. Em todos eles o sobrenatural

aparece em maior ou menor intensidade. Mas que semelhanças narrativas e estruturais

podemos encontrar entre eles?

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Assim sendo, a definição Literatura Fantástica não nos bastaria aqui. Estamos nos

referindo, nesse trabalho, a uma literatura onde o fantástico é visível e palpável, onde

seres mitológicos surgem diante de nossos olhos e, por mais horror que cause aos

personagens, pertença naturalmente ao mundo onde se passa a narrativa.

Todorov elenca em seu livro “Introdução a Literatura Fantástica”, quatro formas básicas

do Fantástico, denominados “estranho puro”, “fantástico estranho”, “fantástico

maravilhoso” e enfim “maravilhoso puro”. Destes, podemos destacar o “maravilhoso

puro” como objeto de nossa atenção. Todorov o aponta como um gênero em que o

mágico, o sobrenatural e o maravilhoso emergem na história sem causar estranheza aos

personagens e para ele, os contos de fada são o melhor exemplo.

O autor ainda destaca quatro subgêneros deste “maravilhoso puro”. O primeiro é o

maravilhoso hiperbólico”, onde os fenômenos são menos fantásticos do que exagerados,

isto é, onde se figuram coisas reais em dimensões colossais. Muitas vezes, estas mesmas

dimensões existem apenas na fala e na visão de um personagem

O segundo subgênero é o maravilhoso exótico, no qual o autor “narra

acontecimentos fantásticos sem apresenta-los como tal”, isso porque se passam em

lugares que o autor sabe que o leitor desconhece. Todorov exemplifica com passagens do

Livro das Maravilhas de Marco Polo, ou das aventuras de Sindbad o marujo das Mil e

Uma Noites.

Todorov ainda elenca o maravilhoso instrumental, e o maravilhoso científico,

voltado mais especificamente para os aparatos tecnológicos estranhos ao mundo do

personagem ou do leitor.

O maravilhoso exótico é o que mais se assemelha à literatura que pretendemos

estudar neste trabalho, porém a definição dada por Todorov não consegue dar conta de

toda a sua dimensão: Nosso objeto vai além de um conto de fadas, comumente

apresentado como uma narrativa curta, infantil e repleta de elementos maravilhosos. A

Literatura Fantástica, que recentemente tem conquistado os leitores e as livrarias, possui

características próprias que já não cabem nesta definição. No mundo anglófono, onde o

gênero teve bastante força e popularidade, usa-se o termo fantasy para designar esse

maravilhoso puro, e high fantasy para especificamente para cenários de estilo medieval.

No Brasil, por sua vez, convencionou-se até o momento chamar de Literatura Fantástica

toda a recente produção que envolva essa fantasia, colocando numa mesma estante

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autores como Draccon, André Vianco, Eduardo Spohr e Carolina Munhoz, o que por

vezes gera certa confusão com as linhas fantásticas já mencionadas.

Assim sendo, para evitar tal confusão usaremos o termo Fantasia, ou Literatura

Fantástica quando se tratar do gênero mais abrangente – que pode envolver da mitologia

ao realismo fantástico – ehigh fantasy para designar aquela que, como veremos adiante,

surgiu e se firmou no século XX e que é, por certo, o tema de nossa pesquisa.

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Capítulo 2 A gênese da Fantasia. 2.1 - Das cavernas à Babel.

Localizar o início da Literatura Fantástica é um trabalho penoso e também

delicado. Em geral, concorda-se que o fantástico surgiu ainda no período paleolítico,

quando nossos a mente de nossos ancestrais primatas se deparou com fenômenos que

eles não conseguiam explicar, como vida, morte e natureza. Surgiram assim entidades,

os deuses.

Para se chegar à criação de um panteão, porém, é necessário se localizar as

origens do pensamento abstrato. E para essa pergunta, alguns historiadores como

Diakov e Kovalev nos dão alguma explicação.

Segundo eles, a religião seria talvez a primeira manifestação de pensamento

abstrato, e teria ocorrido no período paleolítico superior, momento em que o homem

ainda vivia da caça e da coleta, mas ao mesmo tempo agrupamentos humanos já eram

freqüentes, bem como o domínio de pequenas técnicas além de uma divisão rudimentar

do trabalho. Esses elementos levariam o homem a prestar mais a atenção na natureza e

assim buscar explicações para o que não se compreendia.

Na realidade, a religião resulta não de ociosas meditações, mas da atividade produtiva do homem: em virtude de um desenvolvimento insuficiente da experiência e do pensamento humano, concebiam às vezes idéias falsas sobre sua atitude para com a natureza(DIAKOV e KOVALEV, 1976, p68)

Nessa concepção de religião, as entidades possuíam na maioria dos casos uma

figura zoomórfica, ou seja, os deuses possuíam formas de animais, e não nos é difícil

entender por que: o homem estava em posição de fragilidade e extrema dependência dos

acasos da natureza. A natureza que o sustentava era a mesma que o aterrorizava, e numa

era em que não se possuía o domínio e conhecimento de seu ciclo, restava ao homem

tentar compreendê-la ou dominá-la através de ritos.

Séculos se passaram até o período Neolítico. As mudanças são grandes tanto na

vida prática do homem quanto em seu imaginário. É neste momento em que a agricultura

e o pastoreio são desenvolvidos. Essas práticas permitem uma observação ainda mais

cuidadosa sobre a natureza, e o resultado vem no desenvolvimento de novas técnicas além

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de várias compreensões. O ciclo da natureza, as estações do ano e seu período são

desvendadas. O homem torna-se sedentário, o que também resulta em mais

desenvolvimento. Cavernas e taperas que lhes serviam de abrigos temporários são aos

poucos substituídas por aldeias com casas feitas do material à sua disposição, como a

argila ou madeira.

Nesse contexto, em que a natureza começa a ser compreendida e até dominada, os

paradigmas do imaginário alteram-se. O animal deixa de ser aos poucos o símbolo de

força maior e quem o substitui é o próprio homem. O deus antropomórfico começa a

surgir. Do culto animista o homem passa para o culto ao antepassado humano. É desta

época que datam as lendas de vitória do homem sobre seus irmãos – aves e animais – e o

antropomorfismo(DIAKOV e KOVALEV, 1976, p68)

Mais adiante ele ainda ressalta.

A tradição oral distinguia-se por uma grande diversidade. Todas as tribos tem suas lendas que evocam a origem do mundo e dos primeiros homens, o passado da tribo, a luta do homem com a natureza e suas vitórias. São geralmente cheias de otimismo e de

crença do triunfo do homem sobre as forças hostis(DIAKOV e KOVALEV, 1976,

p68)

É assim que o deus babilônico Marduk venceu a serpente Tiamat, ou o deus asteca

Huitzilopotchli derrotou a dragão Quetzalcoatl. Hércules triunfa sobre o cão do inferno,

e Telebino – um possível ancestral de São Jorge – vence o dragão como também o faria

Sigurd ou Siegfried nórdico.

Percebemos então que se muda não somente a figura do mito, mas também sua

função. O imaginário, dentro da esfera religiosa, apresenta-se como uma possibilidade de

diálogo entre os vivos e os ancestrais heróicos. Essa função abriu caminho para uma

rudimentar idéia de identidade cultural, o que seria quase impensável no período

paleolítico.

Fora da esfera religiosa, o mito ainda ganha uma função pedagógica, ou seja,

repassar os valores da sociedade para as novas gerações. Os atos de bravura e inteligência

dos ancestrais deveriam ser vistos como exemplos e motivo de orgulho para suas tribos

Quando estas tribos crescem e alcançam aos poucos a era das civilizações, as lendas

também se organizam em epopéias. O épico de Gilgamesh, a Ilíada, o Ramayama, A

Canção dos Nibelungos, e até mesmo o Antigo Testamento – que sob vários aspectos

pode ser considerada uma epopéia do povo hebreu – e vários outros vãos surgindo, seja

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na oralidade, seja por escrito. Nas epopéias, aqueles ancestrais rudes e maltrapilhos

tornam-se, grandes guerreiros de força e honra sem igual, e seus feitos, muitas vezes o

saque de uma cidade, tornam-se batalhas de proporções imensas dentro desse imaginário.

Quase junto à epopeia, surge também uma figura peculiar que são os bardos e

rapsodos, os homens que se especializarão em contar e recontar essas histórias e assim

entreter sua gente, seja ao redor da fogueira, seja num palácio. É assim que aos poucos a

figura do poeta começa a se figurar como individual.

Com o início da idade heróica, mudaram completamente a função social da poesia e a posição social do poeta. A visão secular e individualista da belicosa classe superior confere novo conteúdo à poesia e novas atribuições ao poeta. Este agora abandona o anonimato e o distanciamento sacerdotal, e a poesia perde seu caráter ritual e coletivo. Os reis e nobres dos principados aqueus do século XII a.C, os “heróis” que deram nome a essa idade, são salteadores e piratas – que se orgulham de autodenominar-se “saqueadores de cidades” -, e suas canções são mundanas e profanas. A lenda de Troia, o coroamento da fama desses heróis, nada mais é do que a glorificação poética da

pirataria(HAUSER, 2000, p 57)

Apesar desse otimismo em relação à natureza, o medo dela ainda era presente. Os

muros que se erguiam ao redor da cidade deixavam para fora não só os inimigos mas

também o mundo sobrenatural. Ouvir ou ler os épicos, ou participar de uma cerimônia

religiosa era também ter a certeza de que os demônios não mais entrariam em suas vidas.

Segundo assiriólogos como Mella e Garelli, os sumérios tinham tal medo de retornar à

barbárie que confiaram cada instrumento de trabalho ligado à civilização à um deus.

Arados, comércio, tijolos e carruagens tinham suas divindades que zelavam por sua

continuidade, formando um panteão de aproximadamente 2 mil deuses.

Assim sendo, o ato de se ouvir histórias fantásticas era mais do que um

entretenimento, era a busca de uma certeza de que o que foi deixado para trás – as

demoníacas bestas que os atemorizavam em épocas passadas – estava de fato vencido.

O homem era vitorioso, mas a figura divina ainda estava acima, e ela deveria conduzir a

civilização.

Estes elementos nos possibilitaram localizar o gosto do homem por ouvir e criar

histórias fantásticas, e conseguimos até aqui identificar vários motes comuns à high

fantasy, como grandes heróis, seres fantásticos e proezas maravilhosas. Mas há ao mesmo

tempo um grande abismo separando uma Epopeia de Gilgamesh de um Senhor dos Anéis

ou Dragões de Éter. Não o sentimento de compromisso religioso que norteia um Tolkien

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em sua composição do Senhor dos Anéis. Da mesma forma, não procura um Draccon

glorificar a memória dos ancestrais ou dedicar suas páginas ao triunfo do homem sobre a

natureza, e o mais importante: nem Tolkien e nem Draccon acreditam na existência dos

seres mágicos sobre os quais escrevem.

Não é a este serviço que está a high fantasy. É necessário que avancemos alguns

séculos para localizar outras influências.

2.2 O século XIX Fantasia, identidade e fuga.

Os séculos XVIII e XIX foram fundamentais para a formação da sociedade

contemporânea, principalmente no Ocidente. É a época do Iluminismo, das

transformações do pensamento político e econômico, da laiscização do estado, e da

revolução nos meios de produção. Não é à toa que os historiadores localizam a Revolução

Francesa, evento a partir do qual estes elementos tornaram-se cada vez mais aplicados,

como o marco do início de nossa era.

Para a História da Literatura ele também tem um significado especial, pois, entre

outras coisas, celebrizou os primeiros escritores profissionais, não mais dependentes de

um patrono, tanto menos continuaram a se verem como uma importante peça de

moralização da sociedade.

Trezentos anos após sua consolidação, o regime absolutista mostrava amplos sinais

de decadência. A nobreza, cada vez mais exprimida em seus palacetes, endividava-se e

não raro vendia seus títulos para se salvar da ruína total. O que lhes restava era sua

influência, intelectualidade e posse do estabelishment cultural, mas isso tudo também

logo ela teria que dividir com a burguesia ascendente.

Tal foi o final do século XVIII e início do XIX na Europa. A Revolução Francesa

e as guerras napoleônicas desbancaram momentaneamente as mais tradicionais

monarquias da Europa, que logo o mais se restaurariam após a derrota do corso em

Waterloo apenas para ver seu poder novamente vacilante. A população desses países,

ávidas por um regime democrático, pautado nos ideais iluministas que também guiaram

a Revolução Francesa, logo fariam a bandeira da revolução tremular do Porto à Palermo.

Entre os rios Reno e Vístula estava a região que talvez mais tenha sofrido nessas guerras.

Servindo involuntariamente de palco de várias batalhas, a Alemanha ainda se encontrava

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tão fragmentada quanto na Idade Média. Nenhum reino ali tinha voz o suficiente para se

impor naquele contexto. As pequenas monarquias gastavam seu dinheiro numa ampla e

inútil burocracia. Ao povo cabia apenas a tarefa de cuidar de sua felicidade individual.

Alguns historiadores como Helmuth Plensser apontam a Reforma como origem

desse pensamento. Segundo ele, em troca da liberdade religiosa e interior conseguida pela

Reforma, os alemães se submeteram a um Estado absolutista regional. Enquanto na

mesma época os países calvinistas abraçavam as ideias humanitárias, racionais e liberais,

e os católicos mantinham o pensamento da Baixa Idade Média, a Alemanha parecia

regredir para um paternalismo apolítico.

Norbert Elias também observa o apolitismo do povo alemão. Para ele, a aceitação

da autoridade absoluta de Hitler no lugar da República de Weimar, nos ano de1930, tinha

como origem a catástrofe da Guerra dos 30 anos. Guerra esta que causou tamanha

destruição na Europa Central, que restou aos alemães uma submissão às autoridades

locais, numa tentativa de sobreviver. E naquele contexto, as autoridades mais próximas e

fortes eram as regionais.

O poeta e dramaturgo Shiller dizia que era “apanágio do alemão não se deixar

obcecar pela política, mas viver a vida do espírito”. Ele e vários outros intelectuais

esperavam fazer da Alemanha uma Grécia moderna, uma fragmentada terra de filósofos

e artistas. Parecia, enfim, um terreno bastante desfavorável para o surgimento de um

nacionalismo.

A necessidade, no entanto, implantaria esse pensamento, e essa necessidade

mostrou-se justamente nas Guerras Napoleônicas que demonstraram a fragilidade da

Alemanha, mesmo da Prússia frente a um país unificado e modernizado. A fragmentação

política ainda propiciava a constante intervenção da Áustria e até o perigo de algum

estado ser simplesmente anexado, como de fato ocorreria.

Além disso, desde os idos de 1760 um pequeno surto industrial se iniciou na

Inglaterra. Uma nova forma econômica baseada no trabalho assalariado e na livre

concorrência. Essa nova forma de produção começou aos poucos a encontrar terreno

também no continente e alterar profundamente a dinâmica econômica e social por onde

passava. Um governo de característica semifeudal como da maioria dos estados alemães

poderia se adaptar ao Mercantilismo, mas não ao Capitalismo Liberal. Era necessário que

uma unificação sob um único estado moderno ocorresse

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Foi nesse contexto de conflitos que surgiu a escola Romântica. E vários escritores

e filósofos passaram a aderir ao movimento de unificação. Os obstáculos, porém, eram

vários. Não apenas na pessoas dos príncipes locais que não queriam perder seu

privilégios, mas também das próprias massas que não se identificavam com a ideia de

uma única nação.

Assim, no plano social ocorriam as lutas contra os poderes locais e também o

academicismo dos aristocratas, que ainda dominavam a vida artística e filosófica alemã.

No plano formal, veio a exaltação, o hiperbólico e nostálgico. Vieram ainda o

sentimentalismo e o misticismo, forte contraponto ao racionalismo clássico que marcou

o mundo setecentista.

Os intelectuais passaram a jornadear pela Alemanha em busca de qualquer coisa

que pudesse recuperar ou simplesmente criar uma identidade nacional. Herder(1744-

1803), os irmãos Grimm(1785-1863 e 1786-1859), Wihelm Von Humboldt(1767-1835)

entre outros coletaram rico material popular na forma de cantigas, lendas e folclore, que

foi amplamente usados pelos românticos da geração seguinte.

O romantismo revelou suas forças mais vigorosas durante as primeiras décadas aproximadamente. Abarcou, de modo geral, os anos de 1795-1835. Anunciou seu advento no domínio nacional durante os longos anos de escravidão, pois o romantismo retornou às fontes da própria história germânica. A História tornou-se a geração que se denominou romântica, a revelação de sua essência. A germaneidade(Teutschtum) que venceu sob Hermann, o cherusco, as legiões romanas e que realizou na Idade Média a grande ideia do Reich, reluziu qual estrela luminosa e “leitmotiv” para o futuro estado nacional(KOHNEN,

1962, p200)

A História, portanto, foi o grande aliado dessa unificação. Em 1812 a primeira

cátedra de História foi fundada na Universidade de Berlim por Wihelm Von Humboldt.

E lá, uma nova historiografia nasceria.

Nesse contexto, a Idade Média, agora redescoberta, ganha novo significado e para

ela os artistas passam a se voltar e usá-la como inspiração.

2.3. O Romance Histórico e a Idade Média.

O Romantismo começou na Alemanha, bem como os conceitos de uma nova

historiografia e até idealização da Idade Média, mas o romance histórico se iniciou na

Inglaterra. As condições históricas e sociais na Inglaterra eram diferentes da Alemanha,

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mas nem por isso menos abertas ao romantismo. Pelo contrário, o fato dela ter iniciado o

que hoje chamamos de Liberalismo e também Revolução Industrial parece justamente um

bom elemento para a chegada dessa nova estética.

A Inglaterra sempre foi um pais pequeno e com menos divisões regionais do que a

maioria dos reinos na Europa continental. Quando a Revolução Industrial se iniciou, ela

conheceu um rápido inchaço das cidades, e o Liberalismo econômico trouxe uma nova

mentalidade que entrou em choque com a tradição.

Até meados do século XVIII um homem comum na Europa pouco saia de sua vila.

Conhecia relativamente bem os moradores de seu distrito, e seguia a mesma profissão de

seus pais e avôs. Nas oficinas, patrão e empregado dividiam a mesma mesa e relação entre

eles era praticamente paternal. A igreja era o centro da comunidade, e não raro também a

juíza de muitas questões.

A industrialização diminuiu as distâncias e aumentou as cidades. Na passagem do

século XVIII para o XIX Londres já conta com mais de 1 milhão de habitantes, e as

cidades de Manchester, Bristol e Birmingham seguem o mesmo caminho. As cidades

provincianas também crescem rápido, muito além do que esperava o cidadão comum, que

cada vez mais se vê rodeado de estranhos. O ritmo de trabalho se acelera e o

relacionamento entre as pessoas se distancia. A busca pelo lucro na sociedade liberal

supera o que antes constituíam barreiras. As cidades tornam-se então antros de arrivistas,

oportunistas e mendicância.

Perdido nessa sociedade, o homem se fecha e busca nessa nova arte um refúgio,

um escape.

O Romantismo levou seu individualismo a extremos como uma compensação

para o materialismo do mundo e uma proteção contra a hostilidade dos

burgueses filisteus às coisas do espírito(HAUSER, 2000, p677)

A Inglaterra foi o primeiro país que experimentou essa situação, e por isso o

romantismo encontrou lá um terreno fértil para se expandir. E a grande contribuição

inglesa foi o Romance Histórico.

Juntando as conquistas do romantismo alemão à situação local, os escritores

ingleses ofereceram ao seu povo uma oportunidade de fugir daquela cidade empoeirada

e aventurar-se numa era passada onde, propunham eles, as relações entre as pessoas, seus

trabalhos e a natureza eram saudáveis, e em que a honra tinha mais sentido do que o

dinheiro. A Idade Média foi escolhida para representar esses ideais.

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Neste momento, antes de prosseguirmos, é importante fazermos um parêntese e

explicar em linhas gerias a Idade Média. O que ela foi, como ela se viu e o que dela foi

interessante ao homem do século XIX, e, enfim, que importância isso tem para a high

fantasy.

2.4 A Idade Média

Quando o Império Romano ruiu, muito de sua produção intelectual adormece e só

será redescoberta com o passar dos séculos, na medida em que a poeira das constantes

invasões bárbaras descia.

Até lá, a chamada Idade Média mostrou-se uma era de incerteza. Sob as ruínas de

Roma, os povos de além do Reno se estabeleciam, misturando-se com as populações

locais.

Estes povos eram os germânicos. Godos, francos, burgúndios, lombardos, saxões,

vândalos, alamanos e uma série trazem sua língua, sua cultura e também seu imaginário,

com seus deuses, criaturas fantásticas e heróis, que se misturam com as cores locais

remodelando aos poucos a Europa.

A sombra do Império Romano, no entanto, era viva, e a chama que melhor o

irradiava era o cristianismo. Assim, por séculos, líderes germânicos que buscavam

autoridade entre os seus procuravam garanti-la através de um reconhecimento de Roma,

e quem a representava agora era o papa. O processo era quase sempre o mesmo: o chefe

bárbaro aceitaria o batismo cristão e se comprometeria a defender a fé cristã, em troca

seria reconhecido como rei.

Tal foi com Carlos Magno ou Eduardo o Confessor. Ambos reis que, em devido

lugar, procuraram unificar um agregado imenso de povos e assegurar essa unidade através

de sua pessoa reforçada pela igreja. As velhas religiões seriam então substituídas. É dito

que Carlos Magno, por exemplo, teria mandado derrubar uma árvore sagrada para os

saxões e com sua madeira construiu uma igreja.

Por volta do ano 700 d.C novas Invasões chacoalham a Europa. Magiares, árabes,

eslavos e principalmente vikings ameaçam esses novos reinos. A forma encontrada para

sobreviver é inspirada nos monastérios, e assim a Europa cristã se fragmenta e o

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feudalismo vai tomando forma. O poder dos reis diminui, ao passo que aumenta o poder

da nobreza guerreira local.

Entretanto, já não é possível superestimar a influência da igreja na Idade Média: o

cristianismo era uma religião urbana. Como já dito, ela pertencia àqueles que, em Roma,

buscavam manter sua identidade e àqueles que, fora dos seus portões, esperavam no

batismo um reconhecimento de poder vindo de Roma – ou seja, o passaporte para a

civilização.

O historiador Jacques Legoff nos aponta a Europa medieval como uma grande

floresta, e sua civilização é construída em clareiras. Para além delas, o mundo pagão

perdurava, e, em seu imaginário, toda a sorte de criaturas e espíritos ruins estavam prontos

para assaltar os homens. Elfos e dríades percorriam as florestas, enquanto, no interior das

cavernas, kobolds estavam prontos para matar qualquer minerador incauto. As cachoeiras

tinham suas ninfas e até as ilhas podiam ter suas criaturas mágicas e maléficas.

Na imaginação medieval, com raízes num folclore imemorial, esses lobos devoradores transformam-se facilmente em monstros(...). De todos os bosques saem homens-lobos, os lobisomens, em que a selvageria medieval identifica a mescla da besta e do homem semibárbaro. Por vezes a floresta esconde monstros ainda mais sanguinários, legados à Idade Média pelo paganismo, domados por Santa Marta. Deste modo, as florestas, para destes terrores excessivamente reais, dão azo a um universo de lendas maravilhosas e assustadoras. (LeGoff, p126)

Tal contexto nos leva a concluir que estamos diante de uma espécie de retrocesso:

uma dinâmica muito semelhante àquela apontada no capítulo anterior toma forma aqui.

O imaginário dava forma ao mundo ameaçador da natureza ao redor das vilas e aldeias.

Um imaginário que lentamente apenas cede espaço para o cristianismo, e não raro

fundindo-se a ele, transformando heróis em santos e mártires.

É também aos poucos que os invasores são repelidos ou integrados ao mundo

cristão. Por volta do ano 1060, os grandes chefes vikings já eram cristãos. No mesmo

século, reis eslavos e húngaros também se convertiam. Na Península Ibérica, os mouros

começavam a ser pressionados pelos reinos do norte. Devagar, o castelo feudal deixa sua

função de proteção de um território para se tornar uma corte, e seu senhor também

passaria menos tempo preocupado com as guerras. Os castelos começavam a se mostrar

um local atrativo para um pequeno renascimento artístico, abrindo caminho para a poesia

trovadoresca.

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17

Por todo o lugar os trovadores apareciam, dando forma cantada à lendas pagãs

misturadas com o mundo cristão. A Canção de Rolando, Tristão e Isolda, A Canção dos

Nibelungos além das histórias do rei Arthur eram histórias conhecidas já faziam séculos,

mas é apenas por volta de 1100 d.C que elas ganham forma escrita.

Enfim, os caminhos se abriam aos poucos para um novo tempo, enquanto os traços

tipicamente medievais – a fragmentação política, o imaginário cristão-bárbaro, a cultura

dos cavaleiros – passavam cada vez mais para o mundo das artes.

E foi nesta arte que o medievalismo seduziu o século XIX. Os contos do Rei Arthur

ou do ciclo de Carlos Magno, trazem uma versão bastante idealizada e até superestimada

da lealdade medieval. Os cavaleiros são sempre homens bravos, prontos a se ajudarem

mutuamente e não temem inimigos, mesmo quando eles vem aos milhares. Se um deles

é morto, é de obrigação dos demais vingarem sua morte, ainda que isso, na realidade, não

ocorresse como atesta Dominique Barthélemy. Também o amor era sempre poético e

inspirador, digno de total submissão do amante ao sentimento pela amada.

Enquanto na realidade, a maior parte das guerras medievais foram fraticidas, ou

seja, dentro da cristandade, no romance de cavalaria o adversário era quase sempre o

pagão, principalmente muçulmano. Este adversário era pintado de maneira caricata,

praticante costumes exóticos que não correspondiam aos praticantes do islamismo, como

a idolatria. Segundo Barthélemy, esta representação era menos fruto de um ódio do que

de uma ignorância à alteridade, assim como seus efeitos: Apesar de sua fé e prática

religiosa serem contrárias à fé cristã, este muçulmano sabia ser honrado e bravo nas

batalhas.

Não raro, o mundo mágico interferia. O heróis Siegfried matava um dragão e se

banhava em seu sangue, Persival procurava o Santo Graal, o copo no qual Jesus teria

tomado na Última Ceia e que conferia poderes mágicos. Carlos Magno, quando sentia-se

acuado, rezava à Deus e a interferência divina era quase imediata, geralmente na forma

de um tremor que tragava a fortificação e parte do exército inimigo.

As armas representavam a bravura e habilidade de seu guerreiro. A lança era a arma

mais usada, mas a espada que gozava de maior fama. Carlos Magno empunhava sua

Durindana que foi, então, enterrada com ele. Arthur tornou-se rei após empunhar a espada

Excalibur, e nas lendas nórdicas a espada Gram, ou Notung, causava medo nos

adversários de Siegfried.

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18

A clemência também era apanágio do cavaleiro. Uma vez vencida a batalha, o

inimigo sobrevivente merecia o batismo. Ferrabráz, após violenta luta contra Oliveiros,

rende-se e é batizado, tornando-se grande amigo. Ainda que na realidade, como atestam

os estudos sobre as cruzadas, as guerras da Reconquista e a expansão alemã no leste, esta

clemência fosse muito menos praticada.

Esta Literatura, que costuma ser referida como Romance de Cavalaria, celebrizava-

se por estas características, e sua escrita foi bem além da Idade Média. Ainda no século

XVIII na Península Ibérica, onde a memória das lutas entre Carlos Magno e os

muçulmanos permaneceu mais intensa, um certo Flaviense escrevia novas histórias sobre

este homem que se tornou lenda medieval.

Este gênero também foi reconhecido mais tarde por Frye, que o chamou de História

Cavaleiresca. Um conto de personagens e situações arquetípicas, baseados neste romance

de cavalaria. Voltaremos a falar dele mais adiante

2.5 – A Idade Média aos olhos do Romantismo

O artista romântico pareceu se interessar menos pelas pesquisas históricas feitas

sobre a Idade Média do que pela redescoberta destas histórias. O romance de cavalaria

oferecia a ele os ingredientes para sua arte e para seu consumidor a fuga para uma

realidade alternativa.

Nos romances históricos de cenário medieval, os personagens parecem assumir

formas estereotipadas de heróis e vilões com papeis bem claros. O protagonista age não

necessariamente como um cavaleiro cruzado histórico, e sim como um Lancelot ou

Tristão. O sentimento e honra o guiam e o protegem, e muito embora ele se utilize de uma

armadura completa, é capaz de realizar grandes proezas atléticas. A simplicidade e a

natureza acompanham os protagonistas. Interesse e mesquinharia só tem lugar no coração

do antagonista, que, no entanto, combate o protagonista frente a frente. O trabalho manual

é também exaltado, ao passo que o negociante é tratado com certa reserva.

Em outras palavras, o romance histórico de cenário medieval oferecia ao homem

um vínculo com um passado idílico. No romance Ivanhoé, de Walter Scott(1771-1832),

o rei Ricardo Coração de Leão tem suas qualidades exaltadas num cântico.

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19

A high fantasy também se apropriou deste universo, e cenários inspirados na Idade

Média se figuram entre os favoritos pelos autores e consumidores do gênero. A própria

idealização dessa Idade Média como uma era dourada, em que as relações sociais eram

mais saudáveis também é contemplada por este nicho. Os personagens arquetípicos, no

estilo do romance de cavalaria, também são grandemente contemplados. No Senhor dos

Anéis, o personagem Aragorn é uma transposição deste Ricardo Coração de Leão, e nos

Dragões de Éter, o príncipe Axel personifica estas mesmas virtudes.

O romance do século XIX também flertou com o fantástico. Em alguns casos

criando apenas uma atmosfera propícia para criar certa sugestão no leitor. Assim Walter

Scott nos apresenta o cenário deste romance em suas primeiras páginas do romance

Ivanhoé

O sol se punha sobre uma das ricas clareiras ervosas da floresta a que nos referimos no começo do capítulo. Centenas de carvalhos copados, de troncos curtos, amplos ramos, que haviam presenciado talvez a marcha dos soldados romanos, lançavam os braços nodosos sobre o espesso tapete do mais delicioso relvado; em alguns sítios, misturavam-se às faias, aos azevinhos, aos arbustos de várias espécies, e faziam-no de maneira tão cerrada e completa que interceptavam os raios horizontais do sol poente; em outros, afastavam-se, formando amplas paisagens, em cujo emaranhado a vista se deliciava ao estender-se, enquanto a imaginação as considerava como caminhos que conduziam a cenários ainda mais agrestes de rústica solidão. Os raios rubros do sol lançavam uma luz fraca e pálida, que permanecia suspensa em parte sobre os ramos quebrados e os troncos mugosos das árvores, deles iluminando, em remendos resplandecentes, as partes do relvado para as quais abriam caminho. Um espaço aberto, consideravelmente amplo, no meio desta clareira, parecia ter sido reservado, antes, aos ritos da superstição druídica, pois, no alto de uma colina, tão regular que parecia artificial, ainda permanecia parte de um círculo de pedras brutas não trabalhadas, de grandes dimensões. Sete mantinham-se de pé; as outras haviam sido removidas, provavelmente pelo zelo de algum convertido ao cristianismo, e jaziam algumas, caídas perto de onde estavam antes, e outras sobre as fraldas da colina. Somente uma grande pedra rolara para o fundo de um pequeno riacho, e, detendo o curso de um ribeirinho, que deslizava suavemente em torno da colina, dava, obstruindo sua passagem, uma voz débil e múrmura ao plácido regato, silencioso nos outros lugares. (SCOTT, 2003, p 10)

Nada de surpreendente ocorre naquela floresta, porém a ambientação e a maneira

como ela é descrita nos sugere que talvez algo pudesse ocorrer, ou talvez já tenha ocorrido

no passado. É o espaço propício para o fantástico e o sobrenatural.

Sir Horace Walpole(1717-1797) em seu Castelo de Otranto nos traz uma história

peculiar passada na Itália medieval, e também nos descreve certos ambientes com esta

carga sombria, propícia ao fantástico, quando a personagem Isabela foge de Manfredo,

usurpador do castelo, pelo calabouço.

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A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que abria para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ele havia passado e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas. Cada rumor deixava-a possuía por um novo terror; mas ainda assim temia, acima de tudo, a voz irada de Manfredo ordenando seus criados a perseguirem-na. Ela pisava tão levemente quanto sua impaciência o permitia, ainda assim, com frequência estancava para ouvir se estava sendo seguida. Num destes momentos acreditou ter ouvido um suspiro. (Walpole, 2010, p41)

O tal suspiro aterroriza a personagem, mas revela-se pertencer a outro personagem

que a auxilia a escapar. De qualquer maneira, a descrição deste trecho cria uma atmosfera

sombria, que tanto provoca tensão no leitor quanto sugere que algo de anormal pudesse

ocorrer ali naquele calabouço.

Porém, estas situações ainda estão no campo do imaginário, isto é, o fantástico não

nos salta os olhos, e quando o faz – no Castelo de Otranto há um fantasma – sua aparição

é breve, desconsertando a lógica dos personagens que a presenciam. A high fantasy se

utiliza muito da criação do suspense e ambientes como floresta e masmorras estão entre

seus favoritos. Mas ela, o fantástico está lá, apenas esperando o leitor virar as páginas

para surgir. No Senhor dos Anéis, a comitiva atravessa um complexo subterrâneo

infestado de duendes, trolls e demônios ancestrais.

Faltava ainda, portanto, quem trouxesse diante do leitor e dos personagens

abertamente o fantástico como num conto de fadas.

Richard Wagner(1813-1883) foi uma destas pessoas. Embora pertença ao mundo

da música, este compositor alemão se aventurou em várias áreas, isto porque acreditava

da ideia do Gesamtkunstwerk, isto é, a Obra de Arte Total, e seus dramas musicados –

mais comumente chamados de óperas – ilustravam esta tentativa. Em seu palco a música,

a escrita, a representação, os recursos cênicos, tudo deveria se desenvolver juntamente

para a criação e desenvolvimento de uma história. Assim, o compositor escrevia seus

próprios libretos e dirigia a própria montagem da peça.

O tema de seus dramas tinha forte apego mitológico. Estas lendas medievais,

redescobertas pelo pesquisadores dos séculos XVIII e XIX, eram transpostas para o palco.

A lenda nórdica do Navio Fantasma, a história de Parsifal e Lohengrin – ambas

pertencentes ao ciclo do Santo Graal – bem como o amor de Tristão e Isolda ganharam

músicas que se tornaram icônicas.

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21

Em 1876 seu trabalho mais importante foi representado: tratava-se da tetralogia O

Anel do Nibelungo. O drama trazia ao palco a mitologia germânica, com seus deuses,

ninfas, gigantes e anões numa trama que misturava diversas histórias mitológicas

provindas da Canção dos Nibelungos e das sagas nórdicas. A música, somada aos efeitos

cênicos, traziam uma sensação semelhante ao que hoje nos traz o cinema.

O homem do século XIX encontrou ali uma obra de arte que correspondia às suas

ânsias escapistas e aos seus desejos grandiosos. Nas letras o compositor deixou a desejar,

e sua poesia é considerada fraca, e a filosofia que coloca na boca de seus personagens são

frutos de uma mistura de ideias confusas. Alguns musicólogos como Rolland de Candé o

apontam como possuidor de uma cultura vasta, mas superficial e de efeito por vezes

confuso.

(...) Posto em estado hipnótico por uma música sublime, pode acreditar-se iniciado numa sabedoria superior, ao passo que está intoxicado por uma mescla desordenada de dogmas religiosos, lendas e teosofia nebulosa que convergem na exaltação do super-homem(CANDÉ ,2001 p 69)

A escrita de Wagner mistura ainda superação, budismo, pan-germanismo,

marxismo e até anarquismo. Mas que sentido haveria neste parêntese tão particular sobre

um compositor de óperas num trabalho sobre a Literatura de Fantasia? Por hora, importa-

nos apontar o resgate e rearticulação de lendas provindas de diferentes ciclos, fazendo

parte de um mesmo mundo.

2.6. Tolkien

“Numa toca no chão vivia um Hobbit”, foi assim, com esse esboço que um certo

professor de Oxford, e ex combatente da Primeira Guerra Mundial, começava seu

romance que resultaria numa das mais famosas obras literárias. John Ronald Reuel

Tolkien publicou seu romance O Hobbit em 1937. Nela, um hobbit(um ser humanóide de

baixa estatura criado por Tolkien) acompanha uma comitiva de anões para recuperar seu

tesouro guardado por um dragão. A jornada é marcada por perigos como aranhas gigantes,

trolls que tentam devorá-los e florestas sombrias. Em meio à esses momentos, o hobbit,

chamado Bilbo, encontra um misterioso anel que o faz invisível

Esse tipo de literatura já era razoavelmente comum na época. Ainda nos últimos

anos do século XIX, diante do grande sucesso do mercado literário, algumas editoras

resolveram apostar num público menos exigente do que se referia à qualidade literária e

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22

mais dispostos a livros que trariam uma distração e um prazer rápido. Nasciam as Pulp

Magazines, revistas literárias que traziam contos de gêneros que faziam sucesso entre as

massas na época, como o horror, aventura e policial.

Em seu pico de sucesso, entre os anos 20 e 30, um novo estilo começou a aparecer

em suas páginas. Trata-se das weird tales, contos estranhos, em que misturava numa única

história vários gêneros como o gótico, o aventuresco e o horror. Um de seus maiores

escritores, o americano Robert Howard(1906-1936), aos poucos misturou também

elementos épicos e da mitologia medieval e céltica.

Assim sendo, O Hobbit não caiu num terreno árido, e sim num momento em que

uma literatura aventuresca e caráter sobrenatural já fazia algum sucesso. Na época, o

personagem Conan, o bárbaro de Robert Howard já era célebre. Mesmo assim, o livro de

Tolkien parecia trazer uma proposta um tanto diferente, e com uma estética mais branda

em sua forma e conteúdo, em comparação àquela atmosfera bizarra e por vezes de

linguagem violenta das pulp magazines.

O público não tardou a pedir por mais histórias sobre hobbits e aquele mundo

fantástico. Foi então que, numa obra de maior fôlego, Tolkien escreveu O Senhor dos

Anéis.

Nessa obra descobre-se que o tal anel encontrado por Bilbo era um anel de

dominação. Seu criador, Sauron, o fez para dominar os seres da chamada Terra Media –

mundo criado pelo autor – e aprisioná-los na escuridão. Assim, a questão vai muito além

dos hobbits e dos anões, alcançando praticamente todas as esferas da Terra Media.

Diferente do primeiro romance, a linguagem do Senhor dos Anéis é mais adulta.

Enquanto no Hobbit todo o foco narrativo se prende em Bilbo, no Senhor dos Anéis há

diferentes planos e focos, uma vez em que os protagonistas se dividem em grupos. As

tramas também se desenvolvem de maneira mais complexa.

Esse novo livro apresentava aos leitores todo o mundo criado por Tolkien.

Descrevia com bastante precisão e detalhe suas criaturas, com suas terras e costumes e

principalmente sua língua. Tolkien era professor de anglo-saxão e estudioso de outras

línguas antigas, chegando ele mesmo a inventar suas línguas não só em sua morfologia,

mas também em sua sintaxe. Criar seu mundo fantástico era para ele criar uma lenda que

desse força a essas línguas inventadas.

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Aquilo o que Wagner havia feito na ópera com O Anel no Nibelungo, Tolkien fazia

agora na Literatura, isto é, baseado em seus estudos de Literatura e Línguas antigas,

principalmente no mundo germânico e fínico, o professor de Oxford misturava criaturas

do imaginário medieval num mundo de ambientação rústica, semelhante à Idade Média,

e o chamou de Terra Media. Porém, enquanto o mundo de Wagner era limitado pelo palco

e por um enredo, o mundo de Tolkien assumia proporções bem maiores. Livros,

apêndices, contos e simples anotações que o autor fez durante anos passaram a compor

este novo mundo.

O que também as pulp magazines já ensaiavam, tornou-se concreto com Tolkien:

Depois de O Senhor dos Anéis, mundos de contos de fadas não seriam mais apenas

mundos infantis, a Terra Media tornou-se o mundo de contos de fada para jovens e

adultos. Um novo fenômeno literário que teria suas características próprias e nicho

próprio

Como classificar essa nova literatura ensaiada no século XIX, apresentada pelas

pulp magazines e celebrizada por Tolkien? Não eram romances históricos, também não

podiam ser classificados, como vimos, como contos de fadas. Era uma fantasia, uma

fantasia que se fez utilizar de elementos mágicos, mitológicos e folclóricos para contar e

recontar as velhas histórias de lutas entre o bem e o mal. Surgia então a high fantasy.

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24

Capítulo 3.

Aspectos formais

3.1. High Fantasy tolkeniana e sua herança

A Fantasia de Tolkien gira em torno de certos aspectos e formas próprias dos contos

de fadas, ou seja, por mais que seu mundo seja mais adulto e seu enredo e personagens

mais complexos do que “um príncipe num reino distante”, eles cumprem um papel

estereotípico. O bem e o mal são facilmente percebidos e se mantém em seus devidos

lugares por toda a história. O triunfo do bem sobre o mal, aliás, é iminente. A composição

social também é típica dos contos de fada. A Monarquia é bem estabelecida, remetendo

a era dos contos de cavalaria, e os reis são monarcas guerreiros como o rei Arthur ou

Carlos Magno.

A virtude dos protagonistas, aliás, beira o impecável. Vê-se muito dos Doze Pares

de França de Vasconcelos nos personagens Aragorn, Legolas e Gimli de Tolkien. Os

defeitos deles resumem-se, como na Literatura Medieval, à ingenuidade ou hesitação. A

violência praticada pelos protagonistas é também legitimada: se Oliverio e Roldão matam

um sem número de pessoas, essas mortes estão todas perdoadas por se tratarem de infiéis,

apresentados em suas obras como quase sub-humanos. Na literatura de Tolkien, o

opositor É o próprio sub-humano, representado pelas criaturas de aparência bestial. Seis

mil muçulmanos, ou seis mil orcs, não importa. O número de mortos é antes um troféu

do que uma vergonha quando ele representa o mal.

Essas aproximações são mais do que coincidência. Tolkien era grande estudioso da

literatura medieval, chegando a publicar livros e ensaios sobre o tema. A presença desses

elementos também nos remete ao catolicismo do qual o criador da Terra Media era grande

adepto, chegando inclusive a converter amigos.

Estamos, portanto, diante de uma obra de caráter fantástico, e também conservador:

mesmo o mundo sendo fantástico, habitados por dragões que cospem fogo e relâmpago,

as estruturas sociais são as tradicionais de uma monarquia medieval cristã, e tais

características mantêm-se hegemônicas na literatura do gênero high fantasy até os dias de

hoje, ainda que o autor viva num mundo socialmente mais aberto, tolerante e múltiplo.

Enquanto forma, a narrativa de Tolkien é também conservadora. Apesar de ser

comparativamente muito superior aos contos de fada e aos contos das pulp magazines, a

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25

prosa tolkeninana é simples. A linearidade é clara e em momento algum o autor tenta um

recurso estilístico ousado. O tempo é cronológico e linear, retrocedendo apenas em certos

momentos em que o foco passa para outros personagens.

Esse conservadorismo talvez seja fruto do próprio estilo, mas também há muito do

Tolkien pessoa nele. O professor de Oxford era um homem que olhava a tecnologia com

muito receio, e até o final da vida manteve-se com pé atrás para com a industrialização, a

eletricidade, a comida congelada, os trens e o próprio cinema – mal imaginaria ele que a

tecnologia reviveria e expandiria suas obras para as próximas gerações.

Em sua obra, a tecnologia quase não faz parte do mundo. O único a se utilizar dela

é justamente o maligno feiticeiro Saruman, que derruba árvores e faz fábricas de uruk-

hai(um ser humanóide bestial) e até cria a pólvora. Em contraparte a ele, existe os magos

como Gandalf, cuja magia é apresentada como fruto do conhecimento e da sua sintonia

com a natureza. Gandalf é um andarilho, homem de vestes simples e de grande sabedoria.

São características que nos lembram os escritores da geração romântica, e como

eles buscavam num cenário idílico do campo e dum passado medieval um refúgio e até

crítica contra o mundo que se tornava mais mecânico e menos humano

É neste ponto que podemos, então, apontar que sua obra pode não ser alegórica,

mas também não é despretensiosa. Tolkien talvez não quisesse criticar abertamente a

sociedade moderna, mas o fez afastando o leitor dela, e numa única referência à

modernidade, ela é apresentada como algo maligno. E assim, torna-se talvez

compreensível que um autor do século XX tenha feito tanto sucesso e influenciado tantos

outros autores mesmo em seu estilo conservador. Um conservadorismo que talvez seja

uma reação menos ruidosa à mesma modernidade criticada ruidosamente por autores mais

ousados e declaradamente engajados.

O que talvez haja de mais ousado em sua obra seja a ampliação dos limites da

imaginação. Um desafio difícil para se alcançar quando se leva em conta a mentalidade

ocidental que preza pelo verossímil mesmo numa obra das mais ficcionais. O que o

romance histórico e o gótico do século XIX flertaram com o fantástico, mas eram ainda

dependentes demais de uma verossimilhança histórica. O leitor do romance histórico se

encanta com a ambientação de época, busca a plausibilidade histórica e tolera certas

adulterações e até algum anacronismo em prol de um efeito de sentido. Mas estas

fronteiras são limitadas, o leitor de Walter Scott não admitiria um Ricardo Coração de

Leão chegando na Inglaterra num barco à vapor, e tanto menos um Ivanhoé portando

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26

armas mágicas ou um Wamba capaz de ficar invisível. Não era essa a proposta do

romance histórico, mas é a da high fantasy.

O leitor da high fantasy aceita cidades medievais com centenas de milhares de

habitantes, sem se perguntar de onde vem e como é distribuída a água e a comida para

sustentar a tantos. Aceita que um lugar isolado e bucólico como o Condado, no Senhor

dos Anéis, possa ter habitantes que gozam de grande conforto, abundante comida

conservada e ainda tenham à disposição dinheiro para comprar os mais variados presentes

para dar durante o ano todo. Existe alguma máquina que produza estes bens de consumo

em massa? Existe algum serviço e meio de transporte que consiga levar mercadoria e

matéria-prima de um lado para o outro em tempo recorde? O leitor não questiona, apenas

aceita.

A estética também tende a seguir não o mundo que o autor representa, e sim aquele

no qual vive. Autores mais recentes de romance histórico, como Bernard Cornwell,

procuram descrever o cenário e as pessoas tais como eram. Em seus livros ambientados

na Idade Média, seus personagens tem cheiros de sujeira, marcas da vida pelo corpo,

como ausência de dentes em plena juventude, entre outras coisas que podemos considerar

como bem adequadas ao tempo. A high fantasy, pelo contrário, segue a linha inaugurada

pelos primeiros romances históricos do século XIX, ou seja, os personagens seguem os

padrões de beleza do público leitor. Na Guerra das Sombras, de Jorge Tavares, e também

nos Dragões de Éter de Draccon o corpo esbelto é não só atribuído como também

almejado pelas mulheres. Todas as mulheres são, aliás, devidamente depiladas, nenhum

dente lhes falta. A musculatura dos homens segue também o padrão burguês de um

homem nascido em boas condições financeiras, que se exercita regularmente e come

carne com frequência, ou seja, uma musculatura regular e estética à nosso tempo, e não

aquela desproporcional de quem desde os cinco anos carregava peso, como de fato

ocorreria numa Idade Média.

Como isso tudo é possível? O leitor não questiona, apenas aceita. A magia talvez

seja uma das grandes explicações. Em mundos onde vivem magos e a feitiçaria é de certa

maneira comum, talvez possa-se atribuir a ela estes efeitos. Frederick Jameson em seu,

Archeologics os Future, aponta essa questão da magia como uma peça chave para se

entender a high fantasy.

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A moderna fantasia está organizada ao redor da magia, inclusa na busca do

poder por grandes magos em sua reconstituição cósmica na luta entre o Bem

e o Mal que, como vimos, expressa as idéias aristocráticas da estética

medieval. Mágica é sem dúvida o elemento mais problemático do gênero

“espada e magia”, visto que uma luta armada é mais fácil de ser

compreendida como uma regressão a era pré-industrial e apta a recriar o

conflito imediato face a face entre indivíduos(JAMESON, p 66)

A magia seria, por assim dizer, um coringa dessa high fantasy.

3.2.A esquematização de roteiro

Tolkien foi sem dúvida um marco e é até hoje uma referência nesse gênero, mas

por certo não foi o único escritor. Seu contemporâneo e amigo, C.S.Lewis(1898-1963),

também se aventurou neste mundo em suas Crônicas de Nárnia(publicados entre 1950 a

1956). Anos depois, Michael Ende(1929-1995) escreve seu clássico A História Sem

Fim(1979), enquanto Fritz Leiber (1910-1992) resgata o espírito das weird tales

misturando com a herança tolkeniana em vários romances contos à partir de 1943 que

ficaram conhecidos como espada e feitiçaria

Autores novos surgiam, trazendo muitas vezes seu próprio estilo e contribuindo à

sua maneira com novo gênero. Porém, são vários os pontos de semelhança entre estes

autores que chegam, inclusive, aos atuais em nosso solo.

A high fantasy, como estamos vendo, tem uma liberdade criativa muito grande,

possibilitando elementos que até mesmo a chamada ficção científica não poderia criar:

uma conto de high fantasy admitiria dois personagens no espaço sideral respirando e

conversando, graças principalmente à magia. Na ficção científica, esse ato seria

impensável a menos que os personagens portassem equipamentos devidamente

explicados e fundamentados, o que não seria fácil para o autor.

Apesar disso, a high fantasy, como já vimos, tem seu lado conservador. Dá-se isso

não somente na permanência de certos elementos como as estruturas sociais que, no dizer

de Jameson, corresponderiam à estética aristocrática, mas também na própria estrutura da

história.

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Northrop Frye(1912-19919) e também Joseph Campbell(1904-1987) estudaram à

fundo os mitos e também os contos de fadas e apontaram certas constantes. Para Frye, o

arquétipo faz parte do mito e também de contos do gênero romance de cavalaria.

Campbell não só percebeu essa semelhança, como inclusive esquematizou-a formado o

conceito da Jornada do Herói. Segundo ele, o herói das histórias épicas, passaria por uma

série de doze etapas.

Primeiramente haveria a situação comum, o mundo normal do personagem(etapa

um), haveria então o chamado à aventura(dois). O personagem recusaria a este

chamado(três), mas o encontro com o mentor(quatro) o faria repensar sua posição. Um

primeiro desafio leva o protagonista ao seu limiar(cinco), e então começaria o desenrolar

onde se encontrariam outras provas, e também os aliados(seis). Com o amadurecimento,

o protagonista estaria pronto para encarar o grande desafio(sete), mas para isso seria

necessário uma superação extrema(oito). Vencido o desafio, vem a recompensa(nove) e

o retorno para casa(dez). O personagem agora está modificado por todos estes

eventos(onze) e ao fim tenta se readaptar à velha rotina(doze). Dá-se o mesmo com os

protagonistas na Literatura de high fantasy

O autor Cristofer Vogler toma por base essas ideias e os transcreve em seu livro A

Jornada do Escritor(1990), no qual esquematiza formas de se criar roteiros de histórias

épicas baseados nesses passos. Hollywood apropriou-se desta fórmula, e clássicos do

gênero blockbuster(grandes produções com grandes audiências) usaram e abusaram deste

esquema. Matrix, Guerra nas Estrelas, o Gladiador são apenas alguns dos exemplos. A

transposição cinematográfica do Senhor dos Anéis, livro onde este esquema já era

perceptível, encaixa-o ainda mais neste esquema.

Os passos tornaram-se tão populares e aceitos entre escritores que se tornou comum

ensiná-los em cursos de escritores. Eduardo Spohr, autor da Batalha do

Apocalipse(2007), juntamente com Raphael Draccon não só admitiram a influência desta

jornada na elaboração de seus livros, como deram cursos e palestras sobre o tema.

É curioso como um estilo tão livre possa acabar dependendo tanto de esquemas

prontos, e ainda nem falamos de um elemento que tornará estes passos ainda mais

próximos dessa literatura – O RPG. As origens deste jogo, qual seria seu primeiro

representante, são controversas, mas podemos localizar um marco como responsável por

sua popularização.

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3.3. High Fantasy em outras mídias – RPG, jogos eletrônicos e cinema.

Em 1974 a empresa TSR lançou nos Estados Unidos um jogo de tabuleiro chamado

Dungeons&Dragons. O jogo tinha como cenário um mundo de fantasia, no estilo Senhor

dos Anéis, e contava com um bestiário semelhante ao encontrado na obra de Tolkien.

Nele, os jogadores controlavam heróis que passam por desafios controlados por um

jogador denominado “mestre de jogos”. Este mesmo jogo, inicialmente considerado uma

variação do wargame(jogo de guerra, estilo WAR) possibilitava não só a criação de

personagens, como também a criação de novas aventuras. Assim, uma forma incomum

de jogo ganhava forma. Os jogadores não apenas jogariam dados, mas também

interpretavam seus personagens, vindo daí o conceito do RPG – RoleplayingGame(Jogo

de interpretação)

O jogo gozou de grande popularidade nos Estados Unidos, e aos poucos ganhava

novas versões, como o Advanced Dungeons&Dragons. Neste as possibilidades se

expandiram. Era possível agora criar os mais variados tipos de heróis, tais como

paladinos, clérigos, ladinos ou patrulheiros. As raças possíveis aos personagens também

eram vastas, como humanos, elfos, anões, gnomos ou halflings. No lado oposto, o mestre

de jogos teria um livro inteiro de monstros para se colocar na aventura. Tesouros, itens

mágicos e armadilhas eram também comuns.

A nova versão tornava o tabuleiro desnecessário, e incentivava a interpretação e

criação de um background dos personagens e da busca na qual estariam envolvidos. Em

geral, a taverna tornou-se o grande centro onde os personagens se conheciam, onde

ocorreria o chamado à aventura e onde também seria o ponto de retorno. Era, enfim, a

possibilidade do jogador de vivenciar a jornada do herói.

Outros sistemas surgiam, alguns mais focados nos esquemas de combate, outros

mais na interpretação e outros ainda trazendo novos cenários, mas a fantasia medieval

manteve-se como favorita entre os jogadores, em geral adolescentes ou pós-adolescentes

introspectivos.

A high fantasy tornou-se tão próxima do RPG, que hoje nos parece pouco crivel

um autor do gênero que nunca tenha jogado este jogo, ou que simplesmente o desconheça.

Principalmente porque lojas especializadas começaram a surgir, como as comic shops.

Vende-se nelas os jogos, dados, miniaturas e é claro, bastante literatura do gênero, além

Page 30: um estudo das manifestações da Literatura High Fantasy no Brasil

30

de um espaço onde os compradores poderiam também se juntar e jogar ali mesmo – É a

criação de um espaço e uma sociabilidade para os jogadores de RPG e leitores de high

fantasy.

As décadas seguintes contariam com mais um importante elemento para a formação

de um público produtor e leitor do gênero, que são os jogos eletrônicos. A década de 1980

foi, em grande medida, o advento do computador doméstico e dos vídeo games. Mas os

primeiros jogos que ensaiaram um ambiente high fantasy apostavam mais na imaginação

do jogador do que em seu gráfico. Em alguns casos, apresentavam labirintos onde algum

personagem – representado graficamente por uma bola ou um quadrado – precisava

encontrar a saída ou então devolver certo item até um lugar determinado do labirinto,

tendo como empecilho alguns dragões de formato tão perfeito quanto a qualidade gráfica

disposta pela técnica e linguagem de informática aos programadores. Assim era o

famigerado Adventure.

A década seguinte trouxe grandes avanços. A qualidade gráfica melhorava junto

com a complexidade e opções de jogo. Vários destes, no computador ou no vídeo game,

traziam ambientações de uma idade média mágica. Personagens armados com espadas ou

magias enfrentavam, nessa tela, inimigos em forma humana, humanoide ou monstruosa

e tendo como cenário castelos, cavernas e pedreiras.

Gauntlet(1989), Golden Axe(1989), Riders o fRohan(1991) são alguns exemplos,

mas talvez o mais importante tenha sido The Legendo of Zelda(1986), um jogo que trazia

um conceito novo para os jogos eletrônicos. Ao invés da ação comum a estes jogos, ele

trazia um cenário mais aberto e complexo, com labirintos, itens que desbloqueavam

cenários e o principal, uma história que era desvendada. Surgia o chamado RPG

eletrônico, que pelos anos seguintes foi sendo aperfeiçoado, e novos jogos como Final

Fantasy(1987), a série Ultima(1981-1999), Eye of Beholder(1991) ganhavam espaço e

popularidade até se tornarem franquias.

Com a chegada da Internet, principalmente a Internet Banda-Larga, foi possível

outro grande avanço. Possibilitar os jogadores participarem da mesma partida ao mesmo

tempo. Dois, três, cinco, vinte, tanto quanto os servidores poderiam suportar. Era um

conceito novo, chamado de MMORPG – MassiveMultiplayer On-line RPG.

Os primeiros contaram com gráficos mais simples, que facilitasse os computadores

domésticos processarem tantas informações aos mesmo tempo. Tíbia(1997) e

Ragnarok(2002) são dois exemplos. Em breve viriam os jogos mais pesados e que trariam

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31

todo um mundo de high fantasy com grande qualidade para os monitores. É o caso de

World of Warcraft, lançado em 2005 e que atualmente espera sua quinta expansão, e

também Skyrim(2011).

Essas versões eletrônicas do RPG trouxeram ao jogador as mesmas possibilidades

de uma mesa comum de jogo. O que dependia antes apenas da imaginação, agora possuía

gráficos de qualidade e jogabilidade que escapava do “seguir em frente e apertar o botão”

eterno dos primeiros jogos. E como era de se esperar, alguns destes jogos acabaram

ganhando suas versões em livros e também no cinema.

O cinema, aliás, também soube explorar este tema, e, assim como ocorreu com os

jogos eletrônicos, sua evolução dependia diretamente dos recursos tecnológicos

disponíveis. Filmar batalhas entre orcs e humanos, disputa de magos ou dragões

sobrevoando cordilheiras nunca foi uma tarefa simples. Aliás, os próprios leitores de

Tolkien costumavam dizer, até a década de 1990, que a transposição do Senhor dos Anéis

para o cinema era uma tarefa impossível. Isso não impediu, porém, que vários diretores

adaptassem outras obras já canônicas deste nicho ou tentassem criar as suas próprias. E a

década de 1980 trouxe boas novidades nesta área

Em 1982 o personagem Conan ganhou sua versão cinematográfica de grande

sucesso, chamado Conan, o Bárbaro. E dois anos depois foi a vez da História Sem Fim,

de Michael Ende, ganhar sua versão nas telas. O cineasta americano Jim Henson também

se aventurou por estes mundos, trazendo o filme Dark Crystal(1981), e pouco depois

Labirinto(1984), abertamente inspirado nas Crônicas de Narnia, de C.S. Lewis.

Mas a década seguinte, apesar de seus avanços tecnológicos, pareceu menos fértil

à filmes deste gênero. A História sem Fim ganhou duas continuações fracas, que

desagradaram aos fãs. O universo do RPG ganhou também um filme chamado Dungeons

e Dragons, de audiência e aprovação quase tão baixa quanto seu orçamento. O próprio

RPG, aliás, começou a se aventurar, principalmente nos Estados Unidos, por outros

gêneros e cenários, trazendo como tema e personagens os vampiros, lobisomens e outros

seres obscuros e sua convivência com suas bestas interiores num mundo moderno.

Abrindo o novo milênio, no entanto, um cineasta trouxe o que se considerou a

ousadia máxima: a versão cinematográfica de A Sociedade do Anel, primeira parte da

grande trilogia de Tolkien. Um filme que, apesar de tantas desconfianças dos fãs, obteve

grande sucesso como suas continuações em 2002 e 2003. Paralelo à estes filmes, também

estreou no cinema os filmes baseados em um fenômeno literário anglófono de então, eram

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as aventuras do bruxo mirim Harry Potter, saga que se estendeu por toda aquela década.

Logo o mais, eram as Crônicas de Nárnia que ganhavam suas versões, também bastante

aclamadas pelos fãs, embora quantitativamente inferiores aos dois primeiros citados.

Cinema, RPG, jogos eletrônicos e literatura fantástica. Estava formado todo um nicho

cultural que formou o escritor de high fantasy desta primeira década do século XXI.

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33

Capítulo 4

A high fantasy no Brasil

4.1 – De Lobato à Draccon

Não resta dúvida de que foram os sucessos cinematográficos do Senhor dos Anéis

e Harry Potter que de fato abriram o mercado editorial brasileiro para a high fantasy, uma

vez em que nossa produção e consumo do gênero era, até aquele momento, muito inferior

ao europeu ou americano.

A dinâmica histórica e cultural que o Brasil viveu ao longo do século XX pareceram

despertar pouco interesse dos escritores e do próprio público consumidor para a high

fantasy, já popular na Europa na metade do século XX. As ditaduras de Vargas e dos

militares, a modernização das décadas de 40 e 50, a instabilidade e revoluções de

costumes da década de 60 e 70, tudo isso canalizou as inspirações dos nossos escritores.

A própria política nacionalista das duas ditaduras, além de frear os impulsos da literatura

nacional, também desestimulou a tradução e leitura de novidades vindas de fora.

Foi só nos fins da década de 70 que a editora Artenova trouxe a primeira Edição de

O Senhor dos Aneis. Esta obra foi, aqui no Brasil, dividida em seis volumes, lançados

entre 1974 e 1979.

O fim do regime militar nos anos 80 e o advento dos computadores domésticos são

duas características marcantes no fim do século XX no Brasil. O primeiro devolve à

Literatura e a Leitura a sua dinâmica sem as amarras que caracterizaram as décadas

anteriores, e o segundo é o responsável por apresentar ao público a high fantasy através

de jogos eletrônicos, como visto no capítulo anterior.

Esta mesma década trouxe, enfim, o componente decisivo: em 1993 a Marquês de

Saraiva traduzia uma série de livros-jogos chamado Aventuras Fantásticas, da autoria de

Steve Jackson e Ian Livingstone. Livros onde o leitor criava um personagem e jogava

dados contra si mesmo para avançar ou recuar, além de escolher seu caminho.

Uma série literária já havia feito algo semelhante na década anterior, eram os livros

do gênero Enrola Desenrola, série de livros narrados na segunda pessoa, onde o leitor era

o personagem e poderia, por vezes, escolher o caminho a seguir. Os livros deste gênero

possuíam cenários variados, como aventuras, cotidiano, viagem no tempo, ficção

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científica e enfim high fantasy. Os livros de Steve Jackson eram quase todos high fantasy,

em cenários criados pelos autores mas amplamente inspirados em Tolkien.

No mesmo ano, foi traduzido também o RPG Aventuras Fantásticas, dos mesmos

autores. Era o primeiro RPG que chegava ao Brasil e nos anos seguintes traduziram-se

também os suplementos, livros que traziam maiores possibilidades para os

personagens(Dungeoneer), uma descrição do bestiário das masmorras(Out of The Pit), e

enfim um livro que descrevia o mundo onde ocorriam estas histórias(Titan).

Aproveitando o sucesso destes livros e jogos, também as empresas responsáveis

por trazer ao país jogos de tabuleiros populares no exterior apostou nesse mercado.

Chegaram em 1994 e 1995 jogos como Dungeon, Hero Quest e principalmente

Dungeons&Dragons.

Outros jogos e cenários continuavam a preencher as estantes das lojas, e para

atender a demanda de pessoas interessadas nesse assunto, algumas revistas começaram a

circular. Dragão Dourado, Dragon Magazine, RPG, e principalmente a Dragão Brasil

se tornaram também comuns nas bancas.

A Dragão Brasil, inaugurada em 1994 pela editora Trama, e conduzida por Marcelo

Cassaro, trazia dicas e jogos para vários sistemas de RPG, além de apresentar sistemas

novos, e moldar aos poucos o perfil do RPGista no Brasil. A revista também trazia uma

sessão importante. Os contos. Foi nesta sessão que muitos escritores amadores arriscaram

suas primeiras empreitadas no mundo da high fantasy. Entre estes escritores, destacou-se

um constante colaborador – Roberto de Souza Causo.

Apesar desses avanços numéricos, este mundo da high fantasy parecia ainda

exótico demais para as maiores editoras brasileiras. Os números de vendas dos RPGs e

revistas do gênero ainda estavam aquém de jogos eletrônicos de ação, filmes e literatura

de outros gêneros. Traduzir autores de high fantasy parecia ainda arriscado, e apenas

vagarosamente isso era feito. Editar autor brasileiro tanto menos; o espaço para estes

autores ficou mesmo em revistas ou então nos primeiros blogs literários.

No ano 2000 a editora Martins Fontes enfim reeditou o Hobbit e o Senhor dos

Anéis. As vendas foram rápidas e nos próximos anos apenas aumentariam, graças,

principalmente às estreias do Senhor dos Anéis no cinema.Foi, em grande medida, o

primeiro contato que muitos aqui no Brasil tiveram com um filme e uma literatura deste

gênero.

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Na medida em que o público consumidor aumentava, agremiações de fãs e leitores

se juntavam em revistas e principalmente na ferramenta que seria outra e grande aliada

desse gênero. A Internet passou a abrigar páginas, fóruns e blogs que envolvesse a

temática desses dois mundos, principalmente de Tolkien. Essas páginas, à semelhança do

que ocorreu com a revista Dragão Brasil uma década antes, também começaram a abrir

espaço para contos enviados pelo leitor, muitos deles fanfics – como chamamos uma

continuação ou releitura de uma obra feita por um fã.

Com o mercado se aquecendo cada vez mais, algumas editoras começam

lentamente a apostar em autores brasileiros de high fantasy. Em 2004 a Editora Jambô

publica o romance O Inimigo do Mundo do autor Leonel Caldela, livro que daria forma

ao mundo fantástico criado por Marcelo Cassaro e sua equipe da revista Dragão Brasil.

Em 2005 a editora Novo Século editou Os Guerreiros de Darinka de Renata Catanhede

e no ano seguinte iniciou a saga A Guerra das Sombras de Jorge Tavares

Até esse momento, porém, a Literatura Fantástica produzida por autores brasileiros

era pouco consumida, mesmo entre os fãs do gênero. Por preconceito ou falta de

informação, esses livros tiveram uma circulação ainda restrita. A própria editora Novo

Século, que lançou o escritor de horror André Vianco, também tinha um política bastante

reservada para a publicação dessa literatura: os livros dos supracitados Jorge Tavares e

RenataCatanhede pertenceram ao selo Novos Talentos da Literatura Brasileira, focada

no público juvenil e que por vezes atuava como editora sob demanda – o autor paga, a

editora lança.

Mas em 2007, o gênero começa a alcançar a popularidade pretendida. É o ano em

que Eduardo Spohr publica seu A Batalha do Apocalipse e Raphael Draccon o seu

Dragões de Éter, ambos sucessos de público e que levou os dois autores a bater recordes

de vendas e a se projetar com firmeza no mercado editorial. O primeiro se foca numa

mitologia cristã, com anjos e arcanjos vivendo entre humanos no decorrer da História, ao

passo que o segundo constrói sua narrativa num mundo medieval mágico. Um mundo

high fantasy ao estilo Tolkien. Assim, vamos nos ocupar com este autor

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4.2. Os Dragões de Éter

A trilogia Dragões de Éter se passa num fictício mundo chamado Nova Ether. O

mundo é dividido em vários países, sendo Arzallum o principal. É nele que governa o

sábio rei Primo Brandford, pai de Anísio e Axel. O primeiro filho é criado e apresentado

como um legítimo herdeiro do trono, ao passo que o segundo se comporta como um

príncipe do povo, praticante de pugilismo, conhecedor de tabernas e arrebatador de

corações das plebeias. “Tudo feito de propósito, planejado pelo rei para agradar à nobreza

e ao povo”, como afirmava outro personagem, o professor Sabino von Fígaro.

O professor, aliás, leciona na Escola do Saber, onde estudam João e Maria Hanson,

ambos personagens saídos do clássico João e Maria e cuja história somos apresentados já

no início da narrativa. Junto a eles, estuda também outro ícone dos contos infantis – a

chapeuzinho vermelho, que leva o nome de Ariane Narim.

Além destes personagens, também os piratas do Capitão Gancho – agora liderados

por seu filho Jamil Coração de Crocodilo – fazem sua aparição na história, e desta

maneira, com personagens de diferentes histórias e universos interagindo entre si, a

história vai tecendo suas tramas.

O narrador nos introduz estes personagens icônicos de contos de fada de maneira

gradual, sem revela-los de primeira sua identidade. Em vários momentos conta sua

história, acrescentando detalhes que dão novo significado a seus nomes. Ariane Narim,

por exemplo, teria ficado conhecida como a “Chapeuzinho Vermelho” por conta do

sangue do lobo alvejado pelo caçador. Nesta trágica visita da personagem à sua avó,

Draccon também nos dá um novo significado. A tia de Ariane é uma bruxa, uma bruxa

“do bem”, que então ajuda sua neta a desenvolver seu dom.

Em contrapartida, a bruxa da casa dos doces, citada quando Draccon nos introduz

João e Maria Hanson, é uma clássica personagem maléfica dos contos de fada. E a

presença dela traz à tona a histeria e o medo das bruxas, surge então o mote do primeiro

livro da trilogia, “Caçadores de Bruxa”.

A narrativa de Draccon é fluida. As cenas são bem descritas e interrompidas em

momentos de grande tensão, provocando assim a curiosidade do leitor – técnica

tipicamente cinematográfica, da qual o autor, então estudante da área, tem grande

familiaridade.

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Na linguagem, o autor também evita o arcaísmo, uma armadilha muitas vezes mal

usada pelos autores do gênero. Pelo contrário, ele encontra um caminho mais simples,

que é considerar que jovens se expressam em sua própria maneira, e assim utiliza-se de

bordões e expressões atuais, típicos de adolescentes principalmente cariocas: Ariane

Narim, personagem que na escrita de Draccon ganhou uma personalidade mais

extrovertida, faz-se valer da expressão “caraca!” um sem número de vezes. Os

personagens da nobreza usam seu linguajar mais formal, que pode variar de acordo com

a situação, sem apelar para o rebuscado arcaísmo cavalheiresco.

As tramas que surgem se entrelaçam bem com os personagens e suas histórias, e as

maneiras como são introduzidas ou solucionadas atestam a criatividade do autor. Assim

uma literatura leve e cativante vai ganhando forma.

No segundo volume, Corações de Neve, a narrativa amadurece. Enquanto no

primeiro há espaço maior para a apresentação dos personagens, suas origens e releituras,

no segundo o autor consegue dar mais consistência. João e Maria deixam, aos poucos, de

ser pré-adolescentes caricatos para ganhar contornos de profundidade. João precisa lidar

com o trágico destino de seu pai, que, nos tempos em que ele e sua irmã estiveram

prisioneiros da bruxa, havia negociado com homens de reputação duvidosa para que

resgatassem seus filhos. O conflito entre a decepção e o orgulho vai se formando, na

medida em que o senso de responsabilidade invadem sua vida. Seu pai morre, e ele torna-

se o lenhador “chefe da família”.

Maria, por sua vez, também precisa lidar com o fim de seu romance com o príncipe

Axel, enquanto sua amiga Ariane mergulha cada vez mais em seu aprendizado enquanto

bruxa, tendo sempre que esconder tais dons de seus amigos e da sociedade.

Enquanto o enredo do primeiro volume girou em torno principalmente da questão

da caça às bruxas, neste segundo crescem as tensões entre os reinos de Arzallum e o

imperialista Minotauro. E um torneio de luta, que toma grande parte desse segundo

volume, acaba por aumentar ainda mais as tensões.

Também figura-se neste volume uma espécie de atualização da história de Robin

Hood. O personagem, até então prisioneiro, é libertado, e agora com quarenta anos busca

reencontrar seus parceiros e começar de volta sua luta. Um deles, porém, rejeita a

violência – trata-se do velho frei Tuck, agora mais contemplativo e até venerado como

santo por seus seguidores.

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A presença destes foras da lei contestadores aborrece o reino de Minotauro, que

exige dos demais soberanos que se unam a ele para novamente prender e executar os

“desordeiros”.

Em meio à tantas tensões, entra em cena um rústico zepelim trazendo consigo os

homens do oriente e a tecnologia que nos lembra a engenharia presente em jogos

eletrônicos como World of Warcraft. Assim como nos zepelins deste jogo, também o

apresentado neste livro é pilotado por um gnomo – o engenhoso Rumpelstichen,

personagem do clássico A Princesa e o Duende.

As referências, aliás, vão neste livro muito além dos contos de fada, como

predominantemente ocorreu no primeiro volume. O campeão do mundo oriental que toma

parte do torneio de luta é descrito como um “homem forte, de cabelos longos e lisos,

traços orientais e olhos cortados”, tendo como estilo de luta uma espécie de kung-fu. Uma

alusão clara à Bruce Lee, um dos ídolos do autor.

A luta final, da qual tomam parte o príncipe Axel e Radamisto, o “urso branco” de

Minotauro, parece ter saído dos filmes de Rocky Balboa, em especial a parte quatro, onde

o mesmo enfrenta o campeão soviético.

Mas Axel, apesar da referência dessa luta, e do ideal da superação tão cara ao autor,

possui uma descrição física e habilidade como pugilista quenos lembra uma personagem

homônima de um jogo bastante conhecido na década de 1990. Trata-se do mesmo Axel

presente na série Streets of Rage.

As referências à essa chamada “cultura pop” não param por aí. O professor Sabino,

apresentado no primeiro volume e aprofundado no segundo, foi também tirado de um

jogo eletrônico da série Final Fantasy. Desta série foi ainda tirado o sobrenome da família

real de Arzallum: Terra Brandford.

Talvez o conceito mais importante dos Dragões de Éter inspirado nesta saga seja o

conceito do mundo. Madame Vioti, bruxa “do bem” que ensina Ariane Narim, conta à

sua pupila que o mundo em que eles vivem é formado por magia e sonhos, à partir da

vontade de um criador, mas mantido por sonhos de seres de outros mundos. Ideia também

oriunda desse mesmo jogo eletrônico.

Quando Ariane Narim sonha, sua mente por vezes vaga por esses mundos, e assim

somos apresentados a realidades que um leitor contemporâneo de Draccon saberá

reconhecer muito bem:

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(...) – Havia um homem e uma espada tipo... Mística, sabe? E o cara cavalgava

uma espécie de lagarto verde que lembrava um dragão!

-Ele era um homem mau?

- Não. Ele combatia um monte de gente-monstro, e um Rei, acho que era um

Rei, mas sem pele

-Um rei sem pele?

-É! Havia só um pouco de pele, mas você via o... Esqueleto dele, sabe? E tinha

coisas que voavam, como aquela coisa que a gente viu ontem. E tinha um

castelo sombrio formado de pedras grandes em forma de caveira! A ponte fazia

um barulho horrível e, quando ela abria, o portão parecia uma... Boca,

entendeu? Tipo, parecia que ela comia a nossa alma, sabe? Muito sinistro, cara!

(...)[dentro] havia uma bruxa, muito bonita, que parecia uma fada de Nova

Ether. Só que ela não era humana...

-Era o que?

- Ela era meio humana, entendeu?

- Não

- É que ela era... Meio humana e meio... Águia. Isso é muito louco?”

Ariane sonhou, em outras palavras, que estava em Eternia, terra onde se passa

o desenho animado do He-man, e os personagens que ela viu, nesta ordem,

foram o He-man, o Esqueleto e a Feiticeira.

Em outro sonho, novamente o mundo dos desenhos animados oitentistas toma

forma: o desenho animado dos Thundercats.

“(...) – Eles também eram humanoides. Mas tipo... Esses sim eram irados! Eles

eram meio... Tigres ou meio gatos, sabe? E, caraca, vocês tinham de ver! Eles

eram capazes de coisas incríveis! Tinha um bonitão, que liderava o grupo e

cortava todo mundo com uma espada estilosa! Ele vestia uma sunga que eu

não entendia para que, afinal, você já viu um gato ou um leão usando sunga?

Ou precisando de uma? Mas ele usava; tinha até cinto! E tinha uma luva com

garra que o Axel iria ficar babando para ter igual! Mas o melhor era a mulher!

Ela corria com um bastão e dava porrada em todo mundo, na maior! E ainda

corria pra caramba!

(...)- Então havia mais? – perguntou Viotti

- Sim, havia! Tinha um que desaparecia, meio fantasma! E ele não usava cinto,

mas um macacão no corpo todo, é mole? Se já é esquisito um gato que usava

sunga e cinto, imagina macacão? Tinha outro forte pra dedéu, que saía de um

outro gato gigante e metálico! E com rodas, feito rodas de carruagem, mas

muito mais grossas! E tinha dois irmãos um pouco um pouco mais baixos do

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que eu, que lembravam a relação da Maria e do João! Assim, eles pareciam

bem unidos, sabe?(Draccon, 2010, vol 2)

A presença da cultura brasileira também está representado. Não só no “carioquês”

de Ariane, mas também em referências a conhecidos filmes produzidos no Brasil:

Quando Robin reencontra João Pequeno, que então era conhecido como Vladimir,

convence-o a retomar sua identidade e reorganizarem seu grupo. Seu patrão, incomodado,

intervém e a cena se encerra da seguinte maneira.

O sujeito de um metro e meio, que cuidava daquele estabelecimento, se

aproximou com uma expressão de poucos amigos e limpou a garganta o mais

alto que pôde.

- Hã-hã, Senhor Vladimir, eu não pago o senhor para o senhor ficar de

conversa-fiada durante o serviço![...]

O comum seria o contratado, até mesmo aquele negro de dois metros e dez,

abaixar a cabeça e dizer com voz mansa: “sim, senhor”. Obviamente, isso fazia

o ego do senhor de um metro e meio subir a três

E imagine então o que foi para ele ver o negro gigantesco se aproximar com

olhar furioso, exalando fúria naqueles olhos poderosos e bufando:

-Vladimir é o @%$!! Meu nome agora é John Pequeno, %@#*!”

Uma clara alusão ao filme Cidade de Deus.

Elementos típicos de jogos de RPG também marcam sua presença. No primeiro

volume, “Caçadores de Bruxa”, Axel parte para procurar seu irmão, e no caminho ocorre

uma cena clássica deste jogo. Uma briga numa taberna, denominada “Caneco de Ouro”,

entre o protagonista e um grupo de orcs bandoleiros. Os orcs, que o autor preferiu trata-

los por seu nome latino “orcos”, são descritos de uma forma caricata. A cena não poderia

ser mais típica:

- Então quer dizer que três brutamontes como vocês gostam de assaltar

velhinhas bastante perigosas e com certeza cheias de ouro, como suas

inteligências limitadas? – Axel já havia chamado a atenção do Caneco de Ouro

muito antes disso. Ao começar a falar diretamente com os humanoides, o

recinto se calou

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Os orcos, de cor variada entre o anil e o plúmbeo, bateram a caneca com raiva

no balcão, esparramando cerveja das mais fortes. Olharam para o príncipe e,

acredite se quiser, o que não deve ser tão difícil assim, não reconheceram o

reconheceram. As inteligências limitadas, contudo, haviam entendido que

aquele homem sabia do assalto à velha na entrada da cidade – fato agora

compartilhado pela taverna inteira – e, o pior, queria ainda tirar um sarro deles

- Tu falou com eu, cumpai? – não tente entender ou aprender a falar a língua

orca. Você nunca, nem no dia em que um anão nascer alto, vai conseguir usá-

la com perfeição, ao menos se não crescer no meio deles, o que deve ser uma

desgraça, desculpe a franqueza.

- Infelizmente – e Axel riu com o que disse involuntariamente, em resposta à

pergunta. O riso foi tão natural e espontâneo, que toda taberna também riu,

enfurecendo mais os orcos, que tanto prezam o orgulho.

- Tu tá querendo porrada na cara, mané? – a pérola foi dita por um segundo

orco

- Algo que em tua figura seria inoperante, xucro! – disse o príncipe

Os orcos ficaram se olhando. Já a taverna vivia uma espécie de comportamento

gregário, como se estivessem em um show de bufões e uma única frase de meia

graça fosse suficiente para provocar excesso de riso.

A contenda é resolvida numa briga, em que Axel põe os bandoleiros para correr,

como um típico príncipe mantenedor da ordem, e como normalmente faria um

personagem de RPG. Draccon, porém, evita um erro muito comum em livros desse gênero

– como o Guerreiros de Darinka, por exemplo – e não faz de cenas como esta uma

constante, tampouco faz da busca de Axel parecer descrita por um “narrador de jogo”.

Falamos então de uma referência, que busca a identificação momentânea do leitor, muitas

vezes também RPGista, com uma cena que ele próprio já vivenciou tantas vezes.

Outros tantos elementos estão dispostos de maneira mais esparsa e sutil. O guarda-

costas de Axel é um troll, na forma e no jeito que por vezes são encontrados em montanhas

ou masmorras por grupos de aventureiros num RPG – altos, cinzentos, fortes e de

inteligência limitada. Os personagens SnailGalford e LirielGabbiani, que protagonizam

algumas das melhores cenas “por detrás dos panos”, agem como duas classes conhecidas

deste jogo. Ele, um ladino ágil de corpo e de raciocínio, e ela uma espécie de psionista,

também ágil mas capaz de movimentar objetos com a mente. E enfim, Ruggero e

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Bradamante, capitã da guarda de Arzallum, enfrentando aberrações conjuradas por um

lorde feiticeiro numa fazenda amaldiçoada.

A espada longa de duas mãos dela chocou-se uma, duas, três, quatro vezes com

lâminas de um aço negro. Dois grandes seres, com crostas de sombra no lugar

da pele, atacavam portando armas de lâminas finas e curvas que quase

lembravam uma foice transformada em espada de lâmina grossa. O rosto oval

de tais criaturas não tinha nariz ou orelhas, e, no lugar dos olhos, havia apenas

uma protuberância cheia de nervuras, como se fossem duas cascas de ovos

cheias de nervos ali cicatrizados. Tinham a boca constantemente aberta e

apenas um espaço negro representando um breu dentro delas.

A pele de tais criaturas deixava escorrer uma espécie de óleo, que escorregava

como suor. O cheiro desse óleo lembrava enxofre e putrefação. E, a cada vez

que eram cortadas em algum ponto, não saía sangue propriamente dito; saía

mais desse óleo.

(...)

Ruggiero berrou um kiai no momento em que os seres cansaram de procurar

ferimentos em si próprios e avançaram com ira. O oriental saltou para cima

deles como se fosse um tigre, e o mundo pareceu cada vez mais com sombras.

Já Bradamante inspirou fundo, com vitalidade que lembrava a de fadas-

amazonas, e partiu na direção do cômodo anterior, levando com ela seres dos

quais ela não se esqueceria tão cedo se sobrevivesse para

dormir(DRACCON, 2010, p.366)

E assim por diante, com referências à cultura de massas bem colocadas, o autor vai

construindo sua obra.

Draccon também explora a Literatura Clássica. Quando João Hanson torna-se

aprendiz de cavaleiro, seu mestre é Wilfred de Ivanhoé. Snail e Liriel reúnem em torno

de si órfãos que eles apelidam de “capitães de areia”, e no terceiro volume partem em

busca de um tesouro também ambicionado por um certo Jim Hawkins, personagem de

Stevenson.

O próprio conceito de Nova Ether, se por um lado é utilizado no jogo Final Fantasy,

por outro é semelhante àquele utilizado em outro ícone da Literatura Fantástica: Michael

Ende, em seu História sem Fim, apresenta o mundo “Fantasia” como sendo formado

através dos sonhos dos mortais.

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Estão presentes ainda os personagens Merlim, Baba Yaga e até Don Juan. Algumas

leis também carregam nomes célebres que remetem à esta Literatura canônica, como a

Lei de Arthur, referente à uma pendência entre duas pessoas, e também o Pacto de

Swift(que impedia os humanos de subirem para o mundo dos gigantes e vice versa.

A quebra deste pacto de Swift desencadeia a guerra entre Arzallum e seus aliados

contra os gigantes, aliados ao reino de Minotauro. Dentre os gigantes, um velho

conhecido também se faz presente. Trata-se de Polifemo, que tem o destino semelhante

ao personagem homérico. Antes da batalha começar, ele faz um duelo de campeões com

a capitã humana Bradamante. Desprezando o tamanho e o fato dela ser mulher, o gigante

afirma “Para mim, ela é ninguém”.

A lua renhida ocorre, e, por astúcia e força, Bradamante vence e então a cena da

Odisseia é recriada nas páginas de Dragões de Ether.

-Pergunte a ele quem sou – ela [Bradamante] ordenou ao bardo com a voz de

uma campeã

O Bardo fez a pergunta em ögr. Polifemo respondeu devagar, na medida em

que a dor permitia.

-Ele disse “ninguém”, minha lorde.

Bradamante, com uma expressão demoníaca, foi até o ciclope, subiu em uma

de suas coxas e segurou-se em um dos chifres do elmo inimigo com a mão

esquerda. A mão direita agarrou um espinho que servia de adorno e cruzava o

queixo perfurado de uma ponta a outra, e, gritando como uma bruxa louca, em

um momento de pura ira, em um súbito e violento movimento, ela o arrancou

Os dois exércitos se mantiveram estupefatos com o gesto. E com os gritos. E,

ainda assim, descobriram que aquilo ainda não seria o pior.

- Eu sou lorde Bradamante, capitã da Guarda Real e campeã de Arzallum!

Repita isso, bardo!

O bardo repetiu, com a segurança de rosnados que exibiam respeito na língua

estrangeira.

E então, quando o bardo terminou, Bradamante cravou o espinho no imenso

olho gigante do inimigo.

(...)

-Quem furou sou olho, Polifemo – ela bradou como uma semideusa. O bardo

arzallino bradou a tradução igualmente.

O ciclope não respondeu, ainda dentre grunhidos de dor

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- Quem furou seu olho, Polifemo? – ela repetiu

O ciclope começou a emitir os rosnados que representavam suas palavras

devagar, e o bardo traduziu-os passo a passo.

- Quem...

-Brandamente trincou os dentes

-...furou meu olho...

E tremeu em estresse a mão que segurava a espada

-...foi...

Apertou os olhos. E...

-...ninguém

Não houve receio nem titubeio.

A espada de duas mãos fez um arco tão poderoso, que o gume atravessou mais

da metade do pescoço protegido pelas peles grossas de animais. Quando a

campeã retirou a lâmina, a cabeça tombou para frente, ficando presa por

metade da pele. E então ela aplicou um segundo golpe. E, no terceiro, o imenso

crânio enfim rolou, separando-se do elmo” (p.400)

A ação tem o mesmo efeito dramático da obra homérica, porém a astúcia de Ulisses

é substituída pela perserverança de Bradamante. O desfecho é uma imagem quase

cinematográfica, ao gosto do jovem do ano 2000.

O autor também se apropria de frases e argumentos de personalidades célebres da

História, e as rearticula em conversas. É o que acontece, por exemplo, em “Corações de

Neve”. Robert de Locksley, o Robin Hood, recomeça sua luta e no caminho reencontra o

frei Tuck, agora um pacifista considerado santo. Dá-se assim a conversa entre o lutador e

o pacifista.

“- Quando aconteceu, Tuck? – perguntou Locksley, vestindo um manto com

capuz para passar despercebido. Estavam dessa vez os dois nos fundos da

igreja, enquanto Tuck conferia tudo o que seria preciso para a missa dali a meia

hora, como o cálice que transformaria água em vinho, o incenso e o sino que

anunciava o início da celebração em nome de MerlimAmbrousius.

- Meu fígado não estava aguentando os barris de vinho de antigamente, Robin

– Robin. Eram poucos, muito poucos os que sobreviveram para usar o velho

apelido. – além do mais, me sinto mais saudável com este corpo mais magro.

Evita doenças do coração...

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- Pare de me fazer de alienado por hoje. Conte-me de uma vez: quando mudou

seus ideais mundanos e, de pecador, virou santo?

- Nunca me considerei um homem santo

- O povo o considera

- O povo o considera um libertador, digno de um salvador do mundo. Você

também se vê assim, Robin?

- Não sei o que sou, Tuck.

- Foi assim, com essa dúvida que tudo começou.

Robert encostou-se em uma mesa de madeira rústica para escutá-lo melhor.

John Tuck se virou para ele:

- Sabe, na prisão, entre o intervalo de cada sessão de tortura, o sentimento que

se acumula inicialmente é o de revolta. Depois, o de vingança. – Locksley

concordou. – Só que tais sentimentos entram em conflito com a religiosidade

que se espera de um homem dedicado à Palavra do Criador. Não sabia onde

encontrar o amor com o coração tão cercado de ódio.

- O amor só se encontra na liberdade

- Mas a liberdade é um ato interno

- Apenas para o homem que não vive de joelhos.

- Mas e quando esse levantar exige que outro se ajoelhe? Qual a diferença entre

as situações?

- O conhecimento nos faz responsáveis. Se alguém é capaz de tremer de

indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos

companheiros.

- O que impede que o novo ajoelhado se julgue do lado da justiça do Criador e

lute e mate para colocar novamente os que se colocaram de pé de joelhos uma

vez mais?

- A justiça está sempre ao lado do sonho do oprimido. É possível pôr-se de pé

na guerra sem colocar o outro lado de joelhos.

- A guerra endurece o coração dos homens

- A ternura atenua

- Não há ternura na guerra.

- Pois hei de endurecer, mas sem perder a ternura jamais.

- E é isso que se deve esperar de jovens, Locksley? Que eles cresçam tendo de

compreender que não basta a ternura, pois é necessário o embrutecimento?

- Se jovem e não ser revolucionário é uma contradição

- Não. Ser humano e não conhecer o amor o é.

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Houve um silêncio entre os dois. Um silêncio em que as palavras de um

absorveram as do outro.

- Quantas guerras serão necessárias para que tenhamos um pouco de paz? –

perguntou o monge

- Eu os vi fazerem coisas horríveis com Marion, Tuck. Na minha frente. Eles

a machucaram. Eles a torturaram e mataram meus amigos. Como você pode

pensar em paz sem guerra?(p.428 – 429)

A conversa segue referindo-se a episódios já mencionados no livro sobre o destino

do grupo após serem presos. Tuck então narra sua transformação e finaliza desta maneira:

- À partir deste dia, eu me tornei um pacifista. E entendi que só existe amor na

não-violência. E só existe liberdade na mente que não se limita. A ira me afasta

do SemiDivino porque me impede de enxergar a verdade

Robert de Locksley não comentou

- Entendo que você pense em liberdade como conquista. Mas a liberdade não

pode ser tomada, Robin. Não é possível uma liberdade sem uma cooperação

entre antigo opressor e antigo oprimido. É preciso modificar o opressor e fazê-

lo compreender o que você compreende. Do contrário não há evolução na

humanidade.

- A liberdade não deveria ser dada. Deveria ser um direito nosso ao nascer.

(p.429)

Não é necessário profundo conhecimento da História para percebermos que os dois

assumem as falas e ideias de Che Guevara e Mahatma Ghandi. Mas enquanto o frei Tuck

assume o papel de pacifista e até santo milagreiro – com direito a transformar água em

vinho – nosso Robin Guevara está longe de ser um revolucionário de fato. Embora sua

conversa aqui nos leve a crer que ele pretenda sacudir o mundo, mais tarde vemos que

sua noção revolucionária está mais próxima de fato do Robin Hood literário do que do

homem cujas frases ele se apropria. Ou seja, a militância do Robin de Draccon não vai

muito além do velho roubar dos ricos para dar aos pobres, no máximo ele se opõe aos

desmandos do reino de Minotauro, que o persegue, e busca fazer justiça contra Stallia que

o prendeu. Não há nenhuma proposta de problematizar e recriar a sociedade, então feudal

e aristocrática. Sua proposta revela-se antes uma social-democracia do que de fato uma

revolução.

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O argumento de que, para o mundo social de Nova Ether, uma social democracia

representa já uma grande revolução é quebrada justamente por essa mesma conversa de

Robin. Mais do que isso, Dragões de Ether não é um romance histórico. Enquanto este

necessita de grande pesquisa e verossimilhança, do contrário será rejeitado pelo leitor, a

high fantasy pode se dar ao luxo de criar e recriar o mundo. De todas as formas literárias,

talvez seja a que mais dê liberdade criativa ao escritor. Até mesmo a ficção científica que

fala de viagens intergalácticas e de seres de outros planetas depende de um mínimo de

coerência científica.

No entanto, a high fantasy é conservadora em seu conteúdo e em sua forma. Frye

já havia reconhecido que a história cavalheiresca, herdeira do romance de cavalaria

medieval, é construída em cima de arquétipos. Seus personagens, suas cenas e seus clímax

são todos muito bem localizados e seus papeis definidos. Christopher Vogler em sua

Jornada do Escritor aponta passo a passo o desenrolar de uma história, tomando por base

um conto de fantasia. A jornada do herói protagonista é uma jornada de evolução própria

e principalmente de conservação de seu mundo. O rei, segundo ele, é o sinônimo da ordem

e da lei do mundo, e o rapto da princesa, que em geral ocorre nessas histórias, é o perigo

que sofre essa continuidade.

Em Dragões de Éter temos, já no primeiro volume, o príncipe Anísio desaparecido,

e Axel partindo para busca-lo. No segundo, a prometida de Anísio, Branca Coração de

Neve – referência à Branca de Neve – também cai em apuros. E no terceiro volume, o

reino dos gigantes se une a Minotauro contra Arzallum e seus aliados. Em todos os três

temos, portanto, a conservação da ordem como um dos motes centrais.

Se na obra de Tolkien, o mago Saruman é um precursor do industrial, o homem

determinado a derrubar a mata, criar fábricas e transformar as idílicas paisagens do

Condado em uma vila cinzenta cheia de lama e fumaça, na obra de Draccon Minotauro é

a representante da tirania aberta. Arzallum tem reis, nobres e negociantes. Um cenário

perfeito para a revolta de Locksley, mas é Minotauro, com seu imperialismo militar, que

é apontada como a grande vilã. Arzallum é o que no imaginário representa um país

ocidental como Inglaterra ou Estados Unidos, local onde ideias liberais antes se

instalaram. Fala-se de liberdade, e igualdade de oportunidades. A liberdade de expressão

é garantida e seus habitantes se acotovelam para ver os grandes símbolos da prosperidade

e da superação. Quando Axel luta, o reino está com ele, até mesmo sua água dragonete,

Tuhanny, pia para dar força moral ao pugilista, como a água americana nos filmes em que

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48

o protagonista, à beira do desespero, procura por algo em que se apoiar para continuar a

luta.

Minotauro, por sua vez, lembra-nos uma Alemanha ou Rússia. Seu campeão

pugilista é descrito como um urso branco, e a luta entre ele e Axel nos remete ao filme

Rocky IV, em que o campeão americano enfrenta o gigante soviético. Além disso, o rei

de Minotauro, Ferrabráz, tem ambições de ser reconhecido imperador pelos outros países

além de professar ideal de raça pura.

Seja qual for o inimigo, a continuidade é que está em risco.

Em Corações de Neve, o rei Anísio, em sua coroação, pede a seus colegas de trono

que não façam uso da pólvora, recém inventada. Uma arma destas colocaria em xeque

não só as estruturas de poder, como também toda a simbologia da guerra no mundo de

fantasia: as armas dignas são, e sempre deverão sê-lo, as armas brancas. Axel combate

com os punhos, Locksley com o arco e Snail com adagas. Mas de todas as armas, é a

espada que continua a mais simbólica. Com ela Bradamante vence Polifemo, Ruggiero

combate os demônios da fazenda amaldiçoada e Hanson vence o duque do ódio. Ela

caracteriza a habilidade, a coragem e a força de quem a empunha. É o vínculo com a

tradição dos romances de cavalaria medieval que celebravam as espadas Durindana de

Carlos Magno, a Excalibur do rei Arthur ou Gram de Siegfried. Tradição depois resgatada

pelo romance histórico do século XIX e enfim reafirmado pela high fantasy.

A mistura curiosa destes elementos – contos de fada, Literatura Clássica e

principalmente cultura de massa – deu aos Dragões de Éter sua característica bem aceita

entre os leitores, mas recebida com reserva pela crítica mais tradicional, e praticamente

desconhecido pela academia apesar de seu sucesso. O que perguntamos é que lugar afinal

tem essa Literatura high fantasy no Brasil? Qual seu sentido? Considerar Draccon um

mau escritor é no mínimo injusto: a habilidade de escrever um livro que flui com tanta

naturalidade não é talento dado a qualquer um, principalmente quando público alvo é uma

juventude que dispõem de jogos massivos on-line e cinema 3D, entre outros

entretenimentos mais intensos.

Seu trunfo pode ser justamente este, ele escreve para uma juventude pós-internet e,

assim como tantos blogs famosos de internet, mistura toda a forma de conteúdo de

maneira vasta, embora rasa. Nesse aspecto, lembra-nos o Wagner libretista, quando junta

em seus escritos grande parte da contribuição acadêmica do século XIX. Se aqueles

musicólogos, como Carpeaux e Candé, apontaram-no como possuidor de uma cultura

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“vasta, porém superficial”, provavelmente diriam o mesmo de Draccon. Os dois

escreveram para um público que se adaptava às novas tendências provindas da

industrialização. Os ouvintes de Wagner da II Revolução Industrial, que introduziu a

eletricidade, a imprensa à vapor e a combustão, e os leitores de Draccon, frutos da

intensificação da III Revolução Industrial, que se focou nas telecomunicações, como a

internet.

A própria divulgação dos livros de Draccon se deu menos pelas revistas e meios

mais tradicionais do que pelo boca a boca e principalmente as redes sociais, como o Orkut,

na época em seu ápice. Esta rede social, aliás, também é referenciada em seus livros. Em

Corações de Neve, quando Axel desfila rumo à arena, suas fãs juntam-se em um grupo

denominado “comunidade Axel no meu quarto”. Típico daquela primeira grande rede

social que fez sucesso no Brasil.

Mas Draccon é menos pretencioso com sua filosofia, que ele entende não pertencer

a ele e sim ser fruto de mistura, apenas para acrescentar mais um sabor à sua receita. As

reflexões e pensamentos filosóficos estão colocados com cautela na boca dos

personagens, não do narrador, e são sempre dependentes do contexto, como a conversa

entre Locksley e Tuck, ou quando o professor Sabino aconselha João, Maria e Ariane.

Talvez as falas de Sabino sejam as que mais se aproximem de Draccon justamente

por este contexto: para o autor, a Literatura Fantástica é uma alegoria do que passa o

adolescente, então principal consumidor deste gênero. E esta compreensão é a

responsável pela identificação entre os leitores e este trio. Nos três volumes

acompanhamos um João pré-adolescente tímido, que depois revolta-se e enfim encontra

seu caminho e responsabilidade enquanto aprendiz de cavaleiro. Maria, irmã mais velha

e responsável, apaixona-se pelo príncipe Axel, os dois namoram, porém, devido à tratados

feitos pela corte, Axel a abandona. Enfim, Ariane mais extrovertida descobre seu dom,

aprende a lidar com ele e vive sua paixão adolescente por João. Entre o ferro, fogo e

hormônios de suas vidas, é o professor Sabino que procura dar algum conselho e ajuda-

los.

Estaríamos voltando, então, ao início de nosso trabalho, quando localizamos as

primeiras literaturas como possuindo funções pedagógicas? Ou talvez ela se firme

próximo de obras alegóricas, como o Senhor das Moscas de Golding? São perguntas que

ainda não podemos responder, mas podemos perceber que ela está indo além do sentido

puro e simples do entretenimento ou do escapismo.

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Mas não nos apressemos em aponta-la como digna de entrar para o rol das grandes

obras, levando-as obrigatoriamente às escolas, ao vestibular, às feiras internacionais e aos

prêmios da academia. Draccon conquistou seu lugar na História da Leitura no Brasil, e

para isso seu requisito é o alcance e aceitação. Mas para entrar na História da Literatura,

é necessário algo mais, e muito embora suas páginas nos tragam bons momentos de

deleite, seu gênero é dependente demais de construções prontas.

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Conclusão:

Literatura Fantástica Brasileira ou Literatura Fantástica no Brasil?

O leitor deve ter percebido a ausência de nomes notáveis do cenário da high fantasy

atual, como George S. Martim, autor da Guerra dos Tronos, uma fantasia baseada mais

no drama dos personagens e em jogos políticos do que nas velhas formas arquetípicas tão

caras a este gênero.

A questão é que este autor, embora já célebre nos Estados Unidos há mais de uma

década, ganhou espaço no Brasil muito recentemente, graças à transmissão da minissérie

baseada em seu livro e à tradução dos mesmos a partir de 2010. Recente demais para

influenciar ou para que sua influência se possa perceber mais abertamente no cenário

brasileiro atual.

Ora, a high fantasy é por certo um gênero que se inspira em cenários e bestiários

de mitologias da antiguidade. A sua estética e sua função enquanto gênero literário de

entretenimento surgiram a partir do Romantismo europeu do século XIX, ganhou forma

e espaço com grandes autores do século XX como Tolkien, Lewis e Ende, e chegou até o

XXI agregando influências da cultura de massas.

No Brasil, apenas na terceira etapa é que este gênero ganhou autores e leitores em

números expressivos. Um gênero recente e bastante ligado a formas prontas e

arquetípicas, além disso a influência da cultura de massas ainda a deixa bastante vinculada

à cultura estrangeira, principalmente anglo-americana. Ainda que as cores locais já se

mostrem presentes em livros como Dragões de Éter, parece-nos cedo demais para chamar

esta literatura de Literatura Fantástica Brasileira, ou high fantasy Brasileira, e sim de high

fantasy no Brasil. E, se assim for, talvez de fato seja cedo demais para apresentar ao

mundo, numa feira literária internacional, um Raphael Draccon como um nome da

Literatura Brasileira.

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Sobre Raphael Draccon.

DRACCON, R: disponível em <www.raphaeldraccon.com.br>