um espinho de marfim - marina colasanti

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  • 5/27/2018 Um Espinho de Marfim - Marina Colasanti

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    MARINACOLASANTI

    UM ESPINHODE MARFIME outras histrias

    L & PM POCKET1999

    www.lpm.com.br

    Apresentao

    Os leitores acostumados, desde a infncia, ao con!"!io com

    lendas e #ist$rias fant%sticas, situadas em castelos e mundos#abitados por reis e princesas, lees e pombos, serpentes,pr"ncipes e unic$rnios ir'o re!er, nos te(tos de MarinaColasanti, o m%)ico fa*+de+conta dessas lembranas.E como o )ostar, -uase sempre, deri!a do con#ecimento, ir'opercorrer o !el#o e o no!o )uiados por um ol#ar -ue incide,epifanicamente, no feminino. Princesa, rosa, sereia tecel',

    rain#a, prostituta alde', esposa, m'e ou amante, a mul#er / ocentro de uma cosmo)onia. Os pap/is -ue desempen#a e os

    http://www.lpm.com.br/http://www.lpm.com.br/
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    espaos sociais -ue ocupa re!elam uma !is'o -uaseessencialista do )0nero.E preciso, por/m, re)istrar -ue o feminino /, para a escritora,mais do -ue tema ou assunto liter%rio. ens"!el 2s diferenas

    femininas, sua !o* adere 2 lin)ua)em do te(to, do -ue resulta ocar%ter l"rico de al)umas narrati!as.Consciente de -ue ser mul#er independe do espao e sobrepe+se 2 l$)ica, Marina Colasanti recupera, a seu modo, umamem$ria l3dica, -ue confunde o real e o ima)in%rio, /pocas eculturas. 4esse modo, as areias do deserto, com suas dunas, e opar-ue de di!erses do sub3rbio, onde a pe-uena, de dentescariados, dese5a ardentemente entrar na bol#a, s'oparticulari*aes de um mesmo uni!erso6 c7nca!o, feito paracercar e acol#er, macio, feminino. E solit%rio.8etratando cenas da !ida pri!ada, a autora trata de -uestessubstanti!as, como o amor e a morte, o preconceito, o desafio, acompet0ncia, a maternidade. 4isso resulta um $timo n"!el de

    )enerali*a'o -ue transforma cada #ist$ria indi!idual na:ist$ria ;eral de todas as mul#eres.

    La Masina1

    n!i"e

    Como uma rain#a de Micenas< moa tecel'Para sentir seu le!e pesoO passarin#oMenina de !ermel#o a camin#o da Lua=o sil0ncio -ue o sol -ueima

    >ma #ist$ria de amor=o dorso da funda duna1 La Masina doutora em Letras, professora adjunta no Instituto de Letras da UFRGS, bacharelem Direito e crtica liter!ria"

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    4esertifica'oO camelo>m espin#o de marfim4e %)ua nem t'o doce

    Por/m i)ualmenteMaria Mariam cantar de mar e !entoMeioseem asas, por/mPor preo de ocasi'o

    @ela como uma paisa)emLon)e como o meu -uererAundaes

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    Entre le'o e unic$rnioemel#ana

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    uma capela, em cu5a cripta de p$rfiro abri)ou o es-uife,separado dele apenas por um port'o*in#o de ferro batido.E, disposto a enfrentar o luto intermin%!el, comeou oaprendi*ado de uma no!a !ida em -ue a !o* amada n'o ecoaria.

    Tal!e* 5ustamente de!ido a esse sil0ncio, cedo surpreendeu+secom a rapide* com -ue aprendia.< !ida parecia+l#e de fato mais no!a a cada dia. =em bem umano tin#a+se es)otado, -uando l#e ocorreu -ue, como ele tanto#a!ia a!anado, tamb/m a esposa teria a essa altura cumpridoparte de sua !ia)em. Pelo -ue 5% n'o l#e seriam necess%riasal)umas das coisas -ue consi)o le!ara para uso simb$lico. Emran)er de ferros, entrou na cripta e selecionou uns poucospratos, um frasco, sem d3!ida de!idamente usados no al/m.4esse modo, foi sucessi!amente recol#endo os ob5etos de ouro-ue, )astos pela defunta e 5% sem ser!entia para ela, afi)ura!am+se como muito pro!eitosos para si. >m )arfo #o5e, uma taaaman#', um pente a)ora, um 5arro depois, acabou enfim c#e+

    )ando 2s 5$ias pessoais.=a semi+escurid'o da cripta, pulseiras e adereos bril#a!amfrou(amente, fol)ados os an/is nos dedos descarnados, pousadaainda a tiara sobre a fronte. $ias demais, pensou ele contrito.em d3!ida, nada condi*entes com uma mul#er -ue, onde -uer-ue se encontrasse, estaria entrando na !el#ice.

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    A #oa te"e$

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    aprumado, sapato en)ra(ado. Esta!a 5ustamente acabando deentremear o 3ltimo fio da ponta dos sapatos, -uando bateram 2porta.=em precisou abrir. O moo meteu a m'o na maaneta, tirou o

    c#ap/u de pluma, e foi entrando na sua !ida.

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    em descanso tecia a mul#er os capric#os do marido, enc#endoo pal%cio de lu(os, os cofres de moedas, as salas de criados.Tecer era tudo o -ue fa*ia. Tecer era tudo o -ue -ueria fa*er.E, tecendo, ela pr$pria trou(e o tempo em -ue sua triste*a l#e

    pareceu maior -ue o pal%cio com todos os seus tesouros. E pelaprimeira !e* pensou como seria bom estar so*in#a de no!o.$ esperou anoitecer. Le!antou+se en-uanto o marido dormiason#ando com no!as e(i)0ncias. E descala, para n'o fa*erbarul#o, subiu a lon)a escada da torre, sentou+se ao tear.4esta !e* n'o precisou escol#er lin#a nen#uma. e)urou alanadeira ao contr%rio e, 5o)ando+a !elo* de um lado para ooutro, comeou a desfa*er seu tecido. 4esteceu os ca!alos, ascarrua)ens, as estrebarias, os 5ardins. 4epois desteceu oscriados e o pal%cio e todas as mara!il#as -ue contin#a. Eno!amente se !iu na sua casa pe-uena e sorriu para o 5ardimal/m da 5anela.< noite acaba!a -uando o marido, estran#ando a cama dura,

    acordou e, espantado, ol#ou em !olta. ='o te!e tempo de sele!antar. Ela 5% desfa*ia o desen#o escuro dos sapatos, e ele !iuseus p/s desaparecendo, sumindo as pernas. 8%pido, o nadasubiu+l#e pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumadoc#ap/u.Ent'o, como se ou!isse a c#e)ada do sol, a moa escol#eu umalin#a clara. E foi passando+a de!a)ar entre os fios, delicadotrao de lu*, -ue a man#' repetiu na lin#a do #ori*onte.

    Para sentir seu $e%e peso

    ;uarda!a o rou(inol numa cai(in#a. Tudo o -ue -ueria eraandar com o rou(inol empoleirado no dedo. Mas, se abrisse a

    cai(in#a, a#F certamente fu)iria.Ent'o amorosamente cortou o dedo. E, atra!/s de uma m"nimafresta, o enfiou na cai(in#a.

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    O passarinho

    Comeou di*endo -ue tin#a um passarin#o na cabea.

    Buei(a!a+se.O passarin#o batia asas, a cabea do"a. =in)u/m l#e deuaten'o.Parou at/ de se -uei(ar. ;emia, con!ersa!a com o passarin#o-ue a #abita!a. Morreu sufocada, o nari* entupido de alpiste.

    Menina !e %er#e$ho a "a#inho !a LuaEsta / uma #ist$ria -ue n'o -uero contar, uma pe-uena #ist$riasem fatos, espessa como um m0nstruo, -ue n'o pretendoassumir. Tentei li!rar+me dela, afund%+la e ao fastio -ue mecausa. ='o conse)ui. 4esnecess%ria como /, ainda assim insisteem e(istir. Aoi por isso -ue botei um an3ncio no 5ornal. 4i*ia6Procura+se narrador. E(i)em+se mod/stia e pra*er descriti!o.Pa)amento a combinar. Procurar... endereo... etc/tera.$ um apresentou+se. Teria preferido, me caberia mel#or, fossemul#er. Mas n'o ti!e escol#a, fi-uei com ele. :omem e umpouco ine(periente, me !i obri)ada a insistir na min#a !ontade,concis'o de estilo e docilidade nos ramos. E a !esti+lo com no!a

    roupa)em. G assim, pois, de saia rosa e leno nos cabelos, -ue oapresento6 m'e de duas fil#as pe-uenas -ue pouco ir'o a)ir,le!ando+as para brincar num par-uin#o de di!erses, s%bado 2tarde, na-uela e(ata tarde, na-uele e(ato momento em -ue a#ist$ria -uer acontecer, e onde ele se torna, por contrato eescol#a, seu respons%!el.O par-ue, instruo meu s$cio, / pe-ueno, nem se poderia a ri)orc#am%+lo de di!erses, por-ue l#e faltam cores e a-uela m"nimaale)ria necess%ria ao di!ertir. Tem poucos 5o)os. >m carrossel

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    mo!ido a #/lice, esp/cie de !entilador )i)ante instalado ao altoem arma'o prec%ria. E a )rande bol#a de pl%stico. ='o -uero-ue descre!a como a luminosidade batia, se de c#apa ou delado, e n'o precisa perder+se em consideraes romnticas sobre

    a decad0ncia dos par-ues. Buero apenas -ue d0 a entender,atra!/s da #/lice, tal!e*, a pobre*a al)o s$rdida do lu)ar. E, porfa!or, n'o comece com refer0ncias temporais.Pena ter !indo de sand%lias de salto alto, pensei sentindo apoeira infiltrar+se entre os dedos, !iscosa pasta de suor sobre asola. E inutilmente sacudi o p/.

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    @ranca e amarela, com !isores transparentes. Ou su5amentebranca, com remendos.

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    aos berros tentando responder na-uele corredor de !ento,-uando a m'o, seca, a)arrou de repente o brao da min#amenina. Muito bem, )ostei dessa m'o introdu*indo o dese5o.$ n'o sei o -ue !oc0 !ai fa*er com ela, o -ue ela pretende.

    8esol!a, mas lembre+se de -ue suas fil#as n'o s'o persona)ens.Menina -ue 5% entra!a. E pu(ando+a de !olta desli*ou para aperna, fec#ou+se no 5oel#o, a outra m'o 5% pronta em )arraalcanando o torno*elo. G para tirar os sapatos + ou!i enfimen-uanto ele desafi!ela!a as sand%lias, e empurrando a pe-uenapara dentro !eda!a tal#o e !ento + s$ pode entrar descala,sen'o ras)a o pl%stico.timo, as duas est'o afinal brincando, isoladas na bol#a,se)uras. Pode dei(%+las l%, por en-uanto. ='o !amos precisardelas. Mas, aten'o, !oc0 n'o tin#a reparado, a teu lado,ol#ando pelo !isor as tuas fil#as -ue pulam, est% uma menina.4e !ermel#o, um tom carmim, !estida com uma mal#a,descala. E dentes cariados. Tem 1 anos. Cuidado com essa

    idade, por-ue o ol#ar dela tem mais. Pe-uenos seios. Ela -uerentrar na bol#a. Buer muito. E n'o tem din#eiro. Mas -uer, e!ai ter -ue pa)ar de outro 5eito. Ela sabe disso. ?oc0, n'o.8olam, afundam rindo as duas na pouca )ra!idade do colc#'oondeante, braos abertos, passos embria)ados, )ritos presos emcur!a na redoma. Mas n'o sou s$ eu, m'os espalmadas sobre o!isor fosco, -ue acompan#o a !ia)em das meninas. < meu ladoela tamb/m ol#a )ulosa.% esta!a no par-ue -uando c#e)uei, fi)urin#a !ermel#abrincando com outras crianas nas canoas !olantes. 4e* anostal!e*, de lon)e mais. O carmim do batom pesa nos l%bios, masos seios ainda n'o s'o seios, e a cintura no alto espera cresci+mentos. Por -ue tem uma m%scara !ermel#a le!antada sobre a

    testa, se o carna!al 5% passouD < tela encerada, recortada emfol#as, esma)a mec#as 3midas, e como uma borboleta pousadaao acaso se contrape ao ras)ado dos ol#os. ='o parece sentir

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    frio, e(posta na mal#a curta. Ol#a le!antada sobre a ponta dosp/s, o corpo todo encostado 2 superf"cie cur!a, as co(as nuascoladas contra a bol#a, en-uanto a boca se abre amolecida de!ontade.

    Est% ali ao teu lado, e !oc0s duas n'o t0m nada a !er uma com aoutra. Mas / uma criana. ='o es-uea disso, ela !ai ser crianao tempo todo, apesar do -ue !ier a acontecer. E como criana seapro(ima da m'e -ue !oc0 /, procura apoio, ou -uem sabe, umapossibilidade de conse)uir din#eiro. >ma menina, como asmin#as. Bue me ol#a e sorri corada, ou ma-uiladaD di*endope-uenas coisas sem peso, coisas a -ue respondo mais com aaten'o do -ue com pala!ras, por-ue n'o temos muito a nosdi*er. >ma menina -ue n'o / min#a, e -ue lo)o abandono 2car0ncia de assunto, caladas as duas, prolon)ando o sorriso edes!iando aos poucos a cabea, fin)indo -ue 5% n'o nosol#amos mais. ?oc0 n'o a ol#a diretamente para n'o seen!ol!er, para n'o ter -ue inclu"+la no teu s%bado, elemento

    estran#o, fora das pre!ises. Mas tamb/m n'o a lar)a.4ebruada sobre a es-uina do teu pr$prio ol#o, sorrateira e!ora*, !oc0 a acompan#a sor!endo aos poucos, em lentoentendimento, a metamorfose sem saltos em -ue um no!o 5o)ose inicia.Comece a mo!iment%+la.

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    ur)0ncias, tempos mais r%pidos -ue o um+dois+tr0s da !alsa.Corre, debanda, sacode a le!e crina. E, ol#ando a Lua de lon)e,se abai(a, cata uma tala de pau es-uecida e a atira com!iol0ncia contra o muro. sso, ela est% mordendo o freio. O

    corpo dela relinc#a, se empina, se estica. Ela )alopa ao redor,preparando+se. E lo)o, abai(ada a cabea, manso o passo, !embuscar sua )rama mais !erde. E a pressinto de !olta, tra*idade!a)ar pelo dese5o, c#e)ando+se em rodeios, como se poracaso. P7s o rosto mais manso, o ol#ar la!ado, fe* infantil o-uei(o.?em ao !isor primeiro. Como antes, le!anta o corpo sobre acur!a dos p/s, e s$ a)ora percebo -ue n'o / necess%rio, bai(o ool#o transparente -ue de!assa o interior da bol#a. Masencostada assim, t'o debruada, n'o se interessa pelo 5o)oinfantil das duas meninas. Ol#a atra!/s, de lado, para o#omem. G a #ora da primeira tentati!a. Ela n'o tem muitaesperana de conse)uir, mas !ai tentar. E a maneira de testar o

    !el#o, de di*er eu -uero. n!ente um di%lo)o. @re!e, por-ue n'o/ com pala!ras -ue eles se entendem. Mas o -uanto baste paramarcar o primeiro to-ue. E lo)o, lenta, fin)indo indiferena,enroscando nas pernas cada a!ano, se apro(ima da entrada. m momento, e ela 5% se afasta danante, coando na nuca ocabelo louro, !incado pela aur/ola do el%stico. =o standde tiro, o3nico cliente encostou a carabina, e concentra sua aten'o noal!o moreno da moa do par-ue, encarre)ada das armas. G paral% -ue ela !ai. Eu a ol#o -uando se apro(ima, e a)atan#ada sediri)e ao rapa*. ='o sei o -ue se di*em. ?e5o -ue o rapa* ase)ura debai(o dos braos, le!antando+a de!a)ar por tr%s.

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    acompan#ando a m3sica do par-ue. 4epois se a-uieta, am%scara !ermel#a 5% le!antada em coroa. E de!a)ar, c#amandopor ele em silencioso sil!o, o bril#o da l"n)ua descola os l%bios,#esita no canto, e se)ue acariciante lambendo restos de batom,

    passando, forando, insistindo, su)ando em seu pr$prio sumoescamas de carmim.Es)otou+se o tempo lunar das min#as meninas, -ue paridasentre !entos pelo tal#o !0m a mim afo)ueadas.

    onde plantou.

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    =o meio do tri)al, pernas abertas, abri)a!a p%ssaros. Erasempre assim. Com a c#e)ada do !er'o sentia+se f/rtil,ensolarada de dese5o, m'e da terra.E deita!a+se entre as #astes r")idas, as espi)as t3r)idas, 2

    espera. Lo)o, pardais !in#am anin#ar+se entre suas co(as,fa*endo+a suspirar com a doce car"cia das asas. Esma)a!a entreos l%bios p/talas de papoulas, e )emia. Aremir de plumas,pe-uenos bicos, bre!es pios, del"cias. E as l"n)uas do sol sobreseus seios.Mas era s$ ao entardecer, -uando o )a!i'o em !7o desen#a!ac"rculos de sombra sobre o ouro, lanando+se como pedra entresuas carnes para col#er o mais tonto dos pardais, -ue as #astesestremeciam enfim, inclinando as espi)as ao supremo )rito.

    U#a histria !e a#or

    ;an#ei a estola de peles !i!a. Como se tra* para casa a )alin#a

    cacare5ante com as patas amarradas, assim meu marido entroucom as duas martas. Em !'o tentei enrodil#%+las no pescoopara !er como ficariam depois. Eram ariscas. Pude apenasconstatar a boa -ualidade do p0lo, lustroso, farto, sem estra)os.E tranc%+las na )aiola.Ce!%+las, disse meu marido. sso / preciso. Buero !0+las bem

    )ordas nos teus ombros fartos.Pre)ou as patin#as no fundo de madeira cuidando de n'odanific%+las. E comeou a meter+l#es comida )oela abai(o.Comiam elas, comia eu. Buero te !er bem rolia, di*ia, e meenc#ia de bombons. >ma lu* acesa impedia o sono das martas.

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    marido apro(imou+se luminoso de pai('o e, cuidando de n'odanific%+las, pre)ou min#as m'os no fundo da cama.

    No !orso !a (un!a !una

    O sol atra!essa!a lentamente o c/u. E abai(o dele, bem abai(o,um emir com sua cara!ana atra!essa!a o deserto. < claridadeera en!ol!ente como um sono. Mas de repente, pelas frestas dosol#os apertados, o emir !iu a fi)ura escura de um #omemrecortar+se no dorso de uma duna. 4e um #omem e de uma

    cabra.Bue parasse a cara!ana, ordenou o emir. >m #omem so*in#ono deserto / um #omem morto.+ Mas n'o estou so*in#o, nobre sen#or + respondeu o #omemle!ado 2 presena do emir.E este, tendo lo)o pensado -ue uma cabra n'o / compan#iasuficiente em meio 2s areias, penitenciou+se no se)redo da sua

    mente. Certamente a-uele era um #omem santo -ue !a)a!a empenit0ncia, e tin#a a compan#ia da sua f/.

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    Mas, -uando o #omem recusou a oferta, acrescentando -uecertamente era um in3til embora n'o esti!esse so*in#o, o c#efedos piratas ac#ou -ue deboc#a!a dele, e mandou -ue o sur+rassem. em demora e sem ru"do, pois cascos n'o ecoam na

    areia, o tropel partiu.Os ferimentos da surra #% muito #a!iam cicatri*ado, no dia em-ue uma cara!ana de pere)rinos passou no seu camin#o. E,assim como ele a !iu c#e)ar com pra*er, tamb/m os pere)rinosconsideraram a presena da-uele #omem e da-uela cabra comoum sinal prop"cio, e decidiram acampar ao seu lado no dorso daduna.

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    #

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    cortinas, pro!idenciou panos, fol)adas roupas, turbantes -ueprote)iam a cabea e a boca. Os ol#os, na claridade,trabal#a!am para descobrir entre frestas al)um alimento para ascabras. E 2 noite acendiam em fo)ueiras o -ue resta!a dos

    m$!eis.Mas lo)o a duna comeou a mo!er+se. 4esfa*iam+se as ondasdo cimo para ondularem mais adiante. Era #ora de partir.4esmontaram a tenda, amarraram as cabras, er)ueram nosombros os odres de leite. E em fila pelo corredor se)uiram amar/ da duna.

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    4oce l"n)ua de unic$rnio lambeu a m'o -ue o retin#a. m maluco. Era s$ o -ue me falta!a. Lo)o #o5e -ue estouso*in#a em casa. Essa cidade est% !irando um #osp"cio.

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    Maria nem pensa -ue a-uele sorriso / uma prima!era. ente+seapenas trespassar de mansid'o, ensolarada. Maria sorri.# 4esculpe + di*. E, por dentro, como fui ser t'o rid"culaD +4esculpe + repete. + O -ue / mesmo -ue !oc0 -ueriaD

    # Posso entrarD + a per)unta parece t'o l$)ica, t'o absolutamenteserena, -ue Maria se apressa a tirar a corrente, abrir a porta.E o rapa* entra na casa de Maria.# ?oc0 -uer um caf/D + per)unta Maria. + >ma %)uaD# Buero -ue !oc0 sente a-ui ao meu lado, Maria, por-ue ten#ouma coisa importante para te di*er.Maria nem se per)unta como ele sabe seu nome, esse #omemt'o lindo. Maria n'o tem nen#uma interro)a'o mais, s$ odese5o de sentar ali no sof% da sala, 5unto 2-uele rapa* decamiseta e cac#os, e respirar seu #%lito.+ Maria + di* ele +, !oc0 n'o !ai acreditar, mas eu te trou(e umpresente.='o, Maria n'o acredita. Mas isso n'o fa* diferena, por-ue a

    m'o do rapa* / -uente na sua co(a e o #%lito dele / perfume eflor, e a boca dele, a#F a boca dele / um fruto do en#or.4espe5adaF Lo)o a)oraF Lo)o a)ora -ue a barri)a retesada eplena como um o!o est% prestes a culminar sua tarefa. Maria-uase n'o acredita, n'o -uer acreditar, mas a carta est% ali, tin#aacertado tudo com o sen#orio, mas a carta est% na m'o dela, /isso, n'o tem como !oltar atr%s, n'o d% mais para ficar s$esperando o nen/n c#e)ar, a)ora / preciso arrumar outroapartamento. E depressa.Maria l0 os classificados, recorta an3ncios poss"!eis. E sai. Pe)a7nibus, pe)a metr7, anda, anda, sobe escadas, fala comporteiros, entra em ele!adores, abre portas.

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    um dia, depois de tantas portas inutilmente abertas, sim, l#e di*uma 5anela sem cortinas aberta sobre %r!ores, sim, um pisoclaro, sim sim, o sol derramado nas paredes. im, parece di*er+l#e do centro de tudo o seu beb0. E assim Maria sabe -ue 5%

    encontrou uma casa para receb0+lo.Precisar% ainda fa*er a mudana, 5untar suas coisas, depoisacompan#ar o camin#'o com seu pr$prio carro, pe-uenaprociss'o atra!/s do trnsito da cidade, durante a -ual os cristaismais delicados, -ue le!ou consi)o num balaio, tilintam comomin3sculos sinos.Est% 5ustamente tentando definir lu)ares para os ob5etos na casaainda ca$tica, -uando o corpo mo"do e(i)e -ue ela pon#a asm'os nos rins e, pro5etando a barri)a para a frente para ali!iar opeso, Maria percebe -ue uma sombra se a!oluma por dentro do!entre. >ma sombra -ue ainda n'o / dor, mas -ue cresce e,insistente, c#ama.4eitada de lado como o m/dico mandou, Maria respira

    pausadamente en-uanto a dor maior l#e d% repouso. E umatr/)ua apenas, ela sabe, lo)o a onda tentar% submer)i+la outra!e*, !inda do p/, da terra -ue ela se-uer toca, mas -ue est% nela,passado de semeadura e col#eita -ue #abita toda mul#er.

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    abe, por/m -ue c#e)ou a #ora. =a maca, rumo 2 sala de parto,Maria pensa apenas no seu dese5o de !0+lo, pe)%+lo no colo, ela-ue #% tantos meses o tra* no re)ao.Ario, lu* intensa, o corpo t'o do"do -ue -uase o descon#ece.

    Aora, Maria, / preciso fa*er fora. Os m3sculos tensos, osdentes cerrados, o pescoo -uase estourando. E de repentea-uela sensa'o l"-uida, macia, de pei(e es)ueirando+se,saltando, como se a dor e o san)ue e as !"sceras de Maria sees!a"ssem por entre suas pernas, dei(ando+a !a*ia e apa*i)uada.+ G uma menina + ou!e o m/dico di*er do fundo da lu*.>ma meninaDF Ent'o, pensa Maria -uase com al"!io antes deres!alar para o torpor, ent'o n'o era !erdade, nada do -ue o

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    # 4esculpem, !ou cuidar de !oc0s tamb/m, n'o precisam ficarcom ci3mes.=a co*in#a, Maria despe5a a ra'o na ti)ela, abre uma lata desardin#as para o )ato, bate de le!e com o prato no c#'o. C#ama,

    psss, psss. =em )ato nem cac#orro obedecem. C#ama de no!o,fa* barul#o com o prato. =ada. Bue ser% -ue #% com essebic#os, se per)unta Maria. ntri)ada, !ai at/ a sala. ='o c#e)a aentrar, por/m, retida por um instante na porta, em de!o'o.L% est% o cai(ote, onde ela o dei(ou. Mas o )ato de um lado e ocac#orro do outro bafe5am delicadamente sobre a menina. Eacima dela, pairando ofuscante na tarde -ue se !ai, espar)e suaf3l)ida lu* uma estrela.+ Ent'o era !erdadeF O

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    + ='o c#ore. ?im l#e a5udar. ou seu

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    rodeando+l#e o -uei(oF ='o podia acreditar, mas era !erdade.Em seu rosto, uma barba #a!ia crescido.Passou os dedos lentamente entre os fios sedosos. E 5% estendiaa m'o procurando a tesoura, -uando afinal compreendeu.

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    Compan#eiro nas lutas e nas caadas, in-uieta!a+se por/m o8ei !endo -ue seu ami)o mais fiel 5amais tira!a o elmo. E maisainda in-uieta!a+se, ao sentir crescer dentro de si umsentimento no!o, diferente de todos, de!o'o mais funda por

    a-uele ami)o do -ue um #omem sente por um #omem. Pois n'opodia saber -ue 2 noite, trancado o -uarto, a princesa encosta!aseu escudo na parede, !estia o !estido de !eludo !ermel#o,solta!a os cabelos, e diante do seu refle(o no metal polido,suspira!a lon)amente pensando nele.Muitos dias se passaram em -ue, tentando fu)ir do -ue sentia, o8ei e!ita!a !0+la. E outros tantos em -ue, percebendo -ue isson'o a afasta!a da sua lembrana, manda!a c#am%+la, para arre+pender+se em se)uida e pedia+l#e -ue se fosse.Por fim, como nada disso acalmasse seu tormento, ordenou -ue!iesse ter com ele. E, em !o* %spera, l#e disse -ue #% muitotempo tolera!a ter a seu lado um ca!aleiro de rosto sempreencoberto. Mas -ue n'o podia mais confiar em al)u/m -ue se

    escondia atr%s do ferro. Tirasse o elmo, mostrasse o rosto. Outeria cinco dias para dei(ar o castelo.em resposta, ou )esto, a Princesa dei(ou o sal'o, refu)iando+seno seu -uarto. =unca o 8ei poderia am%+la, com sua barbarui!a. =em mais a -uereria como )uerreiro, com seu corpo demul#er. C#orou todas as l%)rimas -ue ainda tin#a para c#orar.4obrada sobre si mesma, aos soluos, implorou ao seu corpo-ue a libertasse, suplicou a sua mente -ue l#e desse umasolu'o.

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    =a-uele dia n'o ousou sair do -uarto, para n'o ser denunciadapelo perfume, t'o intenso, -ue ela pr$pria sentia+se embria)arde prima!era. E per)unta!a+se de -ue adianta!a ter trocado abarba por flores, -uando, ol#ando no escudo com aten'o, pare+

    ceu+l#e -ue al)umas rosas perdiam o !io !ermel#o, fa*endo+semais escuras -ue o !in#o. 4e fato, ao aman#ecer, #a!ia p/talasno seu tra!esseiro.>ma ap$s a outra, as rosas murc#aram, despetalando+selentamente. em -ue nen#um bot'o !iesse substituir as flores-ue se iam.

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    1er!a!eira histria !e u# a#or ar!ente

    =unca ti!era namorada, esposa, amante. 4esde 5o!em !i!ia s$.

    Entretanto, passando os anos, sentia+se como se mais s$ ficasse,adensando+se ao seu redor a-uele mesmo sil0ncio -ue antes l#eparecera apenas repousante. E, !indo por fim a triste*a instalar+se no seu cotidiano, decidiu pro!idenciar uma compan#eira -ue,partil#ando com ele o espao, e(pulsasse a intrusa lamentosa.Em lo5a especiali*ada ad-uiriu )rande -uantidade de cera,

    corantes, e todo o material necess%rio. Em bre!es estudos nosalmana-ues e tratados aprendeu a t/cnica. E lo)o, trancado 2noite em sua casa, comeou a moldar a-uela -ue preenc#eriaseus dese5os.Pronta, surpreendeu+se com a bele*a -ue -uaseinconscientemente l#e #a!ia transmitido. < sua!idadeopalinada, r$sea palide* -ue a-ui e ali parecia acentuar+se num

    rubor, n'o tin#a semel#ana com a %spera pele das mul#eres-ue por!entura con#ecera. =em a ele)ncia alti!a desta podiacomparar+se 2 rusticidade -uase )rosseira da-uelas. Era umadama de nobre sil0ncio. E s$ tin#a ol#os para ele.Perdidamente a amou. O calor dos seus abraos tornando a-uelecorpo ainda mais macio, conferia+l#e uma maleabilidade em

    -ue todo to-ue se imprimia, formando e deformando a amadano flu(o do seu pra*er.% #% al)um tempo !i!iam 5untos, -uando uma noite a lu*faltou. Comea!a ele a cansar+se de tanta docilidade. Comea!aela a empoeirar+se, tur!ando em manc#as acin*entadas os tonsantes transl3cidos. >m certo t/dio #a!ia+se infiltrado na !ida docasal. Bue ele tenta!a 5ustamente combater na-uela noite

    empun#ando um bom li!ro, no momento em -ue a lmpadaapa)ou.

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    entado na poltrona, com o li!ro nas m'os prometendo del"cias,ainda #esitou. 4epois le!antou+se, e tateando, com o mesmois-ueiro com -ue #% pouco acendera o ci)arro, inflamou atrana da mul#er, iluminando o aposento.

    m dia notou a mul#er umle!e afrou(ar+ se das p%lpebras. emanas depois percebeu -ue,no sorriso, fran*iam+se fundos os cantos dos ol#os.Mas foi s$ muitos meses mais tarde -ue a presena de duas

    fortes pre)as descendo dos lados do nari* at/ a boca tornou+seine)%!el. em nada di*er, ela esperou a noite. Tendo finalmentecerte*a de -ue o #omem dormia o mais pesado dos sonos,pe)ou um panin#o 3mido e, silenciosa, li)ou o ferro.

    Na estr+ia

    I

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    =a noite da estr/ia o le'o tremia tanto de emo'o -ue, numbater de dentes, acabou decepando a cabea do domador.

    II

    =a noite da estr/ia, ao serrar sua mul#er em duas, o m%)icopercebeu -ue s$ )osta!a da parte de cima.

    III=a noite da estr/ia, depois -ue todos se foram e as lu*es seapa)aram, a bailarina deitou+se no fio e adormeceu.

    A#or e #orte na p)*ina !e/essete

    =o dia em -ue elena saiu no 5ornal, n'o )an#ou foto naprimeira p%)ina. Buin*e lin#as somente, no canto es-uerdo.Mas foi l% dentro, na p%)ina de*essete, abai(o do t"tulo, -ue omarido a !iu com seu decote, o rosto meio escondido na m'o,

    c#orando por outro #omem.< foto #a!ia sido tirada ao lado do picadeiro. ?iam+se atr%s dacabea dela um pedao da lona, o alto das )rades. 8odeada de)ente, elena n'o percebera -ue esta!a sendo foto)rafada, #a!iatantas lu*es ali. =em pensara -ue sairia no dia se)uinte nap%)ina 1N e -ue o marido a !eria. Ou pensara, mas como um

    problema a resol!er em outra #ora, en!er)on#ada -uase de -ueesse pensamento sur)isse -uando s$ l#e cabia pensar no outro,no outro -ue ali esta!a, 2 seus p/s.Como conse)uem c#e)ar t'o depressaDF, per)untara+seadmirado o dono do circo, ele -ue s$ conse)uia deslocar suas)entes lentamente. E correra para alcanar as camionetes de T?,

    antes mesmo -ue acabassem de estacionar entre ostrailers eabrissem as portas. merro. =em esse nem o se)undo -ue saltou, a -uem tamb/m se

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    apresentou, tin#am -ual-uer importncia, carre)adores dee-uipamentos, nen#um deles se lembraria dele no futuro, na#ora de dar uma not"cia sobre o ;ran Circus o rep$rter, cad0 orep$rterD < rep$rter 5% esta!a l% dentro empurrando o microfone

    diante do rosto desfeito de elena, tentando arrancar+l#e-ual-uer coisa -ue durasse pelo menos dois minutos, -ual-uercoisa mais -ue a-uele ol#ar escondido pelas p%lpebras inc#adas,-ue a-uele balbuciar -uase incoerente.

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    na estampa !i!a, os -uadris moldados de !ermel#o. Mesmo as+sim..., e obser!ara seu camin#ar at/ o sof%, 2 procura de umarestri'o poss"!el para opor ao seu dese5o. Mesmo assim, est%muito curto.

    elena displicente, afi!elando as sand%lias altas, ='o tembain#a para descer. E, cru*ando as pernas, ;ostou n'oD

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    elena nem se lembra!a como #a!ia c#e)ado at/ a arena, sedescendo ou rolando do alto da ar-uibancada, se passando porcima das pessoas ou se le!ada por elas. 4e repente esta!a ali, nabeira do )rupo compacto -ue se #a!ia fec#ado de imediato ao

    redor do fato como uma parede de bailarinas, pal#aos,espectadores. E lo)o esta!a no meio do c"rculo, ela e o #omemdos alamares no casaco, -ue a se)ura!a pelo brao, -ue!ocifera!a, -ue tal!e* a sacudisse, ou era ela -ue com seutremor sacudia a m'o dele. Os #olofotes acesos.

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    -ue sempre #a!ia acreditado ser, tornando+se al)u/m -ue aindan'o con#ecia. em -ue o interlocutor pudesse perceber, umametamorfose se opera!a do lado de c% da lin#a, e esse #omem,onas, de fone na m'o, !ia+se despido da sua se)urana como a

    serpente / despida da pele, e nu, com sua branca carne !i!a, 5%n'o era o marido respeitado e in!e5ado pela !i*in#ana, masal)u/m de -uem se rir pelas costas n'o era o mac#o -uesempre #a!ia es)otado as !ontades da sua f0mea, mas apenasum #omem -ue )o*a!a. E(pulso da serenidade, onasencontrou+se ao desabri)o. ei, respondeu depois de um lon)osil0ncio -ue o outro, de l%, tenta!a -uebrar para ter certe*a deter sido entendido. ei, repetiu. E, pela primeira !e*, sabia.O cara n'o !em, o policial disse para o outro desli)ando. Tin#afalado com onas na frente de elena sem constran)imento,como se ela n'o ou!isse ou como se o -ue tin#a a di*er aomarido n'o fosse constran)edor para ela. ='o era. Aalassem alto2 !ontade. < rela'o dela com onas n'o esta!a ali. ='o esta!a

    do outro lado da lin#a. eu marido, o compan#eiro seu, aespera!a adiante em al)um momento, %rduo momento em -ueteriam -ue se encontrar. Mas a-uela mesma rela'o -ue ela pro+

    5eta!a para o futuro esta!a inteira ali, no seu mudo repetir ten#omarido, na !ontade de -ue ele !iesse, a le!asse para casa, atirasse da-uele lu)ar. onasF in!ocou de no!o sufocada emc#oro, me a5uda.eu marido, dona, disse o policial como se ti!esse lido seupensamento, n'o !em.?inte e sete anos de casados, o peso dele afundando a cama deum lado, o suor encardindo os colarin#os. ='o / suor, di*ia ele,/ poeira l% do ser!io. ?inte e sete anos de se(o, lu* acesa, ecarne assada aos domin)os. :omem -ue senta!a 2 mesa para

    comer e deita!a em cima dela para )o*ar. Tudo com fartura.>m bom marido, onas, ciumento, meio bruto, mas bom. Edela.

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    onas botou o fone no )anc#o e apa)ou a lu*. O nome de elenasubiu por dentro dele como um !7mito, esbarrou nos dentestrancados, na boca dura, fe*+se insulto, cuspe, soluo. Passou anoite assim, sentado no sof%, de cuecas, c#orando no escuro. E

    falando com elena, bri)ando com elena, sacudindo+a pelosbraos, ras)ando+l#e a roupa, dando+l#e tapas na cara, fodendo+a como se fode uma prostituta, e implorando, per)untando por-ue, por -ue se ele n'o l#e dei(a!a faltar nada. C#e)ou a dartiro, nela, nos dois, a surpreend0+los na cama, a peit%+los naentrada do motel. Passou a noite culpando+os, culpando+se,ferindo+se nas pala!ras. entiu frio, enrolou+se numa toal#a doban#eiro, os p/s continuaram )elados, encol#eu os p/s sobre osof%.

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    !o* bai(a. m !estido no!o, um 5antar, e o circo.

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    administra'o, sem casaco de alamares, sem botas, era apenasmais um #omem de 5eans.# ='o #ou!e tempo de tomar -ual-uer atitude. < se)uranaesta!a atenta, mas n'o deu para sal!ar o #omem. =in)u/m

    podia ima)inar...# im, / claro -ue esta!am armados, num circo contamos commuito impre!isto, nunca uma coisa assim, isso nunca aconteceuem circo nen#um, e com toda a-uela )ente de p/, aos )ritos, osse)uranas n'o podiam atirar, ima)ine acertar al)u/m...# L% !em o sen#or insistindo nisso. ='o, eu 5% l#e disse antes erepito. ='o #% peri)o nen#um para os espectadores, nunca#ou!e.# Como, nem ontem 2 noiteD Ontem 2 noite, meu ami)o, n'o foi-uest'o de peri)o. Aoi uma fatalidade, uma loucura, uma coisa-ue nin)u/m podia e!itar.Eu podia ter e!itado. Mas como / -ue eu ia ima)inar uma coisadessas, me di*, comoD =a sala da ami)a, elena, sentada,

    embola o leno nas m'os en-uanto 5unta foras para !oltar paracasa, para saltar de um t%(i diante da porta e tocar a campain#a,para esperar -ue onas abra, -ue por caridade abra. E isso -ueelena -uer fa*er a)ora, ir para casa, tomar um ban#o, trocar deroupa. Mudar% de id/ia depois, mas por en-uanto / o -ue ela-uer. E por-ue ainda n'o tem cora)em, e por-ue sabe -uedepois, com onas, ter% -ue se controlar, falar de uma outramaneira sobre o -ue aconteceu, !ai repetindo para a ami)a uma!e* mais a-uilo tudo -ue l#e contou ao c#e)ar, mais pausa+damente a)ora. Bue ela esta!a t'o feli*, 4aniel me(endo comela por causa do decote + a m'o de elena sobe, pousa no colodescoberto me(endo, -ue a-uilo era um peri)o, -ue n'o a-ueria na rua so*in#a bonitona da-uele 5eito, bonitona, tin#a

    dito assim mesmo, e ela, na-uela idade, tin#a se sentido comose fosse !erdade, bonitona, os outros #omens todos do

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    restaurante reparando. Tin#a sido sempre assim com ele, desdea primeira !e*, a-uele 5eito brincal#'o de falar...=o in"cio mesmo da frase, elena percebe, com s3bita culpa,-ue se referiu a 4aniel no passado, como se cedo o esti!esse

    abandonando. :esita, entre trair+l#e a morte ou tentar mant0+lo!i!o falando dele no presente. Mas o passado 5% !enceu. elenaparou por instantes. Ol#a as m'os, as un#as -ue tin#a feito paraa ocasi'o, a)ora t'o sem sentido, un#as !ermel#as numa #oradessas. E re!0 a pr$pria m'o sobre a mesa se)urando a de4aniel. Tin#am tomado cer!e5a, / !erdade, mais -ue de cos+tume, mas restaurante / assim mesmo, demora para c#e)ar acomida, a pessoa fica bebendo, 4aniel nunca tin#a sido demuita bebida. E o -ue tin#a demais beber um pou-uin#o al/mda conta, se era uma noite de festa e depois ainda iam ao circoDAalei a-uilo com ele, n'o foi por mal, n'o foi. elena abai(a acabea, cobre os ol#os com o leno ainda meio embolado, osol#os secos, como se o leno pudesse atrair as l%)rimas e ali!i%+

    la. Esta!a lindo o circo, a-uela )ente toda, a m3sica, o barul#o,o c#eiro -uente das feras. 4esde menina -ue ela n'o ia, esempre tin#a )ostado tanto, sempre tin#a tido tanta !ontade.Mas onas n'o )osta dessas coisas, !oc0 sabe o 5eito do onas,foi por isso -ue 4aniel -uis me le!ar, pra me a)radar, elesempre fe* tudo pra me a)radar.

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    O domador entrou primeiro. C#e)ou es!oaando uma capa decetim, parou no meio do picadeiro, um assistente !eio por tr%s,tirou a capa. =o instante em -ue a capa se abriu, o domadorestalou o c#icote no ar. elena te!e a impress'o de -ue ele

    esta!a nu, s$ o cinto lar)o rodeando+l#e os -uadris e a tira decouro atra!essada no peito. < sun)a era -uase da mesma cor dapele.Os lees entraram um de cada !e* pelo corredor )radeado. 4ecabea bai(a, os flancos ner!osos, as patas macias a!anandocautelosas sobre a serra)em.

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    )radeado e inutilmente )ritou )ritou en-uanto ele a!ana!a nopicadeiro.

    O ti*re

    Min#a intimidade com o ti)re era falsa. Embora fosse meu pordireito e papel passado. ='o confiei. Temi pela intocabilidadedo rosto, importncia das duas 3nicas m'os. E manti!e o afa)ole!e de -uem est% pronto a retir%+lo.=o entanto ele nunca me traiu. Em nen#um momento fin)iu

    uma docilidade -ue n'o tin#a. =em -uando se apro(ima!a empassos lon)os -uase corridos e eu l#e temia o peso. =em-uando er)uia a pata retribuindo e afastando min#as car"cias.=em mesmo -uando, afirmando sua posse, me transferiu deuma s$ bocada para o 3mido calor de suas entran#as.

    Histria #ais $on*a para 'ue.rar o rit#o

    C#o!e.Os primeiros bic#os c#e)am ao celeiro da montan#a. E 5% a%)ua sobe nas plan"cies e os rios abandonam seus leitos. Mas oceleiro / 3mido e -uente, madeira podre, c#eiro de toca, e osanimais se sentem prote)idos. C#e)am, fare5am na porta escura,

    e lo)o entram misturando+se a seus pares.C#o!e.Poucos nos primeiros dias, se a-uecem uns contra os outros,p0lo, pena, couro, escama. Mas a c#u!a continua e mais bic#osc#e)am, enc#endo o celeiro -ue estala debai(o da tempestade eda press'o.=in)u/m ou!e -uando o )ato come o rato. =a noite se)uinte,-uando o )ato / morto pelo c'o, os outros animais, entretidoscom a luta do ti)re e do elefante, nada percebem. =o alarido

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    -ue acompan#a a !it$ria do ti)re, a 5ib$ia fec#a suas espiraissobre o coel#o, sem -ue o estalar dos ossos se5a notado pelosdemais.C#o!e.

    < %)ua sobe ao redor do celeiro, imenso la)o. O ronco dotro!'o abafa o rosnar da pantera -ue salta sobre a )a*ela.Es-ui!o, o c#acal bebe o san)ue. =a escurid'o do celeiro acoru5a abre os ol#os fec#ando a )arra sobre o dorso do es-uilo,o 5a!ali enterra as presas no flanco da raposa, o morce)o seespo5a na 5u)ular do boi.C#o!e. Mas as nu!ens se es)aram no #ori*onte, e uma lu*distante ilumina as %)uas.L% fora o sil0ncio. C% dentro balidos, )emidos, rosnados,latidos. Q)il, o macaco escapa da ona. 8%pido, o condor seabate sobre ele. O !eneno da tarntula mer)ul#a a marmota emsono definiti!o, a picada da lacraia paralisa o ca!alo, e oescorpi'o ameaado pelo tatu !olta contra si o pr$prio ferr'o. O

    c#ifre do b3falo afunda na macie* do carneiro. < )irafa dobra+se ao peso do lince. < )ara desfol#a+se sob a f3ria do lobo. m marco de peri)o-ue mantin#a alerta os sentidos do c'o.Latia. Trota!a diante da casa, de um lado a outro, como sedefendendo a porta.

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    O -ue tem esse bic#oD, per)unta!am+se impacientes. ?%rias!e*es o #omem !oltou ao pe-ueno bos-ue. < mul#er c#e)ou air com ele. ?ascul#aram. =ada. Peri)o nen#um -ue se !isse.O c'o, in-uieto. Mal comia. O ol#ar sempre pronto a abandonar

    o -ue -uer -ue esti!esse ol#ando, para !oltar+se na-ueladire'o, na dire'o da manc#a a*ulada, da sua!e ri)ide* dosabetos.Comeou a latir tamb/m 2 noite, -uando certamente n'o podia!er. Mas os sentidos do c'o, pensaram os donos. E o sonotornou+se dif"cil. < in-uieta'o do animal pesa!a sobre a casa.< ameaa ronda!a, uma ameaa -ue eles n'o podiam !er, mas-ue se corporifica!a no focin#o tenso do c'o, nas orel#aser)uidas capa*es de captar mensa)ens -ue a eles, osameaados, escapa!am.Tal!e* fosse mel#or cortar as %r!ores, su)eriu um dia o maridono caf/ da man#', com a cabea bai(a e a boca -uase metida na("cara. :a!ia pensado nisso durante a noite, insone.

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    nesse ir e !ir de oper%rios e m%-uinas, apesar da melancoliacom -ue a mul#er ol#a!a 2s !e*es, encostada no umbral,en-uanto o terreno era despido de seus cabelos a*uis. 4epois,tudo !oltou ao normal.

    Comea!a o outono. =os fundos da casa empil#a!a+se a len#acom -ue alimentariam a lareira. Lentamente atenua!a+se oc#eiro de resina. ma tarde, a primeira em -ue acenderam a lareira inau)urandoas no!as reser!as, o c'o deitado sobre o tapete sobressaltou+sede repente. Er)ueu a cabea. Aoi at/ a porta. Aare5ou de umlado e outro. Buer sair, disse a mul#er. O #omem le!antou+se,abriu a porta. O c'o saiu de um salto. Cuidado com o frio,ad!ertiu a mul#er sentindo a lufada. O #omem ainda !iu o c'o,

    orel#as er)uidas, ol#ando para a campina -ue se inclina!a ao!ento, na e(ata dire'o onde antes #a!ia estado o bos-ue.Aec#ou a porta contendo+a com a m'o espalmada. E ent'oou!iu o cac#orro latir.

    U#a %i!a ao $a!o

    Aina, a parede. E, al/m dela, a !ida do !i*in#o.rritante a princ"pio. 8u"dos, pancadas, tosse, tudo interferindo,infiltrando+se. 4epois, aos poucos, familiar.abia+l#e o ban#o, as refeies, as #oras de repouso. < cada)esto, um som. E no som, recriado, o !ia mo!er+se em)eometrias id0nticas 2s suas. < sala, o -uarto, o corredor.

    Cada !e* mais li)a!a+se ao !i*in#o, absor!endo seus #%bitos.Ou!ia bater de louas e se apressa!a 2 co*in#a, !in#am !o*esmoduladas e li)a!a a tele!is'o. noite s$ conse)uia dormir

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    depois do ba-ue dos sapatos do outro, o ran)er da camaassinalando -ue se metera entre len$is.Perdia+o, por/m, -uando sa"a porta afora. Passos, tinir dec#a!es, l% se ia o !i*in#o. em ele, !a*ios a sala e o -uarto, a

    parede emudecia, separando sil0ncios.?olta!a ao fim do dia, pontual. Passos, tinir de c#a!es. Eleent'o acendia a lu* ao estalar do interruptor do outro, e 5untospun#am a casa em andamento.Tenta!a, 2s !e*es, se)uir+l#e as andanas. Espia!a pelo ol#om%)ico estudando a paci0ncia com -ue espera!a o ele!ador,posta!a+se 2 5anela para !er -ue dire'o toma!a, em -ue 7nibussubia.E, 5ustamente numa tarde em -ue espreita!a, !iu o outroatra!essar em m% #ora a rua mo!imentada, #esitar, correr e seratropelado por um fur)'o.Percebeu -ue precisa!a trabal#ar r%pido. em #esitar, arrancouas portas dos arm%rios, as cortinas, pe)ou a cai(a de

    ferramentas, e comeou a serrar, li(ar, bater, colar.Tudo esta!a pronto -uando ou!iu o cai('o do outro c#e)ar parao !el$rio. obre a mesa da sala, na e(ata posi'o em -ue o do!i*in#o de!eria estar, colocou seu pr$prio cai('o. 4epois abriua porta de par em par e, !estido no terno a*ul+marin#o, deitou+se cru*ando as m'os sobre o peito.

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    branca com uma branca lua bordada. E assim -ue escureciafa*ia+ se ao lar)o.='o le!a!a redes, n'o le!a!a an*ol no barco pe-ueno. Cestossomente, )randes. E em sil0ncio, escuro adentro, na!e)a!a at/

    c#e)ar onde o mar / fundo como a noite.

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    compreendeu. Pei(es pe-uenos e )randes, muitos pei(es, aempurra!am.=en#uma ale)ria a recebeu na aldeia. O desapontamentoreforou o dese5o dos pescadores. E, antes mesmo -ue o mastro

    ti!esse sido trocado, apro!eitaram+se de um momento em -uenin)u/m esta!a 5unto ao barco, furaram seu casco em !%riospontos, e cuidadosamente taparam os furos com miolo de p'oamassado com serra)em. 4essa !e*, se-uer sorriram -uando a!ela fe*+se ao lar)o. E ao lar)o ainda n'o #a!ia c#e)ado,-uando o miolo de p'o, amolecido, desfe*+se dei(ando entrar a%)ua aos borbotes.< moa bem poderia ter )ritado, taman#o o susto. ='o )ritou.Tenta!a em !'o tapar um ou outro furo com a saia ou o c#al/,-uando percebeu -ue a %)ua 5% n'o entra!a aos borbotes, 5%n'o entra!a de todo. Tateando, compreendeu. Pei(es #a!iam+semetido nos furos, tapando+os com o pr$prio corpo.4essa !e*, n'o #a!ia nin)u/m no porto -uando a moa c#e)ou,

    por-ue era noite. Mas, na man#' se)uinte, mais enrai!ecidosainda ficaram os pescadores !endo -ue, contra todos eles, o marteima!a em fa!orec0+la. Buando dias depois, consertado ocasco, ela se fe* ao mar, o leme #a!ia sido trabal#ado paradesprender+se e afundar.Percebeu+o a pescadora !endo+o desaparecer no a*ul, -uandoesta!a em alt"ssimo mar e 5% n'o adianta!a perceber. em leme,seria le!ada pelas correntes, atirada contra os arrecifes oude!orada pelo sol.?ontade de c#orar n'o l#e faltou. Mas, antes -ue ti!esse tidotempo de fa*0+lo, um )olfin#o aflorou e mer)ul#ou ao lado dobarco, depois 2 frente, do outro lado e no!amente 2 frente.8%pida, en-uanto o )olfin#o continua!a aflorando e

    mer)ul#ando ao seu redor, ela atou um cabo 2 proa, atirou+o na%)ua. E lo)o o )olfin#o col#eu o cabo na boca e comeou arebocar.

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    =a!e)aram a noite inteira, ela em sil0ncio para n'o aumentar opeso do barco, o )olfin#o 2 frente cintilante entre mar e lu* delua. < man#' ainda n'o #a!ia c#e)ado, -uando ela !iu aolon)e, escura sobre o escuro, recortar+se a sil#ueta de uma il#a.

    ='o era para o porto da aldeia -ue a!ana!am.Era para uma praia pe-uena. Em -ue o barco, enfimabandonado pelo )olfin#o e se)uindo seu impulso, sua!ementeencal#ou.ma escadaria de pedra -ue seescondia ao alto entre flores. ardins ao redor, floresta. E, mais-ue o empalidecer do c/u, o canto dos p%ssaros anunciando oreinado do dia.< moa prendeu na cintura a barra da saia, e saltou. P/s nH%)ua,empurrou o barco areia acima, atou o cabo firmemente numroc#edo. $ depois de )arantir seu 3nico bem, camin#ou at/ aescadaria, comeou a subir.Buantos de)rausF 4istra"a+se ol#ando o 5ardim, para!a para

    debruar+se sobre o perfume das flores. E ei+la c#e)ar ao alto, 2beira de um )ramado -ue se estendia at/ o pe-ueno pal%cio + ou)rande !ila + diante de cu5a porta fec#ada parou.C#amou, primeiro bai(in#o. 4epois mais alto.

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    Enorme !est"bulo, colunas, arcos e, por tr%s de reposteiros de!eludo, as altas 5anelas por onde entra!a a lu* ainda !erde daman#'. Onde estariam as )entes dessa casaD Poeira fina sobreos m$!eis e os pisos, sem pe)adas, sem marcas de m'os. Tudo

    arrumado, por/m. E estan-ue no sil0ncio.

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    fartou+se, bebendo depois %)ua nas m'os em conc#a. ='oousou ser!ir+se de uma das taas.Esta!a cansada, afinal. O dia lo)o acabaria. E, tendo entradoem um dos -uartos, deitou+se na cama, e adormeceu.

    on#ou com o moo do -uadro. Aora da moldura, sentadodiante dela, mas com a-uela mesma camisa branca -ue usa!ana tela, a-uele mesmo ol#ar sedoso, e uma !o*, uma !o* -ueera como um murm3rio de mar, e l#e di*ia coisas -ue ela n'oconse)uia compreender, mas !ia desen#ar+se nos l%biosrosados.

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    =a-uele dia pensou -ue de!eria consertar o barco e partir. Maspareceu+l#e -ue poderia ocupar+se disso no dia se)uinte, depois-ue ti!esse son#ado mais uma noite com o moo, depois -ueti!esse entendido o -ue ele tin#a para l#e di*er. E comeu

    rom's, coroando seu prato de rubis, e em !e* de %)ua bebeu!in#o da ade)a, tin)indo sua taa de san)ue.

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    ondea!a ner!oso sobre o mar encapelado, desfraldou a !elabranca com sua branca lua bordada. Lentamente afastou+ se dail#a.E lo)o fe*+se noite. =oite debai(o das nu!ens ne)ras, noite

    sobre o ne)ro mar. 8aros relmpa)os. E a )elada alfan)e do!ento cortando o ar e a carne, ferindo o casco -ue o leme acusto contin#a, borrifando de %)ua, enc#arcando de sal. T'ofrio esta!a, -ue para a-uecer+se a pescadora comeou a cantar.Aio de !o* na tempestade, -ue a nin)u/m c#e)aria. Mas, comose ou!isse o eco da sua pr$pria !o*, uma can'o pareceuc#e)ar+l#e no !ento. Ol#ou em !olta, debruou+se sobre o mar.E na %)ua escura como os seus son#os o !iu, #omem do -uadroe da noite, -ue l#e abria os braos e o casaco de espuma.Mer)ul#ou a m'o estendendo+a para ele. entiu -ue o anelescorria do dedo para o fundo. Ent'o ela pr$pria dei(ou+se des+li*ar para a-ueles braos, en-uanto o !ento encobria as pala!ras-ue ele l#e di*ia, as pala!ras todas -ue pela primeira !e* ela

    conse)uia entender.

    Meiose

    Comeou fin)indo -ue n'o era t'o s$. ?olta!a do escrit$rio,prepara!a o 5antar, bota!a a mesa com capric#o, dei(a!a tudo

    pronto, e torna!a a sair. 4escia no ele!ador, 2s !e*es ia at/ aes-uina comprar al)uma coisa para acrescentar ao 5antar, subia,e com li)eiro sorriso pun#a a c#a!e na porta, certo de -ueal)u/m #a!ia preparado tudo para ele.?i!er tornou+se mais le!e.>m dia botou !elas na mesa. =o dia se)uinte, descendo at/ aes-uina, comprou flores.

    Aalta!a, por/m o se)undo lu)ar 2 mesa.=a se)unda+feira, saindo do escrit$rio, entrou numa buti-ue ecomprou um !estido a*ul+claro, discreto. Aoi com ele e

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    sand%lias de salto bai(o -ue preparou o 5antar. Percebeu -ueprecisaria de um a!ental.< presena feminina e!idencia!a+se na casa. @otando a c#a!ena porta !indo da es-uina era recebido por bil#etes carin#osos,

    meu bem o 5antar est% no forno / s$ es-uentar, oudelicadamente maternais, cuidado para n'o manc#ar a toal#a de!in#o. E 2 noite despindo+se pendura!a suas roupas 5unto 2sdela.='o se encontra!am, por/m.E a necessidade da presena fa*ia+se insuport%!el.=a se)unda+feira saiu mais cedo do escrit$rio. Comprou lon)aslu!as brancas, um !estido de cetim e brincos de pena de pa!'o.Trabal#ou a noite inteira, cortando, costurando.

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    ter conse)uido abater, o marido entre)ou 2 mul#er uma a!e,para -ue a depenasse e a co*esse e fosse alimento de ambos.E assim a mul#er fe*, metendo os dedos por entre as penasainda bril#antes, arrancando+as aos pun#ados, e entre)ando 2

    %)ua e ao fo)o a-uele corpo a)ora morto, -ue a fo)o e %)uanunca #a!ia pertencido, mas sim ao ar e 2 terra.Ti!esse ol#ado para o alto por um minuto, ti!esse detido porum instante sua tarefa e le!antado o ol#ar, e teria !isto pela

    5anela bandos da-uelas mesmas a!es mi)rando rumo ao Leste.Mas a mul#er s$ ol#a!a para as coisas -uando precisa!a ol#%+las. E n'o precisando ol#ar o c/u n'o er)ueu a cabea.Co*ida a carne da a!e, re)alou+se en)olindo os bocados sem-uase masti)ar, firmou os dentes nos ossos, su)ou o tutano. Omarido n'o. 8epu)nou+l#e a carne t'o escura. Limitou+se amol#ar o p'o no caldo, maldi*endo sua pouca sorte de caador.Passados dias, a mul#er nem mais se lembra!a do seu raroban-uete. Outras carnes assa!am e eram ensopadas na co*in#a

    da-uela casa, na co*in#a -ue era -uase toda a casa.Mas uma in-uieta'o no!a l#e desponta!a no cora'o.nterrompia seus afa*eres de repente, como nunca #a!ia feito.Paradas bre!es, -uase nada. >m suspender do -uei(o, um!ibrar de pestanas. >m alerta. 8esposta do corpo a al)um c#a+mado -ue ela se-uer ou!ia. < a)ul#a fica!a parada no ar, acol#er suspensa sobre a panela, as m'os metidas na tina. E acabea, cabea -ue a)ora se mo!ia com a delicade*a -ue s$ umpescoo mais lon)o poderia l#e dar, espeta!a o ar.< mul#er ol#a!a ent'o para a-uilo de -ue n'o precisa!a. Eol#a!a como se precisasse.$ por instantes, a princ"pio. Em se)uida, um pouco mais.4emorando+se, ol#ou primeiro adiante.

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    paredes, ol#ou para a distncia em lin#a reta. O -ue !ia n'odi*ia. Ol#a!a, sacudia num )esto sua!e a cabea. E torna!a aabai(%+la. < a)ul#a descia, a col#er mer)ul#a!a na panela, asm'os afunda!am da tina.

    Tal!e* le!ada por a-uele bre!e sacudir de cabea, comeou aol#ar para os lados. Ol#a!a para o lado es-uerdo, demora!a+se,im$!el. E, s3bita, !olta!a+se para o lado direito.=in)u/m l#e per)unta!a o -ue esta!a ol#ando. O 3nico ol#ar-ue nela parecia importar para os outros ainda era o anti)o, de-uando s$ ol#a!a o -ue era necess%rio.E assim um dia a-uela mul#er para a -ual nin)u/m ol#a!aol#ou o c/u. em -ue ti!esse c#o!ido ou fosse c#o!er. em -ue#ou!esse relmpa)os. em -ue se-uer #ou!esse nu!ens ou otempo fosse mudar, ela ol#ou para o c/u.4elicado fa*ia+se seu pescoo a)ora -ue o mo!imenta!a li)eirocondu*indo a cabea nas suas perscrutaes. Era um pescoop%lido, prote)ido da lu* por tantos anos de cabea bai(a. E

    sobre esse pescoo a cabea como -ue se estendia ol#ando paracima, com a mesma reta intensidade com -ue #a!ia comeado!arando paredes.Ol#a!a, pois para o alto, -uando um bando das a!es passousobre a casa rumo ao Leste.:% muito as fol#as #a!iam+se ban#ado de cobre, o solocomea!a a fa*er+se duro no frio. E as a!es de carne escurase)uiam no c/u em dire'o ao sol.4e p/, a mul#er ol#a!a. E continuou ol#ando at/ -ue as a!esempalideceram na distncia.O !ento batia os lon)os panos da sua saia, estala!a as asasfran5adas do seu (ale. ='o, ela n'o !oou. E como poderiaD aiuandando, apenas. Escura como a tarde, acompan#ando seu

    pr$prio ol#ar, saiu andando para a frente, sempre para a frente,rumo ao Leste.

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    Por preo !e o"asio

    Comprou a esposa numa li-uida'o, pendurada -ue esta!a,

    5unto com outras, no )rande cabide circular. uas posses n'ol#e permitiam ad-uirir lanamentos no!os, modelossofisticados. Contentou+se, pois com essa, fim de esto-ue, maspreo de ocasi'o.Em casa, por/m, lon)e da a)ita'o da lo5a + #omem escol#endomul#er, #omem pa)ando mul#er, #omem metendo mul#er em

    saco pardo e le!ando 2s !e*es mais de uma para apro!eitar obom ne)$cio + percebeu -ue o estado da sua compra dei(a!a adese5ar.G claro, pensou reparando na su5eira dos pun#os, noamarrotado da pele, nos tufos de cabelos -ue mal escondiamras)es do couro cabeludo, Eles n'o iam li-uidar coisa no!a.Conformado, deitou+a na cama pensando -ue ainda ser!iria

    para al)um uso. E, abrindo+l#e as pernas, despe5ou l% dentro,uma por uma, brancas bolin#as de naftalina.

    3e$a "o#o u#a paisa*e#

    Casou com ela por-ue pressentiu, debai(o da seda do !estido,uma certa nsia ind$cil das carnes, dese5o de e(pans'o ainda

    n'o reali*ado. E, embora no princ"pio, ainda ma)ra, l#eparecesse a)ul#a perdida no pal#eiro dos len$is, lo)o percebeu-ue n'o se en)anara.Aome e )ula #abita!am a esposa. Com -ue pra*er os l%biosfa*iam+se em ponta su)ando sopas, mamando o licor dosbombons, c#upando os ossos das a!es en-uanto a l"n)uaprocura!a o secreto tutano. Com -uanta !ol3pia a-uelesmesmos l%bios se arre)an#a!am abrindo espao para -ue ospe-uenos dentes pontia)udos afundassem nas carnes,

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    arrancassem nacos do p'o, dilacerassem as frutas, partindo,mascando, moendo incessantes, sempre sob o comando de umno!o dese5o.E, como se tocados pelo pr$prio mo!imento dos ma(ilares,

    estufa!am+se os peitos, enc#iam+ se as co(as, o corpo todoamplia!a suas fronteiras. Cur!as sur)iam onde antes seadi!in#a!a o perfil dos ossos, !olumes inc#a!am as anti)as pla+n"cies. % n'o cabiam as roupas, fa*iam+se pe-uenos os sapatos.edu*ido, ele acompan#a!a o le!edar. ='o precisa!a maisprocur%+la entre os len$is. Onde -uer -ue se !irasse, onde -uer-ue apoiasse a m'o, l% esta!a ela macia, enorme, acol#edora,c#eia de sali0ncias onde se)urar, c#eia de consist0ncias em -ueafundar os dedos.4esdobrando+se o corpo da mul#er, fe*+se necess%rio camamaior. E, -uando mesmo essa n'o foi mais capa* de cont0+la,outra foi encomendada, perfa*endo superf"cie de muitos metros-uadrados, e e(i)indo, por sua pr$pria dimens'o, ser colocada

    na sala.

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    E #a!eria de c#e)ar o dia da sua maior beatitude, -uando,deitado no cume do seio es-uerdo, !eria o sol se p7r atr%s dodireito.

    Lon*e "o#o o #eu 'uerer

    8e)ressa!a ao castelo com suas damas, -uando do alto doca!alo o !iu, 5o!em de lon)os cabelos 2 beira de um campo. E,embora os tantos 5o!ens do castelo, a partir da-uele instante foicomo se n'o #ou!esse mais nen#um. =en#um al/m da-uele. noite, no ban-uete, n'o riu dos saltimbancos, n'o aplaudiu osm3sicos, mal tocou na comida.

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    # Por-ue dei(ei a terra arada no meu campo. E as sementespreparadas no celeiro. Mas n'o ti!e tempo de semear. E no meucampo nada crescer%.# ='o te entristeas + respondeu a castel'. +

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    Buando no dia se)uinte mandou c#amar a mais fiel, n'o foipreciso e(plicar+l#e aonde iriam. Prete(tando dese5o de ar li!re,afastaram+se ambas do castelo.Os fei(es de pal#a, amontoados, seca!am ao sol. < castel'

    calou os tamancos, prote)eu a saia, enrolou tiras de pano nasm'os, n'o fossem feridas denunci%+la a seu pai. E comeou acarre)ar os fei(es para o celeiro.

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    Montaram as duas. < castel' ol#ou a )rande plan"cie, asmontan#as ao fundo. Em al)um lu)ar al/m da-uelas montan#asesta!a o mar. E em al)uma praia da-uele mar o moo espera!apor ela.

    # < distncia at/ o mar + disse t'o bai(o -ue tal!e* a dama nemou!isse + se mede com meu -uerer.E esporeou o ca!alo.

    Fun!a4es

    =o!e andares e(clusi!os lu(o.Prontos.C#e)ou o primeiro camin#'o de mudana. 4esceram osm$!eis, desceram os tapetes, desceram os -uadros, desceram osespel#os, desceram os cristais, desceram os ba3s. 4esceu ocofre. E tudo subiu para o primeiro andar, primeira la5e.Encostou o se)undo camin#'o de mudana, -ue na !erdade

    eram dois. 4esceu a cole'o de armas anti)as, desceu a cole'ode santos barrocos, desceu a cole'o de tra5es teatrais, desceu acole'o de plantas carn"!oras. 4esceu o cofre. E tudo subiupara o se)undo andar, se)unda la5e.Areou a carreta da mudana em -ue !in#a o puro+san)ue dadona da casa. 4esceu o puro+san)ue, desceram os arreios do

    puro+san)ue, desceram os pr0mios do puro+san)ue, desceramos amplos pastos do puro+san)ue, desceram a f0meas -ue opuro+san)ue cobriria. 4esceu o cofre. E tudo subiu para oterceiro andar, terceira la5e.

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    =o meio da noite de n3pcias, o rei acordou tocado pela sede. %ia se le!antar -uando, 5unto 2 cama, do lado da sua rec/m+esposa, !iu deitado um le'o.# =a certa + pensou o rei mais surpreso do -ue assustado +, estou

    tendo um pesadelo.E, mudando de posi'o para interromper o son#o mau, deitou areal cabea sobre o real tra!esseiro. Em se)uida, adormeceu.4e fato, na man#' se)uinte, o le'o #a!ia desaparecido semdei(ar c#eiro ou rastro. E o rei lo)o es-ueceu t0+lo !isto.Es-uecido ficaria se, dali a al)um tempo, acordando 2 noiteentre um suspiro e um ronco, n'o deparasse com ele no mesmolu)ar, ful!o e !i)ilante. 4essa !e*, custou mais a adormecer.Buando a rain#a despertou, o rei contou+l#e do estran#o!isitante noturno -ue 5% por duas !e*es se apresentara em seu-uarto.# O#F en#or meu marido + disse+l#e esta constran)ida +, n'oousei re!elar antes do casamento, mas desde sempre esse le'o

    me acompan#a. Mora na porta do meu sono, e n'o dei(anin)u/m entrar ou sair. Por isso n'o ten#o son#os, e min#asnoites s'o escuras e ocas como um poo.Penali*ado, o rei per)untou o -ue poderia fa*er para li!r%+la det'o cruel carcereiro.# Buando o le'o aparecer + respondeu ela pe)ue a espada ecorte+l#e as patas.=a-uela mesma noite, antes de deitar, o rei botou ao lado dacama sua espada mais afiada. E, assim -ue abriu os ol#os nasemi+escurid'o, *acF 4ecepou as patas da fera de um s$ )olpe.4epois, mais sosse)ado, retomou o sono.4urante al)um tempo dormiu todas as noites at/ de man#', semsobressaltos. Mas numa madru)ada -uente em -ue os edredons

    de pluma pareciam pesar sobre seu corpo, acordando todo sua+do !iu -ue o -uarto real esta!a in!adido por de*enas de bei5a+flores e -ue um en(ame de abel#as se a)rupa!a na cabeceira.

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    4epressa cobriu a cabea com o lenol, e debai(o da-uelaesp/cie de mortal#a atra!essou as #oras -ue ainda o separa!amdo nascer do dia. $ ao perceber o primeiro espre)uiar+se darain#a, emer)iu de dentro da cama, contando+l#e da bic#arada.

    # E -ue dormindo ao seu lado, meu caro esposo, cada !e* maisdoces e mais floridos se fa*em meus son#os + e(plicou ela,sorrindo com ternura.E ele, des!anecido com tanto amor, pousou+ l#e um bei5o natesta.Muitos meses se foram, tran-ilos.Por/m uma noite, tendo 5antado mais do -ue de!ia 2 mesa doban-uete, o rei acordou em meio ao sil0ncio. Le!antou+sedisposto a tomar um pouco de ar no balc'o, -uando,caracoleando sobre o m%rmore real do aposento, !iu apro(imar+se um unic$rnio a*ul.='o ousou tocar animal t'o ine(istente. ='o ousou !oltar para acama. Perple(o, saiu para o terrao, fec#ou rapidamente as

    portas en!idraadas, e encol#ido num canto esperou -ue a ma+n#' l#e permitisse interpelar a rain#a.R G a montada da min#a ima)ina'o R escusou+se ela. + Le!ameus son#os l% onde eu n'o ten#o acesso. ;alopa a noite inteirasem -ue eu l#e ten#a controle.T'o bonito pareceu a-uilo ao rei, -ue na noite se)uinte, -uerpor dese5o, -uer por acaso, no momento em -ue a mul#eradormeceu, ele acordou. L% esta!a o unic$rnio com seu c#ifrede cristal, batendo de le!e os cascos, pronto para a partida.4essa !e* o rei n'o temeu. Le!ou+l#e a m'o ao pescoo, alisouo sua!e a*ul do p0lo, e de um salto montou.>nic$rnios de son#o n'o relinc#am.

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    cascos mais um !e* pousaram no m%rmore. E a real cabeadeitou+se no tra!esseiro.+ on#ei -ue !ossa ma5estade fu)ia com a montada da min#aima)ina'o + disse a rain#a ao esposo, de man#'. + Mas estou

    bem contente de !0+lo a)ora a-ui ao meu lado + acrescentounuma re!er0ncia.O rei, por/m, mal conse)uia esperar pelo fim do dia. T'o rica e!asta #a!ia sido a !ia)em, -ue s$ dese5a!a montar no!amentena-uele dorso, e, a*ul no ar a*ul, descobrir no!os rumos. Pelaprimeira !e* as tarefas da coroa l#e pareceram pesadas, etediosa a corte. 4a rain#a, s$ dese5a!a -ue, r%pido,adormecesse.4essa forma, noite ap$s noite, partiu o rei nas costas dounic$rnio, para s$ retornar ao aman#ecer.E, a cada noite, mais diferente ficou.% n'o -ueria )uerrear, nem danar nos sales. % n'o seinteressa!a por caadas ou tesouros. Trancado so*in#o na sala

    do trono durante #oras, pensa!a e pensa!a, )alopando nalembrana, li!re como o unic$rnio.8essentia+se, por/m a rain#a com a-uela aus0ncia. 4oente,-uase, de tanta desaten'o, mandou por fim c#amar a mais fielde suas damas de compan#ia. E em )rande se)redo deu+l#e asordens6 de!eria esconder+se debai(o da cama real, cuidandopara n'o ser !ista. E ali esperar pelo sono da rain#a. T'o lo)oesta adormecesse, !eria sur)ir um le'o sem patas. Bue n'otemesse. Pe)asse as patas -ue 5a*iam decepadas 2 sua frente, e,com um fio de seda, as costurasse no lu)ar.Tendo obtido da moa a promessa de -ue tudo faria conforme oe(plicado, deitou+se a rain#a lo)o ao escurecer, prete(tando)rande cansao. =o -ue foi imediatamente acompan#ada pelo

    rei.Custa!a por/m o sono a c#e)ar. ?ira!a+se e re!ira!a+se o casalreal sobre o colc#'o, en-uanto embai(o a dama de compan#ia

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    espera!a. E, de tanto esperar, o sono acabou c#e)ando primeiropara ela, -ue, sem perceber, adormeceu.

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    ='o / uma 5anela estreita. G alta. T'o alta -ue parece fa*er+semais fina em dire'o ao teto. Tem posti)os de madeira )rossaabertos sempre, !ene*ianas de madeira !erde, sempreencostadas. E / s$ uma, na-uele -uarto. Mas n'o / da 5anela

    -ue de!emos nos ocupar, e sim da lu* -ue por ela entra. Ou-uase n'o entra. Pois / essa lu* pouca -ue, ocupando com seu!olume a-u%tico e denso todo o -uarto, estabelece asdimenses. E com tal in-uebr%!el autonomia -ue, abrindo aporta para entrar e percebendo -ue a escura transpar0ncia n'oescoa nem se transfere ao outro c7modo, somos le!ados a crer-ue n'o s'o as paredes -ue a cont0m, embora espessas, mas-ue, derrubadas estas, ela se manteria i)ualmente s$lida, de p/como uma cai(a ou bloco.E nessa cai(a -ue ele !i!e. O #omem 5o!em de cabea branca.Tal!e* fosse mais 5usto colocar tudo no passado. Mas por -ue,se a 5anela ainda est% l%, com suas !ene*ianas meio encostadas,na-uele se)undo andar do pr/dio anti)o, e se a lu* l% dentro /

    certamente a mesma, faltando apenas o rodamoin#o mais claro-ue se forma!a no centro do -uarto, le!e bril#o prateado -uedenuncia!a a cabea contra o espaldar da poltronaDEle n'o fec#a!a a porta do -uarto. Era um #omem )entil.Mantin#a+a entreaberta, soubessem todos -ue culti!a!a alisil0ncio i)ual ao da sua aus0ncia. =em era recluso. a 2 rua,compra!a 5ornal, fa*ia suas refeies 2 mesa 5unto aos outros.ua !ida mais intensa, por/m, a-uele e!entual fremir -ue alterao ol#ar ou fa* !ibrar a aba do nari*, mantin#a+se oculta. ='oatr%s dos $culos, por-ue raramente os usa!a.

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    fica!a, abanando+se lentamente com o le-ue c#in0s de onde odesen#o 5% desbotara.Le!anta!a+se da mesa le!ando sua ("cara de c#%, uma re!ista,despedia+se dos demais com um sorriso educado -ue n'o se

    enderea!a a nen#uma das pessoas presentes, mas somente 2consuetude do pr$prio sorriso, e ia sentar+se no aconc#e)outerino da poltrona.Eu sempre soube -ue n'o lia a re!ista. ='o ali. E como poderiasem claridade e sem acender a lu*D e)ura!a o le-ue em umam'o, a re!ista na outra. E, embora at/ as mo!esse, n'o era delas-ue se ocupa!a, nem elas in!alida!am com seus )estos aentre)a muscular do corpo. Era seu ol#ar -ue a)ia. eu ol#ar,-ue dificilmente se recon#eceria a*ul na-uele escuro, tin#aent'o palpitaes.=a tarde em -ue, 5% de p/ e sorridente, me con!idou aacompan#%+lo, atendi com pra*er. Tal!e* ti!esse curiosidade de!er o -ue se escondia l% dentro ou tal!e* -uisesse apenas ser

    )entil como ele era comi)o, sem comprometimento, mas comsua!idade. % n'o lembro. Lembro, isso sim, de ter entrado comum certo cuidado f"sico, como -uem penetra em recintosa)rado. into ainda meus passos lentos, a sensa'o do pescooestendido para a frente. C#eira!a a madeira anti)a o -uarto, umc#eiro de )uardado e ess0ncias como o de certas )a!etas.Passados anos, n'o sei ao certo se as paredes eram de fatopintadas de !erde escuro ou se assim me pareceram. Certomesmo / -ue #a!ia muitos li!ros empil#ados sobre os m$!eis,ocupando uma cadeira, o tampo da escri!anin#a. E al)umasfoto)rafias em molduras de prata. >m -uarto como tantos, afi+nal, com drapear de panos meio esbatidos na sombra, cortina oucolc#a. Mas n'o era para ol#ar o -uarto -ue ele #a!ia me

    c#amado.Bueria me mostrar al)uma coisa. ='o c#e)ou a di*0+lo, masesta!a impl"cito no tom com -ue me c#amou para acompan#%+

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    lo, na le!e ansiedade -ue, do ol#ar, l#e contaminou o sorriso. %al)umas !e*es eu #a!ia percebido a-uele mesmo ol#ar, -uandofala!a do seu passado, -uando me mostra!a um ob5eto ou umpapel -ue #a!ia pertencido 2 sua fam"lia, ou -uando, n'o sem

    !aidade, e(ibia al)um de seus trabal#os, ele t'o #abilidoso, t'ocapa* com as m'os.4essa !e* eu tamb/m le!ei min#a ("cara de c#% para o -uarto.='o nos demoramos em con!ersas -ual-uer con!ersa + sentiisso claramente + teria -ue !ir depois. O -ue ele -ueria -ue eu!isse esta!a em cima de um ban-uin#o, coberto por uma capade pl%stico. Bue ele tirou, n'o sem uma certa teatralidade.Era uma casa. < ma-uete de uma casa. ='o c#e)a!a a doispalmos de altura. ;raciosa, an)ulosa, c#eia de tel#ados ereentrncias, com )randes !idraas e um muro ao redor.

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    4epois, descendo as escadas e c#e)ando 2 rua, percebi, comose al)u/m + e n'o eu mesmo + esti!esse me c#amando a aten'opara um fato -ue por desimportante eu ia apa)ando antes dere)istar, -ue #a!ia poeira sobre a-uele pl%stico. < casa, ent'o,

    esta!a pronta #% al)um tempo. E s$ a)ora, por al)uma ra*'o,ele #a!ia sentido necessidade de me mostrar.Por -ue eu comentaria com al)u/mD >m pe-ueno )esto denostal)ia, um r%pido !oltar 2 anti)a #abilidade. ='o era mais do-ue isso.< ("cara de c#% na m'o, o sorriso, os passos discretos, e ole-ue. ma)ino -ue ten#a continuado assim. ='o nos !imos poral)um tempo.E um dia me disseram -ue ele #a!ia desaparecido. em -ue sesoubesse como, sem -ue se soubesse e(atamente -uando. aiude casa, n'o !oltou.

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    pousado o le-ue. Ol#ei bre!emente os retratos emolduradosprocurando o dele, -ue n'o ac#ei. ?irei+me para sair.E foi nesse )esto sem -ual-uer inten'o, nesse )esto casual em-ue min#a cabea )irou lentamente e meu ol#ar distra"do

    cortou a penumbra em dia)onal, como um mac#ado caindosobre um tronco, -ue eu !i, num relance !i, debai(o do pl%sticoempoeirado, tal!e* al/m do muro, acesa, uma lu*.

    Hi!ra

    empre c#e)ando em casa 2 noite, ela o desafia!a com suafora, centro de aten'o e de todo o afeto, tele!is'o+fulcro dafam"lia adorante.=in)u/m o ol#a!a, nin)u/m re!erencia!a sua c#e)ada dec#efe, lutador do sustento. Mal !ira!am a cabea na suadire'o, petrificados por prefi(os ejingles.E n'o #a!ia alternati!a-ue n'o se a)re)ar ou ser despre*ado.

    >ma noite, cansado do rep3dio, er)ueu a espada e, entre )ritose prantos,zapt,cortou a tele!is'o ao meio.oluos cercaram as duas partes inertes no tapete, sem -uealma piedosa arrancasse a tomada inutilmente cra!ada naparede. Aoi dormir ali!iado, dono do recon-uistado sil0ncio.='o #a!eria por/m de receber em pa* o no!o dia.

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    cadeira e senta+ se de costas. O espel#o da parede l#e de!ol!e ano!ela. Bue ele acompan#a sem cora)em de perder o cap"tulo,sem foras para ol#%+la nos ol#os.

    15!eo e )u!io

    =a T? da sala a pol"cia locali*a!a finalmente os bandidosescondidos no apartamento. =a T? do -uarto o deteti!eapro(ima!a+se da sala onde o man"aco mantin#a presa a ref/m.=a porta da sala o assaltante encostou a arma contra o peito da

    empre)ada -ue atendeu 2 campain#a.O assaltante e a empre)ada entraram na sala. =a T? a pol"ciacomeou a atirar contra a porta do apartamento. O assaltanterendeu a fam"lia, encostou todos contra a parede de m'osle!atadas, menos a fil#a -ue esta!a no -uarto, onde na T? odeteti!e c#e)a!a+se por tr%s sem ser percebido.O assaltante mandou a empre)ada buscar a fil#a no -uarto. O

    deteti!e prendeu o silenciador no cano da arma. O assaltanteras)ou a blusa da fil#a com um pu('o. < porta comeou aceder sob os tiros da pol"cia. O assaltante passou um brao aoredor da cintura da fil#a, mantendo o re!$l!er encostado na suat0mpora e os ol#os na porta. O deteti!e encostou o silenciadorna t0mpora do man"aco. < porta !eio abai(o. < fam"lia, de cara

    para a parede, !iu o reboco rendil#ar+se em balas e san)ue,ou!iu )ritos e passos.Mas o prefi(o musical dos comerciais !eio libert%+los daposi'o inc7moda. Aoi o tempo de la!ar rostos e m'os, arrumara desordem. O cad%!er do assaltante esconderam debai(o dacama. Tratariam dele depois da no!ela.

    De.ai2o !a pe$e, a $ua

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    C#e)ado o tempo, uma moa se fe* mul#er. Mul#er n'o comoas outras, por/m. T'o clara a sua peleF E por bai(o dessa pele,!inda da pr$pria carne, uma luminosidade -ue aflora!a emcertos dias, e nos se)uintes se intensifica!a, dia a dia, lu* a lu*,

    at/ alcanar o esplendor de tantas c#amas frias, de tantasim$!eis estrelas. Ent'o os cabelos da mul#er se fa*iam maisc#eios, leite )ote5a!a dos seus seios, e as bacias e as tinas dasua casa transborda!am.

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    Cedo passou seu tempo de repouso. E uma noite,prudentemente fec#adas as 5anelas para -ue sua plena lu* n'operturbasse as tre!as al#eias, foi !ista por um ladr'o -uepassa!a rente ao muro.

    Era uma fresta apenas, -ue dei(a!a !a*ar a lu* por entre osposti)os. Mas bastou a lmina da-uele raio para c#amar aaten'o do ladr'o.

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    4e no!o em casa, a mul#er -ue tin#a a lua debai(o da pele.

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    U#a en*rena*e#

    4esmontou a cabea, pea por pea.

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    e !entou ou n'o, ela n'o saberia di*er. Mas antes -ue o diaraiasse n'o #a!ia mais nen#uma lu*, a casa desaparecia nastre!as.m #omem a ca!alo -ue )alopa!a na suadire'o.

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    < partir da-uela noite, a mul#er n'o acendeu mais nen#umalu*. =em mesmo a !ela dentro de casa, n'o fosse a c#amaacender+se por tr%s das p%lpebras do marido.=o escuro, as noites se consumiam r%pidas. E com elas

    carre)a!am os dias, -ue a mul#er nem conta!a. em saber aocerto -uanto tempo #a!ia passado, ela sabia por/m -ue eratanto.E, passado outro tanto, num final de tarde em -ue 2 soleira daporta despedia+se da 3ltima lu* no #ori*onte, !iu desen#ar+se l%lon)e a sil#ueta de um #omem. >m #omem a p/ -ue camin#a!ana sua dire'o. Prote)eu os ol#os com a m'o para !er mel#or eaos poucos, por-ue o #omem a!ana!a de!a)ar, comeou adistin)uir a cabea bai(a, o contorno dos ombros cansados.Contorno doce, sem couraa. :esitou seu cora'o, retendo osorriso nos l%bios + tantos #omens #a!iam passado sem -uenen#um fosse o -ue ela espera!a.

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    >m dia c#e)ou o !i*in#o da frente. =o outro c#e)ou o !i*in#odo lado. E seu marido n'o c#e)ou. ?oltaram os )0meosmorenos. ?oltaram os tr0s irm'os louros. E seu marido n'o!oltou.

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    l% lon)e o pal%cio.

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    3ltimo, cuidado maior, a cabea, le!emente inclinada para olado.O 5ardineiro ainda deu os 3ltimos reto-ues com a ponta datesoura.

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    cabelos, desfa*endo a cur!a da testa, uma rosa embabada!asuas p/talas entre os ol#os da mul#er. E 5% outra no seiodesponta!a.Parado diante dela, ele ol#a!a e ol#a!a. Perdida esta!a a

    perfei'o do rosto, perdida a e(press'o do ol#ar. Mas do seuamor nada se perdia. Alorida, pareceu+l#e ainda mais linda.=unca 8osamul#er fora t'o rosa. E seu cora'o de 5ardineirosoube -ue nunca mais teria cora)em de pod%+la. =em mesmopara mant0+la presa em seu desen#o.Ent'o docemente a abraou descansando a cabea no seuombro. E esperou.E sentindo sua espera a mul#er+rosa comeou a brotar,lanando )al#os, abrindo fol#as, en!ol!endo+o em botes,casulo de flores e perfumes.m ca!aleiro rete!e seu ca!alo. Por uminstante pararam, atra"dos. 4epois !oltaram a cabea e a

    aten'o, retomando seus camin#os. em perceber debai(o dasflores o estreito abrao dos amantes.

    U#a %e/ por se#ana, no "rep6s"u$o

    Todas as teras+feiras, -uando no princ"pio da tarde sa"a para

    encontrar+se com o amante, coloca!a na bolsa o cora'o.

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    Aa*ia+se #ora de partir. 8ecomposta a ordem das roupas, elasuspira!a a5eitando avoilettesobre os ol#os e, antes de calar aslu!as, recol#ia o cora'o. O estalo do fec#o tranca!a na bolsa,at/ a pr$(ima semana, o amor eterno. @ril#a!a sobre o

    m%rmore da mesin#a a manc#a 3mida.

    Apoian!o0se no espao %a/io

    4urante mais de anos partil#ou a cama com sua esposac#inesa. E, embora C#in)+Pin)+Mei n'o l#e ti!esse dado fil#os,

    sabia o -uanto ela os dese5ara. ?%rias !e*es, ao lon)o da-ueletempo, dissera+l#e ter estado )r%!ida, perdendo a criana emlament%!eis acidentes. E ele piedosamente fin)ira acreditar,para n'o ferir sua delicada sensibilidade oriental.;entilmente, ama!am+se. 8ecato, escurid'o, 5o)os de le-ues.

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    Ter"eiro !ie!ro

    ;irou a c#a!e, abriu a porta. E em !erti)em procurou a

    se)urana da maaneta. < sala esta!a de cabea para bai(o.Entre estu-ues, o lustre florescia er)uendo pin)entes.

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    cansaram de lutar contra sua pr$pria i)norncia e, declarando ocaso 3nico na ci0ncia m/dica, desinteressaram+se dele.< partir de ent'o, !i!eu serena a Princesa, mais e maisdescobrindo da-uele mundo s$ seu, mais e mais -uerendo

    descobrir.E, en-uanto acumula!a por dentro seu tesouro, outro tesouro,por fora, se fa*ia. Pois todos os anos, desde -ue #a!ia nascido,seu pai l#e da!a o mesmo, precioso, presente de ani!ers%rio.Era sempre i)ual a cerim7nia. Os sinos do reino repica!amfeste5ando a data, o 8ei e a 8ain#a, acompan#ados decortes'os, entra!am nos seus aposentos.

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    penas macias roaram nelas. >ma a!e -ue ela n'o saberianomear arrul#ou, passou a cabecin#a contra seus dedos, ecomeou a bicar o m%rmore do peitoril coberto de ne!e.+ Pobre*in#aF + pensou a Princesa. + Com fome nesse frio. E

    sem ter nada para comer.m to-ue do bico, e l% se foi, da palma, o le!e peso. Lo)o, ofarfal#ar das asas e um s3bito !ento no rosto disseram 2Princesa -ue seu !isitante tamb/m tin#a ido.orrindo, fec#ou a 5anela.Mas passados al)uns dias, numa tarde em -ue o !ento ui!a!apelas frestas, no!amente as pancadin#as na 5anela pareceram

    c#am%+la. E ela recebeu entre as m'os seu doce ami)o, e l#edeu uma p/rola para comer, e entre rufiar de penas ele se foi.=e!ou, !entou. ?oltou o sil0ncio a deitar+se no 5ardim. E nosil0ncio o bi-uin#o bateu nos !idros, a Princesa sorriu feli*. E acena toda se repetiu mais uma !e*.=em foi a 3ltima. 4urante a-uele m0s, e ainda no outro, opombo !eio !isitar a Princesa. Cada !e* le!a!a uma p/rola.Cada !e* demora!a+se mais.4essa forma, a cai(a de mo)no 5% esta!a !a*ia na man#' em-ue os sinos repicaram e a Princesa lembrou+se subitamente-ue era o seu ani!ers%rio. ='o demorou muito, o 8ei e a 8ain#ae os cortes'os entraram nos seus aposentos. obre a almofada,uma p/rola.

    Mas, dessa !e*, depois de coloc%+la na m'o da fil#a, o 8ei, em!o* alta, pediu+l#e as outras -uator*e, pois era c#e)ada a #orade mandar o ouri!es real fa*er o colar.

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    obressaltou+se a Princesa. Como di*er ao pai, diante de todos,-ue n'o as tin#a maisDAec#adas as p%lpebras sobre o seu se)redo, mentiu pelaprimeira !e*. Bue o pai !oltasse dali a tr0s dias, pois n'o

    lembra!a onde tin#a )uardado a cai(a de mo)no, e certamentedemoraria para ac#%+la.O pai, pensando nas limitaes da fil#a para encontrar osob5etos, concordou penali*ado, e saiu com toda a corte.

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    ar-ueiros reais caassem o pombo. 4aria um pr0mio !alioso a-uem l#e trou(esse as -uator*e p/rolas.Pombo, pensou a Princesa ou!indo as ordens do pai, era esse onome do seu ami)o. Pombo, -ue os ar-ueiros procuraram para

    matar.En!ol!eu+se num (ale branco de l', abriu a porta en!idraada-ue da!a para o 5ardim. Pela primeira !e*, era preciso ol#ar.Lentamente, sem susto ou surpresa, abriu os ol#os. < suafrente, tudo era apenas uma lon)a ondula'o de ne!e. Bueofusca!a, mas -ue em al)um lu)ar )uarda!a um pombo.4esceu os poucos de)raus, comeou a camin#ar. Para!a 2s!e*es, batia palmas. < ne!e alta abafa!a seus c#amados.

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    #a!ia demorado tanto para abrir. Mas pela ferida no peito dopombo rola uma p/rola, depois outra, outra mais. Buator*ep/rolas escorrem como )otas sobre o al!o colo da Princesa. Epreciosas se anin#am ao redor do pescoo. Como um colar.

    U# ti*re !e pape$

    abendo -ue a ele caberia determinar seus mo!imentos econtrolar sua fome, o escritor comeou lentamente amateriali*ar o ti)re. ='o se preocupou com descries de p0lo

    ou patas. Preferiu introdu*ir a fera pelo c#eiro. E o te(toimpre)nou+se do bafo carn"!oro, -ue parecia e(alar por entre aslin#as. 4epois, com cuidado, foi aumentando a estran#e*a dapresena do ti)re na sala rococ$ em -ue #a!ia decididolocali*%+lo. 4e uma pala!ra a outra, o felino mo!ia+seirresist"!el, fare5ando o dourado de uma poltrona, roando odorso ra5ado contra a perna de uma papeleira.

    Em !e* de escre!er um salto, o escritor transmitiu a sensa'ode mo!imento com uma frase curta. Em !e* de imitar o terr"!elmiado, fe* tilintar os cristais acompan#ando suas passadas.

  • 5/27/2018 Um Espinho de Marfim - Marina Colasanti

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    autor s$ podia acompan#ar+l#e a f3ria, destruindo a )olpes depala!ras a bela decora'o rococ$ -ue #a!ia t'o pra*erosamenteconstru"do, en-uanto sua criatura crescia, dominando o te(to.mpotente, !ia, aos poucos, espal#arem+se no papel cacos de

    m$!eis e porcelanas, estil#aar+se o )rande espel#o, cair porterra a moldura ental#ada. ='o #a!ia mais ali um animale($tico na sala de um pal%cio, mas um animal fero* em seucampo de batal#a.O escritor espera!a tenso -ue o cansao dominasse a fera, para-ue ele pudesse retomar o dom"nio da narrati!a, -uando a !iu!irar+se na sua dire'o, bai(ar a cabea em -ue os ol#os amare+los o encara!am, e lentamente a!anar.