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DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA E DIREITOS HUMANOS: um
estudo sobre a hipertrofia das normas penais no Estado Constitucional Brasileiro
Rodrigo Cogo1
INTRODUÇÃO
Antes de realizar qualquer exame acerca da ciência do Direito, torna-se cogente
a compreensão de sua função enquanto mecanismo de manutenção da ordem social,
unido intimamente à forma de estruturação e organização da sociedade. Nesta direção,
qualquer tipo de estudo que não leve a termo o momento social no qual o Direito se
insere pode se tornar inconsistente, com resultados que não tenham ligação com a
realidade. No que concerne mais detidamente ao Direito Penal, uma ferramenta estatal
de controle com consequências severas, a análise do meio deve se revestir de todo o
cuidado para que não se cometam equívocos.
Nesta esteira, a investigação em tela parte de um esboço acerca das
transformações sociais que alteraram muitos dos paradigmas do Direito Penal nas
últimas décadas, gerando o que se convencionou nomear de “sociedade do medo”,
terreno bastante fértil para a edificação de teorias punitivistas, pautadas em ideais
puramente repressivos, manipulando a chamada tutela penal em conformidade com
interesses pontuais e não coletivos ou gerais, desvirtuando a finalidade de prevenção
geral que o Direito Penal carrega em si, quebrando, por vezes, o entendimento de que
este deve ser usado apenas em situações extremas – ultima ratio.
1Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
(FADIR/UFU). Docente do Curso de Graduação em Direito e do Curso de Especialização em Direitos
Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Unidade de Paranaíba/MS.
Coordenador do Projeto de Pesquisa intitulado “Do paradigma do Bem-Estar Social ao modelo do Estado
Penal: os caminhos da segurança pública na contemporaneidade”.
Há, portanto, e isto é irrefutável, um movimento que se desenvolve emcompasso
bastante acelerado, estabelecendo novos delitos e majorando penas, em uma fórmula, no
entendimento de muitos, eficaz de combate à criminalidade.
Nesta direção, as linhas que se seguem buscarão efetuar um estudo acerca do
caráter simbólico e emergencial que o Direito Penal vem assumindo no país,
impulsionado pela desenfreada construção normativa nesta seara, tomando para exame
o período subsequente à Carta Magna de 1988, uma vez que a partir de seus preceitos os
Direitos Humanos adentram o ordenamento jurídico brasileiro no formato de direitos
fundamentais constitucionais.
Em sentido análogo, o estudo intentará correlacionar a política criminal de
recrudescimento das leis penais aplicada pretensamente em prol da segurança pública
com a violação de Direitos Humanos.
1. A Sociedade do Medo
Pode-se afirmar que diante de um mundo globalizado, o surgimento do medo
social se deu em um cenário onde o sentimento de insegurança ocasionado pela
imprevisibilidade e superficialidade das relações humanas se disseminou rapidamente,
intimidando cidadãos e compelindo o Estado a atuar.
Nesta esteira, expõe GRECO (2016, p. 21-22):
Talvez a sociedade nunca tenha debatido tanto o tema “segurança pública”
como se tem feito nos dias de hoje. Casos graves, que causam comoção
social, tem sido objeto freqüente de notícias pelos meios de comunicação de
massa. O medo passou a fazer parte de nossas famílias. A justiça, muitas
vezes morosa, entrou em descrédito. A todo instante, ouvem-se discursos no
sentido de modificar a legislação pena e processual penal, normalmente
visando o aumento das penas cominadas, à redução da duração do processo e
ao recrudescimento do cumprimento das penas aplicadas, procurando-se
evitar a saída do condenado do sistema prisional.
A lição de NETO (2009, p. 96-97) ilustra de forma clara um dos entes
envolvidos neste processo:
A mídia age, através de seguidos noticiários, programas sensacionalistas e até
mesmo de filmes, dando ênfase ao crescimento da criminalidade, associando
violência estritamente à ideia de criminalidade, criando uma situação de total
pânico na população que se sente ameaçada e legitima a ação, por vezes
truculenta e com violação dos Direitos Humanos por parte da polícia; coloca
o direito penal e a ação da polícia como solução sempre indispensável e única
para a resolução de tais desvios.
Nota-se assim, que, nos dias atuais, a exaustiva repetição e o excesso de
dramatização das notícias sobre a violência e a criminalidade acabam por alimentar a
sensação de insegurança, que vai além do perigo real. Neste contexto, “a notícia sobre
violência começa não só a informar como a emocionar, estimulando a curiosidade, a
intolerância e, por fim, o próprio medo” (SÁNCHEZ, 2002, p. 73).
Do evidente destaque que os perigos e riscos da criminalidade têm atualmente,
há um alarmismo desmedido em questão de segurança, o que leva a um clamor popular
por maior eficácia no controle social; tal alvoroço provoca o que CEPEDA (2007, p. 31)
nomeia de “cultura da emergência”. Nesse campo tornam-se o Direito Penal e as
instituições punitivas instrumentos privilegiados para amparar as súplicas por
segurança.
Destarte, o medo tem papel decisivo no processo de expansão do Direito Penal,
observado na contemporaneidade, pois neste cenário requer-se a utilização deste ramo
das ciências jurídicas acima de qualquer outra ratio, sendo que na melhor teoria só
deveria ser utilizado em último caso. Ao invés de se buscar demandas sociais por mais
proteção, busca-se maior rigor na punição, dando ao Direito Penal uma relevância que
chega à obsessão.
Nesse contexto o Direito Penal encontra espaço amplo para se expandir e
responder ao medo social, assumindo características especiais como uma maior
identificação da coletividade com as vítimas, devido ao temor de se tornar uma delas,
tornando-se, assim, mera ferramenta a serviço da vítima, atuando de forma muito mais
simbólica e emergencial do que atacando as questões afeitas à criminalidade, conforme
será visto nas linhas que se seguem.
2. O Direito Penal de Emergência
Em continuidade ao que fora exposto, não se pode olvidar o valor simbólico das
normas, com especial grifo para aquelas que definem os comportamentos positivos ou
negativos dos indivíduos na esfera penal. Contudo, tal realidade não deve prescindir a
valoração jurídica das normas, ou seja, deve prevalecer não apenas o seu aspecto
ideológico, mas também o caráter de direcionamento e soluções efetivas em políticas de
segurança pública.
Existe, neste campo,com a supervalorização do viés ideológico-político, em
detrimento da valoração jurídica da norma penal, um desvirtuamento do próprio Direito
Penal. Sobre o tema, revela NEVES (2011, p. 30):
Considerando-se que a atividade legiferante constitui um momento de
confluência concentrada entre sistemas político e jurídico, pode-se definir a
legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à
realidade é normativo jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a
finalidades políticas de caráter não especificamente normativo jurídico.
Demonstra o autor que ao se priorizar legislações essencialmente ideológicas ou
simbólicas, o Estado acaba sendo alimentado em sua atuação política, abrindo-se, por
conseguinte, espaço suficiente para que sejam oferecidas à sociedade respostas
imediatas aos seus anseios também imediatos – tranquilizando os indivíduos e
amenizando a pressão para com o Estado no seu dever social.
GUIMARÃES (2010) entende que ao se endurecer a legislação penal com o
objetivo declarado de conter a criminalidade, na verdade somente são satisfeitas as
pretensões da opinião pública com a adoção de uma providência por esta reivindicada,
que é o objetivo oculto. Porém, segundo o autor, o objetivo de conter a criminalidade
não é alcançado por esta forma de agir.
Neste momento, frisa GRECO (2016, p. 22) que [...] o movimento de lei e
ordem2 passa a erguer outra bandeira, a do chamado direito penal de emergência.
2 Segundo GRECO (2016, p.12), a tese do chamado movimento de Lei e Ordem prega um discurso do
Direito Penal Máximo, fazendo a sociedade acreditar ser o Direito Penal a solução de todos os males que
a afligem.
Ainda pela lição de GRECO,
a emergência pode ser traduzida também em situações de urgência,
excepcionais, em que se exige uma atuação rápida e eficiente do Direito
Penal. A situação de “urgência” pode dar origem a um direito penal de
emergência que, em tese, teria vigência até a resolução dos problemas para os
quais havia sido criado. No entanto, como sabemos, o urgente se transforma
em perene, duradouro, e o direito penal de emergência passa a ser
reconhecido como usual. (2016, p. 22)
Neste moldes, pode-se inferir que:
A população, acossada diante do medo e da insegurança, pugna por
resultados rápidos e eficientes, e os partidos políticos, buscando dar respaldo
a estes anseios, respondem cada vez mais debilitando as garantias atinentes à
segurança jurídica, por meio de medidas legislativas. Neste contexto, o
Direito Penal, no afã de dar respostas rápidas às demandas populares, assume
cada vez mais um caráter simbólico, dado que proporciona resultados
político-eleitorais imediatos a partir da criação, no imaginário popular, da
“impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido” (Silva,
Sánchez apud Meliá, 2005, p. 59). Busca-se por meio do recurso à legislação
penal uma solução fácil para os problemas sociais, relegando ao plano
simbólico o que deveria ser resolvido em nível instrumental. (CALLEGARI e
WERMUTH, 2010, p. 56-57)
E, em lição complementar ao revelado acima, GOMES (1995, p. 78) aduz que:
O momento político-criminal brasileiro, particularmente de 1990 para cá (é
dizer, desde que foi editada a Lei de Crimes Hediondos), caracteriza-se
inequivocamente pela tendência „paleorrepressiva‟. Suas notas marcantes
são: endurecimento das penas, corte de direitos e garantias fundamentais,
tipificações novas e agravamento da execução penal.
Do exposto até este momento, nota-se que a legitimação de um Direito Penal
simbólico e emergencial decorre do medo sentido pelos indivíduos, sentimento
incentivador da difusão de ideários pautados no recrudescimento de penas e no aumento
de disposições legais, ocasionando a hipertrofia legislativa na seara penal, tema a ser
aclarado a seguir.
3. A Hipertrofia das Leis Penais
A origem do fenômeno nomeado hipertrofia penal, remonta, em conformidade
com a lição de Lopes (2000, p. 77), de 1898, ano em que o termo foi utilizado por
Reinhart Franck em artigo publicado à época, trazendo importante advertência,
reconhecendo que o uso das penas e a tipificação de condutas se tornavam abusivos, e
que por tal razão, o Direito Penal já naquele período perdia parte de seu crédito junto à
sociedade, ficando, portanto, órfão de sua figura intimidadora, pois com o número
exagerado de leis penais, o corpo social deixava de “reagir”, em metáfora que aludia ao
organismo humano que não mais oferece respostas a um remédio ministrado em doses
excessivas ao paciente.
Em lição complementar, LUISI (apud GRECO, 2016, p. 17) esclarece que:
No nosso século têm sido inúmeras as advertências sobre o esvaziamento da
força intimidadora da pena como conseqüência da criação excessiva e
descriteriosa de delitos. Francesco Carnelutti fala em inflação legislativa
sustentando que seus efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois
„desvalorizam as leis, e no concernente as leis penais aviltam a sua eficácia
preventiva geral‟.
A realidade hodierna, notadamente no Brasil, espelha a importância da
preocupação esposada por Franck e Carnelutti. Abusca pela criminalização de condutas
que poderiam ser suficientemente refreadas por sanções aplicadas no âmbito civil ou
administrativo acaba por gerar sinais da ocorrência, no processo legislativo do país, do
fenômeno apresentado logo acima.
A esse respeito, GRECO (2016, p. 22) preconiza que os clamores sociais e
midiáticos são as molas de propulsão das legislações de emergência e cita a Lei de
Crimes Hediondos como exemplo emblemático da hipertrofia de leis penais no país.
Possível dano advindo de tal postura é a violação de princípios que conduzem o
Direito Penal, mormente o princípio da intervenção mínima, com o excesso do poder
punitivo do Estado, que, acaba por banalizar a pena, conduzindo a um desgaste do
mesmo, não apenas por originar o aumento do volume processual e a superlotação do
sistema correcional, mas, sobretudo pela insensibilização fomentada entre os cidadãos
perante a reprimenda penal.
Um exame mais apurado do fenômeno em tela não pode se furtar ao
conhecimento de suas origens. Nesta esteira, o estudo em tela aponta a crise estatal em
diversos setores, com especial destaque para a segurança pública, como um dos pilares
decisivos no desencadeamento deste processo inflacionário das leis na esfera penal.
Sobre a alteração do modelo estatal que ocasiona a crise ilustrada neste estudo,
GRECO (2016, p.13) observa que “o Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a
um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer,
cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor
repressivo”.
DORNELLES (2003, p. 54) explica que:
O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e
glorificando o „Estado Penal‟. É a constituição de um novo sentido comum
penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo
perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o
trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais.
Os marginalizados, segundo FARIA (1997, p. 50), acabam perdendo as
chamadas condições de cunho material para exercerem seus direitos, e se tornam
“descartáveis”, não mais aparecendo como detentores de direitos públicos subjetivos,
sem, contudo, restarem dispensados de suas obrigações com o Estado – no entanto, o
vínculo mantido somente se dá por meio de normas penais que atuam flagrantemente
contra a tutela dos direitos fundamentais.
FARIA (1997, p. 50 e 51) ainda leciona que:
Diante da ampliação das desigualdades sociais, setoriais e regionais dos
bolsões de miséria e guetos quarto-mundializadosnos centros urbanos, da
criminalidade e da propensão à desobediência coletiva, as instituições
judiciais do Estado, antes voltadas ao desafio de proteger os direitos civis e
políticos e de conferir eficácia aos direitos sociais e econômicos, acabam
agora tendendo a assumirfunções eminentemente punitivo-repressivas. Para
tanto, a concepção de intervenção mínima e última do direito penal é alterada
radicalmente (Adorno, 1996). Tal mudança tem por objetivo torná-lo mais
abrangente, rigoroso e severo para disseminar o medo e o conformismo no
seu público-alvo – os excluídos. Por isso, enquanto no âmbito dos direitos
basicamente sociais e econômicos se vive hoje um período de reflexo e
flexibilização, no direito penal se tem uma situação diametralmente oposta:
veloz e intensa definição de novos tipos penais; crescente jurisdicização e
criminalização de várias atividades em inúmeros setores na vida social; [...]
ampliação do rigor de penas já cominadas e de severidade das sanções;
encurtamento das fases de investigação criminal e instrução processual;
inversão do ônus da prova, passando-se a considerar culpado quem, uma vez
acusado, não provar sua inocência. (grifos nosso)
A exposição acima auxilia a compreensão acerca do fenômeno da hipertrofia
penal, evidenciando que as raízes desta prática surgiram a partir da alteração do modo
como o Estado passou a atuar, priorizando novas demandas sociais. O enfraquecimento
do Estado do Bem Estar Social – Welfare State - acaba gerando uma inversão de papéis,
com a inserção das funções judiciais do Estado em uma posição meramente punitiva,
fazendo prosperar políticas pautadas na repressão, com acentuada desvirtuação das
finalidades do jus puniendi.
Sobre o assunto em tela, WACQUANT (2001, p. 7) aponta que a postura
hodierna prefere “[...] remediar com um „mais Estado‟ policial e penitenciário e „menos
Estado‟ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da
insegurança objetiva e subjetiva em todos os países”.
E, em explicação mais abrangente, GARLAND (apud MORAIS e WERMUTH,
2013, p. 168), leciona que:
[...] em um ambiente tal, o crime passa a funcionar como legitimação retórica
para políticas econômicas e sociais que punem a pobreza. Ao invés de indicar
privação social, o crime passa a ser visto como um problema de indisciplina,
defalta de autocontrole ou de controle social deficiente, ou seja, como
produto da lassidão na aplicação da lei, assim como de regimes punitivos
lenientes, que abrem espaço para indivíduos perversos optarem, de forma
racional, pela via delitiva para satisfazerem as necessidades de suas
personalidades antissociais, protegidos, como chega-se a sugerir, pelas
próprias garantias fundamentais erigidas pelas lutas liberais-sociais
inauguradas, definitivamente, pelas revoluções dos finais do século XVIII.
CARVALHO (2008, p. 88) sintetiza com precisão a pretensão social de uso
irrestrito das soluções penais ao expor que “na sociedade do risco fundada sob a égide
do medo, todos os tipos de lesão, independentemente da qualificação do bem jurídico, e
de conflitos, para além de sua dimensão pública ou privada, acabam sendo de algum
modo abarcados pelo controle penal”.
De todo o cotejado, não há como negar que a situação descrita acima acaba por
criar ou intensificar uma cultura punitiva, pautada em um discurso de consenso acerca
da necessidade emergencial de segurança pública, designando o Direito Penal como
destinatário de tal função.
Neste cenário, o Direito Penal acaba sendo manipulado de uma forma, no
mínimo, questionável, em favor de situações urgentes, desobedecendo a suas balizas, o
que será objeto de apreciação no próximo tópico.
4. As Limitações ao Direito Penal
Este momento do presente estudo é propício para que sejam lançados
questionamentos acerca das limitações ou balizamentos do Estado em sua atuação
penal. Nesta esteira, cumpre esclarecer que deve ser obedecida a chamada intervenção
mínima do Direito Penal, com sua atuação sempre subsidiária aos demais ramos do
Direito.
Conforme aduz QUEIROZ (1998, p.125):
O Direito Penal deve ser, enfim, a extrema ratio de uma política social
orientada para a dignificação do homem. Semelhante intervenção há de
pressupor, assim, o insucesso das instancias primárias de prevenção e
controle social, família, escola, trabalho, etc., e de outras formas de
intervenção jurídica, civil, trabalhista, administrativa. Vale dizer: a
intervenção penal, quer em nível legislativo, quando da elaboração das leis,
quer em nível judicial, quando da sua aplicação concreta, somente se justifica
se e quando seja realmente imprescindível e insubstituível.
Em complemento à QUEIROZ (1998), GRECO (2016, p. 89) afirma que:
a criação da figura típica encontra-se limitada pelo princípio da intervenção
mínima, considerado um dos princípios fundamentais do Direito Penal [...].
Por intermédio da vertente que aponta a natureza subsidiária do Direito
Penal, o legislador, no momento da escolha do bem, além de ter de aferir sua
importância, tanto em nível individual como coletivo ou social, deverá
observar, obrigatoriamente, se os outros ramos do ordenamento jurídico se
mostram suficientemente eficazes na proteção daquele bem.
Neste âmbito, faz-se cogente buscar os elementos capazes de valorar o bem
jurídico a ser escolhido para receber ou não a tutela penal do Estado, firmando-se o
entendimento de que o Direito Penal não é um ente desprovido de controle ou de
limitações; tais balizas não se estabelecem somente em domínios nacionais, sendo
erigidos, também, enquanto direitos humanos internacionalmente reconhecidos, nos
moldes elencados abaixo.
4.1 Os Direitos Humanos
Em âmbito internacional a sistematização dos Direitos Humanos, ofertando-lhes
caráter normativo, se deu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Nos dizeres PIOVESAN (2010, p. 142) tal documento objetivou “delinear uma ordem
pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos
universais”.
“Esta Declaração nada mais fez do que desenvolver princípios já consagrados
pela Carta das Nações Unidas, razão pela qual é reconhecida a sua obrigatoriedade
jurídica para todos os países, seus membros [...]” (ZAFFARONI E PIERANGELI,
2006).
Suas linhas inauguraram a ampliação de proteção dos direitos humanos,
trazendo aos Estados, em seus compromissos por meio dos tratados internacionais
assinados, o dever de respeitá-los.
Como forma de complementar e detalhar os dispositivos da Declaração
Universal de 1948 merece destaque os pactos internacionais, como o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, criando o dever do Estado em adotar
medidas, inclusive legais, para garantir a todos os indivíduos que se encontram em seu
território e que estejam sujeitos à sua jurisdição, os direitos reconhecidos no presente
Pacto (WEIS, 1999, p. 76). E, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
com a “a adoção de medidas, tanto por esforço próprio como pela cooperação e
assistência internacionais, “que visem a assegurar, progressivamente, por todos os
meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto”
(WEIS, 1999, p. 76).
Merecem grifos especiais outros tratados, como a Convenção sobre a Eliminação
de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Pena Cruéis, que foram criados para a salvaguarda dos direitos
humanos, em situações específicas.
De acordo com DALLARI (2003, p. 62) “A primazia conferida aos Direitos
Humanos, prestou-se também à legitimação da ordem constitucional instituída no Brasil
a partir de 1988, fruto do processo histórico que assinalou a superação pela sociedade
brasileira, da situação de subordinação a uma ditadura militar”.
De tal modo, para que o Direito Penal nacional possa ser aplicado em total
consonância com a proteção internacional dos Direitos Humanos, é imperioso que
ocorra a recepção dos preceitos internacionais pelo ordenamento jurídico interno,
dotando-os de caráter diferenciado, como princípios fundamentais previstos no corpo da
própria Carta Magna, conforme será aludido nas linhas seguintes.
4.2 Os valores constitucionais
No atual sistema jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana
merece destaque, de sobremaneira, por servir como parâmetro para a aplicação das
normas nas mais diversas áreas de atuação.
A Constituição de 1988 foi a primeira a reconhecer, em prima facie, no seu
artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do
Estado Democrático de Direito. Desse modo, observa-se que o constituinte deu
prioridade a existência de um Estado que existe e se constrói em torno da pessoa,
oferecendo ao ser humano o papel principal na relação Estado-cidadão.
Pela compreensão acima, é possível deduzir que tal preceito revela-se como
verdadeiro guia valorativo não somente dos direitos fundamentais, mas também de toda
a ordem jurídica pátria, motivo pelo qual não são poucos os autores que a assinalam
como o princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa ou mais
popularmente dizendo, o super princípio.
Como leciona GRECO (2016, p. 73):
[...] a dignidade da pessoa humana deverá ser entendida como norma de
hierarquia superior, destinada a orientar todo o sistema no que diz respeito à
criação legislativa, bem como para aferir a validade das normas que lhe são
inferiores. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria
proibido de criar tipos penais incriminadores que atentassem contra a
dignidade da pessoa humana.
A respeito deste entendimento, e, destacando o seu papel diferenciado,
preleciona SARLET (2007, p. 45):
[...] não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que
parece ser a opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias
concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em
princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade,
no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem
de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive
consigo mesmos. Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da
pessoa humana – na esteira do que lembra José Afonso da Silva – como
forma de comportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos), ainda
assim, exatamente por constituir – no sentido aqui acolhido–atributo
intrínseco da pessoa humana (mas não propriamente inerente à sua natureza,
como se fosse um atributo físico!) e expressar o seu valor absoluto, é que a
dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais
indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.
ROSELLÓ (2005, p. 51), em pensamento semelhante, expõe:
[...] la dignidad jurídica debe ser contemplada, también, en lãs personas que
han cometido graves delitos. Enun Estado de Derecho, laley debe ser el
garante de La justicia y de la paz y debe prevalecer siempre a los
sentimientos hostiles y al espíritu de venganza colectiva que, a menudo,
puede sentir La comunidad com respecto a determinados colectivos.
Corresponde al Estado velar por los derechos de todos los sujetos, aun de
aquellos que han atentado gravemente contra los derechos de otros.
Não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana exerce uma função
diferenciada na ordem jurídica do país, e, por consequência, interfere decisivamente na
esfera de valores que edificam o Direito Penal brasileiro.
Ensina MELLO (2010, p. 67) que os princípios e regras aplicáveis na
intervenção penal devem se restringir aos contornos inerentes às diretrizes básicas da
ordem constitucional. Destarte, qualquer intervenção penal que atente contra os direitos
fundamentais intrínsecos à dignidade humana deverá ser considerada inconstitucional.
Exemplo inegável desta prática pode ser vislumbrado pelo o que dispõe o artigo
5º, inciso XXXIX da Carta Magna brasileira, ao prever que “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Resta evidenciado, pelo teor do dispositivo constitucional, a transferência para o
legislador não apenas da decisão sobre quais condutas devem ser tidas como crimes,
mas também qual será a reprimenda cabível a cada infração cometida – tradução do
chamado Princípio da Legalidade Penal, que, na visão de FELDENS (2012, p. 61):
não se constitui em um cheque em branco endossado ao legislador”, uma vez
que a transferência aludida nas linhas supra, não é desregrada, e, “encontra
seu objeto premeditado por uma ordem de valores ditada pela Constituição,
que se faz, por essa razão mesma, pré-constituída ao legislador.(grifos do
autor)
Com esta ordem de valores, pautada na dignidade humana e na legalidade, em
momento algum o que se pretende é a imposição de um modelo rígido, com o
cerceamento da atividade legislativa. O ideário que predomina, com tal praxis é o de
vinculação da política criminal às diretrizes constitucionais, estabelecendo, com isto,
uma relação de coerência entre as leis penais e a Constituição, de acordo com o que será
exposto a seguir.
4.3 A Jurisdição Constitucional
O Direito Penal, além do balizamento que sofre pelos valores supra
mencionados, ainda encontra limite na própria Constituição Federal, que representa um
grande progresso no que tange aos direitos e garantias fundamentais, com a ampliação
do rol destes, falando-se em jurisdição constitucional.
Sobre o tema, FELDENS (2012, p. 59) expõe:
O discurso sobre a legitimação constitucional do Direito Penal é, sobretudo, o
discurso acerca de sua adaptação material à Constituição. Enquanto ordem
normativa superior, a Constituição projeta um impacto sobre a validade do
Direito Penal, o que nos permite, antes as premissas previamente assentadas,
considerar: (i) que a liberdade de configuração do legislador penal, conquanto
regra, não é absoluta; (ii)em consequência, o Direito Penal não é um âmbito
isento de controle pela jurisdição constitucional.
Em linha muito semelhante ao trazido por FELDENS, PRADO (2010)
discorrendo a respeito do grande valor da Constituição para o Direito Penal, define os
princípios nela esculpidos como:
[...] o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do
delito – suas categorias teoréticas –, limitando o poder punitivo do Estado,
salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo,
orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação
e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias
de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de
fundamento e de limite à responsabilidade penal.
A Constituição brasileira de 1988, neste sentido, deve ser entendida como o
marco jurídico de um processo de transição democrática e de institucionalização dos
direitos e garantias fundamentais no país, representando, pois, a ruptura completa com o
regime militar de bases autoritárias instalado no ano de 1964, e, conjeturando uma
realidade diferenciada dos anos anteriores.
O caminho percorrido, então, especialmente, após a chamada redemocratização
do país, ocorrida a partir de 1984, deve ser trilhado no sentido de que sejam protegidos
os direitos fundamentais dos cidadãos – esta é a máxima defendida por este estudo.
Destarte, percebe-se que o Direito Penal no período “pós-ditadura” não é
autônomo, como muitos poderiam supor, e, sua limitação, ao contrário do que se via em
outros tempos, passa a ser feita dentro de balizas ou limites constitucionais edificados
com a clarafinalidade de travar aspirações estatais, grifa-se aqui, daqueles que detém o
poder, contrárias às árduas conquistas em sede de proteção dos direitos e garantias dos
cidadãos.
Pode-se, ante a edificação acima, deduzir que o ato de definir crimes e
estabelecer penas deve receber a chancela dos valores democráticos superiores
esculpidos no texto constitucional.
Desta feita, ao se realizar qualquer leitura acerca de matéria de Direito Penal não
se pode desvencilhar tal estudode uma análise detida de suas diversas limitações, as
quais, em uma escala crescente, têm início na própria sistemática de proteção
internacional dos Direitos Humanos e se perfilam na ordem interna com o respeito aos
valores eàs disposições materiais inseridas na Constituição Federal.
CONCLUSÃO
As linhas finais do presente estudo pautam-se na concepção de que o Direito
Penal deve seguir a trilha da intervenção mínima, guardando-se para os casos extremos,
em aplicação subsidiária às demais áreas das ciências jurídicas, como ultima ratio.
Nesta esteira de entendimento não há como negar que a produção legislativa no
âmbito penal se dá a partirdos preceitos internacionais dos Direitos Humanos, pilares de
toda a ordem constitucional interna de um Estado Democrático de Direito, seja pela
indicação dos valores a serem seguidos, seja pela limitação ou balizamento necessário
para que abusos e arbitrariedades não ocorram na atuação estatal.
Destarte, valores básicos diretamente relacionados à dignidade da pessoa
humana, em um arcabouço mínimo e irredutível, devem nortear a elaboração das leis
penais, sob pena de serem perdidas no tempo e no espaço as verdadeiras finalidades de
seus institutos.
Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana deve direcionar
qualquer intervenção penal, sendo inadmissíveis leis penais que fujam desta
configuração, por não contarem em seu bojo com a legalidade penal também erigida
constitucionalmente como preceito fundamental.
Contudo, conforme destacado no presente trabalho, o Direito Penal não vem
sendo tratado como merecido, ganhando destaque, notadamente na etapa de edificação
legislativa, o fenômeno da hipertrofia penal - justificada como uma forma de o Estado
atender às novas demandas sociais.
Nesta senda, o quadro de um Direito Penal de Emergência, consubstanciado em
um sistema estritamente punitivista, recebe cada vez mais adeptos fazendo aumentar a
crença de que a edição de novos tipos penais incriminadores ou o enrijecimento das
penas aos delitos já existentes é a solução mais eficaz no combate às mazelas da
sociedade, in loco, a criminalidade.
Assim, em prol de uma pretensa promoção da segurança pública à sociedade,
são editadas cada vez mais leis penais, esquecendo-se que a responsabilização nesta
esfera deve ser limitada desde a sua criação, passando pelo balizamento da
interpretação, desaguando nas restrições impostas também à aplicação das sanções
penais cabíveis.
É preciso, portanto, reafirmar, mesmo diante de um populismo midiático que
alimenta essa produção legislativa desenfreada, que esse desvirtuamento das leis penais
caracteriza um simbolismo inócuo, que apenas enfraquece a estrutura que deveria
embasar toda a aplicação e evolução das normas penais, demonstrando que a opção por
uma posição alarmista e desconhecedora dos problemas sociais, ignora preceitos
basilares oriundos de uma grande luta histórica internacional e nacional.
E, por derradeiro, após o colecionado nas linhas anteriores, resta clara a relação
de respeito permanente aos Direitos Humanos e aos princípios norteadores da ordem
interna do Estado Constitucional Brasileiro, objetivando, assim, que a produção
legislativa na seara penal possa receber o balizamento essencial à sua aplicação, com a
desmistificação de fenômenos de emergência do Direito Penal, por meio do
entendimento de que a via possível para a resolução de problemas afeitos à
criminalidade se erige de forma bastante longínqua ao caminho da excitação social que
pugna por algo que às vezes nem mesmo conhece.
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