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1 Historiografia e Memória do golpe de 1964 no Brasil Nashla Dahás Doutoranda História Social – UFRJ [email protected] Resumo Neste trabalho tratarei das relações entre a historiografia e a memória do golpe civil- militar de 1964. O objetivo é compreender como se deu a construção de um discurso desqualificador da experiência política que antecedeu o golpe, e de que maneiras essa interpretação no campo historiográfico alimentou e tem sido alimentada pela ausência de políticas oficias de memória no Brasil. Vale dizer que a concepção de memória utilizada levará em conta as proposições de Paul Ricoeur, Fernando Catroga e Steve Stern. Palavras-chave: Golpe de 1964, memória, historiografia Abstract: This paper will address the relationship between historiography and memory of the civil-military coup of 1964. The goal is to understand how was the construction of a discourse of disqualifying political experience that preceded the coup, and in what ways this interpretation in the field historiographical fed and has been fueled by the absence of official policies in Brazil memory. It is worth mentioning that the design of memory used will take into account the propositions of Paul Ricoeur, Fernando Catroga and Steve Stern. Key-words: 1964 coup, memory, historiography

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Historiografia e Memória do golpe de 1964 no Brasil

Nashla Dahás

Doutoranda História Social – UFRJ

[email protected]

Resumo

Neste trabalho tratarei das relações entre a historiografia e a memória do golpe civil-militar de 1964. O objetivo é compreender como se deu a construção de um discurso desqualificador da experiência política que antecedeu o golpe, e de que maneiras essa interpretação no campo historiográfico alimentou e tem sido alimentada pela ausência de políticas oficias de memória no Brasil. Vale dizer que a concepção de memória utilizada levará em conta as proposições de Paul Ricoeur, Fernando Catroga e Steve Stern.

Palavras-chave: Golpe de 1964, memória, historiografia

Abstract:

This paper will address the relationship between historiography and memory of the civil-military coup of 1964. The goal is to understand how was the construction of a discourse of disqualifying political experience that preceded the coup, and in what ways this interpretation in the field historiographical fed and has been fueled by the absence of official policies in Brazil memory. It is worth mentioning that the design of memory used will take into account the propositions of Paul Ricoeur, Fernando Catroga and Steve Stern.

Key-words: 1964 coup, memory, historiography

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Está claro que durante mais de 40 anos, desde o golpe de 1964, e mesmo desde a

redemocratização em 1985, os sucessivos governos que assumiram o poder silenciaram

diante do governo João Goulart e do golpe que o derrubou. No âmbito da política

oficial, o fim da ditadura, selado com a subida de José Sarney ao poder, não significou a

inserção daquele passado recente em nenhum programa governamental. A exceção

neste quadro foi a gestão de Fernando Henrique Cardoso que, em 1998, efetivou

polêmicas leis de reparação, de caráter eminentemente indenizatório, a determinados

grupos de vítimas da repressão exercida pela ditadura militar. Sem discutir os méritos

da lei no âmbito da real necessidade de reparar os danos causados a famílias inteiras,

pode-se dizer que não se tratou de um esforço para criar uma discussão pública sobre o

assunto, para dialogar com as memórias do período, ou para buscar a verdade e/ou

reconciliação entre os envolvidos.

É possível afirmar que, tanto a lei de anistia de agosto de 1979, que marcou o

processo de transição brasileiro, quanto a nova democracia, inaugurada com o pacto

constitucional de 1988, adotaram a postura de omissão e esquecimento em relação à

memória política do passado recente. Como afirma Edson Teles em sua tese de

doutorado1:

“O Brasil silenciou-se diante dos crimes da ditadura e limitou-se a exercer uma memória objetiva, através de placas comemorativas, livros, filmes e algumas leis de reparação. A transição brasileira e a nova democracia contribuíram para turvar o acesso à memória política: não com sua eliminação, mas condenando a memória ao exílio da esfera pública, restrita às lembranças das vítimas em suas relações privadas.” (TELES, 2007)

No entanto, o crescimento dos movimentos dos Direitos Humanos em escala

mundial, acompanhado pelo surgimento do tema da Justiça de Transição como central

para as ações da Organização das Nações Unidas2 desde os anos de 1990, e o próprio

afastamento temporal dos acontecimentos que marcaram a ditadura no Brasil, tem sido

elementos importantes, que abriram o cenário brasileiro a um movimento interno de

repúdio à tortura, ao autoritarismo aliado à violência de Estado, e aos crimes contra a

humanidade. Tem surgido, com isso, claro consenso social acerca dessas questões.

1 TELES, Edson Luis de Almeida. Brasil e África do Sul: os paradoxos da democracia. Memória política em democracias com herança autoritária. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo /Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Filosofia – 2007. 2 PAUL VAN ZYL. PROMOVENDO A JUSTIÇA TRANSICIONAL EM SOCIEDADES PÓS CONFLITOS. REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, N. 1 JAN./JUN. 2009.

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Contudo, o governo João Goulart e o golpe de 1964 jamais encontraram no espaço da

política estatal um lócus para a publicidade de suas memórias. Em grande parte, esta

tarefa ficou a cargo da historiografia.

Desde já, apresento como objetivo e dificuldade da pesquisa que desenvolvo no

PPGH da UFRJ3, a compreensão da memória social do golpe de 1964. Esta questão tem

se convertido em um esforço constante para capturar um conjunto de fenômenos sociais

e políticos ainda não plenamente significados e que, portanto, ainda causam surpresas,

divisões e embates.

O objetivo deste artigo é, portanto, investigar e compreender o surgimento de

narrativas e interpretações que parecem ter influenciado a memória, ou a ausência de

memória social em torno do pré-golpe, e do presidente João Goulart, nos seus devidos

contextos de realização. Para isso o caminho traçado é o da reconstituição da trajetória

de um grupo de jovens intelectuais de esquerda, pouco citado na historiografia

brasileira, que constituiu, em 1961, a Organização Revolucionária Marxista Política

Operária – ORM-Polop. Procurarei analisar a construção, inédita naquela conjuntura, de

leituras da realidade brasileira alternativas a linha política do Partido Comunista

Brasileiro – PCB, hegemônica até então entre os trabalhadores e classes populares no

Brasil. Estas formulações tiveram grande impacto no debate político de esquerda da

época, e mostraram-se resistentes ao tempo, desprendendo-se do campo intelectual em

que surgiram. Sua influência sobre as interpretações posteriores ao golpe, sobretudo nos

anos de 1970 e 80, são indícios de que elas continuaram fazendo sentido em outros

presentes. Tratarei, portanto, de imagens, representações e narrativas cuja força esteve

ligada aos quadros institucionais e intelectuais que marcaram tanto o pré-golpe; quanto a

ditadura militar, em especial em seu período de distensão, tais como o ISEB e a Escola Paulista

de Sociologia da USP. Será preciso considerar a todo o tempo as circunstâncias sociais,

políticas e econômicas da gênese dessas interpretações, assim como as relações de poder dentro

das quais elas circularam.

A Polop surge oficialmente em janeiro de 1961, como produto da reunião de

diversos jovens políticos e intelectuais, militantes da esquerda brasileira, sobretudo, do

Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas Gerais. O Brasil experimentava o governo de

Jânio Quadros, eleito com 48% dos votos, em uma campanha de plataforma quase

apolítica, e/ou apartidária – embora o candidato tivesse concorrido formalmente pela

3 A pesquisa se desenvolve sob a orientação da professora doutora Maria Paula Araújo.

4

UDN, em coalizão com outros pequenos partidos conservadores. O tema central da

propaganda Janista era fazer a faxina que o país mais precisava, eliminando a corrupção

que tomava conta do Estado.

Externamente, a guerra fria ditava o tom da política internacional, agora

conturbada pela revolução cubana, vitoriosa em 1959, e socialista cerca de dois anos

depois. O pensamento latino-americano indicava claramente o desejo de independência

econômica e política reais diante das intervenções dos Estados Unidos e, em menor

escala, da Inglaterra. Desde meados da década de 1950, organizações como a CEPAL –

Comissão econômica para a América Latina e o Caribe -, e a FAO – Organização das

Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – propunham uma política mundial

contra o subdesenvolvimento. Como afirma o cientista político e ex-militante da Polop

Theotonio dos Santos4, a característica principal da literatura resultante deste

pensamento era a de conceber o desenvolvimento como a adoção de normas de

comportamento, atitudes e valores identificados com uma concepção de economia

moderna, caracterizada pela busca da produtividade máxima, a geração de poupança e a

criação de investimentos que levassem à acumulação permanente da riqueza dos

indivíduos e, em conseqüência, de cada sociedade. Assim, a chamada teoria do

desenvolvimento buscava localizar os obstáculos à plena implantação da modernidade

alcançada pelos países centrais, e definir os instrumentos de intervenção, capazes de

obter os resultados desejados no sentido de aproximar cada sociedade existente deste

padrão ideal de relações econômicas e sociais.

Desse modo, pode-se afirmar que nos anos de 1960, a Polop surge em um

contexto de desilusão desenvolvimentista e de renovação das esquerdas brasileiras

diante do sucesso da revolução cubana. Seus primeiros dirigentes uniram-se em torno de

questões como a “condenação da política de colaboração de classes dirigida pelo Partido

Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialista Brasileiro (PSB), e o Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB)”. Também figuravam como elementos de coesão entre o grupo o

reconhecimento do papel da classe operaria como força aglutinadora de uma frente de

trabalhadores da cidade e do campo, a defesa da construção de um partido

representativo da classe operária, em oposição aos partidos burgueses e reformistas, a

defesa do caráter socialista de qualquer revolução no Brasil, e a crítica às

4 DOS SANTOS, Theotonio . La Teoria de la Dependencia: Balance y Perspectivas. Ciudad de Mexico, México: Plaza y Janés, 2002.

5

“deformações” dos Estados do campo socialista, mas solidariedade a esses países em

seus conflitos com o sistema imperialista”5.

Deve-se destacar na elaboração de tais idéias a forte contribuição de Erich

Sachs, ex-militante do Partido Comunista Alemão, e que no Brasil, inicialmente, se

ligara ao grupo socialista democrata, formado principalmente na Faculdade de Direito.

Sua participação foi essencial tanto na organização, quanto na ligação da POLOP

nacional com São Paulo. De acordo com o líder estudantil e vice-presidente da União

Nacional dos Estudantes entre 1965/1966 Apolo Heringer:

“Ele começou a criar, toda a semana vinha a análise de conjuntura política, toda semana chegava e a gente lia aquilo, analisava o papel da classe operária na história, um pouco da história do movimento comunista, falava da conjuntura nacional, da burguesia, do caráter burguês da luta de libertação nacional, o movimento operário precisava ser construído a partir de núcleos operários”6.

Em 1985, Daniel Aarão Reis e Jair de Sá, em Imagens da Revolução7

descreveram a POLOP como uma organização que modifica o caráter do marxismo

entre as esquerdas brasileiras, apresentando-se como a primeira alternativa partidária ao

PCB nos anos de 1960, em favor de uma revolução socialista imediata.

Em seus textos e atas de discussões da Polop no ano de 1962, Eric Sachs já

colocava o caráter irremediavelmente associado da burguesia brasileira, e socialista da

revolução proletária. Este é um ponto importante porque inaugura um argumento que

terá continuidade com o que ficou conhecida como “teoria da dependência”, e adquiriu

história própria. Não se tratava de pular a etapa democrático-burguesa da revolução,

considerada necessária pelos comunistas, mas de não considerá-la, uma vez que a

burguesia brasileira teria nascido no bojo da expansão do capitalismo comercial europeu

no século XVI, inserindo-se, desde então, no mundo do mercado mundial capitalista.

Plenamente constituído no país, Eric Sachs defendia que o capitalismo já havia alçado a

burguesia ao poder, e do mesmo modo como a natureza contraditória e selvagem do

desenvolvimento capitalista não poderia caminhar dentro do programa estabelecido

5 PROJETO: “50 ANOS DA ORM – POLÍTICA OPERÁRIA” –Organização dos acervos e divulgação ao público”. Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife Outubro de 2009. 6Entrevista de Apolo Heringer Lisboa a James Green em 24/06/2008. Citado em LEITE, Isabel. Comandos de Libertação Nacional – Oposição armada à ditadura em Minas Gerais (1967-1969). Dissertação de Mestrado. Pós Graduação em História da UFMG – BH – 2009. 7 REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da Revolução. Rio de

Janeiro, Marco Zero, 1985.

6

pelos reformistas, os interesses da burguesia jamais seriam compatíveis com os dos

trabalhadores do campo e da cidade em momentos de radicalização.

Na convocatória para o primeiro congresso da Polop em julho de 1960, Sachs

afirmara:

“O PC falhou na tentativa de se tornar o partido do proletariado brasileiro, o PSB nunca teve essa preocupação e o PTB não passa de uma agência da burguesia no meio dos trabalhadores. (...)

O proletariado brasileiro ainda se encontra em pleno processo de formação como classe política. Seu atraso se deve, em parte, a causas objetivas, à sua juventude, o contínuo afluxo de elementos do campo, etc.

Antes de tudo, o domínio e a tutela que a burguesia nacional exerce sobre ele, de um modo tão vasto ainda, que impede a sua participação na política nacional como fator independente. Materialmente esse domínio é realizado por meio do Ministério do Trabalho, da legislação sindical herdada do Estado Novo e demais apetrechos clássicos da máquina de opressão do Estado burguês. Ideologicamente, essa tutela é exercida pelas várias teorias que pregam uma comunidade de interesses entre a burguesia e o proletariado (desenvolvimentismo, nacionalismo), e que têm como conseqüência tácita o sacrifício das reivindicações próprias da classe operária. Essa tutela ideológica, já o dissemos, a burguesia exerce hoje preferencialmente por meio das "teorias" de desenvolvimentismo - sem por isso desprezar recursos mais antigos, como o clero, o patriotismo, a ignorância cultivada por meio de um sistema de educação arcaico, etc. O "desenvolvimentismo", como é aceito nas chamadas esquerdas e nas cúpulas sindicais, se apresenta geralmente sob o signo do nacionalismo e a fusão das duas ideologias é tendência geral. Ela prega uma pretensa comunidade de interesses de classes, a paz social para o desenvolvimento do país, para que em data futura, e sempre futura, sejam resolvidos os problemas sociais e a miséria existente”. (Rio de Janeiro, 24 de julho de 1960. Convocatória redigida por Ernesto Martins)

A hipótese que venho desenvolvendo é a de que a POLOP, assim como o MIR –

Movimento de Esquerda Revolucionária - no Chile, como organizações representantes

de uma esquerda radical dos anos de 1960 e 1970, apresentaram semelhanças em seus

pressupostos teóricos ligados às críticas ao reformismo e às possibilidades de uma

revolução socialista na América Latina. Suas leituras dos governos de João Goulart e de

Salvador Allende, e os conceitos construídos para explicar aquela realidade

influenciaram de maneira significativa a historiografia produzida acerca dos golpes nos

dois países.

No Brasil, as críticas ao PCB e ao reformismo conciliador de Goulart foram

incorporadas ao discurso da “República populista” trabalhado pela historiografia e, em

grande parte, acolhido na memória social. No Chile, um diagnóstico também crítico ao

Partido Comunista e Socialista, e ao governo da Unidade Popular (UP) contribuiu para

uma produção historiográfica de natureza mais identitária, que buscou nas raízes

7

daquele passado recente elementos para os novos projetos de esquerda, construindo uma

memória profundamente combativa. De acordo com o historiador e ex-militante do MIR

Gabriel Salazar, a respeito das relações entre a história política e a constituição de uma

memória social em torno do golpe de 19738:

“A experiência que vivemos nos anos de 1960, 70 e 80, mostrou a importância da história social e a necessidade de trabalhar a memória viva e não a morta metida nos arquivos. Agora, depois da crise das grandes teorias, tem se reagrupado em torno dos temas da memória e da identidade que nos obrigam a revolucionar a história. (...)

A memória puramente retrospectiva é perigosa porque não se traduz em uma ação propositiva para o futuro” (SALAZAR, Gabriel 2.003)

No Brasil, as idéias de populismo, reformismo, socialismo, conciliação,

revolução, entre outros termos que dominaram o léxico político no pré-golpe, foram

responsáveis por conferir sentido a um conjunto de acontecimentos no momento em que

ocorreram, tornando-se parte importante daquela experiência histórica.

Já ao final da década e, sobretudo nos anos de 1970, essas ideias foram

ressignificadas no campo das ciências humanas na tentativa de explicar o passado

recente, agora à luz de um período chamado pelos militares de “distensão”. Intelectuais

vinculados a Escola Livre de Sociologia e Política, herdeiros principalmente do

sociólogo Florestan Fernandes - que desde os anos de 1950 já dirigia pesadas críticas à

sociologia praticada no ISEB - construíram um campo de discussão sobre o golpe

marcado pela crítica à produção acadêmica desenvolvimentista entendida como

nacionalista e submetida aos interesses do regime republicano inaugurado em 1946.

Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Octávio Ianni, Francisco de

Oliveira, entre outros, construíram suas interpretações sobre a política brasileira nos

anos de 1960 tendo como marco a derrota de 1964. Não apenas a derrota das esquerdas,

mas também a forma pela qual o golpe e a instauração da ditadura se processaram - sem

resistência – pareceu conferir ampla legitimidade à narrativa que enxergava o regime de

1946 e a experiência política anterior ao golpe sob uma perspectiva profundamente

crítica.

A produção desses intelectuais reforça a narrativa histórica do passado recente

compreendida dentro dos marcos do populismo e incorpora grande parte dos conceitos

8 Entrevista concedida por Gabriel Salazar em 2003 ao CEME, disponível em: http://www.archivochile.com/

8

formulados pela Polop em seu apoio crítico ao governo João Goulart. Os objetivos,

porém, são bastante distintos. Ao que as fontes indicam, outrora o populismo e o

nacionalismo de esquerda compunham visão problematizadora da democracia brasileira

e um projeto de revolução socialista defendido pela Polop. Agora, grosso modo, os

mesmo termos serão utilizados para demonstrar a inevitabilidade do golpe diante de

uma sociedade civil inorgânica, classe trabalhadora inexperiente politicamente, e de um

projeto nacional demagógico.

Quando Octávio Ianni publica o Colapso do Populismo no Brasil9 , sua principal

crítica dirige-se a uma leitura equivocada das esquerdas brasileiras sobre a realidade

política da época. Tais grupos não teriam conseguido enxergar corretamente a situação

histórica em que se encontravam e, intransigentes na defesa de suas reformas, não foram

capazes de negociar uma saída consensual para o processo estrutural de transição pelo

qual passava o país recém urbanizado. As instituições políticas do populismo teriam se

tornado obsoletas e, quando naturalmente dissociadas do desenvolvimento econômico,

entraram em colapso por não atenderem mais aos interesses da ascendente burguesia

industrial.

De acordo com o autor: “Em verdade, o golpe de 1º de abril de 1964 é o fecho do longo processo de transição do Brasil da esfera da libra esterlina para a esfera do dólar” (IANNI, Otávio 1968)

Sobre estas bases, esse grupo expressivo de intelectuais pensará também a

transição política nos anos de 1970, com destaque para o conceito de democracia após

anos de estudos voltados para as críticas ao desenvolvimentismo - pauta política dos

intelectuais e das forças nacionalistas nas décadas de 1950 e 60. Assim, o pré-golpe

torna-se, cada vez mais, a antítese de uma realidade político-social desejável nos

parâmetros das democracias consideradas desenvolvidas. Décadas antes, o

desenvolvimentismo discutiu as possibilidades de autonomia e crescimento econômico

latino americanos pelo viés da industrialização. Nos anos de 1970, a transição política e

a conseqüente necessidade de estabilidade/governabilidade, legitimidade institucional e

ainda crescimento econômico, contribuíram para que a preocupação central fosse a

consolidação da democracia enquanto conjunto de leis, procedimentos e instituições que

garantissem o funcionamento da sociedade nos moldes liberais ocidentais. Para isso, a

9 IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 3ª edição/revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

9

derrota de 1964 contribuiu tanto no plano teórico, quanto no da militância política.

Entre os intelectuais, como já mencionado, tornou-se comum recorrer ao golpe como

recurso explicativo do trabalhismo populista, do nacionalismo ideológico e da derrota

do radicalismo socialista. Não por acaso a esquerda que nasce do sindicalismo paulista

se auto intitulará “nova esquerda”, em oposição aos grupos considerados fracassados

dos anos de 1960 e de suas demandas reformistas.

Francisco Weffort e Octávio Ianni fundam o CEBRAP (Centro Brasileiro de

Análise e Planejamento) em 1969 criando um campo institucional científico e, portanto,

legítimo para a criação de novas interpretações da realidade brasileiro, do passado

político recente e, muito importante, de projetos para o futuro do país supostamente

livres do nacionalismo vinculado ao Estado, e do debate impregnado pela disputa

ideológica supostamente decidida em 1964. Assim, a geração de orientandos de

Florestan Fernandes, e de outros intelectuais por ele influenciados, produziu trabalhos

que se tornariam importantes, sobretudo relacionados ao que chamaram de

modernização brasileira.

Segundo Fernando Henrique Cardoso10, o antigo sistema político, marcado pela

organização das classes sociais em torno do estado foi substituído ao longo da

rearticulação política que tem início em 1964 por “estruturas burocráticas” que ligam os

setores da burocracia pública e estatal aos grupos das empresas privadas, dos grandes

conglomerados como numa teia de interesses em comum. Tais estruturas conectariam os

empresários e os próprios militares deslocando dos setores mais atrasados para os mais

modernos o centro das decisões políticas. Essas novas forças dirigentes terão a dupla

tarefa de repressão e de desenvolvimento nacional pelo caminho – único possível - da

dependência.

A projeção adquirida por essas interpretações contribuiu para que, no campo das

esquerdas, de uma forma geral, toda uma tradição de política nacionalista de

desenvolvimento capitalista estatizante e distributiva, chamada de nacional-estatista11,

fosse desqualificada, sobretudo, sob a categoria de populista. Este termo, contudo, 10 CARDOSO, Fernando H. e FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Ensaio de Interpretação Sociológica. 7ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1970. __________. Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1975._________. O modelo político brasileiro e outros ensaios. 3ª ed. São Paulo: Difel, 1977a. _____________. “Estado capitalista e marxismo”, in Estudos Cebrap, nº 21, jul./set. 1977b. 11 REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. CNPq/Editora Brasiliense, 200 páginas, 1990;___________ Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade Jorge Zahar Editor, 2000; _____________Imagens da Revolução. Expressão Popular, 2006.

10

permanece questionável no campo acadêmico ainda hoje e adquiriu significados os mais

diversos dependendo do autor ou do contexto. Mesmo o trabalho de Francisco

Weffort12, referência nos estudos sobre o termo, assinala o período de 1945 a 1964

como um momento marcado pela conquista da cidadania social pelos trabalhadores por

meio de uma aliança com o Estado, que incluía a manipulação eleitoral. Não há,

entretanto, menção a uma manipulação absoluta, e sim a uma troca de concessões por

parte do Estado que atendiam a demandas históricas da classe trabalhadora.

A tese de Weffort ressalta ainda a dificuldade dos trabalhadores do campo e da

cidade em criar experiência política, em razão de uma série de fatores estruturais que

incidiriam sobre o processo de formação do proletariado brasileiro. As maiores críticas

a esta ideia de populismo apontavam que, apesar do controle do Estado sobre a

legislação sindical concedida, greves ilegais continuaram a existir. De todo o modo,

apenas parte desta interpretação ganhou maior destaque no cenário intelectual de

esquerda, sobretudo, a idéia de manipulação e, consequentemente, demagogia, por parte

do Estado. Assim, a memória do governo “populista” de João Goulart pareceu não

merecer maiores atenções. O estigma do populismo deixou de ser ferramenta de

reflexão e se consolidou como uma prática social, uma desqualificação política acolhida

pelo senso-comum e reproduzida em diversas áreas do conhecimento e da informação

como o jornalismo e a literatura.

Esse discurso desqualificador do nacionalismo dos anos de 1960 e, portanto, das

esquerdas intelectuais e militantes que o defenderam, foram em parte significativa

incorporados a uma produção historiográfica dos anos de 1980 e 90, que, por sua vez,

também se tornaria marcante para uma nova geração de jovens estudantes envolvidos

menos com a história do que com a memória do golpe. Deve-se ressaltar que este é um

período fundamental para a construção de um pacto político entre a sociedade e o

regime, que hoje sabemos ter nos legado um “entulho” autoritário ainda vigente. O

momento comporta, portanto, importantes capítulos do processo de redemocratização,

especialmente aquele que gerou a lei de anistia política instaurada em 1979.

Tal historiografia produzida a partir da década de 80 aponta para uma tendência

revisionista cujo marco é o trabalho de Argelina Figueiredo “Democracia ou

Reformas?”. Escrito num contexto de vitória da visão liberal ocidental da sociedade, e

do fracasso da revolução, o trabalho é pautado pelo individualismo metodológico e 12 WEFFORT, F.C. O Populismo na Política brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

11

considera que o conjunto de opções intransigentes, feitas pelas lideranças de esquerda

no parlamento, impossibilitou a viabilização das reformas de base dentro do quadro

constitucional democrático vigente. A partir desta tese, o movimento da historiografia

tem ocorrido no sentido da desconstrução de uma memória “democrática” e

“vitimizadora” das esquerdas. Historiadores reconhecidos como Daniel Aarão Reis

Filho e Jorge Ferreira, embora comportando algumas divergências importantes, tem

apontado que as esquerdas dos anos de 1960 e 1970 não valorizavam a democracia e

impulsionaram um processo de radicalização política e ideológica que culminou com o

golpe civil-militar de direita.

Com muito mais questões a serem discutidas, do que com respostas ou

conclusões provisórias, pretendemos apresentar alguns capítulos de um longo processo

histórico que pode ter contribuído para o desinteresse político e social brasileiro em

repensar a história e a memória do golpe de 1964. Certamente, as iniciativas estatais em

nome da formação de uma Comissão Nacional da Verdade no Brasil apontam para um

debate público sobre o tema. Contudo, parece sintomático que o período analisado pela

Comissão (1946-1988) seja muitíssimo mais extenso do que se poderia imaginar para a

investigação de crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, assim como a parece

cada vez mais compreensível que a categoria de referência para a apuração desses

crimes seja a direitos humanos e não a de crimes políticos.

12

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