turismo e desenvolvimento na era da globalização - luis estenssoro 2 (2)

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TURISMO E DESENVOLVIMENTO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO Luis Estenssoro Administrador Público pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM-USP) Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) E-mail: [email protected] São Paulo, julho de 2007

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Ensaio sobre a indústria do turismo na sociedade moderna, o seu surgimento e o significado que carrega em função da sua ligação íntima com a lógica do sistema capitalista.

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  • TURISMO E DESENVOLVIMENTO NA ERA DA GLOBALIZAO

    Luis Estenssoro Administrador Pblico pela Fundao Getlio Vargas (EAESP-FGV)

    Mestre em Integrao da Amrica Latina pela Universidade de So Paulo (PROLAM-USP) Doutor em Sociologia pela Universidade de So Paulo (FFLCH-USP)

    E-mail: [email protected]

    So Paulo, julho de 2007

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    ndice

    ndice...................................................................................................................................... 2

    Introduo............................................................................................................................... 3

    Desenvolvimento, Crescimento Econmico e Turismo......................................................... 5

    Significado Antigo e Moderno das Viagens Internacionais................................................. 10

    Tempo Livre, cio e Lazer .................................................................................................. 15

    Condicionamentos e Anomalias do Turismo de Massa ....................................................... 21

    Caractersticas do Mercado de Turismo Mundial ................................................................ 28

    O Setor de Turismo no Brasil............................................................................................... 42

    Consideraes Finais............................................................................................................ 48

    Bibliografia........................................................................................................................... 53

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    Seguimos nuestro viaje hasta llegar a una isla que pareca un jardn del Paraso. El capitn de la embarcacin mand anclar, y as lo hicieron los marinos: echaron las anclas, ataron la escalera, y todas las personas que iban en el buque desembarcaron en la isla; construyeron hogares, encendieron fuego en ellos y se dedicaron a varias ocupaciones; unos cocinaron, otros lavaron, y otros se dedicaron a pasear; yo fui uno de stos, pues recorr los distintos lugares de la isla. Los pasajeros se haban reunido para comer, beber, distraerse y jugar. El capitn del navo, mientras nosotros nos esparcamos, permaneci de pie a la orilla del mar. De pronto chill con su voz ms fuerte: Pasajeros! Salvaos! Corred! Embarcad de prisa en la nave y abandonad vuestras cosas! Salvad vuestras vidas! La isla en que estis no es tal isla: es un pez enorme, que se ha parado en el medio del mar.

    Sindbad El Marino, Los ms bellos cuentos de las Mil y Una Noches.

    Introduo

    O presente artigo tem a inteno de analisar a indstria do turismo nos seus aspectos sociolgicos e econmicos, destacando a sua importncia como fenmeno cultural de massa e como atividade econmica com amplas repercusses para o desenvolvimento da sociedade moderna. Sustentamos que as viagens internacionais no tm o mesmo carter, como fato social socialmente reconhecido e como fenmeno social de um sistema capitalista em transformao, antes e depois do final do sculo XIX, pois adquiriram uma nova dimenso social com as transformaes econmicas daquela poca e com os avanos tecnolgicos que se seguiram. Houve uma modificao na forma de se entender o fato de se sair em viagem de frias a partir do momento em que esta atividade social passa a fazer parte do circuito do capital. Consideraes a respeito deste fato so exploradas com a inteno de contextualizar as tendncias econmicas do setor turstico, anlise que desenvolvemos a seguir. Nosso propsito apresentar a evoluo recente do turismo de massa, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial, e demonstrar o seu condicionamento sistmico.

    Desta forma, iniciaremos o artigo com uma discusso a respeito das abordagens conceituais sobre o desenvolvimento e o crescimento econmico, ressaltando a diferena entre ambos. Nossa inteno mostrar que o crescimento econmico, inclusive o gerado pelas atividades econmicas relacionadas com o turismo, pode no ser positivo ou suficiente para o desenvolvimento das populaes locais envolvidas. Como forma de evitar a iluso do desenvolvimento, a miragem ou quimera em que se transforma este grande mito da modernidade1, defendemos a necessidade de analisar o crescimento da economia sob os aspectos relevantes para a sociedade, quais sejam: o aumento da produtividade; a eqidade; a

    1 O conceito de desenvolvimento diz respeito evoluo de um sistema social de produo e diviso social do

    trabalho que engendra, baseada no desenvolvimento das foras produtivas; porm, a concepo de desenvolvimento de uma sociedade, diz Furtado, no alheia a sua estrutura social e suas assimetrias. Furtado, Celso. O Mito do Desenvolvimento. Enfoque Interdisciplinar. So Paulo, Nacional, 1981.

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    satisfao das necessidades bsicas da populao; a ampliao da liberdade das pessoas, reparando nas capacidades que elas tm para se desenvolverem socialmente; e o entendimento do processo de desenvolvimento como criao e disseminao de direitos humanos, atributos inerentes s pessoas em funo da sua participao numa sociedade complexa.

    A seguir, faremos um panorama da criao da indstria do lazer, que, como veremos, nasceu graas ao fenmeno constitudo pela liberao do tempo livre para as massas trabalhadoras. A Revoluo Tecnolgica permitiu um movimento neste sentido quando reduziu o tempo socialmente necessrio do trabalho vivo na produo capitalista, possibilitando a proliferao e diversificao das atividades de lazer. Este movimento foi acompanhado de outro: o aparecimento de modernos modos de lazer em funo dos prprios avanos tecnolgicos e dos variados produtos lanados no mercado. Neste sentido, a transformao radical do modo de vida em funo do desenvolvimento dos meios de comunicao e transporte um fato incontestvel. Com o turismo no foi diferente: a tecnologia do avio mudou as perspectivas dessa atividade radicalmente. A modificao da forma de organizao da produo neste setor de servios igualmente permitiu o barateamento desta tecnologia area e o acesso das massas aos seus benefcios e possibilidades.

    A partir dessas transformaes, observamos que o lazer turstico foi incorporado ao processo de acumulao de capital como uma atividade rentvel extremamente dinmica. Nossa ateno se voltar, ento, para os condicionamentos e anomalias existentes no turismo de massa, enquanto forma de mercantilizao e de consumo do tempo livre do trabalhador, imitativa do lazer burgus, que , por sua vez, uma evoluo capitalista a partir do cio aristocrtico. Veremos como as atividades de lazer constituem-se nesta indstria muitas vezes em detrimento do equilbrio ecolgico e do bem-estar social, reproduzindo e reforando desigualdades estruturais da sociedade capitalista.

    Por ltimo, faremos um estudo do mercado turstico internacional, tentando destacar suas tendncias e caractersticas enquanto indstria voltada para o lazer das massas. Observaremos o desenvolvimento desta atividade nas diferentes regies do mundo e analisaremos a dimenso que tem este setor principalmente na Europa Ocidental, sia e Estados Unidos, alm de dedicarmos uma seo inteira para nos aprofundarmos sobre o caso brasileiro.

    Esta anlise revela que o turismo no uma atividade econmica que foge caracterstica principal do capitalismo, qual seja: a desigualdade do desenvolvimento

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    econmico e suas conseqncias em termos de eqidade na distribuio da renda. Neste sentido, verificamos que a receita gerada pelo turismo est espacialmente concentrada nos paises mais desenvolvidos. Nossas pesquisas anteriores2 nos alertaram para o fato de que a concentrao da renda na sociedade capitalista decorre da existncia de processos inerentes a este sistema econmico, tais como a concentrao e a centralizao do capital, fenmenos cuja existncia e predominncia pode ser demonstrada tambm no setor turstico. Contudo, neste artigo, nos limitaremos a evidenciar que os benefcios econmicos do setor turstico so, como nos outros setores, social e regionalmente concentrados, e somente se popularizam e descentralizam em funo dos interesses do capital.

    Desenvolvimento, Crescimento Econmico e Turismo

    O desenvolvimento o destino de qualquer nao. Na sua direo dirigem-se todos os setores da economia e quaisquer polticas governamentais. Para ele caminham os esforos dos agentes econmicos e dele se beneficiam todos os povos. O desenvolvimento no pode ser confundido com o crescimento econmico, pois inclui tambm o desenvolvimento social. O crescimento econmico propicia o desenvolvimento social e para este fim deve ser direcionado. O desenvolvimento econmico deve ser acompanhado do desenvolvimento social, da melhoria dos indicadores sociais. De uma maneira geral, pode-se dizer que o desenvolvimento o resultado de um processo social de ampliao das oportunidades sociais existentes em uma determinada sociedade em funo do crescimento econmico. A expanso da economia , portanto, um meio de desenvolver o pas e o seu povo.

    O desenvolvimento pode ser entendido de vrias formas. Uma primeira acepo entende o desenvolvimento como aumento da produtividade. Por meio do progresso tecnolgico, melhor organizao do trabalho e racionalizao da produo pode-se aumentar a quantidade e a qualidade dos produtos produzidos por cada trabalhador. O crescimento econmico entendido, neste sentido, como a expanso da produtividade do trabalho, e esta como desenvolvimento. Nas palavras de Furtado3:

    Podemos, portanto, admitir que o crescimento o aumento da produo, ou seja, do fluxo de renda, ao nvel de um subconjunto econmico

    2 Estenssoro, Luis. Capitalismo, Desigualdade e Pobreza na Amrica Latina. So Paulo, FFLCH-USP, 2003; e

    Hirano, Sedi e Estenssoro, Luis. Hierarquizao do Mercado Mundial e Desigualdade Social. So Paulo, mimeo, 2006. 3 Furtado, Celso. Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. So Paulo, Companhia Editora Nacional,

    1987.

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    especializado, e que o desenvolvimento o mesmo fenmeno quando

    observado do ponto de vista de suas repercusses no conjunto econmico de estrutura complexa que inclui o referido setor especializado. (...) Sintetizando, o desenvolvimento tem lugar mediante aumento de

    produtividade ao nvel do conjunto econmico complexo. Esse aumento de produtividade (e de renda per capita) determinado por fenmenos de crescimento que tm lugar em subconjuntos, ou setores, particulares (Furtado, 1987: 92 e 93).

    Em uma segunda abordagem, o desenvolvimento sinnimo de eqidade. Os que defendem esta acepo argumentam que de nada vale aumentar a produtividade e a produo se esta no redistribuda entre os membros da sociedade e entre as naes. Desenvolvimento, neste sentido, significa aumentar a igualdade econmica entre os agentes, redistribuindo a renda e a riqueza. O crescimento econmico, o aumento da produo, s tem sentido se o produto da expanso econmica redistribudo entre as pessoas e entre os pases.

    Situando-se dentro desta abordagem, Kliksberg4 tem vrios argumentos para justificar sua posio, a saber: o problema social da pobreza tem mais chances de ser resolvido em sociedades com menor desigualdade social; a reduo das desigualdades cria condies propcias para um aumento significativo do investimento na formao do capital humano; uma estratgia de melhoria da eqidade pode influenciar favoravelmente as taxas de poupana nacional; a melhoria da eqidade tem efeitos positivos sobre as possibilidades de desenvolvimento tecnolgico; o capital social tambm poder ser fortalecido com uma melhor distribuio de renda e riqueza; a sade pblica igualmente se beneficia de melhorias na eqidade e no capital social; e, por fim, afirma tambm que a desigualdade social afeta negativamente a governabilidade de um pas. Todos estes aspectos favorecem a inteno de reduzir a desigualdade social, pois uma maior eqidade significa mais desenvolvimento.

    Uma terceira conceituao caracteriza o desenvolvimento como satisfao das necessidades bsicas, entendendo que de nada adianta repartir o produto se no se vive bem, se no h bem-estar. Viver bem significa poder gozar de uma boa qualidade de vida, em um nvel socialmente considerado como razovel, o que implica a satisfao das necessidades bsicas de todos os grupos e classes sociais. O crescimento econmico pode melhorar a qualidade de vida, mas esta pode no ser considerada ainda como aceitvel pelas pessoas, se no esto satisfeitas as suas necessidades bsicas. A Comisso Econmica para a Amrica

    4 Kliksberg, Bernardo. Desigualdade na Amrica Latina: o Debate Adiado. So Paulo Cortez, Braslia

    UNESCO, 2000, pp. 21-25.

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    Latina (CEPAL)5, da ONU, desenvolveu este conceito e realiza as suas estimaes estatsticas de pobreza e indigncia tendo como parmetro o clculo de linhas de pobreza baseadas nas necessidades bsicas da populao, isto , estimando a renda mnima necessria para que cada membro de um domiclio possa satisfazer suas necessidades essenciais. Abaixo, transcrevemos a explicao metodolgica usada pela CEPAL:

    A linha de pobreza de cada pas e zona geogrfica foi estimada a

    partir do custo da cesta bsica de alimentos que cobre as necessidades nutricionais da populao, tomando como base seus hbitos de consumo, a disponibilidade efetiva de alimentos e seus preos relativos. Ao valor desta cesta somou-se uma estimao dos recursos requeridos pelos domiclios para

    satisfazer o conjunto das necessidades bsicas no-alimentrias (CEPAL, 2001: 39).

    Por ltimo, verificamos tambm que o desenvolvimento pode ser entendido como ampliao da liberdade. Nesta conceituao, a liberdade concebida como extenso das capacidades dos agentes para dispor da vida na sua plenitude. Desenvolvimento conceituado, portanto, como ampliao da liberdade das pessoas na realidade concreta das sociedades, permitindo que se dediquem, com maior probabilidade, s atividades que tenham razes para valorizar, desenvolvendo-se como seres humanos que so. O crescimento econmico, neste sentido, deve ampliar os horizontes, alargando as possibilidades que as pessoas tem para escolher o que querem ser e o seu campo de atuao. Em outras palavras, desenvolvimento significa ampliar as capacidades que as estruturas sociais e econmicas admitem para cada membro da sociedade, individualmente, e para todos, coletivamente.

    Esta abordagem foi sistematizada pelo prmio Nobel Amartya Sen, que afirma que a liberdade tem de ser vista como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. Nas suas palavras: O desenvolvimento consiste na eliminao de privaes de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condio de agente6. A eliminao de privaes de liberdades substanciais seria constitutiva do desenvolvimento. Este entendimento considera a pobreza como privao de capacidades bsicas, o que implica que no so apenas as carncias refletidas pelas estatsticas de distribuio de renda que podem ser arroladas como pobreza. Apesar da privao de capacidades individuais estar fortemente relacionada a um baixo nvel de renda, ela no se restringe a este indicador.

    5 CEPAL. Panorama Social de Amrica Latina 200-2001. Santiago, CEPAL, 2001.

    6 Sen, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. So Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 10.

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    Neste sentido, a perspectiva baseada na liberdade apresenta uma semelhana genrica com a preocupao comum com a qualidade de vida, a qual se concentra no modo como as pessoas vivem, e no apenas nos recursos ou na renda de que elas dispem. A elevao da qualidade de vida das pessoas acontece com o desenvolvimento de cada sociedade, que a histria do triunfo sobre as privaes de liberdade. O bem-estar social evolui com o aumento da qualidade de vida para todos, tornando necessrias capacidades individuais e coletivas que antes no eram consideradas como bsicas (o aspecto coletivo do desenvolvimento enfatizado, pois a liberdade individual essencialmente um produto social)7. Desta forma, embora vinculadas ao processo de crescimento econmico e de acumulao de capital fsico e humano, as capacidades bsicas tm seu alcance e abrangncia indo alm destas variveis, pois expressam a liberdade das pessoas.

    Ora, a liberdade de viajar e de conhecer outros lugares deve ser entendida neste ltimo sentido: como a capacidade que as pessoas podem ter para transcender a sua realidade local e visitar localidades distantes. A qualidade de vida implica, tambm, a liberdade de locomoo que se dispe. A diversidade de destinos possveis de serem visitados pode ser um indicador do desenvolvimento de uma sociedade. Neste sentido, o subdesenvolvimento a falta de possibilidades de fazer o que se deseja, no caso, viajar. Se desenvolvimento significa criar condies para que as pessoas faam o que valorizem, e se estas valorizam expandir seus horizontes, conhecendo outros lugares, culturas e pessoas, certamente que uma restrio a este direito pode ser considerado subdesenvolvimento. Naturalmente, percebemos que as oportunidades sociais que existem em uma sociedade so, indubitavelmente, determinantes para a liberdade que dispem aqueles que querem viajar. A desigualdade e a pobreza limitam a liberdade das pessoas, inclusive na sua capacidade de viajar.

    Podemos acrescentar nossa lista de acepes do conceito de desenvolvimento o entendimento deste como a universalizao da apropriao de direitos humanos. Desta forma, perceberamos que a progresso histrica da criao de direitos, a partir das correntes polticas e sociais do republicanismo e do liberalismo, que resultou no que hoje conhecemos como direitos civis e polticos, foi acrescentada pelos movimentos sociais dos sculos XIX e XX, entre eles o socialismo, contribuindo para a criao dos direitos sociais8. Mais especificamente, a Revoluo Francesa e a Constituio dos Estados Unidos proclamaram ao

    7 Sen (2000), Op. Cit, pp. 17-50.

    8 Cf. Habermas, Jrgen. O Estado Democrtico de Direito uma Amarrao Paradoxal de Princpios

    Contraditrios?. In: Habermas, Jrgen. Era das Transies. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003, pp. 153-173.

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    mundo os direitos civis e polticos, e a Revoluo Mexicana e a Revoluo Russa, bem como a Constituio alem da Repblica de Weimer, inauguraram a era dos direitos sociais. Posteriormente, a partir do surgimento da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 1948, e das suas diversas Declaraes e Conferncias, pode-se falar tambm em direitos econmicos e culturais, que, juntamente com todos os outros direitos acima citados, foram incorporados s leis da maioria dos pases. Desta maneira, possvel perceber um processo social internacional que resulta na universalizao da apropriao de direitos pelas pessoas, em diversas sociedades, na medida em que estas se desenvolvem. Entretanto, nos parece bvio afirmar que h uma distncia fenomenal entre o ordenamento jurdico e a realidade social propriamente dita, o que expressa a falta de oportunidades sociais para a maioria da populao mundial, devido ao subdesenvolvimento de muitos pases.

    De qualquer forma, o desenvolvimento como um direito humano um conceito amplamente difundido. O desenvolvimento humano integral solidrio e sustentvel pode ser considerado como a finalidade ltima de qualquer sociedade. Este conceito surge da prpria histria da humanidade e est enraizado em diversas instituies polticas e sociais por todo o mundo. A tendncia que este conceito amplie sua abrangncia e passe a englobar prticas sociais e econmicas que resultem em expanso das capacidades das pessoas. A adoo do conceito de desenvolvimento sustentvel, pela ONU, a partir da Conferncia de Copenhagen (1995), foi um passo neste sentido. Abaixo transcrevemos uma definio que traduz este esprito9:

    O desenvolvimento, segundo entendemos hoje, um conceito abrangente diferente de crescimento econmico, ainda considerado uma condio necessria, mas de forma alguma suficiente, [pois o primeiro inclui] as dimenses tica, poltica, social, ecolgica, econmica, cultural e territorial, todas elas sistematicamente inter-relacionadas e formando um todo. A natureza processual do desenvolvimento exige, alm disso, que se

    leve em considerao sua sustentabilidade (perenidade) para satisfazer o postulado tico da solidariedade diacrnica com as futuras geraes, simtrico ao postulado da solidariedade sincrnica com a gerao presente

    que, por sua vez, explica a primazia das consideraes sociais na determinao dos objetivos de desenvolvimento (Sachs, 1987: 215 e 216).

    Contudo, os obstculos para esta progresso so muitos, e h regresses. A restrio ao direito de viajar, que falvamos a pouco, pode ser considerada como um aspecto

    9 Sachs, Ignacy. Desenvolvimento numa Economia Mundial Liberalizada e Globalizante: um Desafio

    Impossvel?. Estudos Avanados, So Paulo, USP, vol. 11, n 30, maio-agosto 1997, pp. 213-235.

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    do subdesenvolvimento de uma sociedade ou de pobreza individual. Mais: a impossibilidade de voltar ao destino da viajem, seja pelas mesmas pessoas ou pelos seus filhos, deve ser entendida igualmente como um fator de subdesenvolvimento. Novamente, a falta de oportunidades sociais pode afetar o setor turstico negativamente; como tambm o prprio turismo pode restringir oportunidades e liberdades das pessoas, comunidades ou pases. Por exemplo, o crescimento econmico do setor turstico em detrimento do bem-estar das comunidades locais dos destinos tursticos deve, necessariamente, ser arrolado como subdesenvolvimento e, como tal, deve ser evitado.

    Temos aqui, portanto, um arsenal conceitual que nos permite defender a necessidade de se promover o turismo sustentvel, preservando os lugares tursticos, de impulsionar o turismo de forma a aumentar a liberdade das pessoas, ampliando suas capacidades e seus horizontes, desenvolvendo igualmente seus direitos humanos de forma integral, para a plenitude da vida humana em todas as partes da terra, e que se constitua o turismo, enquanto prtica social, numa maneira solidria de reconhecimento e de integrao entre os povos, possibilitando a satisfao das necessidades bsicas das pessoas, e promovendo a eqidade social e econmica, inclusive pelo aumento da produtividade social dos trabalhadores do setor. O desenvolvimento do turismo deve ser entendido desta forma. O crescimento econmico do setor turstico deve compreender todos estes aspectos do conceito de desenvolvimento.

    Significado Antigo e Moderno das Viagens Internacionais

    Quando Stendhal inventou a palavra turismo10, no sculo XIX, no havia ainda a noo do que viria a representar este setor na economia e na sociedade. Conhecia-se, naturalmente, a saga dos exploradores tais como Marco Plo (1254-1324), que chegara China, e a aventura dos navegantes como Cristvo Colombo (1451?-1506), que descobriu a Amrica para a Europa em 1492. Conhecia-se e admirava-se. Viajava-se, sonhava-se com outros mundos, mas no se conhecia o turismo da forma como existe hoje. Certamente que o Novo Mundo aguou as mentes e a cobia dos europeus11, que para l foram em massa, mas no para fazer turismo. Se, por um lado, escreviam-se livros baseados neste esprito de

    10 Segundo Dumazedier, o famoso escritor francs Stendhal, autor de O Vermelho e o Negro, cujo verdadeiro

    nome era Henri Beyle (1783-1842), inventou a palavra turismo. Dumazedier, Jofre. Lazer e Cultura Popular. So Paulo, Perspectiva, 2000, p. 148. 11

    Cristvo, Fernando. O Mito do Novo Mundo na Literatura de Viagens. Revista da USP, So Paulo, n 41, maro-maio 1999, pp. 188-197.

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    liberdade e aventura12, crentes na promessa de um mundo melhor, tais como Utopia (1516) de Tomas Morus, Civitas Solis (1623) de Tommaso Campanella, ou New Atlantis (1627) de Francis Bacon, por outro lado, os prodgios dos conquistadores entre eles o de quase exterminar os ndios13 seriam a base de uma nova diviso internacional do trabalho e de uma Nova Ordem nas relaes internacionais, criando um novo Sistema Internacional muito real e concreto. Os conquistadores foram l para fazer dinheiro, buscar ouro, como o acharam em Minas Geraes, e prata, como a encontraram em Potos, alm de organizarem empreendimentos intensivos no fator trabalho, com mo-de-obra forada indgena e negra. Desta forma, reinventaram o seu prprio mundo, subvertendo, transgredindo e recriando fronteiras reais e imaginrias14. Sua travessia para o Novo Mundo a metfora de todo turista ou viajante.

    Ianni15 analisa a metfora da viagem como o descobrimento do outro, embora igualmente seja uma forma de descobrir, modificar e transfigurar o prprio eu16. As viagens e peregrinaes mercantis e conquistadoras do sculo XVI certamente constituam um ns a procura de outros. A travessia do oceano alterou o significado do tempo e do espao, da histria e da memria, constituindo-se numa operao mgica17 que transformou as mentes daquela poca. O Descobrimento, a Conquista e a Colonizao foram processos sociais picos de transfigurao profunda da civilizao europia e das sociedades amerndias, cujo carter insano pode ser esquadrinhado na procura alucinada e semi-onrica do Eldorado18. A inveno da Amrica, neste sentido, ao mesmo tempo em que descobriu o outro, serviu para reafirmar a identidade, a presena e a permanncia de um sistema social que viria a conquistar

    12 As aventuras de Gulliver em Lilipute, Brobdingnag, Laputa, Japo e no Pas dos Houyhnhms e Yahoos so

    representativas desse esprito de liberdade e aventura que contagiou aqueles tempos. Cf. Swift, Johnatan. Viagens de Gulliver. Rio de Janeiro, Globo, 1987. 13

    Coisas terrveis foram cometidas contra os nativos das Amricas durante o processo de conquista e colonizao, como mostra o relato de Las Casas, que viveu aquela poca e revoltou-se com as iniqidades cometidas. Cf. Las Casas, Frei Bartolom. O Paraso Destrudo: Brevssima Relao da Destruio das ndias. Porto Alegre, L&PM, 2000. 14

    Dom Quixote o paradigma da transgresso das fronteiras reais e imaginrias propiciada por uma viagem. Cf. Cervantes, Miguel de. El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Madri, Espasa-Calpe, 1975. 15

    Ianni, Octavio. Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, pp. 11-31. 16

    A viagem a busca do eu e a descoberta do outro: Dibujame un cordero?. Cf. Saint Exupry, Antoine de. El Principito. Madri, Alianza Editorial, 1971. 17

    O nonsense das fantasias de Alice, expresso na metaliteratura de Carrol, vai alm da semntica e da gramtica para revelar uma transformao mgica da realidade por meio da viagem, como num jogo. Cf. Carrol, Lewis. Alice no Pas das Maravilhas. Rio de Janeiro, Fontana-Summus, 1977. 18

    A expedio de Pedro de Ursa e Lope de Aguirre exemplar para mostrar o quanto foram alucinados, brbaros e temerrios os conquistadores. Cf. Vzquez, Francisco. El Dorado: Crnica de la Expedicin de Pedro de Ursa y Lope de Aguirre. Madri, Alianza Editorial, 1987.

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    o mundo19. Ao partir para descortinar o novo, o Novo Mundo, os exploradores, conquistadores, navegantes e aventureiros incorreram numa travessia do Ser que os modificou profundamente20, embora servisse para reafirm-los perante os outros enquanto civilizao dominadora. Na verdade, qualquer viagem tem este carter libertador e transformador21. O viajante parte para regressar transfigurado em outro de si mesmo22. A viagem, alm do mais, revela-se um recurso comparativo excepcional, pois permite colocar lado a lado configuraes sociais, polticas, econmicas e culturais diversas, beneficiando o viajante na medida em que o coloca na posio de estrangeiro23. Desta forma, a viagem desvenda alteridades, recria identidades e descortina pluralidades24 que transportam o pensamento e a fabulao para uma mescla de realidade e fico25, dando ao viajante a iluso de que tudo possvel, permitido e lcito.

    Sejam as viagens para chegar s ndias, iniciadas pelo portugus Gil Eanes (1434), que foi at o cabo Bojador na frica, continuada por Diogo Co (1482), que chegou at o rio Congo, e por Bartolomeu Dias (1487-88) que dobrou o Cabo da Boa Esperana, at que, finalmente, Vasco da Gama chegou a Calicute (1497), nas ndias, contornando a frica, e voltou (1499), ou sejam as aventuras dos conquistadores na Amrica, tais como a de Hernn Cortez26 (1485-1547), que conquistou o Mxico at ento dominado pelos Aztecas; Vasco Nez de Balboa (1475-1519), que atingiu o Pacfico pelo istmo do Panam; Amrico Vespcio (1454-1505?), que deu seu nome ao continente, ao Mundus Novus, Tierra Firme, a Amrica (beneficiado, talvez, por ter navegado tanto com os espanhis quanto com os portugueses); a aventura de Francisco Pizarro27 (1470-1541), que conquistou temerariamente o Imprio Inca no Peru; a de Ferno de Magalhes (1480-1521), que iniciou a circunavegao

    19 Cruso passa 28 anos em uma ilha isolada da civilizao europia. Nesse tempo todo no abdica da sua forma

    de ver o mundo, apenas adapta-a para melhor sobreviver nas condies que lhe so impostas. O nativo que encontra, Sexta-Feira, ser transformado em seu servial sem questionamentos. Cf. Defoe, Daniel. As Aventuras de Robinson Cruso. Porto Alegre, L&PM, 1996. 20

    A aventura andante de Riobaldo e Diadorim uma travessia que se faz mundo afora, mas tambm para dentro do Ser. Cf. Rosa, Guimares. Grande Serto: Veredas. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1979. 21

    Como insinua Garcia Mrquez, um detalhe de uma viagem pode revigorar e dar flego para recomear, recobrando o sentido da vida (que , antes de tudo, um sentido socialmente construdo, mas de constituio psquica). Cf. Garca Mrquez, Gabriel. Doce Cuentos Peregrinos. Barcelona, Plaza & Janes, 1992. 22

    Ianni (2000), Op. Cit., p. 27. 23

    Ser estrangeiro , antes de tudo, um sentimento. Cf. Camus, Albert. Ltranger. Paris, Gallimard, 1957. 24

    Ianni comentando Eric Leed. Ianni (2000) Op. Cit., p. 14. 25

    A ilha que no passava de um grande peixe no mar, nas aventuras de Simbad, o marujo natural de Bagdad, uma aluso ao fato de que o extraordinrio e o surreal aparecem como normalidade em qualquer viagem. Cf. Los ms Bellos Cuentos de Las Mil y Una Noches. Barcelona, Labor, 1965, Trad. Juan Vernet. 26

    A saga da conquista da Amrica foi narrada por Jlio Verne em uma novela que conta aventuras de Cortez e Pizarro. Note-se que este autor escrevia sobre coisas fantsticas, como a volta ao mundo em 80 dias, cinco semanas num balo, uma viagem ao centro da terra ou vinte mil lguas submarinas, numa poca em que apenas era possvel sonhar com estas aventuras. Cf. Verne, Jlio. Os Conquistadores. Porto Alegre, LP&M, 1999. 27

    Ver a saga pica de Pizarro na conquista do imprio incaico em: Verne (1999), Op. Cit.

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    da Terra contornando a Terra do Fogo dos ndios Patages; Alvar Nez Cabeza de Vaca, que foi aos EUA e depois ao Brasil e Paraguai; ou Vicente Ynes Pinzn (1460-1524), que acompanhou Colombo em sua primeira viagem, e posteriormente chegou costa do Brasil, mas foi impedido pelos ndios de tomar posse da terra em nome do Rei da Espanha; seguido pela expedio de Pedro lvares Cabral (1460-1526) que tomou posse do Brasil em nome do rei de Portugal28; ou sejam as aventuras dos que procuravam este Eldorado imaginrio na realidade da selva e dos mares, tais como os piratas Francis Drake (1545-1596) e Walter Raleigh (1551-1618) ou a expedio alucinada de Pedro de Ursa e Lope de Aguirre no corao da Amrica sendo que este ltimo escreveu uma carta irada ao rei de Espanha que acabava nos seguintes termos: Hijo de fieles vasallos en tierra vascongada y rebelde hasta la muerte por tu ingratitud, Lope de Aguirre, El Peregrino29 enfim, nada disso era turismo.

    Igualmente no foi turismo a peregrinao revolucionria contra a Coroa

    Espanhola dos Libertadores Simon Bolvar30 (1783-1830) e de seu parceiro Jos de Sucre (1795-1830) no que hoje conhecemos como Venezuela, Colmbia, Equador, Peru e Bolvia, e de Jos de San Martn (1778-1850) na Argentina e Peru, ou de Bernardo OHiggins (1776-1842) no Chile. Tambm no podem ser consideradas como turismo as expedies cientficas e as incurses dos viajantes nos sculos XVIII e XIX, na Amrica Latina, de Charles Marie de la Condamine (1701-1774), Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), Alexander Von Humbolt (1769-1859), Aim Bonpland (1773-1858), Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), Johann Baptist Von Spix (1781-1826), Carl Friedrich Von Martius (1794-1868), Alcide DOrbigny (1802-1857), que descreveu sua passagem pela terra dos ndios Guaianazes, na cidade de So Paulo, ento com trinta mil habitantes31, Charles Darwin (1809-1822), Alfred Russel Wallace (1823-1913), Henry Walter Bates (1825-1892), Karl Von den Steiden (1855-1929) e Percy Fawcett (1867-1925), ou as viagens dos desenhistas Jean Baptiste Debret, francs, e Johann Moritz Rugendas, alemo, que pintaram e desenharam plantas, bichos, gentes, cenas e paisagens viajando por estas terras. Nada disso se assemelhava com o que hoje conhecemos como turismo. Fazia o Presidente Theodore Roosevelt turismo quando acompanhou o Marechal positivista Cndido Rondon pelo interior do Brasil? No. Mesmo o

    28 Datas e fatos conforme: Williamson, Edwin. The Penguin History of Latin America. New York, Penguin

    Books, 1992. 29

    Cf. Vzquez (1987), Op. Cit.. 30

    As peregrinaes hericas de Bolvar so humanizadas por Mrquez no seu livro sobre o libertador de cinco naes americanas. Garca Mrquez, Gabriel. El General en su Laberinto. Bogot, Oveja Negra, 1989. 31

    Interessante e impressionante a perspiccia de DOrbigny para descrever a cidade de So Paulo naquela poca, mostrando que sua importncia no recente. Cf. DOrbigny, Alcide. Viagem Pitoresca Atravs do Brasil. EDUSP, So Paulo, 1976.

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    alemo Hans Staden, que se demorou nove meses e meio entre os Tupinambs, prestes a ser devorado em ritos antropofgicos, mesmo ele, no fazia turismo32. Definitivamente, no se sabia o que era turismo at ento.

    Possivelmente, a primeira definio de turismo foi dada pelo austraco Herman Von Schullard, em 1910, definio que compreendia o turismo como uma atividade de natureza econmica que estava relacionada com o movimento de viajantes estrangeiros. A definio, precria, dizia que: a soma das operaes, principalmente de natureza econmica, que esto diretamente relacionadas com a entrada, permanncia e deslocamento de estrangeiros para dentro e para fora de um pas, cidade ou regio turismo. Em 1937, a Liga das Naes, precursora da Organizao das Naes Unidas (ONU), definiu o turismo da seguinte forma: o termo turista deve, em princpio, ser interpretado como qualquer pessoa que viaje por um perodo de 24 horas ou mais em um pas que no seja o de sua residncia. Trata-se de uma definio que permitia considerar turistas pessoas viajando por prazer, sade, razes familiares, congressos, misses, negcios, cruzeiros, mas exclua pessoas que viajavam a trabalho, estudantes e transeuntes. Posteriormente, em 1954, a Conveno sobre Facilidades Alfandegrias para o Turismo, da ONU, definiu o turista como: qualquer pessoa que venha a um pas por uma razo legtima que no seja imigrao e que permanea um mnimo de 24 horas e um mximo de seis meses no mesmo ano. Note-se que nestas definies no se fala em nacionalidade, o que permite considerar como turistas os cidados que trabalham e residem no estrangeiro e voltam para o seu pas de origem em visita. Em 1963, a Conferncia sobre Viagens Internacionais e Turismo, tambm da ONU, distinguiu os turistas dos visitantes da seguinte forma: para fins estatsticos, o termo visitante descreve qualquer pessoa visitando um pas que no seja o de sua residncia, e que no venha a exercer ocupao remunerada. Ou seja, o termo visitante inclui turistas visitantes de um pas que ficam ao menos 24 horas com o objetivo de lazer (recreao, frias, sade, estudo, religio e esporte) ou a negcios, famlia, misses e conferncias ou congressos , mas tambm os excursionistas, sendo que estes ltimos permanecem um perodo inferior a 24 horas no pas visitado, o que inclui os cruzeiros martimos33.

    Ora, por estas definies muitos dos exploradores, conquistadores, aventureiros e navegantes poderiam ser considerados turistas. Mas no disso que se trata. Como veremos, o turismo ultrapassa estas definies tcnicas para constituir-se como um fenmeno tpico da

    32 Cf. Staden, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, So Paulo EDUSP, 1974.

    33 Estas definies foram transcritas de: Wahab, Salah-Eldin Abdel. Introduo Administrao do Turismo.

    So Paulo, Pioneira, 1977, p. 23 e ss.

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    modernidade capitalista, com implicaes sociais, econmicas, polticas, ambientais, e at psicolgicas que no estavam presentes, como tal, em pocas pretritas. preciso transcender a realidade local e contempornea para penetrar no sentido que se d a uma atividade comum, at mesmo banal, hoje em dia, como viajar de frias na condio de turista, entendendo que esta atividade no existia, desta forma e neste sentido, em outras pocas e lugares. A ao social , neste sentido, circunscrita ao tempo e ao espao, e a compreenso que temos dela, o sentido que damos a ela, tambm o . Da mesma forma, as relaes sociais que se estabelecem em funo desta prtica social e atividade econmica, inscrevem um outro tipo de interao social na realidade concreta, que resulta em estruturas sociais e instituies sociais que antes simplesmente no existiam.

    As viagens daquela poca no podem ser consideradas como turismo, da forma que o conhecemos hoje. Nossa hiptese que o turismo uma atividade moderna diferente do ato de viajar em outras pocas. Compreendemos o turismo como um conceito da modernidade capitalista indissocivel do modo de vida e das relaes de produo capitalistas, nas quais est inserido como um consumo do tempo livre do trabalhador. O que antes era apenas um tempo reservado ao no-trabalho, na modernidade capitalista passa a ser um tempo de busca de atividades de lazer, entre as quais se situa o fato de deslocar-se para outros lugares e pases nas condies dadas pelo capital e sua acumulao sistmica34.

    Tempo Livre, cio e Lazer Para compreender o turismo na modernidade preciso entender o lazer

    contemporneo. Este ltimo apresenta-se como um elemento central da cultura vivida por milhes de pessoas em todo o mundo, entrelaando-se, embrenhando-se, e permanecendo intrinsecamente relacionado com a vida contempornea. O lazer um fenmeno da maior importncia na realidade concreta moderna. As modificaes na organizao do trabalho e da produo, nos diferentes contextos scio-culturais do sistema econmico hegemnico, que, na atualidade, vem a ser o capitalismo globalizado, produziram as transformaes sociais que originaram o lazer como prtica social padronizada de sociabilidade e de diferenciao, sobretudo na sua caracterstica peculiar de permanecer uma prtica social assentada, contemporaneamente, em um importante setor da economia: a indstria do lazer, da qual a indstria do turismo um subgrupo.

    34 Para uma viso alternativa a esta, ver: Mesquita, Westerlei. Crtica ao Conceito de Desenvolvimento

    Sustentvel. Caderno Virtual de Turismo, Vol. 6, n 3, 2006.

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    A principal transformao na organizao do trabalho e da produo a ser destacada o aumento do tempo livre do trabalhador nos ltimos cento e cinqenta anos. Pelos clculos de Dumazedier35, o tempo livre do trabalhador industrial elevou-se aproximadamente a mil e quinhentas horas por ano, sendo que atualmente esse tipo de trabalhador s trabalha cerca de duas mil e duzentas horas por ano. De fato, com 48 horas de trabalho semanais (30%) e 56 horas de sono (33%), ao trabalhador restam 64 horas de tempo livre na semana (37%). Alternativamente, com 35 horas de trabalho, como lei hoje em dia em alguns pases europeus, notadamente Frana e Alemanha, sobram 77 horas livres na semana, 308 no ms, ou 3.696 ao ano. Muitas dessas horas so dedicadas alimentao, higiene, e atividades domsticas variadas, mas tambm a semilazeres (atividades no impostas por obrigaes econmicas ou obrigaes domsticas) e lazeres propriamente ditos. Avalia-se, portanto, em duas horas e meia a durao mdia do lazer cotidiano do trabalhador industrial, no includos a os finais de semana e as frias anuais. Ou seja, para alm destas duas horas e meia de lazer cotidiano, os norte-americanos tm, em mdia, 16 dias de frias por ano, os britnicos 28, os alemes 35, os franceses 37 e os italianos 42 dias de frias anuais (2003)36. Enfim, cerca de 1.500 horas de lazer por ano.

    J sabemos quanto tempo livre o trabalhador tem para o seu lazer, mas falta definir exatamente o que lazer. Para isto, adotamos a definio de Dumazedier para esta atividade, a saber:

    Lazer um conjunto de ocupaes s quais o indivduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda para desenvolver sua informao ou formao desinteressada, sua participao social voluntria ou sua livre capacidade

    criadora aps livrar-se ou desembaraar-se das obrigaes profissionais, familiares e sociais (Dumazedier, 2000: 34).

    O lazer, assim entendido, uma construo social historicamente constituda. A conquista do direito ao repouso, graas organizao e luta dos trabalhadores, e a elevao do nvel de vida, por causa do desenvolvimento econmico, foram acompanhadas pelo aumento do nmero de horas livres, graas aos desenvolvimentos tecnolgicos na produo. Desta forma, surgiu um tempo novo, um tempo livre adicional. Assim, o tempo livre que se destinava a apenas repor o desgaste e a fadiga do trabalhador, submetido a jornadas extensas de trabalho, hoje est acrescentado, e se destina a atividades de evaso, recreao e diverso.

    35 Dumazedier (2000), Op. Cit., p. 19 e ss.

    36 The Economist, 7 de agosto de 2003.

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    Esse tempo ocupado por atividades cada vez mais atraentes, distraes cada vez mais numerosas, freqentes e complicadas do que h cem ou duzentos anos. Surge a indstria dos lazeres, que povoa a imaginao, o desejo e o tempo livre do pblico, dos espectadores, dos amantes dos esportes e das artes, e dos turistas.

    O desenvolvimento de associaes e grupos de praticantes de alguma modalidade esportiva, ou de aficionados por alguma arte ou atividade, a freqncia multiplicidade de atraes e divertimentos, ou a busca de informao e educao nos meios de comunicao de massa (imprensa, cinema, rdio, televiso, Internet), atraem cada vez mais ateno das pessoas segundo as suas predilees, sempre com o objetivo socialmente conveniado de usufruir seu tempo livre com atividade de lazer que lhes d prazer, segundo os standards sociais, a moda ou as possibilidades econmicas de cada um. H uma moral especfica que cerca as atitudes sociais ligadas ao lazer, valores prprios da nossa modernidade.

    O lazer afirmou-se, no somente como uma possibilidade atraente, mas, tambm, como um valor. [...Se nos sculos passados] o lazer apresentava-se, ainda, de certo modo, assimilado ociosidade. Nos dias de

    hoje, o lazer funda uma nova moral da felicidade (Dumazedier, 2000:25).

    Essa moral da felicidade dita que o homem que no sabe aproveitar seu tempo livre considerado um alienado, pois desperdia sua vida. Surge, portanto, uma moral da distrao (fun morality) para dar conta do tempo livre disponibilizado pela modernidade aos trabalhadores. A partir desta transformao na percepo social do lazer, baseada na disponibilidade social de tempo livre, estabelece-se uma srie de relaes sociais diferenciadas, e monta-se uma mirade de atividades, equipamentos, construes, e instalaes voltadas ao lazer, cuja operao demandar profissionais especializados que iro se encarregar de preencher o tempo livre das pessoas com distraes, diverses e recreaes. Desta forma, aparece uma nova compreenso do espao, do tempo e da sociabilidade, e uma nova forma de relao com a natureza e com os outros homens. Disto resultam relaes sociais de um carter novo, marcadamente diferente daquele que envolvia os viajantes, exploradores, conquistadores e navegantes.

    Anteriormente, somente a classe ociosa, no dizer de Veblen37, dispunha desse tempo livre. Segundo este autor, o aparecimento de uma classe ociosa coincide com o incio da propriedade, inclusive pela forma mais primitiva de propriedade: a propriedade da mulher pelo homem, que originou a diferenciao social entre o trabalho feminino e masculino, e a

    37 Veblen, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa. So Paulo, Nova Cultural, 1988.

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    conseqente diviso sexual do trabalho. O sentido da propriedade, como direito convencional sobre coisas alheias, consolida-se, no mundo burgus, com o contrato de casamento e com a propriedade dos meios de produo. A relao social que se estabelece no capitalismo, tanto nas relaes familiares quanto nas relaes de produo, determinada precpua e fundamentalmente pela propriedade privada. Isto , o regime de propriedade dos meios de produo, que no atual modo de produo capitalista tem carter privado, determina a forma e o tipo de relao social que se estabelece entre as pessoas, seja na produo, seja na sociedade.

    A propriedade privada concede privilgios a quem a possui. Quem proprietrio pode usufruir o tempo livre, pois no est obrigado ao trabalho compulsrio. Com o progresso da diferenciao social, o trabalho produtivo propriamente dito fica reservado s classes subalternas, enquanto que as classes mais abastadas dedicam-se ao cio, entendido como o tempo gasto em atividades no produtivas.

    Gasta-se o tempo de modo no produtivo, primeiramente, por um sentimento de indignidade do trabalho produtivo e, em segundo lugar, para

    mostrar a capacidade pecuniria de viver uma vida inativa (Veblen, 1988: 24).

    Este dispndio pode se dar de diversas formas: festas, viagens, divertimentos, cuidados com a esttica e a moda, cultivo de boas maneiras, do bom gosto, das artes ou da cultura. Um gentil homem, um fidalgo, uma Dama, um artista virtuoso, um homem culto so produtos tpicos dessa poca na qual o cio tornou-se um modo de vida aristocrtico. Porm, depois, com o desenvolvimento dos meios de comunicao, da facilidade de transportes e comunicaes, da mobilidade social na sociedade capitalista, bem como da exposio do indivduo a um pblico maior em diversos lugares pblicos, a reputao das pessoas passa a se afirmar de outra forma: por meio da exibio de bens ou da compra de servios, ou por meio da ostentao daquilo que fruto desse consumo, como a educao. Em uma palavra, o consumo conspcuo. Ou seja, o consumo ostensivo, exibicionista e saliente. Nas palavras de Veblen:

    Mas quando a diferenciao aumenta e se torna necessrio atingir um ambiente humano mais vasto, o consumo comea a superar o cio como meio

    ordinrio de decncia. [...] Na comunidade moderna h tambm uma freqncia mais assdua [...a] lugares tais como igreja, o teatro, o salo de baile, os hotis, os parques, as lojas e semelhantes. A fim de impressionar esses observadores efmeros, e a fim de manter a satisfao prpria em face

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    da observao deles, a marca da fora pecuniria da pessoa deve ser gravada

    em caracteres que mesmo correndo se possa ler. portanto evidente que a presente tendncia do desenvolvimento vai na direo de aumentar, mais que

    o cio, o consumo conspcuo (Veblen, 1988: 42-43).

    Neste sentido, o declnio no uso do cio como base de boa reputao em parte devido a um aumento da eficcia no consumo como prova de riqueza, de modo que o cio ostensivamente intil veio a ser condenado diante da possibilidade que se abria para a burguesia de ostentar sua condio privilegiada por meio do consumo de coisas suprfluas. Ora, no sculo XX, o dispndio em coisas suprfluas assumiu o carter de uso prazeroso do tempo livre por meio da prtica de atividades de lazer. A burguesia, podendo consumir, consumia seu tempo livre. Nada mais natural para a mentalidade burguesa do que gastar seu tempo consumindo e consumir seu tempo gastando.

    Entretanto, o salto qualitativo desta lgica capitalista foi dado pelo aumento do nvel de vida da classe mdia e da pequena burguesia. O poder de assimilao destas em relao aos valores burgueses e ao modo de vida capitalista determinou tambm a emulao da forma burguesa de utilizao do tempo livre. Ora, isto implica consumo de bens e servios em massa, o que propiciou o aparecimento da indstria do lazer. Na Europa, foi possvel tambm incorporar as massas trabalhadoras ao consumo e ao lazer no sentido que utilizamos aqui. Este salto qualitativo somente foi possvel por causa do aumento do nvel de vida, que permitiu s massas assumirem um papel protagonistas no mercado de lazeres, antes reservado classe ociosa. Assim, o aumento quantitativo dos consumidores dispostos a exercer atividades de lazer no seu tempo livre, graas ao aumento deste ltimo nos pases capitalistas desenvolvidos, principalmente aps a Segunda Guerra Mundial38, permitiu o desenvolvimento do que hoje conhecemos como o lazer das massas, um mercado popular de venda e compra de produtos voltados para o lazer. O que antes se restringia a um pequeno crculo de burgueses, passa a ser acessvel s massas, e este fato permitiu a diversificao e a dinamizao da indstria do lazer e do turismo.

    Note-se que estamos diante de um fenmeno com caractersticas de emulao de uma cultura superior baseada no dispndio pecunirio conspcuo (superior porque relativa s classes altas). Os crescentes contingentes de classe mdia imitam, na medida do possvel e

    38 Em 1936, em decorrncia da luta dos trabalhadores e da presso dos partidos operrios, a Organizao

    Internacional do Trabalho incorporou na pauta de suas reivindicaes a semana de quarenta horas, os contratos coletivos e as frias remuneradas; direitos que foram transformados em lei em diversos pases. Essa conquista foi acrescentada a outras posteriormente, com a adoo de mais benefcios aos trabalhadores, principalmente nos pases desenvolvidos. Wahad (1977), Op. Cit., p. 44; Dumazedier (2000), Op. Cit., p. 58.

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    de acordo com suas possibilidades, o comportamento da burguesia no consumo exibicionista e ostensivo e tambm na forma de uso do tempo livre. Neste contexto, a diferenciao entre as classes sociais se d, no mais pela natureza da atividade (cio/ trabalho produtivo), mas pelo tipo de lazer que se pode pagar. As classes sociais se diferenciam e se reconhecem pelas atividades que podem desempenhar e tambm pelos bens e servios que podem consumir, inclusive nas suas horas de lazer.

    O lazer trata-se, ento, de uma nova necessidade socialmente reconhecida como legtima, e demanda a existncia de equipamentos de lazer, o que implica na existncia de uma infra-estrutura disponibilizada para este fim. Por outro lado, a necessidade de lazer cresce com a industrializao e a urbanizao, e, quando no atendida, suscita um sentimento de empobrecimento. Ou seja, a necessidade de lazer poder determinar estados de insatisfao39. Mais ainda, a segregao social e a espoliao social adquirem uma dimenso relacionada com o uso do tempo livre: a disponibilidade de equipamentos culturais e de lazer no bairro de moradia, o tempo que se leva do trabalho at em casa, os bens e servios de lazer passveis de serem adquiridos para serem usufrudos nas horas livres, etc. so objeto de uma disputa social de carter classista.

    Para Dumazedier, o lazer, compreendido como atividade oposta s obrigaes cotidianas, compreende trs aspectos: 1) o descanso; 2) o divertimento, a recreao e o entretenimento; e 3) o desenvolvimento pessoal e coletivo (informao e educao). Trata-se de uma atividade que propicia uma ruptura das obrigaes de trabalho e das obrigaes domsticas, que, contudo, no implica em transgresso das normas, pois no h infrao s regras jurdicas e morais. Apenas recorre-se vida imaginria, a atividades fictcias, ou mudana de lugar, ritmo e estilo de vida para satisfazer a necessidade de felicidade e prazer socialmente requerida s pessoas na modernidade. Contra a alienao, monotonia e fragmentao do trabalho moderno, prope-se uma fuga por meio do divertimento e evaso para um mundo diferente, e mesmo diverso, do enfrentado todos os dias40. Tambm implica igualmente o desenvolvimento da personalidade atravs de ativao de fontes de informao e formao tradicionais ou modernas (jornais, revistas, filmes, rdio, televiso e Internet), para a aprendizagem voluntria, incrementando desta forma a cultura popular nas horas livres, em atividades de lazer. neste contexto que surge a prtica do week-end, ou a viagem de fim de semana, e tambm a viagem de frias de vero (ou de inverno) como atividades tpicas de

    39 Dumazedier (2000), Op. Cit., p. 26.

    40 Idem, p. 32-33.

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    lazer turstico, para cuja prtica se estabelecem destinos, rotas, atraes, atividades, e interesses scio-culturais convencionados como objetos de consumo reservados para este tempo livre, numa determinada faixa de preo.

    No desconhecemos que muitas vezes o tempo livre empregado em um segundo trabalho, na maioria das vezes informal, como necessidade de compensar a perda de poder aquisitivo do salrio, principalmente no Terceiro Mundo, embora ultimamente pode-se afirmar que este fenmeno tambm ocorre nos pases desenvolvidos. Mas inegvel que, quando dispe de tempo livre, e meios de pagamento, o trabalhador opta por dedicar-se a uma atividade de lazer nos moldes que descrevemos acima. Assim, se ainda persiste o homo faber, o trabalhador obrigado ao trabalho produtivo compulsrio devido necessidade de sobrevivncia, surge em compensao (no sentido literal) um homo ludens, a mscara sancionada socialmente para o trabalhador nas horas vagas. Desta forma, o lazer passa a ser, nos ltimos cento e cinqenta anos, uma atividade mais intensa e diversificada entre os membros da burguesia, e, entre os trabalhadores, passa a ser primeiro uma possibilidade, depois uma reivindicao e, finalmente, uma necessidade real, uma necessidade social41.

    Condicionamentos e Anomalias do Turismo de Massa

    A indstria do lazer e do turismo, como toda indstria, possui condicionamentos materiais e tambm anomalias, desvios das finalidades principais a que se destina. Primeiramente, podemos dizer que h condicionamentos tcnicos e sociais das atitudes de lazer. Os condicionamentos tcnicos42 so determinados pela evoluo e socializao das tecnologias disponveis. Neste sentido, cada revoluo tecnolgica dos ltimos duzentos anos possibilitou o alargamento das possibilidades de lazer e a sua popularizao. As grandes transformaes dos meios de comunicao e dos meios de transporte geraram toda uma gama de atividades de lazer que seria inimaginvel em outras pocas.

    O turismo se beneficiou tremendamente destas transformaes: rotas e destinos improvveis hoje fazem parte das possibilidades de lazer das massas a preos razoveis. Os trens e ferrovias, o automvel a as estradas de rodagem, o avio, bem como as informaes e imagens que circulam velozmente pelo mundo possibilitam interaes e trocas de experincias que fazem qualquer expedio do sculo XVI parecer uma brincadeira. Da mesma forma, o avano tecnolgico criou produtos vinculados indstria do lazer em

    41 Idem, p. 60.

    42 Idem, pp. 65-82.

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    profuso avassaladora, o que compreensvel, uma vez que sabemos que o crescimento econmico e a expanso dos mercados, no capitalismo monopolista oligopolizado, acontece por meio da diferenciao de produtos e criao das rendas de monoplio43. Por ltimo, preciso acrescentar que os veculos (mdias) que servem para a disseminao da informao, educao e lazer tambm podem servir como meio de controle social e padronizao de comportamentos, fenmeno que tambm se estende ao lazer turstico. Ou seja, o turismo tambm est sujeito a este tipo ambigidade da modernidade.

    Os condicionamentos sociais44 das atitudes e atividades de lazer, por sua vez, dizem respeito ao fato das atividades de lazer custarem dinheiro, o que implica que esto submetidas a uma hierarquia de necessidades de consumo socialmente sancionadas, sendo que as despesas de turismo, por exemplo, constam como bens e servios de luxo. Segundo Dumadezier, disso resulta tambm que as atividades de lazer so determinadas por possibilidades e hbitos de consumo, o que evidencia o seu condicionamento social, uma vez que as necessidades e possibilidades de consumo so determinadas socialmente pela produo e distribuio do produto e dos meios de produo. A concentrao da propriedade dos meios de produo e a conseqente concentrao dos frutos do progresso tcnico so criadoras de assimetrias e desigualdades sociais que se traduzem nas diferenas de consumo. Neste contexto, podemos avaliar como a elevao do nvel de vida dos trabalhadores (com aumento da renda) durante o ps-guerra, nos pases desenvolvidos, foi fundamental para a popularizao do turismo.

    Da mesma forma, a socializao de diversas tecnologias possibilitou a superao (parcial) dos determinantes scio-econmicos que agiam restringindo o consumo popular das atividades de turismo. Os progressos cientficos e tecnolgicos contriburam para baixar os preos e aumentar o nmero de consumidores, graas produo em massa de produtos de lazer. No turismo internacional, essa difuso foi possibilitada pela introduo da tecnologia do avio e, posteriormente, graas sua popularizao atravs da reorganizao da produo em funo dos vos charter, que incrementaram tremendamente o impacto dos centros geradores de turismo, democratizando o consumo de pacotes tursticos de longa distncia45. Desta forma, as frias, como produto de consumo, cresceram em qualidade, quantidade e variedade. A organizao social da produo, o aspecto organizacional da economia, contribuiu ativamente, portanto, para a disseminao do turismo internacional. Em suma, o

    43 Cf. Furtado, Celso. Transformao e Crise na Economia Mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

    44 Dumazedier (2000), Op. Cit., pp. 83-91.

    45 Wahab (1977), Op. Cit., pp. 59-64.

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    progresso tcnico, e a posterior modificao da forma de organizao da produo, atravs da introduo dos vos charter, reduziram em parte as desigualdades determinadas pela renda, fenmeno evidentemente social. Entretanto, inegvel que h um processo de unificao e padronizao dos hbitos de lazer por causa do prprio condicionamento tcnico do lazer, da sua mecanizao; porm, este fato se trata tambm de um fenmeno social.

    Outros condicionamentos sociais podem ser citados46: a) uma diferena quantitativa de renda pode determinar uma diferena qualitativa no modo de uso dos lazeres e do gasto do oramento ligado ao lazer, embora b) o modo de vida de cada classe social pode convencionar, e sancionar ou no, formas de lazer adequadas e aceitveis em funo de valores sociais; c) os aparelhos, as instalaes e os servios coletivos e individuais necessrios prtica dos lazeres so evidentemente vendidos de acordo com as leis do sistema, o que quer dizer que visam lucro e o retorno do capital investido, determinando assim os seus usos e possibilidades; d) outro condicionamento sistmico diz respeito ao tipo de atividade incentivada como lazer, que nem sempre est em funo dos mais altos e refinados interesses scio-culturais ou da preservao e conservao da natureza, e freqentemente uma atividade viabilizada e veiculada como produto comercial por meio da publicidade e da propaganda, que, como sabemos, criam a demanda na medida em que condicionam desejos e comportamentos. Devido a estes processos e condicionamentos sociais, as atividades de lazer valorizam atitudes de evaso em detrimento das ligadas reflexo47, infantilizando o consumidor, na medida em que recorrem a uma mitologia simplista, impedindo a reflexo consciente e autnoma do sujeito48. Enfim, a explorao comercial dos grandes meios de divertimento e informao proporciona a sujeio do homem ao capital tambm na esfera do lazer e do turismo, transformando o trabalhador em consumidor do seu prprio tempo livre.

    Agora estamos em condies de entender porqu no consideramos as viagens do sculo XVI como turismo. O turismo, como o compreendemos, surge em fins do sculo XIX e se consolida na metade do sculo XX, pois foi neste perodo que se transformou em indstria, em setor econmico com lgica capitalista, no somente pelo seu aspecto de racionalizao instrumental da atividade econmica, mas, principalmente, pela sua insero nos circuitos dinmicos de valorizao do capital. Somente quando o lazer burgus,

    46 Dumazedier (2000), Op. Cit., pp. 83-91

    47 Segundo Dumazedier, o contedo dos mass-media deve no s convencer como impressionar; no s

    informar como subjugar. Dumazedier (2000), Op. Cit., pp. 87-89. 48

    Para uma anlise da mitologia na sociedade burguesa contempornea ver: Barthes, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro, DIFEL, 1975.

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    diretamente derivado do cio aristocrtico, deixa de ser prerrogativa de grupos privilegiados e passa a ser economicamente acessvel s massas, somente a partir da podemos falar em turismo, enquanto atividade econmica rentvel que se insere na lgica do sistema capitalista como atividade de lazer voltada para a mercantilizao e o consumo do tempo livre dos trabalhadores, e cuja produtividade e crescimento como indstria est ligada ao deslocamento dos consumidores para outras cidades, regies ou pases, segundo valores e relaes sociais que giram em torno do consumo conspcuo de produtos e servios de lazer. O turismo est classificado como bem de consumo e a indstria do turismo faz parte da indstria de servios.

    Sobre o turismo poderia destacar-se que as atividades ligadas s frias so talvez as mais importantes dentre as atividades de lazer, devido durao e seduo que exercem49, o que explica a influncia dos diferentes tipos de frias sobre a vida cotidiana. Assim como a indstria do entretenimento, o turismo vende uma experincia ao turista: a primeira traz a experincia at o espectador, a segunda leva o turista at onde ela acontece. Ora, esta experincia resulta em emoes e pensamentos que, por sua vez, transformam a maneira de ver a prpria vida e o contexto social daquele que passou por este aprendizado. O turismo tem sobrevivido desta operao mgica desde que Thomas Cook comercializou o primeiro pacote turstico, em 1841, na rota Leicester-Loughborough (19km).

    Porm, inversamente, existe tambm a influncia dos vrios modos de vida sobre as frias, dado que o turismo de massa, como fato social, no est desvinculado dos problemas gerais da sociedade moderna. Como exemplo, podemos citar as grandes aglomeraes e problemas de infra-estrutura ocasionados pelas concentraes de turistas nos destinos tursticos, transferindo os problemas da urbanizao e da industrializao, tpicos das grandes cidades, para os locais de frias. (Alis, foi notado que a maior parte dos turistas so os habitantes das grandes cidades, dado que estes tm maior propenso a sair de frias, em comparao com a populao rural). Mas este no o nico problema, o turismo, ao revelar as contradies sociais, pode operar a deteriorao do lazer em vcio, expondo suas anomalias, como nos termos abaixo explanados.

    Oportunidades para a livre expanso individual e social, as frias transformaram-se em um fenmeno de massa. O turismo de massa provoca grandes migraes sazonais que provocam inconvenientes a este escapismo em busca de funes recreativas ou de aproximao familiar, principalmente problemas ligados ao habitat (rede hoteleira,

    49 Dumazedier (2000), Op. Cit., pp. 147-164.

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    alojamentos, acampamentos, pousadas, resorts, etc), higiene e sade pblica, infra-estrutura (fornecimento de gua e energia), ao meio ambiente, logstica (de produtos e servios de alimentao, por exemplo), e at inconvenientes relacionados com a tica e a cultura. Assim, a busca da utopia concreta de frias em locais paradisacos pode se transformar em um pesadelo real de experincias negativas e de convivncias sociais discriminatrias. As anomalias do turismo so, na verdade, as caractersticas negativas da sociedade capitalista. Freqentemente, a oportunidade de aproximao de pessoas de nacionalidades ou de condio social diversa, ou ambos, durante as frias, transforma a relao entre as classes sociais em mais um captulo da segregao social e da diferenciao de status. A pobreza e as desigualdades de todo tipo (social, racial, etc.) amplamente alastradas, principalmente nos destinos do Terceiro Mundo, podem criar situaes de conflito durante as frias na medida em que reproduzem contradies sociais existentes no capitalismo. O que pode ser o tempo da festa para alguns, representa a luta diria pela sobrevivncia para outros.

    Neste sentido, sintomtico o aumento do turismo sexual numa poca de globalizao turstica. Turistas sexuais estrangeiros afluem em quantidade para destinos tursticos no Terceiro Mundo em busca de aventuras sexuais fceis e baratas. Como fenmeno de massa, o turismo sexual apia-se em indstrias consolidadas como so as indstrias do sexo: pornografia e prostituio. Assim como nestas atividades tradicionais, as (os) profissionais engajadas (os) no turismo sexual so pessoas cuja condio econmica as (os) pressionam nesta direo, isto quando no so foradas (os) a prostiturem-se. Existe tambm uma diviso geogrfica do turismo sexual: os clientes masculinos costumam se dirigir ao Marrocos, Tunsia, Senegal, Repblica Dominicana, Panam, Suriname, Mxico e Brasil (onde existem 500 mil crianas prostitudas); e as clientes femininas preferem a ndia, Jamaica (Caribe) ou Gmbia50. Esta internacionalizao da oferta de garotas e garotos responde ao que dizamos acima: o fato de se estar em terra estrangeira torna tudo possvel, permitido e lcito. O turista-cliente sexual ordinrio passa a transgredir uma srie de proibies e vetos socialmente reconhecidos no seu local de origem, simplesmente porque est do outro lado do mundo. Entrega-se a atos impensveis, livrando-se da responsabilidade humana com o outro por meio do libi da transao comercial, do pagamento do servio, com a qual pode arcar. A comercializao destes servios extras muitas vezes est includa nos pacotes de viagem tursticos, que proliferam dentro de uma lgica mercantil; basta

    50 Franck, Michel. Rumo ao Turismo Sexual de Massa. Le Monde Diplomatique, agosto de 2006, edio

    brasileira.

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    ausncia de escrpulos. Desta forma, as anomalias do turismo se transformam simplesmente em segmentos de mercado.

    Este exemplo mostra o poder de destruio que o turismo pode ter, sendo capaz afetar os equilbrios econmico, social e ecolgico de uma regio com facilidade, o que varia conforme o ritmo do fluxo de turistas e da forma como estes consomem os produtos tursticos. Na medida em que os circuitos tursticos so montados e operados de maneira alheia populao local, que passa a fazer parte do pacote turstico como mera paisagem extica de uma terra distante, condena-se aquela regio a um apartheid social internacional51. Nesta lgica, o turista no viaja para reconhecer e reconhecer-se no outro, mas desloca-se para uma terra de ningum de forma a reforar suas idias de dominao sobre outros povos. Esta dinmica pode ter uma poderosa fora desestruturante na comunidade local52, inclusive pelo fascnio que exerce a riqueza financeira do mundo desenvolvido ocidental.

    As rotas tursticas multiplicam-se pelo mundo trazendo consigo basicamente duas ameaas constantes: em primeiro lugar, com a implantao de complexos hoteleiros para explorar as belezas naturais em culturas consumidas como exticas, a economia local, muitas vezes autnoma, passa a depender das flutuaes da demanda turstica internacional, portanto da economia de outros pases e regies; em segundo lugar, ocorre a imposio de padres culturais ocidentais, baseados, como so, em nveis de consumo na maioria das vezes inatingveis para a populao local, o que tem um efeito social e psicolgico destrutivo, principalmente nos jovens. Originrio dos ritos ancestrais53, com razes fincadas na preguia, o cio aristocrtico transformou-se em lazer burgus, que, hoje massificado, deteriora-se, desta forma, em vcio de consumidores, em funo dos aspectos negativos do turismo de massa.

    Outra anomalia que se pode citar o consumo da natureza pelo turismo de massa. O turismo sempre se beneficiou do uso econmico dos recursos naturais, ou da herana cultural de uma nao, possibilitando, desta forma, a oportunidade de introduzir estes recursos, antes inexplorados, no circuito econmico do capital. A demanda turstica cria o valor agregado que permite a explorao econmica desses recursos naturais e culturais,

    51 Segundo conceito explanado em: Llena, Claude. A Destruio pelo Turismo. Le Monde Diplomatique, julho

    de 2004, edio brasileira. 52

    Para uma anlise dos impactos negativos dos empreendimentos tursticos na populao local ver: Oliveira, Alexandra Campos. A Atividade Turstica e seus Efeitos Populao Local: um Paradoxo. Caderno Virtual de Turismo, Vol. 5, n 2, 2005. 53

    Cf. Santos Filho, Joo dos. Espelho da Histria, o Fenmeno Turstico no Percurso da Humanidade. Revista Espao Acadmico, Disponvel em: http://www.espacoacademico.com.br/, acessado em 15-01-2007.

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    tornando-os produtivos. Isto foi entendido por muito tempo como sendo benfico para a populao local e para o crescimento da economia do pas, constituindo-se num fator de descentralizao do desenvolvimento econmico54. Entretanto, o turismo pode ser predatrio e estragar os destinos tursticos, pois, muitas vezes, a explorao dos recursos naturais no se faz por meio do uso turstico de campos, montanhas, regies costeiras, lagos e rios, mas trata-se da sua destruio pelo consumo turstico desenfreado, com srias conseqncias para o ecossistema.

    Com relao aos recursos naturais dessas regies, existe o perigo da destruio da fauna e da flora (degradao do habitat de animais selvagens, estragos na vegetao, etc.), da eroso do solo, da poluio da gua, da destruio dos corais, dos stios histricos, das runas arqueolgicas, das paisagens...alm dos efeitos negativos para as populaes locais em termos de xodo rural, padres de consumo, mudanas culturais ou de comportamento. Cada uma destas modificaes pode se constituir em um desastre ambiental, cultural ou humano, o que pode causar, inclusive, a deteriorao ou a falncia da economia turstica do local. Neste sentido, desenvolveram-se metodologias para avaliar, por exemplo, a capacidade de carga de uma praia (nmero de turistas que comporta), e o impacto turstico em um determinado local (carga turstica sobre a capacidade de carga), etc55. Entretanto, os empreendimentos de turismo sustentvel, aqueles que no tm um impacto ambiental perverso sobre o stio turstico e a comunidade local, ainda no so a maioria.

    Apesar da conscientizao internacional aps a Conferncia Rio 1992, quando a Organizao Mundial do Turismo (OMT) abraou o conceito de turismo sustentvel56, para evitar a destruio das prprias atraes tursticas, ainda se cometem abusos e mal-usos dos recursos naturais tursticos. As perspectivas tambm no so alvissareiras, pois, apesar do crescimento decrescente do turismo internacional nos ltimos anos57, sabemos que o fluxo de turistas aumentou brutalmente em termos absolutos: de 437,8 milhes desembarques

    54 Na viso economicista de Sessa, pode-se encontrar argumentos a favor de uma compreenso dinmica do

    conceito de proteo da natureza, favorecendo a sua explorao em nome do crescimento econmico. O uso de conceitos econmicos pode encobrir a falta de escrpulos e a busca desenfreada por lucros. Ver: Sessa, Alberto. Tourism as a Factor of Progress in the Economy of Developing Countries. Paris, UNESCO, 1970, pp. 28-35.. 55

    Ver: Ruschmann, Doris. Turismo e Planejamento Sustentvel. Campinas, Papirus, 1997. 56

    The Economist. Survey: Travel and Tourism, 8 de Janeiro de 1998. 57

    A taxa de crescimento do turismo mundial foi de 5,5% entre 1975 e 1983, de 4,6% entre 1990 e 2000, e de 2,7% entre 2000 e 2004 (este ltimo perodo foi muito influenciado pelos ataques terroristas de 11/09/2001, efeito que tende a desaparecer). Rushmann (1977), Op. Cit., 166; Organizao Mundial do Turismo (OMT). Tourism Market Trends. World Tourism Organization (UNWTO), 2005.

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    internacionais em 1990, passou-se para 766 milhes desembarques em todo o mundo em 2004 (aumento de 74,9%!)58, o que significa que os problemas tambm aumentaram de tamanho.

    Caractersticas do Mercado de Turismo Mundial

    O turismo a maior indstria mundial. Trata-se de uma das indstrias mais dinmicas da economia: nas ltimas trs dcadas o nmero de desembarques internacionais de turistas (arrivals) cresceu cinco vezes, at chegar a 808 milhes em 200559. As receitas com o turismo internacional ultrapassam US$ 681,5 bilhes de dlares (2005), sem incluir as passagens de avio dos pacotes tursticos. O turismo internacional gera, portanto, mais de dois bilhes de dlares por dia em todo o mundo. Alm disso, tem um efeito multiplicador na economia que reconhecidamente maior do que o investimento e o consumo em outros setores. A importncia deste setor da economia incontestvel. Avalia-se que o valor econmico total dos bens e servios relacionados com o turismo seja cerca de US$ 3.153,3 bilhes (1996), isto , 10,6% do PIB global. Alm disso, uma indstria intensiva no fator trabalho, o que a torna ainda mais importante. As atividades tursticas geram muitos empregos: considera-se que cada oito turistas criem um emprego permanente. Em 1996, calculava-se que um em cada dez empregos fosse decorrente de atividades tursticas, ou 254,9 milhes de pessoas no mundo todo trabalhando neste setor. Em 2006, estimava-se em 385 milhes o contingente de trabalhadores em turismo60.

    Em 1996, a demanda e a oferta do turismo estavam assim valorizadas pela revista The Economist61: pelo lado da demanda: consumo: US$ 2.063 bilhes; investimentos de capital: US$ 766 bilhes; gastos do governo: US$ 304 bilhes; comrcio exterior: US$ 20,3 bilhes; e gastos dos negcios e das empresas: US$ 419,6 bilhes. Pelo lado da oferta: salrios: US$ 1.704,1 bilhes; emprego: 254,9 milhes de pessoas; e impostos: US$ 653,3 bilhes. Em 1996, a mdia mundial gasta pelos turistas foi de US$ 559 dlares por cabea, e esperava-se que este valor crescesse 10% a cada cinco anos. No mesmo ano, foram feitas 596 milhes de viagens ao exterior, 77% a mais do que dez anos antes. Em 2004, aconteceram 764

    58 OMT (2005), Op. Cit.

    59 Organizao Mundial do Turismo (OMT). Barmetro Internacional del Turismo Mundial. Vol 4, n 2, junho

    de 2006. 60

    Os dados desta seo foram extrados da revista The Economist, nas vrias edies disponveis em http://www.economist.com. 61

    The Economist (08-01-1998), Op. Cit.

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    milhes de desembarques (arrivals), em 2005 foram 808 milhes, e espera-se que, em 2010 sejam 937 milhes62.

    A demanda por turismo determinada principalmente pela riqueza e pela renda das pessoas e viabilizada pela tecnologia, principalmente em transporte, e pelos investimentos em infra-estrutura nos destinos tursticos. Na verdade, a tecnologia que sustenta o turismo de massa internacional o avio a jato. O barateamento dos custos deste transporte permitiu o aumento do nmero de consumidores. Entretanto, o turismo vulnervel a choques externos, o que quer dizer que os destinos tursticos esto sujeitos a risco, principalmente em funo das flutuaes da demanda. O fator renda muito importante, pois determinante do consumo de produtos tursticos. Se a renda afetada em um pas gerador de turismo, os destinos tursticos sofrem perdas.

    Entretanto, na medida em que uma quantidade grande de pessoas aumenta o contingente social conhecido como classe mdia, as receitas do turismo tendem a aumentar. O maior volume de dinheiro em circulao no mercado proporciona a estabilidade dos empreendimentos, principalmente daqueles que no so essenciais e necessrios para as famlias, como o caso do turismo. Constituda de assalariados mais bem pagos ou pequenos empreendedores, a classe mdia garante a dinamizao do setor turstico em uma economia de mercado.

    A OCDE63 estimou que, com a economia crescendo 6% ao ano, em mdia, somente na China, ndia e Indonsia cerca de 700 milhes de pessoas seriam incorporadas classe mdia (renda per capita equivalente da Espanha) no curto perodo de 1994 a 2010. O mesmo fenmeno ocorre em cada uma das economias ditas emergentes. No Brasil, em 2005, num universo de 176 milhes de pessoas, existiam 22 milhes (31,9%) de trabalhadores ocupados64 que ganhavam at um salrio mnimo; 20,5 milhes (29,8%) que recebiam entre um e dois salrios mnimos; e 26,4 milhes de trabalhadores (38,3%) que auferiam mais de dois salrios mnimos. Considerava-se ento que, entre adultos e crianas, a classe mdia brasileira era constituda por cerca de 57,8 milhes de pessoas, ou 15,4 milhes de famlias (31,7% do total de famlias)65. Porm, apenas uma reduzida percentagem desse contingente

    62 OMT (2005), Op. Cit.

    63 Fonte: The Economist, 1 de Outubro de 1994

    64 Como trabalhadores ocupados so considerados os formais e os informais.

    65 Guerra, Alexandre, Pochmann, Mrcio, Amorim, Ricardo e Silva, Ronnie. Atlas da Nova Estratificao Social

    no Brasil. So Paulo, Cortez, 2005.

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    tem condies econmicas de embarcar para destinos internacionais; embora a parcela que pode arcar com uma viagem de avio esteja crescendo, tanto no Brasil como no mundo.

    inegvel que as viagens areas abriram o mundo para o turismo: em 1970, os avies transportavam 307 milhes de passageiros; 25 anos depois este nmero era de 1,15 bilho66. Isto aconteceu porque o transporte areo se tornou mais barato e provou ser eficiente. Hoje em dia (2005)67, cerca de 45% das viagens de turismo so realizadas por meio areo, e outras 43% por meio terrestre. Os meios martimo (7%) e ferrovirio (5%) so menos utilizados. Os destinos tursticos tambm se modernizaram: formaram-se cadeias de hotis, em lugar dos antigos empreendimentos independentes, e padronizou-se o tipo de hotel, desde a decorao ao servio, tendo como paradigma a rede hoteleira norte-americana. Os cruzeiros, por sua vez, cresceram em ritmo acelerado (a maioria para o Caribe), sendo que eles no so um modo de viajar pelo oceano, eles so o destino dos turistas, que l praticam todo tipo de atividades de lazer e at fazem compras. Igualmente, modernizaram-se as empresas que operam os pacotes tursticos: hoje em dia possvel fazer reservas pelo telefone e pela Internet, sendo que disto resultam informaes que so usadas para marketing das empresas hoteleiras e areas. Conformou-se assim a moderna indstria do turismo.

    A Europa o destino mais procurado pelos turistas, representa 55,6% do mercado turstico mundial, ou 433,93 milhes dos 766 milhes de desembarques internacionais mundiais (2004). Entretanto 88,2% dos turistas que vo para a Europa procedem do mesmo continente. A Frana recebeu 52,5 milhes de turistas em 1990, nmero que chegou a 75,1 milhes em 2004, ou o primeiro lugar mundial absoluto em nmero de desembarques. A Espanha teve 34,0 milhes de desembarques internacionais em 1990, e 52,4 milhes em 2004. importante destacar o crescimento do turismo na Espanha, que ultrapassou os EUA em nmero de desembarques em 2000, e ultrapassou a Frana em receita proveniente do turismo em 2002. Agora a Espanha ostenta o segundo lugar mundial em ambos indicadores. Na Itlia, o total de desembarques foi de 26,6 milhes em 1990, e 37,0 milhes em 2004. No Reino Unido, 18,0 milhes em 1990, e 27,7 milhes de turistas em 2004. Tambm em 2004, a Alemanha teve 20,1 milhes de desembarques internacionais, a Federao Russa 19,8 milhes, a ustria 19,3 milhes, a Turquia 16,8 milhes, a Ucrnia 15,6 milhes, a Polnia 14,2 milhes, a Grcia 13,2 milhes, a Hungria 12,2 milhes, Portugal 11,6 milhes de turistas e assim por diante.

    66 The Economist (08-01-1998), Op. Cit.

    67 Organizao Mundial do Turismo (OMT). Tourism Highlights 2006. Madri, UNWTO, 2006b.

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    O Norte Europeu (Escandinvia, Islndia e Reino Unido) tem 11,4% do turismo regional europeu; a Europa Ocidental cobre 32,8% do turismo europeu; a Europa do Leste e Central (incluindo a Federao Russa) responde por 20,4%; e o Sul da Europa e Mediterrneo detm 35,3% do turismo do continente, totalizando 100%. O crescimento do turismo internacional na Europa foi de 4,1% entre 1990 e 2000, e de 1,8% entre 2000 e 2004, resultado, como j ressaltamos, muito influenciado pelo terrorismo internacional. Abaixo, podemos verificar que os pases europeus lideram no setor turstico. Se somados, os pases da Unio Europia so absolutos na liderana do ranking de desembarques internacionais de turistas. Observamos tambm que o Brasil tem apenas 0,6% do mercado de turismo internacional, com 3,01 desembarques internacionais por cada grupo de 100 brasileiros, totalizando 5,3 milhes de desembarques ao ano.

    MAIORES DESTINOS TURSTICOS INTERNACIONAIS, 2005 (+Brasil)

    Pas Desembarques Internacionais, 2005 (milhes)

    Porcentagem do mercado,

    desembarques (%)

    Populao, 2004

    (milhes)

    Desembarques por 100 pessoas da

    populao

    Frana 76,0 9,4 60 126,67

    Espanha 55,5 6,8 40 138,75

    Estados Unidos 49,4 6,1 293 16,86

    China 46,8 5,7 1.299 3,60

    Itlia 36,5 4,5 58 62,93

    Reino Unido 30,0 3,7 60 50,00

    Mxico 21,9 2,7 105 20,86

    Alemanha 21,5 2,6 82 26,22

    Turquia 20,3 2,5 65 31,23

    Brasil 5,3 0,6 176 3,01

    Mundo 808,0 100,0 6.377 12,67

    Fonte: Organizao Mundial do Turismo (OMT). Tourism Market Trends, 2005; Barmetro Internacional del Turismo Mundial, 2006.

    Em vrios pases, a indstria do turismo uma indstria forte e consolidada. Entretanto, a maior receita com o turismo realizada pelos Estados Unidos, pois l se arrecada nada menos do que US$ 74,48 bilhes anuais com o setor turstico (2004). Isto muito mais do que os outros pases, inclusive a Frana. Apesar de ter mais desembarques internacionais, a Frana fica atrs em temos de receita, pois recolheu somente US$ 40,84 bilhes naquele ano. A Espanha arrecadou um pouco mais: US$ 45,24 bilhes. Curioso notar que estes dois pases recebem mais turistas por ano do que a sua prpria populao de

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    habitantes, como vemos acima. Na Itlia, a renda decorrente do turismo foi de US$ 35,65 bilhes. No Reino Unido e na Alemanha em torno de US$ 27 bilhes cada um.

    No total, a Europa inteira recebeu US$ 326,69 bilhes anuais com o setor turstico em 2004. A sia recebeu US$ 127,76 bilhes, sendo que a China recebeu US$ 25,73 bilhes, o Japo US$ 11,26 bilhes, a Tailndia US$ 10,03 bilhes, e a Austrlia US$ 13,64 bilhes. A ndia recebeu somente US$ 6,12 bilhes com o turismo, apesar do seu imenso potencial turstico. A Amrica do Sul recebeu apenas US$ 10,5 bilhes com o turismo internacional em 2004. Muito pouco, se comparado com a Amrica do Norte (US$ 98,0 bilhes), que tem trs pases competitivos no mercado turstico mundial. No Brasil, a renda recebida com a atividade turstica est muito abaixo do nosso potencial: apenas US$ 3,22 bilhes em 200468. A indstria brasileira do turismo incipiente ainda.

    As Amricas tm 21,3% do mercado de turismo segundo as receitas geradas por esta atividade econmica, a frica somente 3,1%, a sia tem 20,3%, e a Europa, lder absoluta do mercado turstico, angaria 50,9% do total das receitas com turismo. Nas Amricas, a maior parte do mercado de turismo relativa aos EUA e, em menor escala, ao Mxico. Na sia, o crescimento do setor acontece, em grande parte, devido dinmica da economia chinesa. Se notarmos que a China lidera na sia, e os EUA nas Amricas, veremos que estes pases, somados Europa Ocidental (apenas os paises ocidentais e no toda a Europa), so naes que respondem por mais de 266 milhes de desembarques, ou 32,9% do turismo mundial, o que denota uma concentrao da indstria do turismo nestes pases de economia possante. A concentrao era ainda maior em 1970: apenas 12 pases contribuam com 80 milhes de desembarques, ou 50% do movimento turstico mundial69. Ou seja, revela-se uma concentrao espacial assimtrica da indstria do turismo segundo o tamanho da economia e o grau de desenvolvimento dos paises. A oportunidade que o turismo apresenta para descentralizar o desenvolvimento econmico, muitas vezes no se traduz numa concretizao dessa promessa.

    O outro lado disso o fato de que o gasto em turismo tambm est concentrado nos paises desenvolvidos: os maiores gastadores, os que mais viajam pelo mundo, so os residentes em pases como a Alemanha, EUA, Reino Unido, Japo e Frana. Para se ter uma idia, os alemes, que esto no topo desta lista, gastaram em turismo cerca de US$ 72,7 bilhes de dlares em 2005, os norte-americanos US$ 69,2 bilhes, os ingleses US$ 59,6

    68 Todos estes dados foram extrados de: OMT (2005), Op. Cit.

    69 Wahab (1977), Op. Cit., 37.

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    bilhes, os japoneses US$ 37,5 bilhes, e os franceses US$ 31,2 bilhes. Enquanto que os chineses despenderam US$ 21,8 bilhes (contra apenas US$ 3,7 bilhes em 1995, o que um indicativo do crescimento acelerado de sua economia), os mexicanos desembolsaram US$ 7,6 bilhes, os indianos US$ 5,8 bilhes, os argentinos US$ 2,8 bilhes (contra US$ 4,4 bilhes em 2000, decrscimo que revela um dos aspectos da crise econmica da Argentina de 2001-2002), e, finalmente, os brasileiros, que desembolsaram US$ 4,7 bilhes com turismo internacional em 2006 (contra US$ 3,4 bilhes em 1995)70.

    RECEITAS E GASTOS COM TURISMO INTERNACIONAL, 2005

    Pas Populao

    2004 (milhes)

    Receita com Turismo

    Internacional 2005

    (US$ Bilhes)

    Porcentagem do mercado em receitas

    (%)

    Receita com Turismo

    per capita (US$)

    Gasto com Turismo

    Internacional 2005

    (US$ Bilhes)

    Gasto com Turismo

    per capita (US$)

    Estados Unidos 293 81,7 11,9 278 69,2 236

    Espanha 40 47,9 7,0 1.197 15,1 377

    Frana 60 42,3 6,2 705 31,2 520

    Itlia 58 35,4 5,1 610 22,4 386

    Reino Unido 60 30,4 4,4 506 59,6 993

    China 1.299 29,3 4,3 22 21,8 16

    Alemanha 82 29,2 4,2 356 72,7 886

    Japo 127 11,2 1,6 88 37,5 295

    Mxico 105 10,7 1,5 101 7,6 72

    Brasil 176 3,2 0,5 18 4,7 26

    Mundo 6.377 681,5 100,0 106 633,0 99 Fonte: Organizao Mundial do Turismo (OMT). Tourism Market Trends, 2005; Barmetro Internacional del Turismo Mundial, 2006.

    Como vemos na tabela acima, apesar de o conjunto da populao alem ter o maior gasto com o turismo internacional, so os ingleses os que tm o maior gasto per capita

    em turismo fora do seu pas. Observamos tambm a liderana dos EUA em termos de receita com o turismo internacional. Entretanto, apesar de ser este um pas que consome no exterior quase o valor gasto pela Alemanha, o seu gasto per capita em viagens internacionais

    pequeno devido sua grande populao. O mesmo ocorre com a China, que gasta menos ainda e tem uma populao ainda maior, fato que a deixa com uma receita per capita de somente 22 dlares e um gasto per capita de apenas 15 dlares. Na Amrica do Sul, o turismo internacional gera receitas pequenas se comparadas com a Europa e a Amrica do Norte. A receita brasileira com turismo de apenas 18 dlares per capita, ou 66,5 vezes menor do que a receita da Espanha, que de US$ 1.197. Por outro lado, os gastos dos brasileiros com o

    70 OMT (2006), Op. Cit.

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    turismo internacional so de 26,7 dlares per capita, o que nos deixa deficitrios na balana de turismo. O maior supervit na balana de turismo o dos espanhis, que recebem dos visitantes muito mais do que gastam no exterior.

    Nos pases desenvolvidos h um bom aproveitamento turstico das riquezas naturais e da herana cultural. Explorando este segundo filo, o Reino Unido71, por exemplo, o sexto destino mais popular do mundo. Neste pas, os 125.000 negcios envolvidos na indstria do turismo (na sua maioria pequenas empresas) empregam 1,75 milho de pessoas, mais do que qualquer outro setor da economia. O turismo responsvel por 20% dos empregos criados naquele pas. Este setor gerou mais de US$ 79,5 bilhes em 1998, que foram levados pelos 25 milhes de turistas estrangeiros e internos. No total, o valor gerado pelo turismo soma mais de US$ 700 bilhes em toda a dcada de 1990. Entretanto, o nmero de turistas britnicos tirando frias em seu prprio pas caiu de 27 milhes, em 1975, para 16,5 milhes, em 1996. Neste perodo, o consumo dos turistas britnicos no Reino Unido decresceu 15%, enquanto que o consumo dos turistas estrangeiros naquele pas aumentou 25%. Parte disso se deve ao fato de que hoje em dia cerca de um milho de britnicos sai ao estrangeiro para passar suas frias. Para incentivar o turismo no pas, o Reino Unido possui um organismo governamental de foment