turing - um filósofo da natureza - andrew hodges

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Alan Turing - um Filósofo da Natureza - Andrew Hodges

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    A N D R E W H O D G E S

    T u r i n g

  • TURING

    UM FILSOFO DA NATUREZA

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Jos Carlos Souza Trindade

    Diretor Presidente Jos Castilho Marques Neto

    Assessor Editorial Jzio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial Acadmico Antonio Celso Wagner Zanin

    Antonio de Pdua Pithon Cyrino Benedito Antunes

    Carlos Erivany Fantinati Isabel Maria F. R. Loureiro Lgia M. Vettorato Trevisan

    Maria Sueli Parreira de Arruda Raul Borges Guimares

    Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari

    Editora Executiva Christine Rhrig

  • Andrew Hodges

    T U R IN GUM FILSOFO DA NATUREZA

    TraduoMarcos Barbosa de Oliveira

    ito m

  • 1997 Andrew Hodges

    Ttulo original em ingls: Turing. A Natural Philosopher publicado em 1997 pela

    Phoenix, uma diviso da Orion Publishing Group Ltd.

    1999 da traduo brasileira:Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108 01001-900-S o Paulo-SP

    Tel.: (Oxxll) 232-7171 Fax: (Oxxll) 232-7172

    Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Hodges, AndrewTuring: um filsofo da natureza / Andrew Hodges;

    traduo Marcos Barbosa de Oliveira. - So Paulo: Editora UNESP, 2001. - (Coleo grandes filsofos)

    Ttulo original: Turing.Bibliografia.ISBN 85-7139-348-6

    1. Inteligncia artificial 2. Matemticos - Biografia 3. Turing, Alan Mathison, 1912-1954 I. Ttulo. II. Srie.

    01-1570 CDD-111.85

    ndice para catlogo sistemtico: 1. Esttica: Filosofia 111.85

    Editora afiliada:

    Asociaein de Kditoriales Universitrias de Amrica l-ailna y el Caribe

    Associao Brasileira de Bdlforas Universitrias

    V

  • AGRADEC IM ENTO S

    Sou grato pela permisso especfica para transcrever longos trechos dos escritos de Alan Turing. As citaes provenientes de textos inditos foram generosamente autorizadas pelos responsveis por seu esplio. As passagens dos artigos de 1936 e 1939 aparecem por cortesia da London Mathemati- cal Society. Os direitos autorais sobre os relatrios do National Physical Laboratory de 1946 e 1948 so propriedade da Coroa e a permisso para reproduzi-los foi concedida pelo controlador do Her Majestys Stationery Office. A Oxford University Press autorizou as citaes do artigo publicado em 1950 na revista Mind e a Harvester-Wheatsheaf, as do dilogo entre Turing e Wittgenstein.

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  • SU M R IO

    Introduo 9

    A natureza do mundo de Turing 10

    A mquina de Turing e o Entscheidungsproblem 13

    A tese de Church e a de Turing 21

    A mquina universal de Turing 23

    Pensando o incomputvel 25

    Turing e Wittgenstein 28

    O triunfo do computador 30

    Treinando o pensamento 38

    O teste de Turing 40

    O incomputvel revisitado 54

    O agravamento da crise 6 1

    Obras reunidas 64

    Pontos de partida para outras leituras 65

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  • IN TRO D UO

    Alan Turing ousou perguntar se uma mquina pode pensar. Suas contribuies para entender e responder a esta e outras questes desafiam classificaes convencionais. No final do sculo XX, o conceito de mquina de Turing, criado em 1936, figura no apenas na matemtica e na cincia da computao, mas tambm na cincia cognitiva e na biologia terica. Seu artigo de 1950, Computing machinery and intelligence, no qual descrito o assim chamando teste de Turing, constitui a pedra angular da teoria da inteligncia artificial. Entre uma coisa e outra, Turing desempenhou um papel decisivo no resultado da Segunda Guerra Mundial e produziu sozinho um plano muito avanado para a construo e o uso de um computador eletrnico. Turing pensou e viveu uma gerao antes de seu tempo; contudo, o que descreve melhor as caractersticas de seu pensamento que ultrapassaram os limites da dcada de 40 a antiquada expresso filosofia da natureza.

    Em Alan Turing, a imerso na Natureza e o ataque a ela constituam uma unidade; as divises entre matemtica, cincia, tecnologia e filosofia no seu trabalho tendem a obscure- cer suas idias. Ele no foi um autor prolfico; muitos escritos s foram publicados postumamente; alguns permaneceram secretos at a dcada de 90. Comunicaes pessoais lanam um pouco de luz sobre o desenvolvimento de suas idias, um tpico a respeito do qual ele costumava silenciar. Veremos, por exemplo, como chegou lgica e computao a partir de uma fascinao juvenil pela descrio fsica da mente. Porm, temos apenas algumas pistas sobre a formao de suas convices no ambiente sigiloso da criptografia no tempo da

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  • guerra, e sugestes de novas idias perdem-se no drama de sua morte misteriosa.

    A natureza do mundo de Turing

    Alan Mathison Turing nasceu em Londres no dia 23 de junho de 1912 e desde cedo sua personalidade se revelou deslocada nas escolas de classe mdia alta freqentadas pelos filhos de funcionrios graduados do Servio Civil Indiano. A conformidade com os ditames de classe significava obedincia incondicional aos rituais da escola preparatria e da public school britnicas. Porm, o livro Natural Wonders Every Child Should Know [Maravilhas da natureza que toda criana deve conhecer] abriu-lhe os olhos para o conceito de explicao cientfica e, a partir da, a Natureza, em oposio s convenes humanas, passou a dominar sua ateno, como muitos boletins desfavorveis demonstraram. O dever, a hierarquia, amos e criados, regras e jogos desempenhariam mais tarde um papel notvel na ilustrao de suas idias; na escola, contudo, Turing demonstrou mais perplexidade e incompetncia do que rebeldia ante as exigncias do Imprio Britnico, ignorando-as tanto quanto possvel para se dedicar s suas prprias prioridades. Em 1925, escreveu sua me: Estou organizando uma coleo de experimentos na ordem em que pretendo realiz-los. Pareo estar sempre querendo fazer coisas a partir daquilo que mais comum na natureza e com o mnimo de desperdcio de energia.1

    Sua qumica experimental no foi bem recebida assim como sua caligrafia e seus mtodos pouco convencionais em matemtica. Foi o ltimo da classe em ingls. O diretor observou: Se for para permanecer na Public School, seu objetivo deve ser o de tomar-se educado. Se quiser ser apenas um Especia

    1 Carta de Turing sua me, Sra. E. Sara Turing, atualmente no Arquivo Turing do Kings College, Cambridge.

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  • lista Cientfico, est perdendo tempo numa Public School, e este juzo a respeito das prioridades da classe dominante no estava longe da verdade. Turing quase foi impedido de prestar os exames equivalentes ao GCSE.* Depois disso, encontrou seu nvel de pensamento na exposio do prprio Einstein a respeito da relatividade e nas concepes de Eddington sobre a mecnica quntica em The Nature o f the Physical World. Estes, porm, eram estudos privados, e ele poderia jamais ter sentido a necessidade de se comunicar no fosse por causa de uma histria incrivelmente romntica.

    A natureza humana o chamou vida, porm tratava-se de sua prpria natureza homossexual, trazendo revelao e trauma em pores iguais. Ele se apaixonou, sem ser correspondido, por Christopher Morcom, um jovem muito talentoso, e seu anseio por amizade o levou a comunicar-se. Um breve florescimento de colaborao cientfica feneceu em virtude da morte repentina de Morcom em fevereiro de 1930. A correspondncia de Turing com a me do rapaz lana luz sobre o desenvolvimento de suas idias aps o evento. Ele procurava acreditar que o falecido ainda podia existir em esprito e reconciliar tal crena com a cincia. Com este objetivo, escreveu um ensaio para a Sra. Morcom, provavelmente em 1932. Trata-se de um registro privado de um rapaz de vinte anos e deve ser lido como um documento sobre sua formao, no como uma tese sustentada em pblico; no obstante, constitui uma chave para o desenvolvimento posterior de Turing.

    Natureza do Esprito

    Supunha-se na Cincia que se tudo a respeito do Universo fosse conhecido em qualquer momento particular, ento poderiamos prever como ele seria para todo o futuro... A cincia moderna, contudo, chegou concluso de que quando lidamos com tomos

    * General Certificate o f Secondary Education: um exame pblico para estudantes na faixa de dezesseis anos de idade. (N. T.)

  • e eltrons somos completamente incapazes de conhecer seu estado preciso, uma vez que nossos instrumentos so eles prprios feitos de tomos e eltrons. A concepo de um conhecimento do estado preciso do universo necessariamente cai por terra para pequenas dimenses. Isto significa que cai por terra tambm a teoria segundo a qual, assim como os eclipses, todas as nossas aes so predestinadas. Temos uma vontade capaz de determinar a ao dos tomos provavelmente numa pequena poro do crebro ou possivelmente em sua totalidade. O resto do corpo age de forma a ampliar isto...2

    Ao enunciar o paradoxo clssico do determinismo fsico e livre-arbtrio, Turing sofre a influncia da afirmao de Ed- dington de que a fsica quntica (a cincia mais moderna) deixa espao para a vontade humana. Eddington havia perguntado como poderia esta coleo de tomos comuns ser uma mquina pensante? e Turing tenta encontrar uma resposta. O texto vai alm ao abraar uma crena numa forma de esprito no constrangida pelo corpo: Quando o corpo morre o mecanismo do corpo constrangendo o esprito desaparece e o esprito encontra um novo corpo mais cedo ou mais tarde, talvez imediatamente. H cartas mostrando que ele manteve estas idias pelo menos at 1933.

    Turing teve muito mais sucesso no curso de graduao do que na escola, e o Kings College lhe proporcionou um ambiente protetor, simptico homossexualidade e a opinies pouco convencionais. Ele no pertencia, contudo, a nenhum dos crculos sociais de elite nem a um grupo poltico. No tocante poltica, respondeu brevemente ao movimento de 1933, contrrio guerra, mas no ao Partido Comunista, como algumas pessoas de quem estava bem prximo. Turing tambm no compartilhava do pacifismo de seu primeiro amante, seu colega estudante de matemtica James Atkins.

    2 Nature o f spirit, o manuscrito sem data de Turing, encontra-se no arquivo do Kings College. O texto completo citado em Alan Turing: the Enigma (ver adiante).

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  • De maneira semelhante, Turing encontrou um lar na cultura matemtica de Cambridge, sem contudo pertencer inteiramente a ela. A separao entre matemtica pura e aplicada era, na poca, e continua sendo, muito forte, mas Turing a ignorava e nunca demonstrou paroquialismo matemtico algum. Se algo pode ser dito que a atitude adotada por ele era a de um Russell, acreditando que o domnio de uma matria to difcil d o direito de invadir outras. Depois de ter acertado o passo, Turing no demonstrou insegurana intelectual alguma: em maro de 1933, adquiriu o livro Introduction to Mathematical Philosophy, de Russell, e, a I o de dezembro do mesmo ano, o filsofo R. B. Braithwaite registrou nas atas do Moral Science Club: A. M. Turing apresentou uma palestra sobre 'Matemtica e lgica. Sugeriu que uma concepo puramente logstica da matemtica inadequada e que as proposies matemticas so passveis de uma srie de interpretaes, sendo a logstica apenas uma delas. Ao mesmo tempo, estava estudando o livro Grudlagen den Quantenmechanik, de von Neumann, de 1932. Assim, possvel que as idias de Edding- ton a respeito da mecnica quntica tenham encorajado a mudana de interesse em Turing na direo dos fundamentos lgicos. E foi na lgica que ele fez seu nome.

    A mquina de Turing e o Entscheidungsproblem

    Quando, na primavera de 1935, Turing assistiu s conferncias avanadas sobre Fundamentos da Matemtica dadas pelo topologista M. H. A. Newman, ele no estava pensando em sua carreira. A lgica matemtica era uma rea diminuta, abstrusa, tecnicamente difcil, carente de aplicaes e sub- representada no currculo de graduao. O trabalho de Turing foi um ato de amor.

    As conferncias de Newman conduziram Turing ao ponto alcanado por Gdel em seu agora famoso teorema da Incom-

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  • pletude, de 1931. O problema de fundo como podemos captar a verdade de um enunciado sobre um nmero infinito de casos, como de que para todo a, b, c, (a+b) x c = a x c + b x c, ou de que no existe um nmero primo maior do que todos os outros. Uma resposta aparentemente razovel poderia ser que enunciados como estes de fato no envolvem infini- dades de casos, sendo apenas sentenas finitas incluindo palavras tais como todo, deduzidas por um nmero finito de regras da lgica dedutiva. Os lgicos matemticos do fim do sculo XIX haviam tentado explicitar este argumento, porm Bertrand Russell, mostrando como descries finitas tais como conjunto de todos os conjuntos poderam ser auto- contraditrias, tinha descoberto as dificuldades inevitveis que tm origem em termos auto-referentes. A seguir, o matemtico David Hilbert estabeleceu exigncias mais precisas para qualquer esquema finito nos termos famosos: consistncia, completude e decidibilidade. Em 1931, Gdel demonstrou que a consistncia e a completude no podiam ser ambas alcanadas: havia enunciados sobre nmeros, indubitavelmente verdadeiros, que no podiam ser provados a partir de axiomas finitos atravs de um nmero finito de regras. A prova de Gdel se assentava sobre a idia de que enunciados sobre nmeros podiam ser codificados como nmeros e na construo de um enunciado auto-referente que liquidava as esperanas de Hilbert.

    O trabalho de Gdel deixou pendente a questo hilbertia- na da decidibilidade, o Entscheidungsproblem, ou seja, se existe um mtodo definido que, pelo menos em princpio, pode ser aplicado a uma dada proposio para decidir se ela pode ser provada. Num clculo restrito, tal mtodo pode de fato existir: por exemplo, a tcnica da tabela de verdade para decidir se uma frmula da lgica proposicional elementar uma ta- utologia. Poderia existir um procedimento de deciso como este para proposies matemticas? Tal questo havia sobrevivido anlise de Gdel porque sua soluo requeria uma definio precisa e convincente de mtodo. Formular

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  • definies precisas uma fonte de satisfao na matemtica pura, mas neste caso algo mais que preciso era necessrio - teria de ser algo inexpugnvel em sua generalidade, que no viesse a ser superado por uma classe mais poderosa de mtodo. Deveria haver, na verdade, um tanto de anlise filosfica alm da matemtica.

    Trabalhando sozinho durante um ano, at abril de 1936, Turing atingiu este objetivo; sua idia, agora conhecida como mquina de Turing, foi publicada bem no fim de 1936 no artigo On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem.3 caracterstico de Turing que ele tenha refrescado a questo de Hilbert formulando-a em termos no de provas mas da computao de nmeros. A reformulao pretendia claramente ter encontrado uma idia central para a matemtica. Como o ttulo dizia, o Entscheidungsproblem era apenas uma aplicao da nova idia, a de computabilidade. No foram preservados rascunhos ou correspondncia relativos sua formao nem relato algum posterior de seu percurso intelectual, apenas a histria contada mais tarde a seu discpulo Robin Gandy de que a idia principal lhe teria ocorrido quando devaneava nos campos de Grantchester. Newman viu o trabalho apenas quando ele estava completamente pronto.

    O artigo comea com uma linha de pensamento j mencionada: como especificar o infinito em termos finitos? Em particular, como especificar a seqncia infinita de dgitos em um nmero real, tal como 7t = 3,141592653...? Que significa dizer que h um mtodo definido para calcular tal nmero? A resposta de Turing consiste em definir o conceito da mquina que leva seu nome:

    3 A. M. Turing, "On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem, Proc. Lond. Math. Soc. ser. 2, 42 (1936-7) p.230-65; correo ibidem 43 (1937) p.544-6. O artigo ainda no est disponvel nas Collected Works, mas reproduzido em Martin Davis (Org.), The Undecidable (Raven Press: Nova York, 1965).

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  • Podemos comparar um homem no processo de computar um nmero real com uma mquina capaz apenas de um nmero finito de condies ... as quais sero denominadas configuraes m. A mquina dispe de uma fita" (o anlogo do papel) que a atravessa, dividida em sees (chamadas "quadrados), sendo cada uma capaz de portar um smbolo. Em cada momento, h apenas um quadrado que est na mquina. O smbolo no quadrado examinado [scanned] pode ser chamado smbolo examinado. O "smbolo examinado o nico do qual a mquina est, por assim dizer, diretamente consciente...

    Turing, a seguir, especifica precisamente o repertrio de aes disponvel a tal mquina imaginada. A ao totalmente determinada pela configurao" em que ela se encontra e pelo smbolo que ela est no momento examinando. tal determinao completa que faz dela uma mquina. A ao limita-se ao seguinte: a cada passo, ela (1) ou apaga o smbolo ou imprime um smbolo especificado; (2) move-se um quadrado para a esquerda ou para a direita; (3) muda para uma nova configurao.

    Diversos manuais trazem verses ligeiramente diferentes da idia de Turing, e a forma tcnica em que ele a expressou originalmente no importante; a essncia reside em que a ao completamente dada por aquilo que Turing chamou de uma tabela de comportamento" para a mquina, ditando o que ela far para cada configurao e cada smbolo examinado. Cada tabela de comportamento uma mquina de Turing diferente.

    As aes so extremamente restritas em sua forma, porm a tese de Turing de que elas formam um conjunto de elementos atmicos a partir dos quais todas as operaes matemticas podem ser compostas. Na verdade, num estilo pouqussimo usual para um artigo matemtico, o argumento formulado em termos muito genricos, justificando as aes da mquina de Turing como suficientes para englobar o mtodo mais geral possvel:

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  • A computao normalmente realizada escrevendo-se certos smbolos no papel. Podemos supor que este papel dividido em quadrados como num caderno de aritmtica para crianas. Na aritmtica elementar o carter bidimensional do papel por vezes utilizado. Porm, tal uso sempre evitvel, e penso que todos concordariam que o carter bidimensional do papel no essencial para o computo. Pressuponho, assim, que a computao realizada em papel unidimensional, ou seja, papel dividido em quadrados. Tambm pressuporei que o nmero de smbolos que podem ser impressos finito. Se fosse permitida uma infinidade de smbolos, ento haveria smbolos diferindo apenas num grau arbitrariamente pequeno. [Uma nota de rodap fornece um argumento topolgico para esta afirmao.] O efeito desta restrio no nmero de smbolos no muito srio. sempre possvel usar seqnci- as de smbolos no lugar de smbolos isolados ... Isto est de acordo com a experincia. No podemos verificar numa olhada se 9999999999999999 e 999999999999999 so o mesmo nmero.

    Turing, desta forma, alega que um repertrio finito de smbolos de fato permite uma infinidade contvel de smbolos, mas no uma infinidade de smbolos imediatamente reconhecveis. Observe-se tambm que a fita deve ter uma extenso ilimitada, embora a qualquer momento o nmero de smbolos nela seja finito. No prximo pargrafo, deve-se ter em conta que a palavra computador significava na poca uma pessoa dedicando-se computao. O modelo de Turing o de uma mente humana em ao.

    O comportamento do computador em qualquer momento determinado pelos smbolos que est observando e por seu estado mental naquele momento. Podemos supor que haja um limite B para o nmero de smbolos ou quadrados que o computador pode observar a cada momento. Se ele quiser observar mais, precisa realizar observaes sucessivas. Tambm suporemos que o nmero de estados mentais que precisam ser levados em conta finito. As razes para isto so da mesma natureza que as daquelas que restringem o nmero de smbolos. Se admitssemos uma infinidade de estados mentais, alguns deles estariam arbitrariamente prximos e seriam confundidos. De novo, a restrio

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  • no afeta seriamente a computao, uma vez que o uso de estados mentais mais complexos pode ser evitado escrevendo-se mais smbolos na fita.

    Imaginemos as operaes realizadas pelo computador sendo decompostas em operaes simples, to elementares que no fcil imagin-las sendo ainda mais subdivididas. Cada operao destas consiste em alguma mudana no sistema fsico que consiste no computador e sua fita. Conhecemos o estado do sistema se conhecemos a seqncia de smbolos na fita, quais destes so observados pelo computador (possivelmente em uma ordem especial) e o estado mental do computador. Podemos supor que em cada operao simples no mais que um smbolo alterado. Quaisquer outras mudanas podem ser decompostas em mudanas simples deste tipo. A situao no que diz respeito aos quadrados cujos smbolos podem ser alterados desta forma a mesma que a relativa aos quadrados observados. Podemos, portanto, sem perda de generalidade, assumir que os quadrados cujos smbolos so mudados so sempre quadrados "observados.

    Alm de tais mudanas de smbolos, as operaes simples devem incluir mudana na distribuio dos quadrados observados. Os novos quadrados observados devem ser reconhecveis imedia- tamente pelo computador. Parece-me razovel supor que podem apenas ser quadrados cuja distncia do mais prximo entre os quadrados que acabaram de ser observados no supera certo valor fixo. Digamos que cada um dos novos quadrados observados est a uma distncia de no mais de L quadrados de um quadrado que acabou de ser observado.

    Quanto "reconhecibilidade imediata, pode-se pensar que haja outros tipos de quadrado que sejam imediatamente reconhecveis. Em particular, quadrados marcados por smbolos especiais podem ser considerados imediatamente reconhecveis. Pois bem, se tais quadrados so marcados apenas por smbolos nicos pode haver apenas um nmero finito deles, e no perturbaremos nossa teoria se juntarmos estes quadrados marcados aos observados. Se, entretanto, eles so marcados por uma seqncia de smbolos, no podemos considerar o processo de reconhecimento como um processo simples. Este um ponto fundamental e precisa ser ilustrado. Na maioria dos artigos matemticos, as equaes e teoremas so numerados. Normalmente, os nmeros no vo alm de (digamos) 1000. Portanto, possvel reconhecer um teorema numa olhada pelo seu nmero. Mas se o artigo muito longo, podemos atingir o Teorema 157767733443477 e, depois, mais alm no artigo, podemos encontrar logo (aplicando o Teorema

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  • 157767733443477) temos Para ter certeza sobre qual seria o teorema relevante, teramos de comparar os nmeros algarismo por algarismo...

    As operaes simples devem, portanto, incluir:(a) mudanas no smbolo em um dos quadrados observados;(b) mudanas de um dos quadrados observados para outro

    quadrado distante no mximo L quadrados de um dos quadrados previamente observados.

    Pode ser que algumas destas mudanas envolvam necessariamente uma mudana no estado mental. Deve-se considerar que a operao individual mais geral , portanto, uma destas:

    (A) uma possvel mudana (a) de smbolo junto com uma possvel mudana de estado mental;

    (B) uma possvel mudana (b) de quadrados observados junto com uma possvel mudana de estado mental.

    A operao de fato realizada determinada, como sugerido [acima], pelo estado mental do computador e os smbolos observados. Em particular, eles determinam o estado mental do computador depois da operao ter sido executada.

    Turing continua: Podemos agora construir uma mquina para fazer o trabalho do computador, ou seja, especificar uma mquina de Turing para fazer o trabalho deste calculador humano. Observe-se, tendo em vista seu significado posterior, que Turing no levanta aqui a questo de se a mente capaz de aes que no podem ser descritas como computaes.

    Colocar esta anlise da atividade mental em primeiro plano foi para Turing algo bem audacioso e pouco tpico dos matemticos. Ele acrescentou um argumento menos contencioso;

    evitamos introduzir o estado mental" por meio da considerao de um seu correspondente mais fsico e definido. E sempre possvel para o computador interromper seu trabalho, afastar-se, esquecer tudo a respeito dele e, posteriormente, voltar e continu-lo. Se faz isto, ele precisa deixar uma nota com instrues (escritas em alguma forma padro) explicando como o trabalho deve ser levado adiante. Tal nota o correspondente do estado mental. Suporemos que o computador trabalha de maneira interrompida, no dando mais de um passo de cada vez. A nota de

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  • instrues deve permitir a ele dar um passo e escrever a prxima nota. Desta forma, o estado de desenvolvimento da computao completamente determinado pela nota de instrues e os smbolos na fita...

    Observe-se, porm, que isto requer um mtodo conhecido conscientemente em cada detalhe, ao passo que o argumento do estado mental poderia ser aplicado a uma pessoa que executa confiavelmente um processo sem ser capaz de descrev-lo explicitamente.

    Os nmeros computveis so, ento, definidos como os infinitos decimais que podem ser impressos por uma mquina de Turing comeando com um fita em branco. Ele esboa uma prova de que n um nmero computvel, assim como todo nmero real definido pelos mtodos comuns de equao e limites no trabalho matemtico. Porm, armado com esta nova definio, fica fcil mostrar a existncia de nmeros incompu- tveis. O ponto crucial reside em que a tabela de comportamento de qualquer mquina de Turing finita. Portanto, todas as possveis tabelas de comportamento podem ser listadas numa ordem alfabtica: isto mostra que os nmeros computveis so contveis. Sendo os nmeros reais incontveis, segue-se que quase todos eles so incomputveis. Podemos refinar esta idia e exibir um nmero incomputvel particular. Antes de mostrar a construo, uma observao deve ser feita: uma tabela de comportamento pode ter a propriedade de entrar num loop e nunca produzir mais que um nmero finito de dgitos.

    Com tudo isto em mente, colocamos de novo todas as mquinas de Turing numa ordem alfabtica de suas tabelas de comportamento. Descartamos aquelas que no produzem uma srie infinita de dgitos - os nmeros computveis. Suponhamos que seja utilizada a notao binria, de tal forma que os dgitos sejam 0 ou 1. Defina-se agora um novo nmero tal que seu ensimo dgito diferente do ensimo dgito produzido pela ensima mquina. Este novo nmero difere em

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  • pelo menos um lugar de todo nmero computvel; portanto, ele no pode ser computvel.

    Como Turing explica, isto parece um paradoxo. Se ele pode ser descrito finitamente, porque no pode ser computado? Um exame da situao mostra que o problema reside na identificao das mquinas de Turing que no produzem infinitamente muitos dgitos. Esta no uma operao computvel, ou seja, no h mquina de Turing alguma que possa inspecionar a tabela de qualquer outra mquina e decidir se ela vai ou no produzir infinitamente muitos dgitos. Tal afirmao pode ser estabelecida mais diretamente: se existisse tal mquina, ela poderia ser aplicada a si prpria, e esta idia pode ser usada para gerar uma contradio. Hoje em dia, isto conhecido como o fato de que o problema da parada no pode ser decidido por uma mquina de Turing. A partir desta descoberta de um problema que no pode ser decidido por uma mquina, no um passo difcil empregar o clculo formal da lgica matemtica e dar uma resposta negativa ao Entschei- dungsproblem de Hilbert.

    Um aspecto que Turing enfatizou, entretanto, o de que no h inconsistncia em definir nmeros incomputveis; na moderna teoria da computabilidade, eles so objeto de manipulao rigorosa e argumentao lgica. Pode acontecer que todo dgito de um nmero incomputvel possa ser calculado; a questo, entretanto, que para fazer isto so necessrios infinitamente muitos mtodos diferentes. No obstante, o atributo da computabilidade apia-se em terreno firme: esta foi a assero de Turing na poca e, desde ento, ela nunca foi questionada.

    A tese de Church e a de Turing

    Este seria um triunfo para qualquer um, quanto mais para um ps-graduando de 23 anos, porm Turing foi imediatamente vtima de um revs num caso cansativamente clssico de coincidncia cientfica. Antes de submeter seu artigo,

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  • Alonzo Church, o eminente lgico norte-americano de Prin- ceton, anunciou a mesma concluso quanto ao Entscheidungs- problem. Turing dedicou-se at agosto de 1936 a escrever um apndice relacionando seu resultado ao de Church. Para o artigo ser publicado pela Sociedade Matemtica de Londres, Newman deveria estabelecer que o argumento de Turing era diferente do de Church. Na verdade, o argumento de Turing diferia do de Church de maneira fundamental. Quando a poeira baixou, em 1938, ele apresentou seu ponto de vista nos termos modestos que sempre usou em pblico para falar de seu prprio trabalho:

    Diz-se que uma funo efetivamente calculvel se seus valores podem ser determinados por algum processo puramente mecnico. Embora seja relativamente fcil captar intuitivamente esta idia, contudo desejvel dispor de alguma definio mais precisa, matematicamente exprimvel. Uma definio desta natureza foi formulada primeiro por Gdel em Princeton, em 1934 ... Tais funes foram descritas como "recursivas gerais por Gdel ... Outra definio de calculabilidade efetiva foi dada por Church ... que a identifica com a definibilidade-.. O autor [ou seja, o prprio Turing] sugeriu recentemente uma definio que corresponde mais estreitamente idia intuitiva... Afirmou-se acima que "uma funo efetivamente calculvel se seus valores podem ser determinados por algum processo puramente mecnico. Podemos interpretar este enunciado literalmente, entendendo por um processo puramente mecnico um processo que poderia ser levado a cabo por uma mquina ... O desenvolvimento destas idias conduz definio do autor para uma funo computvel e a uma identificao da computabilidade [no sentido tcnico preciso de Turing] com a calculabilidade efetiva. No difcil, embora algo trabalhoso, provar que estas trs definies so equivalentes.4

    Nesta passagem, Turing d uma descrio do que hoje conhecido - e famoso - como tese de Church. Embora atualmente

    4 A. M. Turing, "Systems of logic based on ordinais, Proc. Lond. Math. Soc. ser. 2, 45 (1939) p.161-228. Este artigo ainda no est disponvel nas Collected Works, mas reproduzido em The Undecidable.

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  • lhe sejam atribudas vrias outras interpretaes, em 1936ela consistia na tese de que a calculabilidade efetiva poderia ser identificada com as operaes do formalismo muito elegante e surpreendente de Church, o do clculo-lambda. Como tal, ela se encontrava no interior do mundo do formalismo matemtico. Porm, Turing oferece uma razo para explicar porque a tese de Church deveria ser verdadeira, recorrendo a idias exteriores matemtica tais como as de que no se pode ver ou escolher entre mais que um nmero finito de coisas de uma s vez. A tese de Church agora chamada, por vezes, de tese de Church-Turing, mas a tese de Turing diferente, por colocar o mundo fsico em cena com uma alegao a respeito do que pode ser feito. No deve passar sem meno que, depois de se referir sua definio maquinai de computabilidade, Turing tambm menciona o trabalho de Emil Post, lgico americano de origem polonesa, que tinha igualmente trazido uma idia de ao fsica computao. Post, entretanto, no havia desenvolvido suas idias de maneira to completa.

    A mquina universal de Turing

    Uma vez que o moderno computador digital agora to importante para a explorao das idias de Turing, uma digresso se faz necessria para explicar sua relao com este artigo. E um fato surpreendente que "On computable numbers no apenas resolveu uma importante questo hilbertiana em aberto, abriu o novo campo matemtico da computabilidade e proporcionou uma nova anlise da atividade mental, mas tambm teve uma implicao prtica: ele estabeleceu o princpio do computador atravs do conceito de mquina universal de Turing.

    A idia da mquina universal facilmente explicada. Sendo a especificao de qualquer mquina de Turing dada por uma tabela de comportamento, traar a operao da mquina torna-se uma tarefa mecnica de verificar itens numa tabela.

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  • Porque mecnica, uma mquina de Turing pode realiz-la, ou seja, uma nica mquina de Turing pode ser projetada de modo a ter a propriedade de que, quando lhe fornecida a tabela de comportamento de uma outra mquina de Turing, ela faz o que a outra mquina de Turing teria feito. Turing denominou tal mquina universal. H um problema tcnico na codificao da tabela numa forma linear da fita e em arranjar rea de trabalho, porm estes so detalhes.

    Turing introduziu a mquina universal como uma ferramenta no argumento descrito acima para a apresentao de um nmero incomputvel. Como tal, ela no era necessria para sua concluso relativa ao Entscheidungsproblem. Porm, Turing deu ao surpreendente conceito um lugar de destaque em seu artigo e, de acordo com a afirmao posterior de New- man, foi levado mesmo na poca a contemplar sua construo prtica. a mquina universal que justifica atribuir-se a Turing a inveno do princpio do computador - e no apenas como um princpio abstrato, como veremos. E, hoje em dia, impossvel estudar as mquinas de Turing sem pensar nelas como programas de computador, e na mquina universal, como o computador no qual rodam os programas. No difcil colocar uma tabela de comportamento na forma explcita de um programa moderno, no qual cada configurao se torna uma instruo numerada, contendo condies SE, as quais ditam a ao de escrever e o nmero da prxima instruo.

    Neste ponto, necessrio certo cuidado com a terminologia. A expresso mquina de Turing anloga a livro impresso por se referir a uma classe potencialmente infinita de exemplos. Dentro desta classe, algumas mquinas de Turing so universais, tendo complexidade suficiente para interpretar e executar a tabela de comportamento de qualquer outra mquina de Turing. Novamente, embora usemos a expresso mquina universal de Turing, existe um nmero infinito de tipos de mquinas com esta propriedade.

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  • O prprio trabalho de Turing ao construir tabelas de comportamento deve t-lo colocado no estado mental de um programador, ainda mais em virtude de ter usado notao abreviada equivalente definio de sub-rotinas. No se pode afirmar que a mente do programador teve origem no artigo de Turing; o programa axiomtico e os engenhosos mtodos de Godel j haviam introduzido esta forma de pensamento. Mas, no trabalho de Turing, a idia formalizada na linguagem da instruo em um grau tal que difcil acreditar que os computadores ainda no existiam. Entretanto, deve-se enfatizar: Turing no estava considerando as mquinas computadoras de seu tempo. Estava modelando a ao de mentes humanas. As mquinas fsicas viriam dez anos mais tarde.

    Pensando o incomputvel

    Turing, a seguir, estudou em Princeton durante dois anos acadmicos, com uma interrupo de volta a Cambridge no vero de 1937. Este foi um perodo de intensa atividade num centro mundial de matemtica. Turing foi demasiado otimista ao pensar que poderia reescrever os fundamentos da anlise e nada acrescentou s observaes sobre limites e convergncia dadas em Computable numbers. (Uma razo para isto pode ser a seguinte: se x e y so nmeros computveis, especificados como mquinas de Turing, a verdade dos enunciados x = y ou x = 0 no pode ser testada por um processo computvel.) Mas alm de pesquisas abrangentes em anlise, topologia e lgebra, e o trabalho laborioso de mostrar a equivalncia de sua definio de computabilidade com as de Church e Godel, ele ampliou a explorao da lgica da atividade mental com o artigo Systems of logic based on ordinais.5

    5 Ibidem.

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  • Esse artigo, o mais difcil entre os que escreveu, muito menos conhecido do que sua definio de computabilidade. geralmente considerado como uma digresso de sua linha de pensamento sobre a computabilidade, e aceitei esta interpretao em Alan Turing: the Enigma (cf. Pontos de partida para outras leituras), essencialmente por ter seguido o ponto de vista posterior do prprio Turing. Porm, considero agora que na poca Turing via-se avanando a todo vapor na anlise da mente, pelo estudo de uma questo complementar de On computable numbers. Turing perguntou, nesse artigo, se possvel formalizar aquelas aes da mente que no seguem um mtodo definido: aes que se poderam chamar criativas ou originais. Em particular, Turing concentrou-se na ao de constatar a veracidade de um dos enunciados no demonstr- veis de Gdel.

    Gdel havia mostrado que, quando constatamos a veracidade de uma proposio no demonstrvel, no podemos faz-lo seguindo regras determinadas. As regras podem ser ampliadas de modo a trazer para seu mbito esta proposio particular, mas ento haver uma outra proposio verdadeira que no captada pelas novas regras de demonstrao, e assim por diante ad infinitum. Surge, assim, a questo da existncia de algum tipo mais elevado de regra que possa organizar este processo de Gdelizao. Uma lgica ordinal constitui uma regra deste tipo, baseada na teoria dos nmeros ordinais, a teoria riqussima e sutil a respeito das diferentes maneiras em que um nmero infinito de entidades pode ser colocado em seqncia. Uma lgica ordinal torna a idia de assim por diante ad infinitum numa formulao precisa. Segundo Turing, o objetivo de introduzir lgicas ordinais evitar tanto quanto possvel os efeitos do teorema de Gdel. O incomputvel no poderia ser transformado em computvel, mas as lgicas ordinais levariam a ele tanta ordem quanto fosse possvel.

    O trabalho de Turing, em que ele provou resultados importantes (embora um tanto negativos) sobre tais esquemas

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  • lgicos, fundou uma nova rea na lgica matemtica. Porm, a motivao, como ele mesmo afirmou, estava na filosofia da mente. Como em On computable numbers, ele no teve medo de usar termos psicolgicos, sendo desta vez o termo intuio usado para o ato de reconhecer a veracidade de uma sentena indemonstrvel de Gdel:

    O raciocnio matemtico pode ser considerado bem esquema- ticamente como uma combinao de duas faculdades, que podemos chamar intuio e engenhosidade. A atividade da intuio consiste em fazer juzos espontneos que no so o resultado de linhas de raciocnio conscientes. Tais juzos so freqentemente, mas de forma alguma invariavelmente, corretos (deixando de lado a questo do que se entende por "correto). Muitas vezes, possvel encontrar alguma outra maneira de verificar a correo de um juzo intuitivo. Podemos, por exemplo, julgar que todos os inteiros positivos so unicamente fatorveis em nmeros primos; um argumento matemtico detalhado leva ao mesmo resultado. O argumento tambm envolver juzos intuitivos, porm estes sero menos abertos crtica que o juzo original sobre a fatorao. No tentarei explicar mais detalhadamente esta idia de "intuio.

    O exerccio da engenhosidade na matemtica consiste em ajudar a intuio atravs de arranjos adequados de proposies e, talvez, figuras geomtricas ou desenhos. A idia que quando estes so realmente bem organizados, a validade dos passos intuitivos necessrios no pode ser seriamente posta em dvida.

    Turing explica, a seguir, como a axiomatizao da matemtica tinha originalmente por objetivo eliminar toda intuio e como Gdel havia demonstrado ser isto impossvel. A construo da mquina de Turing havia mostrado como tornar mecnicas todas as provas formais; e, no artigo em pauta, tais operaes mecnicas deveram ser consideradas triviais, sendo em vez disso colocados sob o microscpio os passos no-mecnicos que restavam.

    Em conseqncia da impossibilidade de encontrar uma lgica formal que elimina totalmente a necessidade de usar a intuio,

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  • voltamo-nos naturalmente para sistemas de lgica no-constru- tivos com os quais nem todos os passos numa prova so mecnicos, sendo alguns intuitivos. Um exemplo de uma lgica no- construtiva fornecido por qualquer lgica ordinal... Que propriedades so desejveis numa lgica no-construtiva se a formos utilizar para a expresso de provas matemticas? Queremos que ela mostre bem claramente quando um passo faz uso da intuio e quando puramente formal. O recurso intuio deve ser o menor possvel. Acima de tudo, no deve restar dvida de que a lgica sempre conduz a resultados corretos quando todos os passos intuitivos so corretos.

    No ficam claras as intenes de Turing a respeito de quo literalmente a identificao com a intuio deveria ser considerada. Provavelmente, suas idias eram fluidas, e ele acrescentou uma advertncia: Estamos deixando de lado aquela importantssima faculdade que distingue tpicos que tm interesse de outros; na verdade, estamos considerando a funo do matemtico como sendo simplesmente a de determinar a verdade ou falsidade de proposies. Mas a evidncia de que, naquele tempo, ele estava aberto idia de que em momentos de intuio a mente parece fazer algo fora do mbito da mquina de Turing. Se foi assim, ele no estava sozinho: Gdel e Post compartilhavam esta opinio.

    Turing e Wittgenstein

    Sucedeu que as opinies de Turing foram examinadas pelo mais importante filsofo da poca bem neste ponto. Infeliz- mente, suas conversas registradas no lanam luz sobre as convices de Turing a respeito da mente e da mquina. Turing foi apresentado a Wittgenstein no vero de 1937 e, quando voltou a Cambridge para o perodo letivo do outono de 1938, assistiu s aulas de Wittgenstein - mais parecidas com um grupo de discusso socrtico - sobre os Fundamentos da Matemtica. Elas foram anotadas pelos participantes e, depois,

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  • reconstrudas e publicadas.6 H uma curiosa semelhana no estilo de falar - despojado e com argumentao por perguntas e respostas porm o pensamento deles no estava em sintonia. Em um dilogo central na seqncia, eles discutiram o significado da axiomatizao da matemtica e os problemas que haviam surgido neste processo:

    W ittgenstein:... Considere o caso do Mentiroso. de certo modo curioso que isto tivesse deixado qualquer pessoa perplexa - muito mais extraordinrio que se possa pensar ... Porque o raciocnio o seguinte: se um homem diz: "Estou mentindo, dizemos que decorre que ele no est mentindo, de onde decorre que ele est mentindo e assim por diante. Pois bem, e da? Pode-se prosseguir desta maneira at o fim dos tempos. Por que no? No importa ... trata-se apenas de um jogo de linguagem intil, e por que algum deveria ficar nervoso com isto?Turing: O que causa perplexidade que, em geral, se usa a contradio como critrio para ter feito algo errado. Mas, neste caso, no se consegue encontrar nada errado.W: Sim - e mais ainda: nada foi feito errado ... De onde vir o dano?T: O dano real no vir a no ser que haja uma aplicao, em que uma ponte vir abaixo ou algo deste tipo.W :... A questo : por que as pessoas tm medo de contradies? E fcil entender porque teriam medo de contradies etc., fora da matemtica. A questo : por que deveram ter medo de contradies dentro da matemtica? Turing diz: Por que algo pode dar errado com a aplicao. Mas no necessrio que algo d errado. E se algo d errado - se a ponte cai -, ento seu erro foi do tipo de usar uma lei da natureza errada ...T: No se pode ter confiana na aplicao de seu clculo at saber que no h contradio escondida nele.W: Parece haver um erro enorme aqui.... Suponha que eu convena Rhees do paradoxo do Mentiroso, e ele diga: Minto, portanto no minto, portanto minto e no minto, portanto temos uma contradio, portanto 2 x 2 = 369. Bem, no chamaramos isto de multiplicao, isto tudo ...

    6 C. Diamond (Org.) Wittgensteiris Lectures on the Foundations o f Mathe- matics (Harvester Press, 1976). O dilogo citado foi extrado das aulas 21 e 22.

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  • T: Embora no se saiba que a ponte vai cair se no houver contradies, quase certo que se houver contradies algo dar erradoem algum lugar.W: Mas nada deu errado desta forma at agora ...

    As respostas de Turing refletem a vertente principal do pensamento e da prtica matemticos em vez de mostrar suas caractersticas distintivas e suas idias originais. Em 1938, deve-se notar, ele era um pesquisador sem estabilidade no cargo, cuja primeira tentativa de conquistar um posto de professor havia falhado e cuja oportunidade de uma carreira convencional estava na matemtica estudada e ensinada em Cambridge. Seu trabalho em lgica era apenas uma parte de sua produo, de maneira alguma bem conhecido. Seu contrato era para trabalhar na teoria da probabilidade; seus artigos versavam sobre anlise e lgebra. Neste ano, ele deu um passo significativo na anlise da funo zeta de Riemann, um tpico em anlise complexa e teoria dos nmeros situado no cerne da matemtica pura clssica.

    Obter enunciados livres de contradio a prpria essncia da matemtica. Turing talvez tenha pensado que Witt- genstein no levava suficientemente a srio as difceis questes que haviam surgido na tentativa de formalizar a matemtica; Wittgenstein achou que Turing no levava a srio a questo de por que, antes de mais nada, a matemtica deveria ser formalizada.

    No h cartas ou anotaes que indiquem contato subse- qente entre Turing e Wittgenstein e nenhuma evidncia de que Wittgenstein tenha influenciado os conceitos de Turing sobre as mquinas e a mente. Se se procurar alguma influncia nos dez anos seguintes, ela ser encontrada na Segunda Guerra Mundial e no papel surpreendente que Turing desempenhou nela.

    O triunfo do computador

    Uma caracterstica do pensamento de Turing bem pouco tpica de um matemtico estabelecido em Cambridge que

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  • seus interesses matemticos desembocavam no apenas na filosofia, mas tambm na engenharia prtica, e isto apesar de ele ser, em geral, muito desajeitado com as mos. As possibilidades das mquinas haviam conquistado sua imaginao. Em 14 de outubro de 1936, Turing escreveu sua me:

    Voc muitas vezes me perguntou sobre as possveis aplicaes dos vrios ramos da matemtica. Acabei de descobrir uma aplicao possvel do assunto em que estou trabalhando no momento. Ele responde questo Qual o tipo mais geral de cdigo ou cifra possvel? e, ao mesmo tempo (bem naturalmente), me permite construir uma poro de cdigos particulares e interessantes. Um deles praticamente impossvel de decodificar sem a chave e muito fcil de codificar. Suponho que poderia vend-lo ao governo de Sua Majestade por uma soma bastante substancial, mas tenho muitas dvidas a respeito da moralidade de tais coisas. O que voc acha?7

    Nada mais se sabe sobre esta investigao terica, mas, em Princeton, ele se dedicou a construir uma mquina com rels eletromagnticos que efetuavam multiplicao binria como um dispositivo codificador, com alguma teoria de imunidade criptoanlise. Esta mquina de Turing no foi preservada nem sua teoria e tampouco conhecemos o desenrolar de suas decises morais a respeito de sua aplicao. A propsito, para dar uma idia sobre o estilo da personalidade de Tu- ring, ele estava nesta ocasio extremamente indignado com Baldwin e o establishment britnico por se oporem ao casamento de Edward VIII. ('No que se refere ao Arcebispo de Canter- bury, considero seu comportamento vergonhoso.) Entretanto, perdeu a simpatia pelo ex-rei ao saber que ele havia tido comportamento imprprio com documentos oficiais. Enquanto isso, era um perspicaz analista das perspectivas de guerra com a Alemanha.

    7 Carta a E. S. Turing, no Arquivo Turing, Kings College Cambridge.

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  • De volta a Cambridge, Turing tambm projetou e em parte construiu outra mquina, a qual aproximava por meio do movimento de engrenagens a srie de Fourier funo zeta de Riemann. Ela tinha por objetivo abreviar o trabalho duro de encontrar as possveis localizaes dos zeros - o tpico da hiptese de Riemann que permanece hoje como, talvez, o mais importante problema no resolvido da matemtica. Porm Turing, enquanto isto, havia manifestado seu interesse em criptografia, provavelmente atravs de canais do Kings Col- lege. Quaisquer que tenham sido os meios morais e prticos, um milagre racional aconteceu, no qual uma pessoa desligada do mundo encontrou uma ocupao perfeita no cerne de uma crise mundial. Em setembro de 1938, ele comeou a trabalhar em tempo parcial no importante problema com que se defrontava o servio secreto britnico: a cifra alem chamada Enigma. O avano, contudo, dependia do trabalho de matemticos poloneses, doado Gr-Bretanha aps a garantia britnica Polnia em julho de 1939. Depois que Hitler pagou para ver este blefe, Turing comeou a trabalhar em tempo integral em Bletchley Park, a sede da organizao criptoanalti- ca no tempo da guerra.

    Turing teve influncia substancial no decorrer da guerra. Em resumo: (1) Ele se encarregou da verso naval do Enigma em 1939, quando parecia no haver esperana, e encontrou uma soluo. Ele prprio afirmou ter encarado o desafio porque ningum mais estava fazendo coisa alguma em relao a ele, e eu podia peg-lo para mim.8 A leitura das comunicaes com os submarinos, conseguida sob a direo de Turing, foi, pode-se argumentar, o aspecto mais vital do trabalho em Bletchley Park. (2) Turing coroou o projeto da mquina (chamada Bombe), central para a anlise de todas as comunicaes baseadas no Enigma, com a idia lgica que continha um curioso eco da discusso com Wittgenstein, na medida

    8 A. P. Mahon, History o f Hut 8 (1945), liberado do segredo pelos National Archives, Washington DC, em abril de 1996.

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  • em que dependia do fluxo de implicaes lgicas a partir de uma hiptese falsa. (3) Turing criou uma teoria da informao e estatstica que fez da criptoanlise uma disciplina cientfica; foi o principal consultor e elemento de ligao no mais alto nvel com o trabalho americano.

    O trabalho prtico trouxe consigo a necessidade de cooperao e organizao para as quais Turing no era uma pessoa adequada; no incio da guerra, teve de travar uma difcil batalha em torno de questes de estratgia e recursos, em certo momento aliando-se a outros analistas importantes para apelar a Churchill passando por cima da administrao. Mas havia um outro lado nesta situao desagradvel: a guerra rompeu barreiras e lhe deu experincia prtica em tecnologia no seu aspecto secreto mais avanado. Na paz, suas idias haviam resultado em engenharia de pequena escala; na guerra, elas conduziram ao computador eletrnico digital, em 1945.

    As velocidades eletrnicas tiveram um primeiro impacto no problema do Enigma em 1942 e, posteriormente, na construo de mquinas eletrnicas chamadas Colossus, muito avanadas e de grande escala, para quebrar a outra mquina codificadora alem de alto nvel, a Lorenz. Note-se, a propsito, que a Colossus nada tinha a ver com o Enigma, como muitas vezes se afirma descuidadamente; tambm note-se que Turing no colaborou no projeto das mquinas Colossus, embora tenha influenciado na definio de seu objetivo e tenha testemunhado em primeira mo seu triunfo. Turing, por outro lado, desenvolveu um projeto eletrnico prprio: em 1944, junto com um tcnico assistente, ele construiu um scrambler de voz usando um princpio elegante e avanado. Aparentemente, ao propor o scrambler de voz, que no era uma necessidade urgente, ele tinha sua prpria agenda oculta: adquirir experincia em eletrnica. O scrambler funcionou em 1945 e, ao mesmo tempo, Turing combinou a lgica e a engenharia, matemtica pura e aplicada para inventar o computador.

    E necessrio certo cuidado com palavras e alegaes: a palavra computador mudou seu significado. Em 1936, e na

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  • verdade em 1946, ela designava uma pessoa computando, e uma mquina seria chamada um computador automtico. At os anos 60, havia uma distino entre computadores digitais e analgicos; apenas a partir da, na medida em que os computadores digitais passaram a predominar, a palavra passou a designar uma mquina como a que Turing tinha em mente. Mesmo agora, ela s vezes aplicada a qualquer mquina de calcular. Ao mencionar o computador, tomo como sua caracterstica distintiva a de que os programas e os dados so igualmente considerados como smbolos que podem ser armazenados e manipulados da mesma forma - o programa modificvel armazenado - e esta a caracterstica sugerida por Turing ao falar da mquina universal prtica, sua maneira de descrever a prpria idia.

    Mesmo aqui, entretanto, necessrio tomar cuidado. Embora a mquina universal tivesse sido, em 1936, dotada de instrues e rea de trabalho na forma comum da fita, as instrues s requeriam leitura, no manipulao ou modificao, e assim no faria diferena se fossem armazenadas em alguma forma fsica inaltervel. Turing percebeu isto e considerou a Mquina Analtica de Babbage, em que as instrues eram cartes fixos, como uma mquina universal. Na prtica, contudo, o reconhecimento de que programas e dados podiam ser igualmente armazenados em forma simblica, e manipulados, foi imensamente libertador. Marcou uma ruptura com as mquinas do tipo Babbage, que haviam culminado no ENIAC eletrnico de 1946. Ao enunciar o poder do conceito da mquina universal, Turing estava bem frente do consenso da poca; sua idia de que um nico tipo de mquina podera ser usado para todas as tarefas encontrou vigorosa resistncia at o fim da dcada de 50.

    As idias de Turing em tempos de paz fluam tambm em direo filosofia. Como a guerra afetou a filosofia de Turing? Em Alan Turing: the Enigma, afirmei que Christopher Morcom havia morrido pela segunda vez em 1936, querendo dizer que o conceito de esprito liberado do determinismo laplaciano,

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  • que havia estimulado Turing em 1930, nunca mais seria lembrado. Parecia-me notavelmente claro que a fascinao de Turing, to emocionalmente carregada, com o problema da mente era a chave para o mistrio de como ele, um jovem margem, tinha dado uma contribuio definitiva e fundamental com o conceito de computabilidade. Modelando a ao da mente humana como uma mquina fsica, ele havia trazido idias radicais e novas para o mundo da lgica simblica. Depois de 1936, aparentemente, era o poderoso conceito de mquina que havia conquistado sua imaginao, e os escritos de Turing no ps-guerra apoiariam este ponto de vista. Mas, na verdade, sua interpretao das lgicas ordinais, em 1938, deixou a porta aberta para algo no-mecnico na mente, e agora me parece que as opinies de Turing no mudaram de uma vez s, em 1936, no sentido de abraar o poder total do computvel.

    Meu palpite que houve um ponto de inflexo por volta de 1941. Depois de uma luta encarniada para quebrar o Enigma dos submarinos, Turing podia ento saborear o triunfo. Mquinas trabalhavam e pessoas desempenhavam tarefas mecnicas sem pensar, com resultados notveis e imprevistos. Nessa poca, ocorreu pela primeira vez uma conversa entre Turing e o jovem I. J. Qack) Good a respeito de algoritmos para o jogo de xadrez. Como descrevi em Alan Turing: the Enigma, essa viso da inteligncia mecnica deve ter provocado grande entusiasmo; agora, vou alm e gostaria de sugerir que foi nessa poca que ele abandonou a idia de que momentos de intuio correspondem a operaes incomputveis. Em vez disso, decidiu, o mbito do computvel englobava muito mais do que poderia ser captado por meio de notas de instruo explcitas, e o suficiente para incluir tudo o que os crebros humanos faziam, no importando quo criativos ou originais. Mquinas de complexidade suficiente teriam a capacidade de desenvolver comportamentos que nunca haviam sido explicitamente programados. E foi neste perodo que ele tambm perdeu o interesse pela lgica como uma ferramenta para exa

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  • minar a realidade - embora deva ser dito que manteve um vivo interesse na computabilidade terica no interior da matemtica, sendo um dos primeiros no campo quando esta foi acoplada lgebra no fim da dcada de 40.

    Foi possivelmente na mesma poca, ou dentro de meses, que ele tambm presenciou a velocidade de megahertz em componentes eletrnicos e o desempenho confivel do sistema scrambler de voz usado nas conversas telefnicas entre Roosevelt e Churchill. Suspeito que havia apenas um pequeno passo a ser dado para perceber a possibilidade de construir uma mquina universal de Turing real, baseada na eletrnica. Com certeza, ao fim da guerra, ele foi cativado pela perspectiva de explorar o domnio do computvel numa mquina universal de Turing e, na verdade, usou a expresso construir um crebro ao conversar sobre seus planos com o tcnico em eletrnica que o assistia.

    Turing foi para o National Physical Laboratory e trabalhou em seu projeto detalhado para um computador,9 submetendo-o a julgamento em maro de 1946. A Mquina Computa- dora Automtica [Automatic Computing Engine, ,4CE], como foi batizada, veio cronologicamente em segundo lugar depois do relatrio de junho de 1945 sobre o EDVAC, que levava o nome de von Neumann; contudo, alm da originalidade de seu projeto de hardware, ela era ideologicamente independente, uma vez que: (1) foi concebida desde o incio como uma mquina universal da qual a aritmtica seria apenas uma aplicao, e (2) Turing esboou uma teoria da programao na qual as instrues podiam ser manipuladas tanto quanto os dados.

    Era uma idia extremamente estimulante, a de que a engenharia pudesse ser feita de uma vez por todas, de tal maneira que novos problemas exigiram apenas trabalho mental. Tu-

    9 A. M. Turing,"Proposed Electronic Calculator, relatrio do National Physical Laboratory (1946). Publicado em B. E. Carpenter e R. W. Doran (Org.) A. M. Turing ACE Report o f 1946 and Other Papers (MIT Press e Tomash Publishers, 1986); republicado em Collected Works.

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  • ring, claro, tomava Bletchley Park por um modelo de como mquinas no-numricas e versteis poderam ser urgentemente necessrias. Turing dramatizou o domnio de operaes possveis com exemplos de longo alcance, dos quais o ltimo era o seguinte:

    Dada uma posio no jogo de xadrez, seria possvel fazer a mquina listar todas as combinaes vencedoras at uma profundidade de trs lances de cada lado. Este problema semelhante ao anterior, porm d origem questo: Pode a mquina jogar xadrez?. Seria muito fcil faz-la jogar relativamente mal. Ela jogaria mal porque o xadrez requer inteligncia. Afirmamos no incio desta seo [ou seja, ao descrever como se faz a programao] que a mquina deveria ser tratada como inteiramente desprovida de inteligncia. H indicaes, entretanto, de que possvel fazer a mquina manifestar inteligncia com o risco de cometer ocasionais erros srios. Explorando este aspecto, seria possvel fazer a mquina jogar xadrez muito bem.

    Esta uma afirmao crucial de seu pensamento que, a meu ver, demonstra que, por volta de 1945, Turing havia passado a acreditar que as operaes computveis tinham mbito suficiente para incluir comportamento inteligente, e havia rejeitado firmemente a diretriz que havia seguido ao estudar as lgicas ordinais. A referncia enigmtica a ocasionais erros srios faz sentido luz de seu argumento formulado posteriormente (a ser considerado a seguir) para sustentar que a incomputabilidade irrelevante para a inteligncia, e prova que ele deve ter meditado sobre esta questo durante a guerra.

    Durante um ano Turing estabeleceu planos para a organizao prtica de um moderno centro de computao, com uma biblioteca de rotinas e controle a partir de terminais remotos, transpirando a confiana na colaborao da matemtica com a engenharia e a administrao adquirida em Bletchley Park. Porm, tal plano, embora formalmente aceito, no foi

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  • posto em ao; julgou-se que a mquina planejada (com cerca de 32 kbytes, de armazenamento) era demasiado ambiciosa. Tratada como um dbito, e no como um crdito, sua avidez por falar abertamente da construo de crebros tornava-se embaraosa. Em 1947, ele deixou Cambridge para um ano sabtico.

    Treinando o pensamento

    Durante esse ano, alm de treinar corrida de maratona at chegar prximo do padro olmpico, Turing refletiu sobre as indicaes" de inteligncia mecnica, redigindo um relatrio10 para o National Physical Laboratory, em 1948. Cambridge provocou o contato com a biologia do ps-guerra, o qual, aliado ao contato com os pensadores cibernticos, provavelmente reforou sua tese de que havia suficiente escopo na complexidade das mquinas para explicar o comportamento aparentemente no-mecnico. Porm, o relatrio de Turing no mencionou estas fontes; na verdade, sua citao mais conspcua era proveniente de um livro de ningum menos que a romancista religiosa Dorothy Sayers, que encapsulava a noo ingnua do comportamento mecnico. Era um livro que ele estava lendo em 1941.) E argumentou menos a partir da biologia do que de sua prpria experincia de vida ao sustentar que a modificao de comportamento poderia ser adaptada do crebro que aprende para a mquina que aprende.

    Para a mente no-treinada de uma criana tornar-se inteligente, ela precisa adquirir tanto disciplina quanto iniciativa. At agora estivemos considerando apenas a disciplina. Converter um crebro ou mquina em uma mquina universal constitui a forma extrema de disciplina. Sem algo deste tipo no possvel estabelecer comu

    10 A. M. Turing, Intelligent machinery", relatrio do National Physical Laboratory (1948). A edio (de D. Michie) em Machine Intelligen- ce, 5 (1969) p.3-23, foi reproduzida nas Collected Works.

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  • nicao adequada. Mas a disciplina, com certeza, no suficiente por si s para produzir inteligncia. O necessrio, alm disto, o que chamamos iniciativa. Este enunciado deve fazer as vezes de uma definio. Nossa tarefa descobrir a natureza deste resduo ... e tentar copi-lo nas mquinas.

    A influncia do clima geral behaviourista parecia combinar facilmente com sua prpria formao na public school:

    O treinamento da criana depende em grande parte de um sistema de recompensas e punies, e isto sugere a possibilidade de realizar o processo de organizao com apenas duas entradas [nputs] de interferncia, uma para o prazer, ou "recompensa", e outra para a dor, ou punio ... A interferncia prazerosa tem a tendncia de fixar o carter, ou seja, de tornar mais difcil que ele mude, enquanto os estmulos dolorosos tendem a perturbar o carter, fazendo com que mudem caractersticas que haviam se fixado ... A inteno que os estmulos dolorosos ocorram quando o comportamento da mquina errado, e os estmulos prazerosos, quando este particularmente correto.

    Supe-se, com freqncia, que os computadores tenham comeado com aritmtica pesada e que, uma vez superada esta etapa, os cientistas tenham se aventurado em campos mais ambiciosos. Isto pode valer para outros, mas enfaticamente no para Turing, que havia sempre se preocupado com a modelagem da mente humana. (Alm do mais, nenhum computador no sentido moderno realizou uma nica adio at 1948.) O fato de que ele agora invadia as cincias do comportamento no por si s surpreendente; causa mais espanto que tenha abraado to veementemente a opinio de que passos aparentemente no-mecnicos de iniciativa eram apenas um mecanismo oculto, dada sua prpria experincia de inspirao e seu conhecimento da sutileza da computabilidade. E surpreendente tambm, a meu ver, que ele tenha usado uma idia primitiva de educao de uma maneira acrtica, quase exultante e perversa. Em sua experincia real de infncia, ele havia ignorado tanto quanto possvel o treinamento social.

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  • As idias de Turing no poderam ser testadas exceto numa escala muito pequena no que ele chamou mquinas de papel - a execuo de programas feita mo. Porm, elas foram precursoras do programa conexionista ou das redes neurais na pesquisa em inteligncia artificial, no qual o que Turing chamou mquinas desorganizadas de suficiente complexidade podem ser treinadas para desempenhar tarefas para as quais nenhuma instruo explcita foi jamais escrita e onde, na verdade, a estrutura lgica em desenvolvimento desconhecida do treinador humano.

    Seu relatrio de 1948, indito at 1968, no causou impresso alguma no National Physical Laboratory, do qual, de qualquer modo, pediu demisso abruptamente. Porm, as idias voltam tona, expressas em termos mais gerais, no famoso artigo filosfico que passamos a considerar.

    O teste de Turing

    Turing mudou-se para a Universidade de Manchester, onde Newman, professor de matemtica pura desde 1945, lhe havia conseguido o primeiro posto acadmico pleno. Turing estava numa posio difcil como produtor de software para o computador pioneiro, o primeiro deste tipo no mundo, que o engenheiro eletrnico F. C. Williams e sua equipe haviam construdo depois de Newman lhes ter fornecido o princpio. Reportagens na imprensa sobre a mquina j usavam a terminologia crebros, que os comentrios do prprio Turing, em 1949, nada faziam para desencorajar. Jefferson, um neurocirurgio de Manchester, tentou dissipar este uso numa palestra no mesmo ano. Michael Polanyi, o qumico que havia se tornado um filsofo cristo da cincia em Manchester, era outro adversrio intelectual (com o qual, entretanto, Turing mantinha relaes pessoais amistosas). Foi provavelmente Polanyi quem sugeriu a Turing que apresentasse suas opi

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  • nies num artigo publicado com o ttulo Computing machi- nery and intelligence em 1950.11

    Turing lidou com o problema de escrever para leitores no versados em matemtica com tpico sangue-frio, ignorando todas as barreiras culturais convencionais. Dispensando notavelmente qualquer citao da literatura filosfica ou psicolgica, ele no faz concesses quanto ao estilo nem quanto ao contedo.

    O artigo famoso pelo jogo da imitao, descrito abaixo, e, hoje em dia, freqentemente denominado teste de Turing. Porm, o aspecto mais slido do artigo o estabelecimento do modelo da mquina de estado discreto, que vem a ser a mquina de Turing de 1936, porm mais claramente concebida como algo fisicamente corporificado. Um pargrafo cuidadoso explica primeiro porque a mquina computadora discreta:

    Os computadores digitais ... podem ser classificados entre as mquinas de estado discreto. Estas so mquinas que se movem por saltos sbitos ou clicks de um estado bem definido a outro. Tais estados so suficientemente diversos para que a possibilidade de confuso entre eles seja ignorada. Estritamente falando, no existem tais mquinas. Tudo na verdade se move continuamente. H, porm, muitos tipos de mquinas que podem ser vantajosamente consideradas mquinas de estado discreto. Por exemplo, com relao aos interruptores de um sistema de iluminao, uma fico conveniente que cada interruptor est definidamente ligado ou desligado. Deve haver posies intermedirias, mas para a maioria dos fins podemos ignor-las ...

    Esta propriedade especial dos computadores digitais, de que eles podem imitar qualquer mquina de estado discreto, descrita dizendo-se que elas so mquinas universais.

    11 A. M. Turing, Computing machinery and intelligence, Mind, 51 (1950), p.433-60; republicado em Collected Works. H pelo menos duas tradues para o portugus deste artigo, nas coletneas Ciberntica e comunicao (org. de Isaac Epstein; So Paulo, Cultrix/Edusp, 1973) e Crebros, mquinas e conscincia (org. de Joo de Fernandes Teixeira; So Carlos: Editora da UFSCar, 1996) (N. T.)]

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  • 0 argumento de Turing simplesmente o de que o crebro deve tambm ser considerado uma mquina de estado discreto. Em sua afirmao clssica, feita numa transmisso radiofnica, em 1952:12 No estamos interessados no fato de que o crebro tem a consistncia de um mingau frio. No desejamos dizer: Esta mquina bem rgida, portanto no um crebro, logo no pode pensar. A cor cinza ou o aspecto esponjoso e mole do crebro como algo fsico so irrelevantes, e o mesmo vale para a operao dos nervos:

    Muitas vezes se atribui importncia ao fato de que os modernos computadores digitais so eltricos e que o sistema nervoso tambm o ... Naturalmente, a eletricidade em geral comparece quando se trata de sinalizao rpida, de modo que no causa surpresa encontr-la nestes dois contextos. No sistema nervoso, os fenmenos qumicos so pelo menos to importantes quanto os eltricos. Em certos computadores, o sistema de armazenamento principalmente acstico. Percebe-se, assim, que a caracterstica de usar a eletricidade constitui apenas uma semelhana muito superficial. Se desejarmos encontrar tais semelhanas [ou seja, semelhanas significativas entre o crebro e o computador], devemos procurar, em vez disso, analogias matemticas de funo.

    A tese de Turing que as nicas caractersticas do crebro relevantes para o pensamento ou a inteligncia so aquelas situadas no nvel de descrio da mquina-de-estado-discre- to. A materializao fsica particular irrelevante. No bem explicitado, mas implcito em todas as afirmaes, o fato de que a operao de uma mquina de estado discreto computvel. Vemos, agora, a extenso definitiva do argumento apresentado em 1936, o efeito da mudana de opinio que conje- turei ter ocorrido em 1941. O Turing do ps-guerra sustenta que as mquinas de Turing podem imitar o efeito de qualquer atividade da mente, no apenas da mente engajada num mtodo definido".

    12 Transcrio no publicada, no Arquivo Turing, King s College, Cam- bridge.

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  • O termo de Turing, mquina de estado discreto, representa uma escolha criteriosa. Ele evita expresses como estrutura lgica que poderam transmitir conotaes falsas da linguagem comum: o pensamento lgico como oposto do ilgico, informal ou inconsciente. Para Turing, claro que as mquinas de estado discreto incluem mquinas com capacidade de aprendizagem ou auto-organizao, e ele enfatiza o fato de estas ainda carem no domnio do computvel. Turing chama a ateno para o conflito aparente com as tabelas de comportamento fixas constantes da definio da mquina de Turing, mas esboa uma prova de que as mquinas automodi- ficveis ainda so, na verdade, definidas por um conjunto imutvel de instrues, concluindo:

    A explicao do paradoxo que as regras que so alteradas no processo de aprendizagem so de um tipo bem menos pretensioso, almejando apenas uma validade efmera. O leitor pode estabelecer um paralelo com a constituio dos Estados Unidos.

    Se a tese de Turing sobre a funo do crebro aceita, ento, de uma perspectiva materialista, o argumento fica quase completo. O comportamento de uma mquina de estado discreto pode assim, pelo menos em princpio, ser registrado numa tabela. Portanto, toda caracterstica do crebro relevante para o pensamento pode ser captada numa tabela de comportamento e, assim, simulada por um computador. A nica questo que pode restar se a velocidade e as dimenses espaciais do crebro e a natureza de sua interface fsica com o mundo so tambm essenciais para sua funo.

    Entretanto, o restante do artigo, trazendo a definio do teste de Turing, avana bastante no sentido de ilustrar a idia de um crebro e sua funo como um objeto fsico cujas propriedades podem ser examinadas como as de qualquer outro, e de sugerir mtodos construtivos por meio dos quais mquinas inteligentes poderam ser construdas. Com este objetivo, Turing dramatiza o ponto de vista operacional. Em vez de

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  • considerar a questo Podem as mquinas pensar?, ele explica: substituirei a questo por uma outra, estreitamente relacionada a ela, que pode ser expressa em termos relativamente no ambguos:

    A nova forma do problema pode ser descrita em termos de um jogo que denominaremos "jogo da imitao. jogado por trs pessoas, um homem (A), uma mulher (B) e um interrogador (C) que pode ser de um ou de outro sexo. O interrogador permanece numa sala separado dos outros dois participantes. O objetivo do jogo para o interrogador determinar qual dos outros dois o homem e qual a mulher.

    Se a introduo de Turing para o problema da mente criativa por meio de um jogo de salo com conotaes homossexuais havia sido calculada para ofender intelectuais bem-educados, ela provavelmente teve sucesso. Infelizmente, Turing conseguiu tambm criar uma confuso desastrosa. Embora tivesse a inteno de esclarecer a situao do crebro sendo testado como qualquer outro objeto fsico, para muitos leitores o propsito do jogo da imitao obscurecido, na verdade virado de cabea para baixo, em razo da sintaxe descuidada:

    Agora, fazemos a pergunta: "Que ocorre quando uma mquina toma o lugar de A neste jogo?. A deciso do interrogador ser errada com tanta freqncia quando o jogo disputado desta forma, em comparao a quando o jogo disputado por um homem e uma mulher?

    No tenho dvida de que o jogo disputado desta forma" significa o jogo disputado entre um ser humano e um computador fingindo ser humano. Mas existem, hoje em dia, muitos livros, artigos, conferncias e pginas da Web afirmando que no teste de Turing o computador desempenha o papel de um homem que imita uma mulher. Este , na verdade, o significado literal das palavras uma mquina toma o lugar de A,

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  • porm tal interpretao no se coaduna com a seguinte amostra de interrogatrio:

    P: Por favor, escreva-me um soneto tendo por tema a ponteForth.

    R: Estou fora desta. Nunca consegui escrever poesia.P: Adicione 34957 a 70764.R: (H uma pausa de 30 segundos e ento vem a resposta)

    105621.P: Voc joga xadrez?R: Sim.P: Tenho R em meu R, e nenhuma outra pea. Voc tem apenas

    R em R( e T em T,. sua vez de jogar, qual seu lance?R: (Depois de uma pausa de 15 segundos) T-Ts, mate.

    As respostas no tm conotao alguma de gnero; so destinadas a estabelecer inteligncia humana (inclusive - uma sutileza - a adio incorreta*). O objetivo do jogo este: se uma mquina no pode ser distinta de um ser humano nestas condies, ento devemos atribuir a ela uma inteligncia humana.

    Um problema mais srio que a analogia de Turing baseada na adivinhao de gnero prejudica seu prprio argumento. No jogo do gnero, a enganao bem-sucedida do interrogador nada prova sobre a realidade por trs da tela. Em contraste com isto, Turing quer argumentar que a imitao bem- sucedida da inteligncia inteligncia. De forma equivalente, Turing define a essncia da inteligncia como aquilo que pode ser completamente comunicado atravs da ligao com o teletipo, em harmonia com sua tese de que o crebro relevante apenas na qualidade de mquina de estado discreto. Smbolos discretos atravs da ligao do teletipo podem representar fielmente todas as entradas e sadas de e para uma

    * Ambas as tradues brasileiras (cf. nota 11) deixaram escapar a sutileza: no percebendo que o erro era deliberado, corrigiram o original colocando 105.721 no lugar da soma, em vez de 105.621. (N. T.)

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  • mquina de estado discreto. Na formulao de Turing: O novo problema tem a vantagem de traar uma linha relativamente ntida entre as capacidades fsicas e as mentais de um ser humano.

    O estabelecimento da comunicao por teletipo tem o objetivo de separar a inteligncia de outras faculdades dos seres humanos. No gostaramos de penalizar a mquina por sua inabilidade de brilhar em concursos de beleza nem de penalizar um homem por perder uma corrida com um avio. As condies de nosso jogo fazem com que estas incapacidades sejam irrelevantes". De tais condies resulta que qualidades como gnero sejam irrelevantes e, do ponto de vista da clareza, de se lamentar que sua introduo iconoclstica d a impresso oposta.

    Mas se o jogo de adivinhao de gnero mal compreendido, Turing com certeza cortejou tal confuso. Ele pintou as pginas desta jornada ao ciberespao [cyberspace] com o erotismo desajeitado e a curiosidade enciclopdica de sua personalidade. Crticos culturais modernos empreenderam deliciados a psicanlise de suas passagens surpreendentes. O texto intelectual uma formulao austera da capacidade por parte da mquina de estado discreto de ter inteligncia incor- prea; o subtexto cheio de referncias provocativas sua prpria pessoa, como se estivesse pondo em julgamento sua inteligncia de carne-e-osso.

    Pode-se dizer que a imitao intrnseca ao teste de Turing tambm uma digresso do cerne do argumento. A anlise da imitao levanta questes, no discutidas no texto, tais como por que se deveria esperar de uma mquina inteligente que possa desempenhar um papel desonesto num jogo; em minha opinio, isto sobrecarrega a ilustrao de Turing e deixa escapar o ponto principal. A alegao real, como enfatizei acima, que a funo do crebro a de uma mquina de Turing de estado discreto, podendo, portanto, ser desempenhada por um computador. O colorido e o drama na escrita de Turing so secundrios: tm a inteno de convidar uma grande

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  • variedade de leitores a refletir construtivamente sobre esta concluso, bastante antiintuitiva, porm difcil de refutar.

    Imagens de tribunal percorrem o artigo: no apenas o teste de Turing um interrogatrio, mas Turing coloca-se no banco dos rus e responde a objees dirigidas sua tese. Estas diferem bastante em quo seriamente so levantadas e consideradas. Depois de uma resposta faceciosa aos crticos-aves- truz [Heads in the Sand objectors], Turing enuncia:

    A Objeo Teolgica. O pensamento uma funo da alma imortal do homem. Deus concedeu uma alma a cada homem e mulher, mas no a qualquer outro animal ou s mquinas. Portanto, nenhum animal ou mquina pode pensar.

    Esta no uma objeo feita ou respondida com seriedade, mas usada para caoar do cristianismo, com uma referncia heresia de Galileu como uma analogia com a sua prpria. Ele escrevia como falava: um ateu orgulhoso, dado a tiradas anti- eclesisticas. Uma resposta mais sria poderia ter sido dirigida no apenas ao dogma religioso, mas s afirmativas mais gerais feitas pela filosofia moral de que os seres humanos tm propriedades (por exemplo, responsabilidade, autoridade) que outros objetos no podem possuir. Da maneira como est posto, o pargrafo pode divertir aqueles que concordam com suas opinies, mas no convencer ningum que discorde. H, contudo, um ncleo srio nesta interveno de sociedade de debates, feita para liquidar a objeo teolgica, a de que Deus poderia conceder alma a uma mquina. Do ponto de vista operacional, Turing no precisava argumentar sobre se as pessoas tm ou no almas"; ele precisava tratar apenas daquilo que pode ser observado.

    Embora enraizada em integridade intelectual, h algo de pouco atraente na facilidade com que Turing descarta tais questes. No perodo aps a Segunda Guerra Mundial, havia boas razes para a preocupao com tratar pessoas como mquinas. Em suas atitudes pessoais, Turing era um denodado

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  • defensor da liberdade e da honestidade, qualidades difceis de encaixar no contexto do jogo da imitao. Porm, questes ad hominem sugerem a pergunta: que termos do discurso moral teriam sido apropriados para um inocente e corajoso defensor da verdade que havia dedicado sua mente privilegiada vitria sobre o nazismo, mas no podia deixar escapar uma palavra a respeito disto? A frivolidade tinha sua prpria seriedade moral, o lavar as mos do mal dos anos 40. Como outros do incio da dcada de 1950, Turing estava impaciente para ver o futuro, tendo derrotado a tentativa de Hitler de destru-lo. E, dadas suas referncias ao lugar das mulheres na teologia islmica, clonagem de seres humanos e questo da conscincia dos animais, no se pode acusar o artigo de ser carente de prescincia quanto a questes morais.

    Passemos agora passagem mais estranha em todos os escritos de Turing.

    O Argumento da Percepo Extra-sensorial. Suponho que o leitor esteja familiarizado com a idia da percepo extra-sensorial e com o significado de seus quatro itens, a saber, a telepatia, a clarividncia, a pr-cognio e a psicocintica. Tais fenmenos perturbadores parecem negar todas as nossas idias cientficas usuais. Como gostaramos de desacredit-los! Infelizmente, a evidncia estatstica, pelo menos para a telepatia, avassaladora. muito difcil rearranjarmos nossas idias para encaixar estes novos fatos. Uma vez aceitos, parece no ser um grande passo a crena em fantasmas e bichos-papes. A idia de que nossos corpos se movem simplesmente de acordo com as leis fsicas conhecidas, junto com algumas outras ainda no descobertas mas algo semelhantes, seria a primeira a cair.

    Este argumento , em minha opinio, muito forte. Pode-se dizer, em resposta, que muitas teorias cientficas parecem continuar funcionando na prtica - apesar de estarem em conflito com a percepo extra-sensorial -, que se pode continuar a viver sem problemas se se esquece de sua existncia. Este um consolo bem fraco e h o temor de que o pensamento seja exatamente o tipo de fenmeno em que a percepo extra-sensorial pode ser especialmente relevante.

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  • No fica claro quo srias so estas afirmaes. O ponto de exclamao sugere ironia, a evidncia avassaladora soa literal. Tudo considerado, ele parecia estar, na poca, convencido pelas alegaes a respeito da percepo extra-sensorial como algo observado. No h outras passagens sobre este tema nos textos e cartas de Turing, embora fosse intenso seu interesse por sonhos e acontecimentos estranhos. Em 1930, ele havia tido um pressentimento da morte de Christopher Morcom no preciso momento em que este caiu doente e, mais tarde, escreveu: No difcil arranjar uma explicao para este tipo de coisas que nega sua existncia - porm fico em dvida!. Ele duvidava; era uma dvida natural.

    H uma questo aqui que, embora expressa de forma elptica, tem um significado mais geral, a saber, que o modelo da mquina de estado discreto se apia na operao do crebro de acordo com as leis fsicas conhecidas, junto com algumas outras ainda no descobertas mas algo semelhantes. Voltaremos mais tarde a esta questo.

    Outras objees so colocadas mais claramente e respondidas mais a srio, e dentre estas vou considerar primeiro a que Turing chamou:

    O Argumento da Conscincia. Este argumento est muito bem expresso na conferncia Lister, do Prof. Jefferson, de 1949 ... Apenas quando uma mquina puder escrever um soneto e compor um concerto a partir de pensamentos e emoes sentidas, e no por uma combinao aleatria de smbolos, poderiamos aceitar que a mquina se equipara ao crebro, ou seja, capaz no apenas de escrever mas de saber que escreveu. Nenhum mecanismo poderia sentir (e no apenas dar artificialmente sinais disto, um artifcio trivial) prazer com seus sucessos, tristeza quando suas vlvulas queimam, ficar alegre quando adulado, infeliz por causa de seus erros, encantar-se com o sexo, ficar zangado ou deprimido quando no obtm o que deseja.

    Este argumento parece negar a validade de nosso teste. De acordo com a forma mais extremada desta concepo, a nica maneira que levaria uma pessoa a ter certeza de que uma mquina pensa ser a mquina e sentir-se pensando. Ela poderia ento des

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  • crever estes sentimentos para o mundo, mas naturalmente ningum estaria justificado em lhe dar ateno. Analogamente, de acordo com esta concepo, a nica maneira de saber o que um homem pensa ser este homem. Trata-se, na verdade, de uma viso solipsista ...

    No desejo dar a impresso de que penso no haver mistrio algum sobre a conscincia. Existe, por exemplo, algo como um paradoxo com respeito a qualquer tentativa de localiz-la. Mas no acho que tais mistrios precisem ser esclarecidos antes de podermos responder questo em pauta neste artigo.

    A objeo central de Jefferson a repugnncia do senso comum idia de se atribuir pensamento a mquinas, e seu contedo semelhante ao da alegao de John Searle de que falta s mquinas a intencionalidade humana. E interessante, ainda que anacrnico, tentar adivinhar como Turing teria respondido parbola de Searle relativa ao Quarto Chins, ela prpria um tipo de rplica ao drama do jogo da imitao. Searle assume (1) que existe um algoritmo para traduzir do chins para o ingls; (2) que este algoritmo executado no por uma mquina, mas por uma ou mais pessoas num quarto, trabalhando sem pensar. Ento, o texto chins traduzido, porm nenhum dos tradutores tem o mais remoto conhecimento ou compreenso: um paradoxo. A tese de Turing seria, acredito, de que se isto fosse conseguido no constituira paradoxo algum, meramente uma dramatizao do verdadeiro estado de coisas. Refletira o mecanismo do crebro, onde os neurnios no tm compreenso alguma individualmente, porm de alguma forma o sistema como um todo parece ter, e esta aparncia tudo o que importa. Pode-se ir alm: a situao em Bletchley Park era estranhamente semelhante do Quarto Chins, uma vez que, por razes de segurana, o pessoal do servio secreto era treinado para levar a cabo algoritmos criptoanalticos sem saber qual era seu propsito. Talvez esta prpria viso, de juzo acertado emergindo de clculo desprovido de pensamento, tenha servido de inspirao positiva para Turing desenvolver sua concepo de inteligncia

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  • mecnica, por volta de 1941. O esprito das concepes de Turing de que o carter definido da conscincia uma iluso, uma qualidade que emerge da grande complexidade, e deve, em ltima anlise, ser explicada por ela. Sua abordagem no aceitaria a intencionalidade com uma explicao melhor que alma. Para um materialista, tais palavras constituem uma reformulao do problema, no uma soluo.

    Neste ponto, convm introduzir as idias de Roger Penro- se, que compartilha a insatisfao materialista com explicaes que envolvem almas ou intencionalidade, porm considera a conscincia um fato inegvel. Penrose levanta uma questo fsica sobre a conscincia, provavelmente similar que Turing tinha em mente ao se referir ao paradoxo na tentativa de localiz-la: deve-se supor que a inteligncia emerge quando a mquina posta em funcionamento? Neste caso, ela no consiste na mquina de estado discreto em si, porm nisto mais sua implementao fsica. Ou residir a inteligncia na tabela abstrata de comportamento? Mas, neste caso, poderiamos escolher uma notao na qual o nmero 42 codifica a tabela de comportamento do crebro de Einstein; pode 42 ter a inteligncia de Einstein? Como diz Turing, sua prpria apresentao deixa tais mistrios sem soluo.

    A contribuio mais positiva de Turing vem como uma resposta ao que ele chamou:

    A Objeo de Lady Lovelace. A informao mais detalhada de que dispomos sobre a Mquina Analtica de Babbage vem de um relato de Lady Lovelace, no qual ela afirma: "A Mquina Analtica no tem pretenso de originar coisa alguma. Ela pode fazer tudo o que sabemos ordenar a ela que execute.

    Esta a deixa para uma longa seo a respeito de mquinas que aprendem, com argumentos construtivos especificando como mquinas podem fazer coisas aparentemente no-mecnicas para as quais no se conhecem programas explcitos: trata-se da primeira apresentao pblica do que de

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  • nominei sua viso de 1941. Turing defende duas abordagens diferentes - na terminologia moderna, de-cima-para-baixo [top-down] e de-baixo-para-cima [bottom-up] - que, na verdade, derivam de suas descries do modelo de mquina de 1936. Notas de instruo explcitas tornam-se programao explcita; estados mentais implcitos tornam-se estados de mquinas atingidos via experincias de aprendizagem e auto-orga- nizao. A firme segurana de Turing de que as mquinas so capazes de tudo o que qualquer pessoa, inclusive ele prprio, havia feito ilustrada por autodesvalorizao masoquista, e uma passagem tem uma ressonncia particular:

    A opinio de que as mquinas no podem dar origem a surpresas deve-se, acredito, a uma falcia que filsofos e matemticos tendem a cometer. Trata-se da suposio de que to logo um fato apresentado mente, todas as suas conseqncias acorrem a ela imediatamente. A suposio bastante til em muitas circunstncias, porm esquece-se facilmente que falsa. Uma conseqncia natural disto que passa-se a pensar que no h mrito algum no mero extrair as conseqncias de dados e princpios gerais.

    Turing dificilmente poderia ter datilografado tais palavras sem uma aluso privada sua prpria contribuio dez anos antes, num outro mundo, uma vez que seu avano decisivo no Enigma envolveu o fluxo instantneo de implicaes, cor- porificadas em engenhosos circuitos eltricos. Ele estava atribuindo ao mecnico uma capacidade de tudo, inclusive de momentos de inspirao que abalam o mundo.

    Chegamos, agora, a um grande conjunto de perguntas que tm origem na questo de como o crebro interage com o mundo exterior. Algumas delas so discutidas por Turing ao lidar com as objees de Jefferson; outras, em conexo com O Argumento das Incapacidades.

    A incapacidade de saborear morangos com creme pode ter dado ao leitor uma impresso de frivolidade. Talvez seja possvel fazer a mquina deleitar-se com esta sobremesa deliciosa, mas

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  • qualquer tentativa de implementar tal idia seria uma idiotice. O importante nesta incapacidade que ela contribui para algumas outras, por exemplo, a dificuldade de que possa haver entre o homem e a mquina o mesmo tipo de relao amistosa encontrvel entre dois homens brancos ou dois homens negros.

    Da mesma forma como a resposta teolgica de Turing no d conta dos temas da filosofia moral, esta passagem consiste em observaes casuais feitas para se livrar de todo o contedo das cincias sociais, em que pensamento e comportamento so dominados por influncias externas. A razo para isto no era que Turing estava seguro de si neste terreno; ao invs, nos tpicos relativos interao que ele se mostra mais inseguro, preocupado com quais rgos sensoriais e motores um crebro artificial deveria ser equipado. No avano de seu pensamento para longe dos clculos matemticos de 1936, ele relacionou primeiro o xadrez, a criptografia e (tentativamente) as lnguas, no relatrio de 1948, como tpicos onde no necessria muita interao. Sua referncia ao fato de se negar mquina sexo, esporte e outras atividades de interesse