tupinambá (séc. xvi) andré soares anzolin (doutorando ... · introdução: a demonização dos...

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“Que com os maus costumes e malicia dos paes se não perca o ensino que se ministra aos filhos": representações, estratégias e justificativas jesuíticas para a tutela das crianças Tupinambá (Séc. XVI) André Soares Anzolin (Doutorando, PPGHIS-UFRGS) Introdução: a demonização dos costumes Tupinambá 1 Já em seus primeiros contatos com as populações ameríndias, os europeus buscaram interpretar esta “outra” humanidade que habitava as terras do Novo Mundo. Em seus relatos, viajantes, cronistas, colonos e religiosos formularam representações 2 a respeito dos povos nativos, projetando sobre elas seus próprios referentes. Assim, constituíram múltiplos discursos sobre as populações indígenas que, por um lado, se reformularam ao longo da experiência do contato na América, e por outro, 1 Utilizo o etnônimo “Tupinambá” para designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos séculos XVI e XVII: Tupinambá propriamente ditos, Tupiniquim, Tamoio, Temiminó, Tupinaé, Caeté etc., que falavam uma mesma língua e participavam da mesma cultura. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002. p.186). Quando da chegada dos europeus, estes grupos ocupavam uma extensa faixa territorial ao longa da costa atlântica, desde Iguape (no sul de São Paulo) até o Ceará. O domínio Tupinambá no litoral, contudo, não era contínuo. Assim, outros grupos indígenas (provavelmente Macro Jê) também ocupavam áreas nas “margens do mar”, em pontos como o norte do Espírito Santo, o sul da Bahia e a divisa entre Ceará e Maranhão. (FAUSTO, 2010, p. 69) 2 O termo representação utilizado neste trabalho alude à definição proposta por Pierre Bourdieu, mais especificamente ao conceito de “representação mental” que, segundo este autor, designa os “actos de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem seus interesses e os seus pressupostos”. (BOURDIEU, 2005. p.112)

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Page 1: Tupinambá (Séc. XVI) André Soares Anzolin (Doutorando ... · Introdução: a demonização dos ... códigos morais estabelecidos pelas Sagradas Escrituras e pela traditio cristã

“Que com os maus costumes e malicia dos paes se não perca o ensino que se ministra aos

filhos": representações, estratégias e justificativas jesuíticas para a tutela das crianças

Tupinambá (Séc. XVI)

André Soares Anzolin (Doutorando, PPGHIS-UFRGS)

Introdução: a demonização dos costumes Tupinambá1

Já em seus primeiros contatos com as populações ameríndias, os europeus

buscaram interpretar esta “outra” humanidade que habitava as terras do Novo Mundo.

Em seus relatos, viajantes, cronistas, colonos e religiosos formularam representações2

a respeito dos povos nativos, projetando sobre elas seus próprios referentes. Assim,

constituíram múltiplos discursos sobre as populações indígenas que, por um lado, se

reformularam ao longo da experiência do contato na América, e por outro,

1 Utilizo o etnônimo “Tupinambá” para designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos

séculos XVI e XVII: Tupinambá propriamente ditos, Tupiniquim, Tamoio, Temiminó, Tupinaé, Caeté

etc., que falavam uma mesma língua e participavam da mesma cultura. (VIVEIROS DE CASTRO,

2002. p.186). Quando da chegada dos europeus, estes grupos ocupavam uma extensa faixa territorial

ao longa da costa atlântica, desde Iguape (no sul de São Paulo) até o Ceará. O domínio Tupinambá no

litoral, contudo, não era contínuo. Assim, outros grupos indígenas (provavelmente Macro Jê) também

ocupavam áreas nas “margens do mar”, em pontos como o norte do Espírito Santo, o sul da Bahia e a

divisa entre Ceará e Maranhão. (FAUSTO, 2010, p. 69) 2 O termo representação utilizado neste trabalho alude à definição proposta por Pierre Bourdieu,

mais especificamente ao conceito de “representação mental” que, segundo este autor, designa os “actos

de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem seus

interesses e os seus pressupostos”. (BOURDIEU, 2005. p.112)

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diferenciavam-se em conteúdo de acordo com o observador e os destinatários de suas

informações.

No caso da América portuguesa, devido à primazia legada a Companhia de

Jesus na tarefa de evangelizar as populações indígenas que ocupavam a costa

atlântica3, os missionários da ordem criada por Inácio de Loyola estiveram entre os

principais construtores destas representações. Como portadores do imaginário que

orientava a cristandade no período4, e ancorados na convicção da universalidade de

seus pressupostos5, os jesuítas aplicaram, sobre os grupos nativos, as categorias e

códigos morais estabelecidos pelas Sagradas Escrituras e pela traditio cristã. Como

bem ressaltou João Adolfo Hansen:

A universalidade da religião cristã na base do direito inclui tais razões a

priori, classificando-as como falta de Bem. Em todos os casos, trata-se de

um modo de pensar fundado metafisicamente como a analogia escolástica,

ou seja, um modo de pensar que estabelece relações de semelhança entre as

práticas indígenas e o princípio metafísico que o regula. (1998, p.349)

E se em outras regiões a idolatria forneceu os subsídios para a construção de

uma representação detrativa dos povos ameríndios, a falta de ídolos entre os

Tupinambá levou os olhares dos inacianos a se orientarem em outro sentido: o dos

costumes. Bestiais, indômitos, carniceiros, selvagens e outras classificações foram

utilizadas para definir uma série de práticas indígenas. Diante da alteridade radical

representada por traços culturais como a antropofagia, as guerras por vingança, a

poligamia, as cauinagens, o xamanismo, a nudez, entre outros, os missionários

classificaram os Tupinambá como povos gentílicos que, por desconhecerem a

revelação divina, praticavam atos de barbárie, definidos como ofensas a Deus e às leis

naturais6.

3 Durante a década de 1560, os jesuítas estavam implantados em 6 centros de povoamento

português: Salvador da Bahia, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Piratininga

sendo a última a única a estar no interior das terras. Na década de 1580 já haviam se estabelecido em

outras duas regiões, Olinda em Pernambuco e Ilhéus na Bahia. 4 “Os imaginários sociais e os símbolos em que eles assentam fazem parte de sistemas

complexos e compósitos, tais como, nomeadamente, os mitos, as religiões, as utopias e as ideologias.”

(BACZKO, 1985. p.312). 5 “Los observadores de los siglos XVI e XVII también vivían em un mundo que creía

firmemente em la universidad de la mayoría de las normas sociales (…) Desde luego, podía existir una

amplia variedad de costumbres locales (el ius gentium o derecho de gentes era un registro de tales

costumbres); pero todas tenían que conformar-se a un cuerpo de meta-leyes, el derecho natural, el ius

naturae.” (PADGEN,1988, p.26) 6 “Quando classificam o novo objeto com as metáforas “animal”, “gentio”, “índio”, “selvagem”

e “bárbaro”, também evidenciam a positividade prescritiva da universalidade de “não-índio”, ou seja, o

“civilizado”, branco, católico, de preferência fidalgo e letrado”. (HANSEN,1998, p.351-352)

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E isto não é tudo. Ocorre ainda que o período das grandes navegações coincidiu

com a época áurea dos tratados demonológicos no Velho Mundo. De fato, esta

temática proliferou no imaginário da cristandade, multiplicando as alusões a entes

demoníacos que eram responsabilizados por toda a sorte de malefícios. Nas palavras

de Jean Delumeau: “a literatura teológica da época é inesgotável sobre esse tema e,

pelos passes de mágica demoníacos, explica todos os surpreendentes conhecimentos

de que não se pode dar conta de outro modo” (1989, p. 255).

Longe de se restringirem ao espaço europeu, estas representações

acompanharam a expansão colonial a partir do século XVI. Deste modo, não tardou

para que a figura do Diabo se tornasse protagonista em terras americanas7. E foram,

em geral, os religiosos os principais difusores destas concepções. Dentre estes, os

jesuítas que atuavam na América portuguesa são representantes destacados. Como

bem apontou Luís Felipe Baêta Neves, para os jesuítas do período “o mundo é o

espaço de uma luta”, em que se opõem potências do Bem e do Mal (1978. p.40). Não

se tratava, é preciso esclarecer, de um pensamento maniqueísta, pois, para os padres,

o poder divino não tinha rival a altura, mas de uma longa batalha das forças do Bem

contra as atividades maléficas do demônio que, de maneira ardilosa, insistia em criar

barreiras à propagação da fé cristã.

Neste sentido, a falta de conhecimento da revelação divina, aliada a presença

de práticas “bestiais”, indicava que os índios não eram apenas pecadores, mas povos

que estavam a mercê de uma verdadeira tirania das forças demoníacas8. Esta

percepção provocou, nas fontes missionárias do período quinhentista, uma

abundância de referências que buscavam relacionar a influência diabólica aos “maus

costumes” das populações indígenas que habitavam a costa. Entre os exemplos que

permitem constatar esta associação, as falas dos “personagens diabólicos” dos autos

do teatro jesuítico da missão (TORRES, 2006) estão entre os mais elucidativos. No

Auto representado na Aldeia de Guaraparim, o demônio Mboiuçu exclama:

7 Acusados de instigar os índios a revolta, de colocá-los contra o cristianismo ou de provocar

deliberadamente as secas, os demônios foram os grandes protagonistas dos primeiros anos. De modo

que, longe de ser completamente negada uma parte das culturas indígenas representava, para os

religiosos, a realidade ameaçadora e negra do demoníaco. (GRUZINSKY, 2003. p.272) 8 “De certa maneira os povos indígenas do Brasil eram a encarnação perfeita do êxito do

Demônio, na medida em que praticavam abertamente atos anti-sociais e anti-naturais que a repressão

denunciava na Europa.”(MENGET, 1999. p.170)

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Mboiçu

Dizendo isto, eu não sou fraco. Eu induzo os adversários a hábitos pecaminosos Depois eu os faço caírem É terrível o meu nome.9

Em sentido semelhante fala o diabo Guaixará, personagem do Auto

representado na Aldeia de São Lourenço:

Guaixará

É bom dançar, adornar-se, tingir-se de vermelho, empenar o corpo, pintar as pernas fazer-se negro, fumar curandeirar. De enfurecer-se, andar matando, comer um ao outro, prender tapuias, amancebar-se, ser desonesto, espião, adúltero - não quero que o gentio deixe.10

De forma clara é possível observar que neste e em outros instrumentos

pedagógicos elaborados pelos padres da Companhia de Jesus, as figuras diabólicas

eram representadas como agentes responsáveis pela manutenção dos “hábitos

pecaminosos” entre os nativos. Eram elas que induziam os índios à poligamia, ao

xamanismo, à antropofagia, em suma, a toda sorte de vícios e práticas bestiais. Nas

cartas escritas pelos missionários, do mesmo modo, a figura demoníaca é

constantemente responsabilizada por arquitetar e induzir os índios à realização de

cerimônias e costumes abertamente contrários à moral cristã. Para os missionários, se

os costumes “bestiais” dos Tupinambá restringiam a expansão das leis de Deus, mais

do que pecados, elas atestavam a presença da tirania de forças malignas sobre os

nativos:

Porque a gente é tão indômita e está tão encarniçada em comer carne

humana e isenta em não reconhecer superior, que será mui dificultoso ser

firme o que se plantar, se não houver êste remédio, o qual continuamente

pedem cá os Padres e Irmãos a Nosso Senhor e estão mui consolados por

haver quase certeza que pola terra a dentro se descobrem muitos metais,

porque com isto se habitará muito esta terra, e estes pobres Indios, que tão

tiranizados estão do demônio, se converterão a seu Creador 11

Contudo, se a influência demoníaca atingia o conjunto destes grupos

indígenas, havia, segundo os inacianos, aqueles que manifestavam esta condição de

9 Auto representado na aldeia de Guaraparim. (ANCHIETA, 1954, p. 615) 10 Auto representado na Festa de São Lourenço. Idem. p. 686. 11 Carta endereçada “Aos Padres e Irmãos da Compania de Jesus em Portugal, de Piratininga,

1555”. (ANCHIETA, 1933. p. 77)

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forma mais patente. Neste sentido, não há dúvidas de que os pajés e karaíbas

constituíram os principais focos das acusações dos padres. Diante da realização de

práticas xamânicas, do conteúdo mítico-religioso de suas pregações, e, sobretudo, da

ascendência que exerciam sobre demais indígenas, os missionários não hesitaram em

apontar as ligações entre o Diabo e os xamãs Tupinambá12. Para Anchieta, os

“feiticeiros” indígenas eram verdadeiros instrumentos guiados pelo demônio:

Além disto dizem que têm um espirito dentro de si com o qual podem

matar, e com isto metem medo e fazem muitos discipulos comunicando este

seu espirito a outros com os defumar e assoprar, e ás vezes é isto de maneira

que o recebe o tal espirito treme e súa grandissimamente. De modo que bem

se pode crer que ali particularmente obra o demonio e entre neles (...)13.

Além dos xamãs, os indígenas mais velhos também ocuparam, ainda que em

menor escala, o papel de representantes das forças diabólicas na ótica dos padres. Do

mesmo modo, o que os jesuítas enfatizavam era, sobretudo, a influência que os

“velhos” e “velhas” exerciam perante os mais jovens. Em uma passagem do teatro

jesuítico que ilustra bem esta visão, a fala do personagem diabólico Aimbirê sobre as

“velhas” deixa claro o papel que a elas era atribuído pelos missionários:

Aimbirê -Elas são, de fato, más. Exorcizando, industriando os homens, eles abandonaram a lei de Deus, estimando à mim somente.14

Criavam-se, assim, representações sobre os Tupinambá, que enfatizavam não

apenas a prática, mas também o apego dos índios aos hábitos pecaminosos. Tomados

como manifestações da influência diabólica sobre os nativos, estes “vícios”

persistiam, pois, segundo os padres, eram constantemente retomados, sobretudo pela

ação de xamãs e indígenas velhos/as. Assim, mesmo aqueles que, em um primeiro

momento, mostravam-se receptivos a pregação dos jesuítas, não tardavam a retornar

às suas antigas práticas. Como bem observou o Pe. José de Anchieta em carta escrita

no ano de 1556, nem entre os indígenas que se afirmavam cristãos haviam sinais de

abandono dos “maus costumes”:

Assim que trabalhamos quanto podemos em os doutrinar, procurando de os

apartar de seus antigos costumes; alguns crêem; a maior parte ainda

12 “Enfim: são eles que se opõem com toda sua força e poder diabólico ao grande desenho

catequético de marca escatológica, ou seja, à realização do grandioso projeto do Reino de Deus na

Terra”. (POMPA, 2001, p. 37) 13 Informação do Brasil e de suas Capitanias-1584. (ANCHIETA, 1933, p.331)

14 Auto representado na Festa de São Lourenço. (ANCHIETA, 1954, p.690)

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permanece neles, ainda que todos dizem que crêm em Deus porque nenhum

deles há que não diga que crê e tem nossa fé. 15

Tutela e salvação: a “constância” das crianças Tupinambá

Até aqui, tratamos, basicamente, de como algumas concepções teológicas que

dominavam o imaginário da cristandade quinhentista influenciaram às representações

que os jesuítas construíram a respeito das populações indígenas que habitavam o

litoral atlântico. Neste contexto, foi possível destacar que, para os missionários, os

“maus costumes” dos Tupinambá não eram somente ofensas às leis divinas, mas

também sinais da existência de uma tirania diabólica sobre os índios. Além disto,

pontuou-se que, pela influência que exerciam sobre os demais para a manutenção

destas práticas, os pajés e indígenas mais velhos acabaram por concentrar acusações

de que estariam a serviço das forças demoníacas.

O interesse agora é demonstrar como estas representações participaram do

processo de construção e/ou legitimação das estratégias evangelizadoras adotadas

pelos jesuítas. Em outros termos, buscaremos enfatizar a influência destes “atos de

percepção” para a compreensão das ações e condutas adotas pelos missionários que

desenvolviam a catequese entre os Tupinambá. Para isto, optou-se por abordar um

tema específico. Trata-se da questão da doutrinação e do exercício da tutela das

crianças indígenas pelos padres da Companhia de Jesus. Nesta perspectiva, iniciamos

retomando algumas das reflexões de Bronislaw Baczko sobre o tema da imaginação e

do imaginário social. Buscando ressaltar os equívocos de teorias que concebiam uma

separação entre representações e realidade, o autor lança seus argumentos em forma

de questões:

Em qualquer conflito social grave — uma guerra, uma revolução — não

serão as imagens exaltantes e magnificentes dos objectivos a atingir e dos

frutos da vitória procurada uma condição de possibilidade da própria acção

das forças em presença? Como é que se podem separar, neste tipo de

conflitos, os agentes e os seus actos das imagens que aqueles têm de si

próprios e dos inimigos, sejam estes inimigos de classe, religião, raça,

nacionalidade, etc.? Não são as acções efectivamente guiadas por estas

15 Carta “De Piratininga, fim de dezembro de 1556”. (ANCHIETA, 1933, pp. 94,95)

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representações; não modelam elas os comportamentos; não mobilizam elas

as energias; não legitimam elas as violências? (1985, p. 298.)

Como bem ressalta Baczko, as representações estão diretamente vinculadas as

ações e comportamentos dos sujeitos. Pensando em situações de contato interétnico

— como aquele que se estabeleceu entre missionários jesuítas e indígenas Tupinambá

no séc. XVI — são as percepções sobre o “outro” que tendem a moldar as formas

pelas quais se desenvolverão estas interações. Como já destacamos, para os jesuítas

os Tupinambá eram povos gentílicos que, devido a falta de conhecimento sobre a

verdadeira revelação, estavam à mercê da influência diabólica. Deste modo, já em um

primeiro momento, estas representações acabam por mobilizar os inacianos, que

passam a conceber sua missão entre os nativos como uma verdadeira batalha contra

as forças diabólicas.

Diante deste quadro, os missionários precisavam agir. Assim, passaram a

engendrar estratégias com o intuito de extirpar os “vícios” dos nativos. De forma

gradativa, substituíram as missões volantes pela convivência com os índios, e, a partir

daí, desenvolveram uma série de práticas e instrumentos pedagógicos de cunho

evangelizador. No entanto, em que pese o esforço e o refinamento do projeto

catequético, tais medidas alcançaram pouca efetividade, parte devido a própria

escassez de missionários habilitados a promover a catequese na província

(CASTELNAU-L’ESTOILE, 2006). Soma-se a isto, o fato já destacado de que a

grande maioria dos índios adultos (sobretudo os mais velhos) se mostrou demasiado

“inconstante”16 para receber a doutrinação. Com efeito, a persistência dos antigos

costumes entre os indígenas levou a multiplicar-se, entre os missionários, a opinião

de que os Tupinambá constituíam uma “vinha estéril” para a propagação da fé cristã.

E o problema não era apenas a inconstância dos adultos, mas, sobretudo, os

“maus exemplos” que estes davam aos mais jovens. Nos relatos legados pelos

inacianos, os “mais velhos” agem como verdadeiros ministros do Diabo a inculcar

práticas bestiais entre os “inocentes”. Assim, os missionários iniciaram, já nos

primeiros anos de contato, a definir o ensino das crianças indígenas como um de seus

16 Segundo propõe o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ao buscar estabelecer uma

identidade cristã totalizante entre os índios, os padres teriam esbarrado em um dos fundamentos

simbólicos da cultura Tupinambá, que concebia as relações com as alteridades (humanos, animais e

seres extra-humanos), e não a “identidade substancial”, os valores a serem afirmados. Neste sentido, a

lógica da “abertura para o outro” impedia que os indígenas aceitassem de todo os dogmas apresentados

pelos padres. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002. p.206)

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focos de atuação. E para a efetivação desta política, segundo destacou o Pe. Navarro,

a primeira medida deveria se concentrar em retirar os jovens da convívio daqueles

que permaneciam na “gentilidade”:

e os mais velhos são tão maliciosos, em grande parte, que todo o bem que

lhes diga convertem, como a aranha, em veneno; só aos pequenos acho com

boa inclinação, si os tirassemos de casa de seus paes, o que não se poderá

fazer sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com

destino a essas crianças para as educar, de maneira que com os maus

costumes e malicia dos paes se não perca o ensino que se ministra aos

filhos.17

Observa-se que, para além do ensino e doutrinação, os missionários defendiam

também o exercício de uma tutela sobre as crianças indígenas. Neste contexto, a

“malícia” e o mau exemplo dos adultos tornavam-se justificativas para que os jesuítas

interviessem sobre os “filhos”. Assim, a representação sobre este “outro”, mais do que

orientar a atuação dos missionários, torna-se a base para a legitimação uma política de

tutelação das crianças Tupinambá18. Desde esta perspectiva, afastar os jovens de

parentes que se mantinham em condutas bestiais tornava-se ato de misericórdia, pois

privaria os inocentes da influência nefasta dos mais velhos. Ou seja, retirar as

crianças do convívio direto com adultos “maliciosos” era o mesmo que livrá-los da

própria tirania diabólica, pois, ao cabo, era por influência desta que os índios

praticavam seus hábitos pecaminosos.

E mesmo não dispondo de um aparato capaz de impor estas operações de

forma sistemática sobre os Tupinambá que ocupavam o litoral, os missionários

engendraram alguns meios para atingir tal objetivo. Um exemplo bastante elucidativo

deste “modo de proceder” pode ser vislumbrado em um caso descrito pelo Pe.

Antônio Blasquez ainda na década de 1550:

Dispoz-se logo o Irmão para visitar as aldêas, e da primeira vez que foi a

ellas, trouxe dous meninos; a um delles puzeram o nome Paulo, e ao outro

Pedro. Da segunda vez trouxe três mui bonitos, a que o padre Ambrosio

Pires poz os nomes dos três Reis Magos. Dahi por diante, ajudando-se da

obediência, ora trazia quatro, ora cinco, ora seis, de modo que lhe cobraram

tanta affeição que fugindo de suas mães o vinham aguardar ao caminho para

que os trouxesse comsigo; entre os quaes se achou um de seis annos que

agora é já christão, e chama-se Ambrosio, que, deixada a avó, que tinha em

17 Extracto de uma carta do padre João de Azpilcueta Navarro da Índia do Brasil a 28 de março

de 1550. (AZPILCUETA NAVARRO, 1988. p.51). 18 “Em contrapartida, todo o poder tem de se impor não só como poderoso, mas também como

legítimo. Ora, na legitimação de um poder, as circunstâncias e os acontecimentos que estão na sua

origem contam tanto, ou menos, do que o imaginário a que dão nascimento e de que o poder

estabelecido se apropria. As relações de força e de poder que toda a dominação comporta,

acrescentam-se assim as relações de sentido..” (BACZKO, 1985. p. 310)

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lugar de mãe, veio a esperar ao caminho ao Irmão, em companhia de outros

meninos, o que sabendo a velha, foi logo depôs elle, e com grande fúria o

arrebatou de entre seus companheirinhos. Já ella o trazia, agora com

ameaças, agora com mimos, sinão quando encontra ao Irmão, que fazia

volta; como o viu o menino, começou a chorar para vir com elle: não

aproveitavam os affagos da avó, nem os espantos que lhe fazia o Irmão para

o apartar de seu desejo. Dizia-lhe João Gonçalves: uma de duas, ou ficar

com a velha ou vir-se com elle (...) Vendo o Irmão sua constância, o trouxe

comsigo, ficando a velha assaz triste. Não pouco depois, com o exemplo

destes, outros nove meninos se moveram a fazer o mesmo que estes outros

,em dia dos Reis Magos, que parece o ordenou assim o Senhor para

remunerar o trabalho de três Irmãos que aquelle dia lhes coube ir ás aldêas a

fazer a doutrina, a qual acabada, saem a elles os nove importunando a que

os trouxessem. 19

Com efeito, o exemplo permite perceber a construção de estratégias destinadas

a atrair crianças indígenas para o convívio com os inacianos. Acompanhados por

catecúmenos, os padres, sobretudo nos primeiros anos de atividade missionária na

América portuguesa, visitavam aldeias tendo como um de seus objetivos o de atrair

novos jovens neófitos. Se este não foi o único modo pelo qual os inacianos puderam

constituir estas relações com as crianças indígenas, o certo é que, dada a recorrência

ressaltada pelo padre Antônio Blásquez, está prática parece ter sido comum nos

primórdios da missão.

Além disto, nota-se que importava pouco aos padres se estes jovens possuíam

ou não a anuência de seus pais ou parentes próximos. Isto, pois, se a permanência das

crianças sob a influência dos vícios dos mais velhos representava a vitória das forças

da Mal, a atitude de jovens que “optavam” por seguir os padres só poderia representar

o seu oposto, qual seja, o de que a graça divina agia sobre os inocentes orientando-os

rumo a salvação. Diante disto, a desaprovação dos adultos (neste caso, da “velha”!)

tornava-se um fato secundário, ou melhor, apenas mais uma barreira interposta pelas

forças malignas com o intuito de impedir o avanço da evangelização. A

representação, neste contexto, legitimava o exercício de um poder por parte dos

missionários, que concebiam sua intervenção de tutela sobre as crianças como uma

medida justificada com base no argumento de que, do contrário, elas permaneceriam

expostas à influência diabólica.

A convicção de que a doutrinação dos jovens deveria constituir o centro da

atuação missionária entre os Tupinambá, portanto, se formaria antes da criação dos

19 Summa de algumas cousas que iam em a náo que se perdeu do bispo para o nosso padre

Ignacio. (escrita pelo Pe. Antonio Blasquez “por comissão” do Pe. Manuel da Nóbrega).

(AZPILCUETA NAVARRO,1988. p.169)

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primeiros aldeamentos em 1558. Assim, torna-se mais fácil compreender a rápida

expansão desta política ainda durante o período inicial de fundação destas povoações.

Em um registro de setembro de 1558, que trata da fundação dos primeiros

aldeamentos na Bahia, pode-se ler:

Os filhos se ensinam com muita diligencia e bons costumes e a ler e

escrever, e alguns delles são mui hábeis, destes esperamos tirar bons

discipulos, porque, como não podem já ir pera outra parte e são contínuos,

não poderão deixar de saber muito.20

Em meio a “inconstância” dos adultos, a doutrinação das crianças tornava-se

cada vez mais “continua”, passando a constituir um consolo as atividades dos

inacianos. De fato, os bons resultados obtidos com os jovens representavam uma

esperança frente as tantas dificuldades impostas pelos mais velhos. E no ambiente dos

aldeamentos, onde a “constância” do contato com as crianças tornou-se

consideravelmente mais ampla, os missionários não tardariam a relatar seus primeiros

frutos. É o que se pode notar nas descrições a respeito da participação das crianças

nos “jubileus” comemorados nas aldeias da Bahia em 1564. Sobre a celebração

realizada na aldeia de S. Tiago, o padre Antônio Blasquez registraria:

Nesse dia, quasi ás horas do jantar, chegou o padre Antônio Rodrigues com

o seu coro de Indiosicos, que já de ha tempos tem mui bem adextrados; com

elle vinham o padre Simeão Gonçalves com os seus de Santo Antônio, e o

padre Vicente Fernandes com os seus de S. Paulo. (...) Fallarei somente da

procissão que se fez neste dia, a qual foi tão sumptuosa e solemne, tanto por

causa do numero e diversidade de gente, como pelo apparato e pompa com

que foi ordenada. Na dianteira iam os meninos de cinco povoações que,

ultra de serem muitos, vêl-os a todos christãos fazia um formoso

espectaculo. 21

Os resultados advindos da tutela e ensino das crianças acabavam

confirmando— desde a perspectiva dos missionários— as teses que já eram

defendidas pelos primeiros jesuítas que estabeleceram contatos com os Tupinambá.

Dito de outra forma, as demonstrações de fé dos jovens catecúmenos serviam como

prova de que, ao estabeleceram relações “contínuas” com as crianças indígenas, os

padres logravam afastá-las das práticas “bestiais” que persistiam entre os mais velhos.

Em última instância, tratava-se, portanto, de uma vitória sobre as próprias forças

20 Traslado de outra da Bahia de 12 de setembro de 1558. (AZPILCUETA NAVARRO, 1988.

p.204) 21 Carta do Padre Antônio Blasquez do collegio da Bahia de Todos os Santos do Brasil para

Portugal e escripta a 13 de setembro de 1564. (Idem. pp. 424,425)

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diabólicas que, não dispondo da possibilidade de alcançar as crianças através dos

mais velhos, viam minguar seus poderes para influenciar os “inocentes”22.

Conclusão

O estudo dos elementos que compunham o imaginário que orientava os

religiosos da Companhia de Jesus, bem como das representações que, a partir desse,

foram formuladas a respeito dos Tupinambá, é fundamental para a compreensão da

conduta adotada pelos inacianos entre os nativos da costa brasílica. De fato, a ideia de

que a missão constituía uma verdadeira batalha entre o bem e o mal não apenas

influenciava a construção de estratégias de evangelização, como também às

legitimava. Ao classificar as práticas indígenas como bestiais ou demoníacas, as

ações tomadas com vistas a extirpá-las tornavam-se justificadas e, mais do que isto,

consonantes com os desígnios da Providência Divina.

É o que se observa na questão da tutela e ensino das crianças indígenas. A

representação demonizada dos costumes indígenas, bem como a culpabilização dos

xamãs, velhos e velhas Tupinambá pela sua manutenção, acabou por estimular, entre

os padres, a ideia de que os esforços catequéticos deveriam se concentrar na

doutrinação das crianças indígenas. Ao mesmo tempo, estas representações serviram

para legitimar o desenvolvimento de estratégias de poder à serem implementadas com

este fim; e mais, elas transformaram tais operações em atos de misericórdia, pois,

para os padres, constituíam a única possibilidade de que os jovens indígenas

pudessem alcançar a salvação. Com efeito, desde esta perspectiva, toda medida capaz

de afastar os inocentes dos “vícios” dos mais velhos era justificada, posto que se

orientava com o objetivo de combater a influência diabólica que ameaçava os jovens

Tupinambá.

22 “Com efeito, o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui

um apelo a acção, um apelo a comportarse de determinada maneira. Esquema de interpretação, mas

também de valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém

eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, modelando os comportamentos,

capturando as energias e, em caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma acção comum.

Por exemplo, as representações que legitimam um poder informam acerca da sua realidade e

comprovam-no.”. (BACZKO, 1985. pp. 311, 312)

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