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“Que com os maus costumes e malicia dos paes se não perca o ensino que se ministra aos
filhos": representações, estratégias e justificativas jesuíticas para a tutela das crianças
Tupinambá (Séc. XVI)
André Soares Anzolin (Doutorando, PPGHIS-UFRGS)
Introdução: a demonização dos costumes Tupinambá1
Já em seus primeiros contatos com as populações ameríndias, os europeus
buscaram interpretar esta “outra” humanidade que habitava as terras do Novo Mundo.
Em seus relatos, viajantes, cronistas, colonos e religiosos formularam representações2
a respeito dos povos nativos, projetando sobre elas seus próprios referentes. Assim,
constituíram múltiplos discursos sobre as populações indígenas que, por um lado, se
reformularam ao longo da experiência do contato na América, e por outro,
1 Utilizo o etnônimo “Tupinambá” para designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos
séculos XVI e XVII: Tupinambá propriamente ditos, Tupiniquim, Tamoio, Temiminó, Tupinaé, Caeté
etc., que falavam uma mesma língua e participavam da mesma cultura. (VIVEIROS DE CASTRO,
2002. p.186). Quando da chegada dos europeus, estes grupos ocupavam uma extensa faixa territorial
ao longa da costa atlântica, desde Iguape (no sul de São Paulo) até o Ceará. O domínio Tupinambá no
litoral, contudo, não era contínuo. Assim, outros grupos indígenas (provavelmente Macro Jê) também
ocupavam áreas nas “margens do mar”, em pontos como o norte do Espírito Santo, o sul da Bahia e a
divisa entre Ceará e Maranhão. (FAUSTO, 2010, p. 69) 2 O termo representação utilizado neste trabalho alude à definição proposta por Pierre Bourdieu,
mais especificamente ao conceito de “representação mental” que, segundo este autor, designa os “actos
de percepção e de apreciação, de conhecimento e reconhecimento em que os agentes investem seus
interesses e os seus pressupostos”. (BOURDIEU, 2005. p.112)
diferenciavam-se em conteúdo de acordo com o observador e os destinatários de suas
informações.
No caso da América portuguesa, devido à primazia legada a Companhia de
Jesus na tarefa de evangelizar as populações indígenas que ocupavam a costa
atlântica3, os missionários da ordem criada por Inácio de Loyola estiveram entre os
principais construtores destas representações. Como portadores do imaginário que
orientava a cristandade no período4, e ancorados na convicção da universalidade de
seus pressupostos5, os jesuítas aplicaram, sobre os grupos nativos, as categorias e
códigos morais estabelecidos pelas Sagradas Escrituras e pela traditio cristã. Como
bem ressaltou João Adolfo Hansen:
A universalidade da religião cristã na base do direito inclui tais razões a
priori, classificando-as como falta de Bem. Em todos os casos, trata-se de
um modo de pensar fundado metafisicamente como a analogia escolástica,
ou seja, um modo de pensar que estabelece relações de semelhança entre as
práticas indígenas e o princípio metafísico que o regula. (1998, p.349)
E se em outras regiões a idolatria forneceu os subsídios para a construção de
uma representação detrativa dos povos ameríndios, a falta de ídolos entre os
Tupinambá levou os olhares dos inacianos a se orientarem em outro sentido: o dos
costumes. Bestiais, indômitos, carniceiros, selvagens e outras classificações foram
utilizadas para definir uma série de práticas indígenas. Diante da alteridade radical
representada por traços culturais como a antropofagia, as guerras por vingança, a
poligamia, as cauinagens, o xamanismo, a nudez, entre outros, os missionários
classificaram os Tupinambá como povos gentílicos que, por desconhecerem a
revelação divina, praticavam atos de barbárie, definidos como ofensas a Deus e às leis
naturais6.
3 Durante a década de 1560, os jesuítas estavam implantados em 6 centros de povoamento
português: Salvador da Bahia, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Piratininga
sendo a última a única a estar no interior das terras. Na década de 1580 já haviam se estabelecido em
outras duas regiões, Olinda em Pernambuco e Ilhéus na Bahia. 4 “Os imaginários sociais e os símbolos em que eles assentam fazem parte de sistemas
complexos e compósitos, tais como, nomeadamente, os mitos, as religiões, as utopias e as ideologias.”
(BACZKO, 1985. p.312). 5 “Los observadores de los siglos XVI e XVII también vivían em un mundo que creía
firmemente em la universidad de la mayoría de las normas sociales (…) Desde luego, podía existir una
amplia variedad de costumbres locales (el ius gentium o derecho de gentes era un registro de tales
costumbres); pero todas tenían que conformar-se a un cuerpo de meta-leyes, el derecho natural, el ius
naturae.” (PADGEN,1988, p.26) 6 “Quando classificam o novo objeto com as metáforas “animal”, “gentio”, “índio”, “selvagem”
e “bárbaro”, também evidenciam a positividade prescritiva da universalidade de “não-índio”, ou seja, o
“civilizado”, branco, católico, de preferência fidalgo e letrado”. (HANSEN,1998, p.351-352)
E isto não é tudo. Ocorre ainda que o período das grandes navegações coincidiu
com a época áurea dos tratados demonológicos no Velho Mundo. De fato, esta
temática proliferou no imaginário da cristandade, multiplicando as alusões a entes
demoníacos que eram responsabilizados por toda a sorte de malefícios. Nas palavras
de Jean Delumeau: “a literatura teológica da época é inesgotável sobre esse tema e,
pelos passes de mágica demoníacos, explica todos os surpreendentes conhecimentos
de que não se pode dar conta de outro modo” (1989, p. 255).
Longe de se restringirem ao espaço europeu, estas representações
acompanharam a expansão colonial a partir do século XVI. Deste modo, não tardou
para que a figura do Diabo se tornasse protagonista em terras americanas7. E foram,
em geral, os religiosos os principais difusores destas concepções. Dentre estes, os
jesuítas que atuavam na América portuguesa são representantes destacados. Como
bem apontou Luís Felipe Baêta Neves, para os jesuítas do período “o mundo é o
espaço de uma luta”, em que se opõem potências do Bem e do Mal (1978. p.40). Não
se tratava, é preciso esclarecer, de um pensamento maniqueísta, pois, para os padres,
o poder divino não tinha rival a altura, mas de uma longa batalha das forças do Bem
contra as atividades maléficas do demônio que, de maneira ardilosa, insistia em criar
barreiras à propagação da fé cristã.
Neste sentido, a falta de conhecimento da revelação divina, aliada a presença
de práticas “bestiais”, indicava que os índios não eram apenas pecadores, mas povos
que estavam a mercê de uma verdadeira tirania das forças demoníacas8. Esta
percepção provocou, nas fontes missionárias do período quinhentista, uma
abundância de referências que buscavam relacionar a influência diabólica aos “maus
costumes” das populações indígenas que habitavam a costa. Entre os exemplos que
permitem constatar esta associação, as falas dos “personagens diabólicos” dos autos
do teatro jesuítico da missão (TORRES, 2006) estão entre os mais elucidativos. No
Auto representado na Aldeia de Guaraparim, o demônio Mboiuçu exclama:
7 Acusados de instigar os índios a revolta, de colocá-los contra o cristianismo ou de provocar
deliberadamente as secas, os demônios foram os grandes protagonistas dos primeiros anos. De modo
que, longe de ser completamente negada uma parte das culturas indígenas representava, para os
religiosos, a realidade ameaçadora e negra do demoníaco. (GRUZINSKY, 2003. p.272) 8 “De certa maneira os povos indígenas do Brasil eram a encarnação perfeita do êxito do
Demônio, na medida em que praticavam abertamente atos anti-sociais e anti-naturais que a repressão
denunciava na Europa.”(MENGET, 1999. p.170)
Mboiçu
Dizendo isto, eu não sou fraco. Eu induzo os adversários a hábitos pecaminosos Depois eu os faço caírem É terrível o meu nome.9
Em sentido semelhante fala o diabo Guaixará, personagem do Auto
representado na Aldeia de São Lourenço:
Guaixará
É bom dançar, adornar-se, tingir-se de vermelho, empenar o corpo, pintar as pernas fazer-se negro, fumar curandeirar. De enfurecer-se, andar matando, comer um ao outro, prender tapuias, amancebar-se, ser desonesto, espião, adúltero - não quero que o gentio deixe.10
De forma clara é possível observar que neste e em outros instrumentos
pedagógicos elaborados pelos padres da Companhia de Jesus, as figuras diabólicas
eram representadas como agentes responsáveis pela manutenção dos “hábitos
pecaminosos” entre os nativos. Eram elas que induziam os índios à poligamia, ao
xamanismo, à antropofagia, em suma, a toda sorte de vícios e práticas bestiais. Nas
cartas escritas pelos missionários, do mesmo modo, a figura demoníaca é
constantemente responsabilizada por arquitetar e induzir os índios à realização de
cerimônias e costumes abertamente contrários à moral cristã. Para os missionários, se
os costumes “bestiais” dos Tupinambá restringiam a expansão das leis de Deus, mais
do que pecados, elas atestavam a presença da tirania de forças malignas sobre os
nativos:
Porque a gente é tão indômita e está tão encarniçada em comer carne
humana e isenta em não reconhecer superior, que será mui dificultoso ser
firme o que se plantar, se não houver êste remédio, o qual continuamente
pedem cá os Padres e Irmãos a Nosso Senhor e estão mui consolados por
haver quase certeza que pola terra a dentro se descobrem muitos metais,
porque com isto se habitará muito esta terra, e estes pobres Indios, que tão
tiranizados estão do demônio, se converterão a seu Creador 11
Contudo, se a influência demoníaca atingia o conjunto destes grupos
indígenas, havia, segundo os inacianos, aqueles que manifestavam esta condição de
9 Auto representado na aldeia de Guaraparim. (ANCHIETA, 1954, p. 615) 10 Auto representado na Festa de São Lourenço. Idem. p. 686. 11 Carta endereçada “Aos Padres e Irmãos da Compania de Jesus em Portugal, de Piratininga,
1555”. (ANCHIETA, 1933. p. 77)
forma mais patente. Neste sentido, não há dúvidas de que os pajés e karaíbas
constituíram os principais focos das acusações dos padres. Diante da realização de
práticas xamânicas, do conteúdo mítico-religioso de suas pregações, e, sobretudo, da
ascendência que exerciam sobre demais indígenas, os missionários não hesitaram em
apontar as ligações entre o Diabo e os xamãs Tupinambá12. Para Anchieta, os
“feiticeiros” indígenas eram verdadeiros instrumentos guiados pelo demônio:
Além disto dizem que têm um espirito dentro de si com o qual podem
matar, e com isto metem medo e fazem muitos discipulos comunicando este
seu espirito a outros com os defumar e assoprar, e ás vezes é isto de maneira
que o recebe o tal espirito treme e súa grandissimamente. De modo que bem
se pode crer que ali particularmente obra o demonio e entre neles (...)13.
Além dos xamãs, os indígenas mais velhos também ocuparam, ainda que em
menor escala, o papel de representantes das forças diabólicas na ótica dos padres. Do
mesmo modo, o que os jesuítas enfatizavam era, sobretudo, a influência que os
“velhos” e “velhas” exerciam perante os mais jovens. Em uma passagem do teatro
jesuítico que ilustra bem esta visão, a fala do personagem diabólico Aimbirê sobre as
“velhas” deixa claro o papel que a elas era atribuído pelos missionários:
Aimbirê -Elas são, de fato, más. Exorcizando, industriando os homens, eles abandonaram a lei de Deus, estimando à mim somente.14
Criavam-se, assim, representações sobre os Tupinambá, que enfatizavam não
apenas a prática, mas também o apego dos índios aos hábitos pecaminosos. Tomados
como manifestações da influência diabólica sobre os nativos, estes “vícios”
persistiam, pois, segundo os padres, eram constantemente retomados, sobretudo pela
ação de xamãs e indígenas velhos/as. Assim, mesmo aqueles que, em um primeiro
momento, mostravam-se receptivos a pregação dos jesuítas, não tardavam a retornar
às suas antigas práticas. Como bem observou o Pe. José de Anchieta em carta escrita
no ano de 1556, nem entre os indígenas que se afirmavam cristãos haviam sinais de
abandono dos “maus costumes”:
Assim que trabalhamos quanto podemos em os doutrinar, procurando de os
apartar de seus antigos costumes; alguns crêem; a maior parte ainda
12 “Enfim: são eles que se opõem com toda sua força e poder diabólico ao grande desenho
catequético de marca escatológica, ou seja, à realização do grandioso projeto do Reino de Deus na
Terra”. (POMPA, 2001, p. 37) 13 Informação do Brasil e de suas Capitanias-1584. (ANCHIETA, 1933, p.331)
14 Auto representado na Festa de São Lourenço. (ANCHIETA, 1954, p.690)
permanece neles, ainda que todos dizem que crêm em Deus porque nenhum
deles há que não diga que crê e tem nossa fé. 15
Tutela e salvação: a “constância” das crianças Tupinambá
Até aqui, tratamos, basicamente, de como algumas concepções teológicas que
dominavam o imaginário da cristandade quinhentista influenciaram às representações
que os jesuítas construíram a respeito das populações indígenas que habitavam o
litoral atlântico. Neste contexto, foi possível destacar que, para os missionários, os
“maus costumes” dos Tupinambá não eram somente ofensas às leis divinas, mas
também sinais da existência de uma tirania diabólica sobre os índios. Além disto,
pontuou-se que, pela influência que exerciam sobre os demais para a manutenção
destas práticas, os pajés e indígenas mais velhos acabaram por concentrar acusações
de que estariam a serviço das forças demoníacas.
O interesse agora é demonstrar como estas representações participaram do
processo de construção e/ou legitimação das estratégias evangelizadoras adotadas
pelos jesuítas. Em outros termos, buscaremos enfatizar a influência destes “atos de
percepção” para a compreensão das ações e condutas adotas pelos missionários que
desenvolviam a catequese entre os Tupinambá. Para isto, optou-se por abordar um
tema específico. Trata-se da questão da doutrinação e do exercício da tutela das
crianças indígenas pelos padres da Companhia de Jesus. Nesta perspectiva, iniciamos
retomando algumas das reflexões de Bronislaw Baczko sobre o tema da imaginação e
do imaginário social. Buscando ressaltar os equívocos de teorias que concebiam uma
separação entre representações e realidade, o autor lança seus argumentos em forma
de questões:
Em qualquer conflito social grave — uma guerra, uma revolução — não
serão as imagens exaltantes e magnificentes dos objectivos a atingir e dos
frutos da vitória procurada uma condição de possibilidade da própria acção
das forças em presença? Como é que se podem separar, neste tipo de
conflitos, os agentes e os seus actos das imagens que aqueles têm de si
próprios e dos inimigos, sejam estes inimigos de classe, religião, raça,
nacionalidade, etc.? Não são as acções efectivamente guiadas por estas
15 Carta “De Piratininga, fim de dezembro de 1556”. (ANCHIETA, 1933, pp. 94,95)
representações; não modelam elas os comportamentos; não mobilizam elas
as energias; não legitimam elas as violências? (1985, p. 298.)
Como bem ressalta Baczko, as representações estão diretamente vinculadas as
ações e comportamentos dos sujeitos. Pensando em situações de contato interétnico
— como aquele que se estabeleceu entre missionários jesuítas e indígenas Tupinambá
no séc. XVI — são as percepções sobre o “outro” que tendem a moldar as formas
pelas quais se desenvolverão estas interações. Como já destacamos, para os jesuítas
os Tupinambá eram povos gentílicos que, devido a falta de conhecimento sobre a
verdadeira revelação, estavam à mercê da influência diabólica. Deste modo, já em um
primeiro momento, estas representações acabam por mobilizar os inacianos, que
passam a conceber sua missão entre os nativos como uma verdadeira batalha contra
as forças diabólicas.
Diante deste quadro, os missionários precisavam agir. Assim, passaram a
engendrar estratégias com o intuito de extirpar os “vícios” dos nativos. De forma
gradativa, substituíram as missões volantes pela convivência com os índios, e, a partir
daí, desenvolveram uma série de práticas e instrumentos pedagógicos de cunho
evangelizador. No entanto, em que pese o esforço e o refinamento do projeto
catequético, tais medidas alcançaram pouca efetividade, parte devido a própria
escassez de missionários habilitados a promover a catequese na província
(CASTELNAU-L’ESTOILE, 2006). Soma-se a isto, o fato já destacado de que a
grande maioria dos índios adultos (sobretudo os mais velhos) se mostrou demasiado
“inconstante”16 para receber a doutrinação. Com efeito, a persistência dos antigos
costumes entre os indígenas levou a multiplicar-se, entre os missionários, a opinião
de que os Tupinambá constituíam uma “vinha estéril” para a propagação da fé cristã.
E o problema não era apenas a inconstância dos adultos, mas, sobretudo, os
“maus exemplos” que estes davam aos mais jovens. Nos relatos legados pelos
inacianos, os “mais velhos” agem como verdadeiros ministros do Diabo a inculcar
práticas bestiais entre os “inocentes”. Assim, os missionários iniciaram, já nos
primeiros anos de contato, a definir o ensino das crianças indígenas como um de seus
16 Segundo propõe o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ao buscar estabelecer uma
identidade cristã totalizante entre os índios, os padres teriam esbarrado em um dos fundamentos
simbólicos da cultura Tupinambá, que concebia as relações com as alteridades (humanos, animais e
seres extra-humanos), e não a “identidade substancial”, os valores a serem afirmados. Neste sentido, a
lógica da “abertura para o outro” impedia que os indígenas aceitassem de todo os dogmas apresentados
pelos padres. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002. p.206)
focos de atuação. E para a efetivação desta política, segundo destacou o Pe. Navarro,
a primeira medida deveria se concentrar em retirar os jovens da convívio daqueles
que permaneciam na “gentilidade”:
e os mais velhos são tão maliciosos, em grande parte, que todo o bem que
lhes diga convertem, como a aranha, em veneno; só aos pequenos acho com
boa inclinação, si os tirassemos de casa de seus paes, o que não se poderá
fazer sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com
destino a essas crianças para as educar, de maneira que com os maus
costumes e malicia dos paes se não perca o ensino que se ministra aos
filhos.17
Observa-se que, para além do ensino e doutrinação, os missionários defendiam
também o exercício de uma tutela sobre as crianças indígenas. Neste contexto, a
“malícia” e o mau exemplo dos adultos tornavam-se justificativas para que os jesuítas
interviessem sobre os “filhos”. Assim, a representação sobre este “outro”, mais do que
orientar a atuação dos missionários, torna-se a base para a legitimação uma política de
tutelação das crianças Tupinambá18. Desde esta perspectiva, afastar os jovens de
parentes que se mantinham em condutas bestiais tornava-se ato de misericórdia, pois
privaria os inocentes da influência nefasta dos mais velhos. Ou seja, retirar as
crianças do convívio direto com adultos “maliciosos” era o mesmo que livrá-los da
própria tirania diabólica, pois, ao cabo, era por influência desta que os índios
praticavam seus hábitos pecaminosos.
E mesmo não dispondo de um aparato capaz de impor estas operações de
forma sistemática sobre os Tupinambá que ocupavam o litoral, os missionários
engendraram alguns meios para atingir tal objetivo. Um exemplo bastante elucidativo
deste “modo de proceder” pode ser vislumbrado em um caso descrito pelo Pe.
Antônio Blasquez ainda na década de 1550:
Dispoz-se logo o Irmão para visitar as aldêas, e da primeira vez que foi a
ellas, trouxe dous meninos; a um delles puzeram o nome Paulo, e ao outro
Pedro. Da segunda vez trouxe três mui bonitos, a que o padre Ambrosio
Pires poz os nomes dos três Reis Magos. Dahi por diante, ajudando-se da
obediência, ora trazia quatro, ora cinco, ora seis, de modo que lhe cobraram
tanta affeição que fugindo de suas mães o vinham aguardar ao caminho para
que os trouxesse comsigo; entre os quaes se achou um de seis annos que
agora é já christão, e chama-se Ambrosio, que, deixada a avó, que tinha em
17 Extracto de uma carta do padre João de Azpilcueta Navarro da Índia do Brasil a 28 de março
de 1550. (AZPILCUETA NAVARRO, 1988. p.51). 18 “Em contrapartida, todo o poder tem de se impor não só como poderoso, mas também como
legítimo. Ora, na legitimação de um poder, as circunstâncias e os acontecimentos que estão na sua
origem contam tanto, ou menos, do que o imaginário a que dão nascimento e de que o poder
estabelecido se apropria. As relações de força e de poder que toda a dominação comporta,
acrescentam-se assim as relações de sentido..” (BACZKO, 1985. p. 310)
lugar de mãe, veio a esperar ao caminho ao Irmão, em companhia de outros
meninos, o que sabendo a velha, foi logo depôs elle, e com grande fúria o
arrebatou de entre seus companheirinhos. Já ella o trazia, agora com
ameaças, agora com mimos, sinão quando encontra ao Irmão, que fazia
volta; como o viu o menino, começou a chorar para vir com elle: não
aproveitavam os affagos da avó, nem os espantos que lhe fazia o Irmão para
o apartar de seu desejo. Dizia-lhe João Gonçalves: uma de duas, ou ficar
com a velha ou vir-se com elle (...) Vendo o Irmão sua constância, o trouxe
comsigo, ficando a velha assaz triste. Não pouco depois, com o exemplo
destes, outros nove meninos se moveram a fazer o mesmo que estes outros
,em dia dos Reis Magos, que parece o ordenou assim o Senhor para
remunerar o trabalho de três Irmãos que aquelle dia lhes coube ir ás aldêas a
fazer a doutrina, a qual acabada, saem a elles os nove importunando a que
os trouxessem. 19
Com efeito, o exemplo permite perceber a construção de estratégias destinadas
a atrair crianças indígenas para o convívio com os inacianos. Acompanhados por
catecúmenos, os padres, sobretudo nos primeiros anos de atividade missionária na
América portuguesa, visitavam aldeias tendo como um de seus objetivos o de atrair
novos jovens neófitos. Se este não foi o único modo pelo qual os inacianos puderam
constituir estas relações com as crianças indígenas, o certo é que, dada a recorrência
ressaltada pelo padre Antônio Blásquez, está prática parece ter sido comum nos
primórdios da missão.
Além disto, nota-se que importava pouco aos padres se estes jovens possuíam
ou não a anuência de seus pais ou parentes próximos. Isto, pois, se a permanência das
crianças sob a influência dos vícios dos mais velhos representava a vitória das forças
da Mal, a atitude de jovens que “optavam” por seguir os padres só poderia representar
o seu oposto, qual seja, o de que a graça divina agia sobre os inocentes orientando-os
rumo a salvação. Diante disto, a desaprovação dos adultos (neste caso, da “velha”!)
tornava-se um fato secundário, ou melhor, apenas mais uma barreira interposta pelas
forças malignas com o intuito de impedir o avanço da evangelização. A
representação, neste contexto, legitimava o exercício de um poder por parte dos
missionários, que concebiam sua intervenção de tutela sobre as crianças como uma
medida justificada com base no argumento de que, do contrário, elas permaneceriam
expostas à influência diabólica.
A convicção de que a doutrinação dos jovens deveria constituir o centro da
atuação missionária entre os Tupinambá, portanto, se formaria antes da criação dos
19 Summa de algumas cousas que iam em a náo que se perdeu do bispo para o nosso padre
Ignacio. (escrita pelo Pe. Antonio Blasquez “por comissão” do Pe. Manuel da Nóbrega).
(AZPILCUETA NAVARRO,1988. p.169)
primeiros aldeamentos em 1558. Assim, torna-se mais fácil compreender a rápida
expansão desta política ainda durante o período inicial de fundação destas povoações.
Em um registro de setembro de 1558, que trata da fundação dos primeiros
aldeamentos na Bahia, pode-se ler:
Os filhos se ensinam com muita diligencia e bons costumes e a ler e
escrever, e alguns delles são mui hábeis, destes esperamos tirar bons
discipulos, porque, como não podem já ir pera outra parte e são contínuos,
não poderão deixar de saber muito.20
Em meio a “inconstância” dos adultos, a doutrinação das crianças tornava-se
cada vez mais “continua”, passando a constituir um consolo as atividades dos
inacianos. De fato, os bons resultados obtidos com os jovens representavam uma
esperança frente as tantas dificuldades impostas pelos mais velhos. E no ambiente dos
aldeamentos, onde a “constância” do contato com as crianças tornou-se
consideravelmente mais ampla, os missionários não tardariam a relatar seus primeiros
frutos. É o que se pode notar nas descrições a respeito da participação das crianças
nos “jubileus” comemorados nas aldeias da Bahia em 1564. Sobre a celebração
realizada na aldeia de S. Tiago, o padre Antônio Blasquez registraria:
Nesse dia, quasi ás horas do jantar, chegou o padre Antônio Rodrigues com
o seu coro de Indiosicos, que já de ha tempos tem mui bem adextrados; com
elle vinham o padre Simeão Gonçalves com os seus de Santo Antônio, e o
padre Vicente Fernandes com os seus de S. Paulo. (...) Fallarei somente da
procissão que se fez neste dia, a qual foi tão sumptuosa e solemne, tanto por
causa do numero e diversidade de gente, como pelo apparato e pompa com
que foi ordenada. Na dianteira iam os meninos de cinco povoações que,
ultra de serem muitos, vêl-os a todos christãos fazia um formoso
espectaculo. 21
Os resultados advindos da tutela e ensino das crianças acabavam
confirmando— desde a perspectiva dos missionários— as teses que já eram
defendidas pelos primeiros jesuítas que estabeleceram contatos com os Tupinambá.
Dito de outra forma, as demonstrações de fé dos jovens catecúmenos serviam como
prova de que, ao estabeleceram relações “contínuas” com as crianças indígenas, os
padres logravam afastá-las das práticas “bestiais” que persistiam entre os mais velhos.
Em última instância, tratava-se, portanto, de uma vitória sobre as próprias forças
20 Traslado de outra da Bahia de 12 de setembro de 1558. (AZPILCUETA NAVARRO, 1988.
p.204) 21 Carta do Padre Antônio Blasquez do collegio da Bahia de Todos os Santos do Brasil para
Portugal e escripta a 13 de setembro de 1564. (Idem. pp. 424,425)
diabólicas que, não dispondo da possibilidade de alcançar as crianças através dos
mais velhos, viam minguar seus poderes para influenciar os “inocentes”22.
Conclusão
O estudo dos elementos que compunham o imaginário que orientava os
religiosos da Companhia de Jesus, bem como das representações que, a partir desse,
foram formuladas a respeito dos Tupinambá, é fundamental para a compreensão da
conduta adotada pelos inacianos entre os nativos da costa brasílica. De fato, a ideia de
que a missão constituía uma verdadeira batalha entre o bem e o mal não apenas
influenciava a construção de estratégias de evangelização, como também às
legitimava. Ao classificar as práticas indígenas como bestiais ou demoníacas, as
ações tomadas com vistas a extirpá-las tornavam-se justificadas e, mais do que isto,
consonantes com os desígnios da Providência Divina.
É o que se observa na questão da tutela e ensino das crianças indígenas. A
representação demonizada dos costumes indígenas, bem como a culpabilização dos
xamãs, velhos e velhas Tupinambá pela sua manutenção, acabou por estimular, entre
os padres, a ideia de que os esforços catequéticos deveriam se concentrar na
doutrinação das crianças indígenas. Ao mesmo tempo, estas representações serviram
para legitimar o desenvolvimento de estratégias de poder à serem implementadas com
este fim; e mais, elas transformaram tais operações em atos de misericórdia, pois,
para os padres, constituíam a única possibilidade de que os jovens indígenas
pudessem alcançar a salvação. Com efeito, desde esta perspectiva, toda medida capaz
de afastar os inocentes dos “vícios” dos mais velhos era justificada, posto que se
orientava com o objetivo de combater a influência diabólica que ameaçava os jovens
Tupinambá.
22 “Com efeito, o imaginário social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui
um apelo a acção, um apelo a comportarse de determinada maneira. Esquema de interpretação, mas
também de valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém
eficazmente nos processos da sua interiorização pelos indivíduos, modelando os comportamentos,
capturando as energias e, em caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma acção comum.
Por exemplo, as representações que legitimam um poder informam acerca da sua realidade e
comprovam-no.”. (BACZKO, 1985. pp. 311, 312)
Fontes:
-ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do
Padre Joseph de Anchieta. (1554-1594). Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1933.
-__________________. Poesias: Manuscrito do séc. XVI, em português, castelhano,
latim e tupi. São Paulo: Assunção, 1954.
-AZPILCUETA NAVARRO, João de; e Outros. Cartas avulsas, 1550-1568. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1988.
Bibliografia:
-BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-
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