trecho do livro "as meninas do quarto 28"

12

Upload: leya-brasil

Post on 30-Mar-2016

217 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"
Page 2: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

Em memória das crianças de Theresienstadt e das meninas do Quarto 28:

Hana Epstein – HolubičkaEva Fischlová – Fiška

Ruth GutmannIrena GrünfeldMarta Kende

Anna Lindt – LenkaHana Lissau

Olga Löwy – OlileZdenka Löwy

Ruth MeislHelena Mendl

Maria MühlsteinBohumila Poláček – MilkaRuth Popper – PoppinkaRuth Schächter – Zajíček

Pavla SeinerAlice Sittig – Didi

Erika StránskáJiřinka Steiner

Emma Taub – Muška

E todas aquelas meninas cujos nomes não foram mencionados.

meninas_proj2_revfotos.indd 5 04/02/14 16:44

Page 3: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

Às crianças

Nós todos somos crianças pequenasQue brincam com bolas coloridas

Choramos e somos forçadas a ser tristesApanhamos tanto, que ficamos feridas, embora sejamos crianças

Somos seres humanosMas ninguém nos tornou independentes

Nesse nosso tempo existe um buraco negroSerá que rimos algum dia?

Somos seres humanosO jogo se desenvolve ao redor da terra

A bola rola e rola, em direção ao seu alvo ensanguentado

Hanus Hachenburg, 1929-1944De: Vedem, the secret magazin by the Boys of Terezin.

meninas_proj2_revfotos.indd 7 04/02/14 16:44

Page 4: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

In memoriam

Hans Krása (1899–1944), ao compositor da ópera infantil Brundibár, que foi a luz na escuridão para as crianças de

Theresienstadt e mantém viva para sempre a lembrança das crianças assassinadas no Holocausto e sua esperança

da vitória do bem sobre o mal.

meninas_proj2_revfotos.indd 9 04/02/14 16:44

Page 5: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

Prefácio

Nós, as meninas sobreviventes do Quarto 28, do Abrigo de Meninas em Theresienstadt, estamos espalhadas por todo o mundo desde o fi-nal da guerra. Somente poucas mantiveram contato, nesses anos que seguiram ao Holocausto. Nem sabíamos onde muitas de nós moravam.

Passaram-se quase cinquenta anos, até o nosso reencontro. Em outubro de 1991, a maioria de nós se reviu pela primeira vez após o término da guerra, em Praga. Viemos de todos os cantos do mundo – Israel, América, Rússia, Inglaterra, Suécia, Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia.

Foi um momento inesquecível. Na recepção de um hotel inter-nacional rimos e choramos, dançamos e rodopiamos, e a alegria foi tanta que outras pessoas pararam e nos olharam estupefatas.

Ficamos surpresas com o que sentíamos em relação às outras. Eram os mesmos sentimentos que tínhamos quando crianças. Sen-timo-nos novamente como uma só família, e nos entendíamos per-feitamente. Desde então, nos reunimos com frequência.

A alegria de nosso reencontro nos lembra de todas as meninas, cuidadoras, professoras, artistas e de todas aquelas que não sobre-viveram. Sentimos uma necessidade imensa de arrancar do esqueci-mento aquelas meninas que nem mesmo têm um túmulo.

meninas_proj2_revfotos.indd 13 04/02/14 16:44

Page 6: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

14 as meninas do quarto 28

Esse foi o primeiro impulso para a origem deste livro.Com a nossa contribuição, pretendemos fazer com que nunca

mais ocorra algo semelhante ao que vivenciamos. Também gosta-ríamos que valores humanos, que foram tão importantes para nós e que ainda o são, permaneçam vivos: sentimentos de humanidade, educação e cultura, compaixão, coragem, civilidade e tolerância.

Em 1996, quando conhecemos Hannelore Brenner em Pra-ga e nos tornamos suas aliadas, iniciamos nosso trabalho conjunto. Marcamos um encontro em Špindlerův Mlýn, nas Montanhas dos Gigantes, na Tchecoslováquia. Essa reunião deu início a esse livro, e tudo mais que aconteceu.

Anna Hanusová, Helga PollakEm nome das sobreviventes do Quarto 28

meninas_proj2_revfotos.indd 14 04/02/14 16:44

Page 7: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

Prólogo

Špindlerův Mlýn

Desde o final da década de 1990, no outono, um grupo extraordi-nário de mulheres promove um encontro na pequena estância Špin-dlerův Mlýn, nas Montanhas dos Gigantes, um lugar com ar puro e ótimas condições para o descanso. Durante alguns dias, a atmosfera desse lugarejo é preenchida pela alegria do reencontro, com canto-rias e risos, mas também com as tristes lembranças da infância. Uma infância vivida há mais de meio século. As mulheres têm mais de 70 anos de idade e vêm de todas as partes do mundo – Israel, Inglaterra, EUA, Áustria e República Tcheca. Essas mulheres reúnem-se para passar alguns dias de férias juntas e também para trabalhar em um projeto de memórias. Desde que começaram, em 1998, essas reu-niões desenvolveram uma força radiante espetacular e o número de participantes aumentou a cada ano. E, na hora de dizer adeus, cresce a esperança de um reencontro no próximo ano.

Para as amigas, os dias passados em Špindlerův Mlýn são o ponto alto do ano. E não somente porque esse vilarejo junto ao rio Elba fica em uma região montanhosa encantadora, com seus efei-tos revitalizadores sobre o corpo e a mente. Esses dias são especiais

meninas_proj2_revfotos.indd 15 04/02/14 16:44

Page 8: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

16 as meninas do quarto 28

não porque se sentem mais jovens quando estão juntas, passeando por uma trilha na floresta, ao longo de um riacho caudaloso em di-reção ao rio Elba, ou quando fazem pequenas excursões subindo a montanha Medvědin ou em direção à Schneekoppe, junto à frontei-ra polonesa. Essas mulheres simplesmente sentem-se bem quando estão juntas. E qualquer pessoa sensível que se aproximar sentirá isso intensamente e talvez se pergunte sobre esse laço invisível que as une. Afinal, que laço é esse? As próprias mulheres responderiam: “Sentimos como se fôssemos irmãs, como uma família. Ficamos feli-zes sempre que nos vemos”.

As meninas do Quarto 28

Essas mulheres estão unidas por um destino especial. Há mais de meio século, entre os anos de 1942 e 1944, essas mulheres, então com 12 a 14 anos de idade, moraram juntas durante dois anos no Quarto 28, no Abrigo para Meninas L 410, em Theresienstadt.

Elas eram prisioneiras do “gueto”, entre as 75.666 pessoas pro-venientes do assim chamado “Protetorado da Boêmia e Morávia”. Pessoas que, após a invasão da sua terra natal pelas tropas alemãs, foram estigmatizadas como “judeus”, perseguidas, roubadas, destituí-das e, finalmente, deportadas para o campo de concentração de The-resienstadt. Lá, no Abrigo para Meninas, seus caminhos se cruzaram.

Moravam juntas em um espaço exíguo, dia e noite, comparti-lhando 30 m2 com cerca de trinta crianças. Dormiam em beliches ou treliches estreitos, comiam escassos alimentos racionados e, à noite, ouviam histórias lidas em voz alta por uma supervisora. E quando as luzes eram apagadas, conversavam entre si, contando suas experiên-cias, pensamentos, preocupações e medos.

Volta e meia, algumas das meninas eram subitamente retira-das de seu convívio, e obrigadas a seguir em um dos temidos trans-portes em direção ao leste. Novas meninas chegavam ao Quarto 28

meninas_proj2_revfotos.indd 16 04/02/14 16:44

Page 9: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

17prólogo

e se ajeitavam como podiam nesta situação emergencial, dando ori-gem a novas amizades. E um dia essas amizades também eram aba-ladas pelo “transporte”, uma metáfora para o medo sempre presente que dominava o dia a dia.

E o grupo se formava novamente, fortalecido pelos aconteci-mentos. Até que, no outono de 1944, a onda devastadora de trans-portes para Auschwitz atingiu milhares de pessoas, entre elas mi-lhares de crianças, inclusive muitas das meninas do Quarto 28, e os Abrigos para Crianças e o Quarto 28 deixaram de existir.

Caderno de recordação de Flaška.

Nessa época, Eva Fischl escreveu no caderno de recordação de Flaška: “Se um dia você comer um peixe em Brno, lembre-se de que em Theresienstadt também havia um peixinho. Com muito carinho, Eva Fischlová. Fiška”. E, com alguns traços, desenhou um peixinho a lápis.

E a pequena Ruth Schächter, que todos chamavam de Zajiček (coelhinha), escreveu no mesmo álbum: “Nunca se esqueça de quem te escreveu isso e que te foi fiel. Com carinho...”; a seguir, desenhou uma mamãe coelha com sete coelhinhos e fez a seguinte pergunta, seguida de oito pontos de interrogação: “Querida Flaška, será que

meninas_proj2_revfotos.indd 17 04/02/14 16:44

Page 10: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

18 as meninas do quarto 28

você se lembrará para sempre de quem dormia ao seu lado?? E que foi uma boa amiga????????”

À primeira vista, o caderno de recordação de Anna Flachová, que os amigos chamavam de “Flaška”, não parece ser muito diferen-te dos álbuns de poesia de outras meninas. Nele também existem aforismos, tais como este, de Goethe: “Aproveite os bons momentos, pois eles são raros”. E também dedicatórias: “Muita sorte na sua vida futura deseja sua tia Ella, de Viena. 23 de julho de 1940”. Assim como ilustrações e desenhos: flores coloridas, um esquilo, uma me-nina que espia por um buraco de fechadura, um cachorrinho, uma rua tranquila em um vilarejo.

Somente na segunda olhada é possível notar que esse livrinho vermelho, de folhas amareladas e prestes a se desintegrar, conta uma história completamente diferente daquelas contidas na maioria dos álbuns de poesia. Álbuns como o meu, que está em uma caixa de papelão há décadas e deve seu valor de recordação somente a um restinho de nostalgia. No álbum de Flaška habitam outras forças que o mantêm vivo.

São as lembranças vívidas das meninas assassinadas do Quar-to 28. É a tristeza de saber que suas esperanças e sonhos nunca serão realizados. Na imaginação de Flaška, essas meninas continuam sen-do as criaturas jovens de outrora – adoráveis, talentosas, criativas, algumas calmas e pensativas, outras ativas e temperamentais. Flaška e suas amigas ainda hoje se perguntam como teria sido o futuro das amigas. Amigas como Lenka, que escrevia poemas tão maravilho-sos? E Fiška, que inventava esquetes espirituosos e que gostava de fazer teatro? Maria, com sua linda voz? E Helena e Erika, desenhis-tas e pintoras talentosas? Qual teria sido o futuro de Muška, Olile, Zdenka, Pavla, Hana, Poppinka e de Zajiček, a mais novinha das meninas, tão carente e necessitada de proteção?

Para Flaška, o caderno de recordação é mais do que uma lem-brança. É uma missão. A missão de manter viva a lembrança das meninas assassinadas é a sua responsabilidade pessoal. Sempre que

meninas_proj2_revfotos.indd 18 04/02/14 16:44

Page 11: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

19prólogo

folheia o álbum – e o estado do álbum mostra que isso ocorre com frequência – Flaška consegue visualizar as meninas e ouve suas vo-zes. Elas parecem clamar: não me esqueça! Você ainda se lembra? Fizemos um juramento de fidelidade eterna!

“Sob o velho campanário, na Cidade Antiga em Praga, espe-ramos nos encontrar num dos primeiros domingos após a guerra.” Essa era a promessa feita pelas meninas sempre que havia uma des-pedida. Uma promessa reforçada com uma frase que, dita por elas, deve ter soado ao mesmo tempo como um encantamento e uma se-nha secreta:

Você acredita em mim, eu acredito em você.Você sabe o que eu sei.Venha o que vier,Você não me trairá,Assim como não trairei você.

As meninas formavam uma comunidade baseada na lealdade e na amizade. Uma comu-nidade que fundou uma pequena organização, o “Ma’agal”, que compôs um hino e criou uma flâmula – um círculo e, dentro dele, duas mãos entrelaçadas: um símbolo da perfeição e o ideal que todas almejavam. Uma comunidade sempre unida pela mesma esperança e anseio: que a Ale-manha logo fosse derrotada e a guerra, finalmente, terminasse.

O início

Hoje, em março de 2013, faz cerca de 17 anos que conheci algumas das sobreviventes do Quarto 28 em Praga. Foi durante as pesquisas feitas para uma reportagem de rádio sobre a ópera infantil “Brun-

Flâmula do “Ma’agal”.

meninas_proj2_revfotos.indd 19 04/02/14 16:44

Page 12: Trecho do livro "As meninas do quarto 28"

20 as meninas do quarto 28

dibár”1, e logo apoiei a sua causa: criar uma espécie de memorial para as crianças do campo de concentração de Theresienstadt, assim como para todas as pessoas que não sobreviveram ao Holocausto; um memorial também para os adultos – cuidadores, educadores, ar-tistas – para lembrar daqueles que as haviam apoiado. Essas pessoas lhes transmitiram valores fundamentais para a vida.

A iniciativa de escrever um “Livro de Recordações” partiu de Anna Hanusová, cujo sobrenome de solteira é Flachová (Flaška) e de Helga Kinsky. O que as motivou foram, principalmente, dois documentos: o caderno de recordação de Flaška e o diário de Hel-ga feito em Theresienstadt. Quem conhece esses documentos sabe por que motivaram as amigas a fazer alguma coisa para lembrar dos amigos assassinados, para manter viva aquela chama, que se manifesta nesses e em outros documentos de Theresienstadt – poe-mas, redações, desenhos, cartas, palestras – e que mostram como os adultos tentavam fornecer às crianças apoio e orientação numa época em que os valores humanos nada mais significavam.2

O mês de setembro de 1998 marca o início de nossa coopera-ção. Nossa primeira reunião com um número maior de pessoas ocor-reu em Špindlerův Mlýn. Procedíamos de vários lugares: Helga veio de Viena, Flaška de Brno, Handa, Hanka, Vera e Judith de Israel. Ela veio dos EUA, Evelina e Marta da República Tcheca, e eu vim de Berlim. Trocamos notas autobiográficas e recordações. Juntamos documentos e mantivemos discussões acaloradas. Naquela época, e durante os anos que se seguiram e nos quais o encontro ocorria na mesma época do ano e no mesmo local, fui testemunha e participei de um trabalho de recordação que ficava cada vez mais intenso e vívido. Um trecho do diário de Helga, palavras colhidas do caderno de recor-dação de Flaška, um poema do caderninho de anotações de Handa, um desenho feito por uma criança, uma foto, uma melodia – subita-mente o passado se tornava presente para essas mulheres. Ficava ao alcance da mão. Também fui envolvida por essa conscientização e fui arrebatada para o centro de uma história que até hoje não me deixou.

meninas_proj2_revfotos.indd 20 04/02/14 16:44