trecho do livro "a vida depois luz"

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Prólogo

Meu noMe é AnAxiMAndro, MAs minha família e meus amigos me chamam de Anax. Nome de filósofo grego, dado pela minha mãe, professora de História. Sou capixaba, advoga-do de formação, escritor por opção e quase morri em um grave acidente de carro. Sim, querido leitor. Este livro não é uma ficção. É a mais pura realidade. E, graças a Deus, tive minha segunda chance, para poder contar a minha história, de muita dor, mas também de muita fé e superação.

Tudo aconteceu no dia 7 de setembro de 2009. Uma se-gunda-feira. O dia que mudou minha vida. Eu tinha 30 anos de idade, fazia um mestrado na área de Direito Tributário, dava aulas de Direito em duas faculdades e estava realizado

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tanto profissional quanto pessoalmente; tinha sido aprova-do em concursos públicos e estava esperando a nomeação de um deles, em especial, para advogado de um banco de desenvolvimento do meu estado, após uma longa e exaus-tiva preparação. Tudo estava perfeito. Era um momento de muita felicidade pessoal.

Moro em Vitória, capital do estado do Espírito Santo. Uma das três capitais-ilhas do Brasil. Aqui, além de gente bonita e belas praias, temos mais um privilégio: o dia da cidade é 8 de setembro, ou seja, “esticamos” o feriado, que, naquele ano, seria perfeito: segunda e terça (além do sábado e do domingo).

Aquele 7 de setembro foi um dia muito bonito, “céu de brigadeiro”, como dizem os pilotos de avião. Não havia uma nuvem sequer. Temperatura de outono. O dia ideal para uma caminhada, uma corrida, um banho de mar. E, no final, quem sabe, estender essa folga para uma noitada com os amigos? Gosto de correr, de ficar em forma. Tenho esse costume e esse seria, aliás, o meu programa para aquela manhã. Ainda me lembro de ter dito ao meu pai:

— Tchau, pai. Vou correr na praia — e de pegar o meu boné e o protetor solar.

Mas não iria sozinho, havia marcado com um amigo de fazermos exercícios juntos. Nós nos encontraríamos na praia, para uma corrida. Nada de mais. Acontece que esse mesmo amigo havia comprado um carro novo, zero quilô-metro, poucos dias atrás. Era um carro muito bonito, com apelo esportivo, com banco de couro, rodas de liga leve, mas... sem airbag. Um item de segurança que não garan-te sobrevivência em todos os casos, mas que é crucial para minorar os efeitos de muitos acidentes sobre suas vítimas.

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Eu não menti para os meus pais. Disse que iria correr na praia e saí para correr na praia, mesmo. Meu grande erro, porém, foi não ter avisado, antes de entrar naquele carro, que nós tínhamos mudado os nossos planos. Manhã de sol, feriado prolongado, carro zero quilômetro. Tudo convidava a uma boa viagem. O que haveria de dar errado?

¬ ¬ ¬

Domingos Martins é uma bela cidade do interior do Es-pírito Santo. Distante 42 km da capital, sofreu colonização italiana, alemã e pomerana. É uma espécie de “Gramado capixaba”, muito visitada pelos turistas, sobretudo por seu clima ameno, por sua arquitetura típica e gastronomia. Foi para lá que resolvemos ir, de última hora, para botar o carro na estrada. Seria uma viagem do tipo “bate e volta”. Subi-ríamos a serra, almoçaríamos nas montanhas e, de quebra, curtiríamos o carro novo. Nada poderia estragar os nossos planos. Até chegarmos ao centro da cidade de Vitória.

Como era o dia da Independência do Brasil, claro, ha-via uma parada cívica acontecendo. Vitória, como já disse, é uma ilha e, portanto, não são muitas as artérias que cor-tam a capital pelo centro. Além disso, sendo uma das mais antigas capitais do Brasil, a cidade mantém, em algumas de suas vias de acesso, muito do traçado colonial, o que di-ficulta ainda mais o trânsito. Em resumo: com a parada da Independência e os desvios, o trânsito estava um inferno, em pleno feriado, e nós ficamos parados num enorme en-garrafamento, para nosso aborrecimento.

Fui eu quem deu a ideia. Sugeri que desistíssemos de Domingos Martins e optássemos por Santa Teresa, no ca-

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minho oposto, outra bela cidade do interior capixaba, de colonização italiana, também nas montanhas, distante 78 km da capital. A mais italiana de todas as cidades capixabas, na rota da BR-101 Norte, a perigosa estrada que cruza o Es-pírito Santo de norte a sul. Então, mudamos de direção. Só queríamos curtir o carro novo. Só isso. Para ir até Santa Te-resa, é necessário sair de Vitória, passar pelo município de Serra, chegar até Fundão e, depois, pegar uma sinuosa es-trada estadual até lá. Não é um trajeto seguro. Mas, quando jovens, achamos que somos inquebráveis, não é? Naquele carrão, rodando a uma velocidade segura, ganhamos facil-mente o trevo de Timbuí, distrito de Fundão, região me-tropolitana. Estávamos nos divertindo. Nada poderia dar errado. Nada. Até que...

— Joga para o acostamento! — eu gritei.

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Capítulo 1

Tudo AconTeceu no quilôMeTro 239 da BR-101 Norte. Foi muito rápido. Eu não estava prestando atenção em nada, só cantarolando a música que tocava no rádio. Eram duas pistas para ir e uma para voltar, sem acostamento e com dois barrancos de cada lado. Foi quando um carro prata invadiu a nossa faixa. Não percebi que carro era. Eu o vi se aproximar com tudo na minha frente. Impotente, só me restou esperar o choque, além de ouvir o barulho dos pneus cantando e depois um grande estrondo. E mais nada. Só o vazio. E uma imensa escuridão. Uma escuridão que me acompanharia por bastante tempo...

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Isso não está acontecendo, não é? Não é real, é um sonho, não é? De uma hora para a outra eu estava ali. Não me lembro quando voltei a abrir os olhos. Foi tudo muito rápido. Es-tava na beira da estrada, estirado no chão, atordoado. Não conseguia concatenar meus pensamentos. Uma das piores sensações da minha vida. Era como se o tempo fosse inter-rompido; e uma fração dele, subtraída. De repente, me vi com um travesseiro que nem sei de quem era debaixo da minha cabeça, com um monte de gente ao meu redor... gen-te que eu jamais havia visto! Quem eram aquelas pessoas? Havia um rapaz com uma câmera fotográfica pendurada no pescoço; um com a minha carteira na mão e outro com o meu celular... quer dizer, talvez fossem todos a mesma pessoa, mas a minha cabeça dava tantas voltas que eu não conseguia saber direito quem era quem.

Comecei a entender que aquilo tudo não era um sonho quando vi meu amigo do meu lado, estirado e com a cabeça em cima de outro travesseiro. Parecia que a consciência — ou, pelo menos, um pedaço dela — começava a vir à tona, aos pouquinhos, principalmente quando ele me respondeu:

— Calma, calma. Isso não é sonho, é realidade. Nós sofre-mos um acidente.

Como assim um acidente? Eu não podia acreditar naqui-lo. Eu, vítima de um acidente? Jamais pensei que isso fos-se acontecer comigo! Jamais! Pensei que fosse me levantar dali, pegar meu carro e voltar para casa, para almoçar.

Ao que tudo indicava, eu havia desmaiado durante o cho-que. Nunca desmaiara em toda minha vida! Mas a colisão foi tão violenta que só havia duas alternativas: ser projetado para fora do carro — e acabar ali mesmo com a minha his-tória — ou sofrer o impacto de frente e, assim, ter alguma

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chance. Para tentar ludibriar a dor, meu cérebro, simples-mente, “desligou”.

Tive uma sensação de alívio quando senti poder mover as pernas! Não estou paraplégico, pensei e, ao menos isso me deu um repentino alento, apesar de ainda não ter a real di-mensão de tudo aquilo que havia me acontecido.

As pessoas que me socorreram foram meus anjos da guarda naquele instante. Gente com quem jamais terei con-tato, mas por quem sou imensamente grato. Um deles foi um homem que estava com meu telefone celular em mãos e que, não sei como, conseguiu chamar a minha casa. Ele co-locou o telefone no meu ouvido. Sem conseguir me mexer muito bem, ouvi, do outro lado da linha, meu irmão, que tentava saber de mim. Não respondi direito e nem a pessoa que segurava o celular para mim, pois, ao que parece, ele era de Salvador. Assim, outra pessoa tomou o celular e precisou o local do acidente para a minha família.

Meu irmão tinha prolongado o sono naquele feriado. Meio desperto, recebeu, das mãos de meu pai, o telefone. Era uma ligação para ele, de uma voz desconhecida, que causou estra-nhamento até ao nosso pai. Também não sei como a pessoa conseguiu chegar até o nome do meu irmão. Só sei que che-gou. E ele, achando de início não ser verdade, despertou com-pletamente, de um sobressalto. Não podia acreditar no que ouvia! Como se dá uma notícia assim pra alguém?, indagou-se meu irmão, depois de desligar o telefone. Apenas se dá, pen-sou, tão somente. Levantou-se. Respirou fundo e, ainda que constrangido, ele resolveu dizer aos meus pais, sem rodeios:

— Gente... Anax sofreu um acidente. Era pela hora do almoço, que não foi servido. Foi só o tem-

po de todos se aprontarem para pegar o carro e ir até o local.

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¬ ¬ ¬

Na minha agonia, os socorristas demoraram uma eter-nidade para chegar e minhas dores abdominais só piora-vam. Foi nesse momento que minha lucidez começou a desmoronar. Cortaram minha camisa e minha bermuda, uma das que eu mais gostava, aliás. E tiraram meus tênis, para facilitar a ação. Fizeram o mesmo com meu amigo ao lado. É incrível como, mesmo em momentos assim, a gen-te ainda se apega a coisas materiais, não? O que era uma bermuda em detrimento de uma ação de emergência que, simplesmente, salvaria uma vida? Delírio de dor? Talvez... mas, certamente, não havia me dado conta da gravidade do meu problema.

Naquele instante chegou minha família. Não sei se de-moraram ou não. Só sei que tive uma estranha sensação de culpa! Não avisei nada a eles, não liguei para ninguém. Olhando para trás, vejo que foi, sim, um pouco de irrespon-sabilidade de minha parte. Peguei-os de surpresa e então eles estavam ali, no olho do furacão. Mas, ao mesmo tempo, foi um bálsamo ouvir a voz do meu pai e, sobretudo, da mi-nha mãe, que estava mais aflita, mas que tentava se conter. Acho que eles ficaram incrédulos. Foi assim que eu fiquei no começo. Até perceber que, realmente, a coisa era séria, quando as dores começaram a ficar agudas.

Puseram-me sobre uma prancha e encaixaram um co-lete cervical em mim. Tudo isso me causava imensa dor! A prancha, principalmente, talvez porque eu tenha certa sen-sibilidade na coluna. Fiquei hirto, imóvel e isso aumentou ainda mais a minha sensação de impotência. Era uma dor

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atroz, desta vez, pelo corpo todo, que começava a misturar os meus sentidos.

Fizeram o mesmo com o meu amigo, deixando-nos ali, no meio da rodovia, imobilizados. Eram duas ambulâncias e a primeira cuidou de socorrer a motorista que causou o acidente, pois o estado dela, de início, parecia mais grave. Ledo engano. Meu abdome estava enorme. Dava para ver que não estava normal.

Na ambulância que nos conduziria aos hospitais havia apenas o motorista e a socorrista. Os outros, incluindo a médica de plantão, foram na frente. Meu irmão, que é um homem alto e bem forte, se prontificou para ajudar a levar as pranchas contendo eu e o meu amigo até lá dentro. Acho que fiquei no meio enquanto o amigo ficou de lado. Meu irmão foi junto. A ambulância fechou as portas. Demorou uma eternidade para arrancar.

É nessas horas que a gente se sente moeda de troca. Porque, mesmo na minha dor, eu conseguia ouvir, nitida-mente, que a demora se dava, entre outros motivos, porque os socorristas estavam averiguando se tínhamos plano de saúde e em qual hospital ficaríamos. Se não, seria no SUS. Como fiquei indignado com aquilo, aquela demora, aquele descaso! E minha barriga só inchando e as dores ficando cada vez piores, cada vez mais...

Para piorar o meu estado, minha coluna começou a doer muito, por causa da prancha. A dor era insuportável, de tal arte que até o meu amigo me gritava:

— Calma! — coitado, ele também, em seu sofrimento. Pedi: — Por favor, alguma coisa pra dor! Socorro, me dê um

remédio pra dor.

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Mas, como a médica estava na ambulância da frente, foi preciso ligar para ela, o que significou esperar ainda mais, urrando de dor! Por fim, com a liberação da medicação, ainda pude ver a enfermeira com a seringa e o líquido que seria aplicado nas minhas veias. Devagar. A busca de um alívio que não aconteceu. Continuei urrando de dor. Ainda doía. A barriga e a coluna. A ambulância pôs-se a rodar. E eu, na loucura causada por tanta dor, iria para o hospital, para um longo e exaustivo tratamento. A minha história só estava começando.

A primeira parada da ambulância não foi para mim, foi para o meu amigo. Naquela loucura de saber qual era o pla-no de saúde, o hospital que o receberia ficava antes do meu. Na minha dor, ainda consegui ouvi-lo dizer:

— Boa sorte — e ser carregado para fora, com o auxílio do meu irmão, ao que eu retruquei um dolorido:

— Vá com Deus. Mais tarde, soube que ele ficaria um dia inteiro para ser

atendido e que seria liberado no mesmo dia, tendo apenas um estiramento na pele do pescoço e um dedo entortado. Só.

Antes de a porta da ambulância se fechar, pude ver meus pais, que tinham descido do carro deles apenas para me ver. Meu irmão continuava a me acompanhar. Foi tudo muito rápido: o hospital em que eu ficaria estava a poucos minu-tos do primeiro. Logo chegamos e eu fui posto para fora do carro, da mesma forma que o meu amigo, só que mais rápido. Meu ventre não parava de doer.

Ao chegar ao hospital, apenas consegui ver as luzes do teto, passando freneticamente na minha frente. Elas pa-reciam as faixas da autoestrada, marcando o início dessa nova viagem que eu faria, a partir daquele momento. Estava

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tão atônito de dor que, ao ver uma pessoa, uma moça que não sei se era enfermeira ou médica, pedi, por favor, para retirar das minhas costas aquela prancha e do meu pescoço aquele colar.

— É para sua segurança — ela me disse, e eu continuei sentindo aquele desconforto enorme.

Cheguei até uma sala de emergência do pronto-socorro. Conseguia discernir alguns médicos e alguns paramédicos, mas tudo muito nebuloso. Acho que, nesse momento, já co-meçava a morrer aos pouquinhos, perdendo, novamente, a consciência. A única coisa de que recordo bem foi ter sido retirado da prancha e do colar e ser colocado em uma maca. Foi um alívio para as minhas costas, mas um martírio para o meu abdome, sensível ao menor movimento. Ele não pa-rava de doer e de inchar.

Levaram-me, então, para fazer uma bateria de exames. Não sabiam quem seria o meu médico e, enquanto ele não chegava, eu fui submetido a uma tomografia computadori-zada, sem contraste, pois não havia tempo para preparação. Levaram-me à sala. Estava gelada de sentir resfriar os ossos! Batia o queixo, freneticamente, sem poder me cobrir. A má-quina emitia mensagens automáticas e uma delas foi “encha o peito e não respire”. Na minha dor, isso era impossível.

— Não estou conseguindo — gritava, chorando. Naquele momento, eu já estava mais morto do que vivo.

O acidente aconteceu por volta das 10 horas e 30 minutos, mas, segundo me contaram, eu só seria operado às 16 ho-ras. O médico só chegou nesse horário, já pronto para me operar com a máxima urgência. Minha visão estava se apa-gando. Eu estava exausto. Desta vez, não sentia mais dor al-guma. Estava indo embora... indo embora...

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