transtornos alimentares

30
Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico TÁKI ATHANÁSSIOS CORDÁS1 Recebido: 02/09/2004 - Aceito: 15/09/2004 Resumo O presente artigo apresenta os critérios diagnósticos atuais dos transtornos alimentares: anorexia nervosa e bulimia nervosa. Os aspectos controversos da anorexia nervosa são discutidos. Palavras-chave: Anorexia nervosa, bulimia nervosa, diagnóstico, classificação. O aumento do interesse e da importância epidemiológica levou a uma rápida evolução na discussão dos critérios diagnósticos dos transtornos alimentares nas últimas décadas. Dos principais transtornos do comportamento alimentar, a anorexia nervosa (AN) foi a primeira a ser descrita já no século XIX e, igualmente, a pioneira a ser adequadamente classificada e ter critérios operacionais reconhecidos já na década de 1970. A bulimia nervosa (BN) foi descrita por Gerald Russell em 1979, e um terceiro grupo heterogêneo de quadros assemelhados, mas que não apresentavam sintomas completos nem para o diagnóstico de AN nem para BN, foram classificados como Transtornos Alimentares Atípicos nos anos 1980. O transtorno da compulsão alimentar periódica e suas questões polêmicas será motivo de um capítulo em separado nesta publicação. Cordás, T.A. Rev. Psiq. Clin. 31 (4); 154- 157, 2004 155 Os transtornos alimentares são doenças que afetam particularmente adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, levando a marcantes prejuízos psicológicos, sociais e aumento de morbidade e mortalidade. A anorexia nervosa caracteriza-se por perda de peso intensa e intencional às expensas de dietas extremamente rígidas com uma busca desenfreada pela

Upload: danielureia

Post on 04-Jul-2015

243 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Transtornos alimentares

Transtornos alimentares: classificação e diagnósticoTÁKI ATHANÁSSIOS CORDÁS1Recebido: 02/09/2004 - Aceito: 15/09/2004

ResumoO presente artigo apresenta os critérios diagnósticos atuais dos transtornos alimentares: anorexia nervosa e bulimia nervosa.Os aspectos controversos da anorexia nervosa são discutidos. Palavras-chave: Anorexia nervosa, bulimia nervosa, diagnóstico, classificação.

O aumento do interesse e da importância epidemiológica levou a uma rápida evolução nadiscussão dos critérios diagnósticos dos transtornos alimentares nas últimas décadas.Dos principais transtornos do comportamento alimentar, a anorexia nervosa (AN) foi a primeira a ser descrita já no século XIX e, igualmente, a pioneira a ser adequadamente classificada e ter critérios operacionais reconhecidos já na década de 1970. A bulimia nervosa (BN) foi descrita por Gerald Russell em 1979, e um terceiro grupo heterogêneo de quadros assemelhados, mas que não apresentavam sintomas completos nem para o diagnóstico de AN nem para BN, foram classificados como Transtornos Alimentares Atípicos nos anos 1980. O transtorno da compulsão alimentar periódica e suas questões polêmicas será motivo de um capítulo emseparado nesta publicação. Cordás, T.A. Rev. Psiq. Clin. 31 (4); 154-157, 2004 155

Os transtornos alimentares são doenças que afetam particularmente adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, levando a marcantes prejuízos psicológicos, sociais e aumento de morbidade e mortalidade. A anorexia nervosa caracteriza-se por perda de peso intensa e intencional às expensas de dietas extremamente rígidas com uma busca desenfreada pelamagreza, uma distorção grosseira da imagem corporal e alterações do ciclo menstrual.O termo anorexia sabidamente não é o mais adequado do ponto de vista psicopatológico na medida que não ocorre uma perda real do apetite, ao menos nos estágios iniciais da doença. A negação do apetite e o controle obsessivo do corpo tornam o termo alemão pubertaetsmagersucht, isso é, “busca da magreza por adolescentes”, bem mais adequado.

Breve histórico

Habermas (1986) descreveu um caso pioneiro altamente sugestivo de anorexia nervosa em uma serva que viveu no ano de 895. A jovem Friderada, após ter-se recuperado de uma doença não-reconhecível, passou a apresentar um apetite voraz e descontrolado. Para tentar diminuí-lo, buscou refúgio em um convento e nele, com o tempo, foi restringindo suadieta ate passar a efetuar longos jejuns. Embora inicialmente ainda conseguisse manter suas obrigações conventuais, rapidamente seu quadro foi-se deteriorando até a sua morte, por desnutrição. No século XIII, encontramos em grande profusão descrições de mulheres que se auto-impunham jejum como uma forma de se aproximar espiritualmente de Deus; eram as chamadas “santas anoréxicas”. O quadro era acompanhado de perfeccionismo, auto-insuficiência, rigidez no comportamento, insatisfação consigo própria e distorções cognitivas, tal qual as anoréxicas hoje. Um dos casos mais conhecidos é o de Catarina Benincasa, mais tarde Santa Catarina de Siena, que, aos 16 anos, recusou o plano de casamento imposto por seus pais, jurando manter-se virgem e entrando para o convento. Alimentava-se de pão e alguns vegetais, autoflagelava-se, e eventualmente provocava vômitos com ingestão de plantas. No ano de 1694, Richard Morton é autor do primeiro relato médico de anorexia

Page 2: Transtornos alimentares

nervosa, descrevendo o tratamento de uma jovem mulher com recusa em alimentar-se e ausência de ciclos menstruais, que rejeitou qualquer ajuda oferecida e morreu deinanição.O autor mostra-se profundamente intrigadopela indiferença que a paciente demonstrava emrelação ao seu estado crítico e pela preservação de suasfaculdades mentais básicas.Na segunda metade do século XIX, a anorexianervosa emerge como uma entidade autônoma edelineada a partir dos relatos do francês CharlesLaségue (1873) que descreve a anorexie histérique.No ano seguinte, William Gull descreve três meninascom quadro anoréxico restritivo com o nome de“apepsia histérica”. A discussão sobre a primazia dorelato inicial do quadro é mais uma das longas novelasmédicas existentes sobre paternidade de idéias (Vander Ham et al., 1989).Em 1903, Janet relata o caso de Nadia, uma moçade 22 anos de idade, que manifestava vergonha e repulsaao seu corpo com constante desejo de emagrecer, quadroque denominou de anorexie mental. O autor relacionoua busca intensa da magreza à necessidade de protelar amaturidade sexual e sugeriu dois subtipos psicopatológicos,obsessivo e histérico.DiagnósticoA seguir, apresentamos um quadro (Quadro 1) com oscritérios diagnósticos segundo o DSM-IV (APA-1994)e CID-10 (OMS-1993).Bulimia nervosaA bulimia nervosa caracteriza-se por grande ingestãode alimentos com sensação de perda de controle, oschamados episódios bulímicos. A preocupação excessivacom o peso e a imagem corporal levam o paciente amétodos compensatórios inadequados para o controlede peso como vômitos auto-induzidos, uso de medicamentos(diuréticos, inibidores de apetite, laxantes),dietas e exercícios físicos.O termo bulimia nervosa foi dado por Russell (1979)e vem da união dos termos gregos boul (boi) ou bou (grandequantidade) com lemos (fome), ou seja, uma fome muitointensa ou suficiente para devorar um boi.Breve históricoO termo boulimos já era usado séculos antes de Cristo.Hipócrates o empregava para designar uma fomedoentia, diferente da fome fisiológica.Em 1743, James descreve a true boulimus paraos episódios de grande ingestão de alimentos epreocupação intensa com os mesmos, seguidos dedesmaios e uma variante chamada caninus appetities,com vômitos após estes episódios (Habermas, 1989).Crisp (1967) descreve episódios bulímicos e

Page 3: Transtornos alimentares

vômitos auto-induzidos em algumas de suas pacientescom anorexia nervosa.A descrição de bulimia nervosa, tal comoconhecemos hoje, nasce com Gerald Russell (1979) emLondres, a partir da descrição de pacientes com pesonormal, pavor de engordar, que tinham episódios156Cordás, T.A. Rev. Psiq. Clin. 31 (4); 154-157, 2004bulímicos e vômitos auto-induzidos. Como algumasdessas pacientes haviam apresentado anorexia nervosano passado, considerou, em um primeiro momento, quea bulimia seria uma seqüela desta.DiagnósticoA seguir, apresentaremos o Quadro 2 com os critériosdiagnósticos segundo o DSM IV (APA, 1994) e CID 10(OMS, 1993).Questões diagnósticas em abertoDesde os anos 1980, tornou-se clássico, na maior parteda literatura, o estabelecimento de dois subtiposclínicos da AN, o restritivo e o purgativo. Nos anos90, diferentes estudos evidenciaram que o subtipopurgativo apresentaria mais: transtornos de personalidadee comportamentos impulsivos, tais comotentativas de suicídio, auto-mutilação, cleptomania,abuso de substâncias.Recentemente, porém, alguns trabalhos têmquestionado a validade dessa dicotomia.Eddy et al. (2002) evidenciaram que apenas 12%das pacientes com AN restritiva nunca haviam apresentadoepisódios bulímicos e purgação.O seguimentode pelo menos oito anos de pacientes com AN restritivamostrou que 62% passaram a ser classificados como ANpurgativa pela mudança das características clínicas.Van der Ham et al. (1997): após quatro anos deseguimento de um grupo de anoréxicas, não conseguiamdiferenciar claramente o subgrupo que no início doprojeto preenchia critérios para um dos subtipos.A questão que se coloca hoje é: seriam esses subtiposapenas estágios evolutivos de uma mesma doença?Outra questão em aberto é a exigência de uma perdade peso mínima nos diferentes critérios adotados.Diferentes estudos não têm conseguido correlacionar,porém, qualquer porcentagem de perda de pesocom os outros sintomas da doença.Por fim, a questão da exigência de amenorréiapara o diagnóstico de anorexia nervosa.Um grande estudo canadense mostrou que cercade 30% dos pacientes com todos os critérios de AN nãoapresentavam amenorréia( Garfinkel et al.,1991).Qual a necessidade desse critério?

Page 4: Transtornos alimentares

Quadro 1: Critérios diagnósticos para anorexia nervosa segundo o DSM-IV e a CID-10.DSM-IV CID-10a) Há perda de peso ou, em crianças, falta de ganho depeso, e peso corporal é mantido em pelo menos 15%abaixo do esperado.b) A perda de peso é auto-induzida pela evitação de“alimentos que engordam”.c) Há uma distorção na imagem corporal na forma de umapsicopatologia específica de um pavor de engordar.d) Um transtorno endócrino generalizado envolvendo o eixohipotalâmico-hipofisário-gonadal é manifestado emmulheres como amenorréia e em homens como umaperda de interesse e potência sexuais (uma exceçãoaparente é a persistência de sangramentos vaginais emmulheres anoréxicas que estão recebendo terapia dereposição hormonal, mais comumente tomada como umapílula contraceptiva).Comentários: Se o início é pré-puberal, a seqüência deeventos da puberdade é demorada ou mesmo detida (ocrescimento cessa; nas garotas, as mamas não sedesenvolvem e há uma amenorréia primária; nos garotos, osgenitais permanecem juvenis). Com a recuperação, apuberdade é com freqüência completada normalmente, poréma menarca é tardia; os seguintes aspectos corroboram odiagnóstico, mas não são elementos essenciais: vômitos autoinduzidos,purgação auto-induzida, exercícios excessivos euso de anorexígenos e/ou diuréticos.1. Recusa em manter o peso dentro ou acima do mínimonormal adequado à idade e à altura; por exemplo, perdade peso, levando à manutenção do peso corporal abaixode 85% do esperado, ou fracasso em ter o peso esperadodurante o período de crescimento, levando a um pesocorporal menor que 85% do esperado.2. Medo intenso do ganho de peso ou de se tornar gordo,mesmo com peso inferior.3. Perturbação no modo de vivenciar o peso, tamanho ouforma corporais; excessiva influência do peso ou formacorporais na maneira de se auto-avaliar; negação dagravidade do baixo peso.4. No que diz respeito especificamente às mulheres, aausência de pelo menos três ciclos menstruaisconsecutivos, quando é esperado ocorrer o contrário(amenorréia primária ou secundária). Considera-se queuma mulher tem amenorréia se os seus períodosmenstruais ocorrem somente após o uso de hormônios;por exemplo, estrógeno administrado.Tipo: - Restritivo: não há episódio de comercompulsivamente ou prática purgativa (vômitoauto-induzido, uso de laxantes, diuréticos,enemas).

Page 5: Transtornos alimentares

- Purgativo: existe episódio de comercompulsivamente e/ou purgação.157Cordás, T.A. Rev. Psiq. Clin. 31 (4); 154-157, 2004Referências bibliográficasAMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA). - Diagnostic andStatistical Manual of Mental Disorders.4th ed.Washington DC, 1994.CRISP, A.H. - The Possible Significance of some BehavioralCorrelates of Weight and Carbohydrate intake. Journalof Psychosomatic Research 11: 117-31, 1967.EDDY, K.T.; KEEL, P.K.; DORER, D.J.; DELINSKY, S.S.; HERZOG, D.B.-Longitudinal Comparison of Anorexia NervosaSubtypes. Int.J. Eat. Disord 31(2): 191-201, 2002.GARFINKEL, P.E.; LIN E.; GOERING, P.; SPEGG, C.; GOLDBLOOM, D.S.;KENNEDY, S.; KAPLAN, A.S.; WOODSIDE, D.B. - Bulimia Nervosain a Canadian Community Sample: Prevalence andComparison of Subgroups. Am J Psychiatry 148: 1627-37, 1991.HABERMAS, T. - Friderada: a Case of Miraculous Fasting. Int JEat Disord 5: 555-62, 1986.HABERMAS, T. - The Psychiatric History of Anorexia Nervosaand Bulimia Nervosa: Weight Concerns and BulimicSymptoms in early case Reports. Int J Eat Disord 8: 259-73, 1989.LASÉGUE, E.C. - De l’ anorexie hysteriqué. Archives of GeneralMedicine 21: 385-403, 1873.RUSSELL, G.F.M. - Bulimia Nervosa: on Ominous Variant ofAnorexia Nervosa. Psychological Medicine 9: 429-48,1979.VAN DER HAM, T.; MEULMANN, J.J.; VAN STRIEN, D.C.; VAN ENGELAND,H. - Empirically based Subgrouping of eating Disordersin Adolescence: A Longitudinal Study. Br J Psychiatry170: 363-8, 1997.VANDEREYCKEN, W. & VAN DETH, R. - Who was the First to DescribeAnorexia Nervosa: Gull or Lasègue

Transtornos alimentares: fundamentoshistóricosTáki Athanássios Cordása e Angélica de Medeiros ClaudinobaAmbulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade deSão Paulo. Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. bPrograma de Orientação e Assistência aos TranstornosAlimentares do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, BrasilResumo

Page 6: Transtornos alimentares

DescritoresAbstractKeywordsOs autores fazem uma breve revisão dos aspectos históricos dos transtornos alimentares. Possíveis correlaçõespsicopatológicas com os conceitos diagnósticos atuais são discutidas.Anorexia nervosa. Bulimia nervosa. História.The authors make a brief review of the historical aspects of eating disorders. Possible correlations withmodern psychopathological aspects are commented.Anorexia nervosa. Bulimia nervosa. History.IntroduçãoOs transtornos alimentares são freqüentemente consideradosquadros clínicos ligados à modernidade, na medida que aoavanço da mídia nas últimas décadas tem se dado papel derelevância quase casual.Uma breve revisão histórica evidencia a existência dessaspatologias ao longo do tempo e retoma a velha discussãopsicopatológica do essencial e do acessório, do patogenético edo patoplástico, enfim das relações entre a doença e a cultura.Anorexia NervosaEtimologicamente, o termo anorexia deriva do grego “an-”,deficiência ou ausência de, e “orexis”, apetite. Também significandoaversão à comida, enjôo do estômago ou inapetência, asprimeiras referências a essa condição surgem com o termofastidium em fontes latinas da época de Cícero (106-43 aC.) evários textos do século XVI. Já a denominação mais específica“anorexia nervosa” surgiu com William Gull a partir de 1873,referindo-se à “forma peculiar de doença que afeta principalmentemulheres jovens e caracteriza-se por emagrecimentoextremo[...]” cuja “falta de apetite é [...]decorrente de um estadomental mórbido e não a qualquer disfunção gástrica[...]”.1 Atualmente o termo “anorexia” não é utilizado em seusentido etimológico para a “anorexia nervosa”, visto que taispacientes não apresentam real perda de apetite até estágiosmais avançados da doença, mas sim uma recusa alimentar deliberada,com intuito de emagrecer ou por medo de engordar.2Durante a idade média, as práticas de jejum foram compreendidascomo estados de possessão demoníaca ou milagresdivinos. Em seu livro “Holy Anorexia”, Bell3 (1985) relata ocomportamento anoréxico realizado por 260 santas italianas(que teriam vivido entre 1200 e 1600) aparentemente em respostaà estrutura social patriarcal a qual estavam submetidas,e conhecido como “anorexia sagrada”. Pela supressão de necessidadesfísicas e sensações básicas (como cansaço, impulsosexual, fome e dor) elas pareciam liberar o corpo e alcançarmetas espirituais superiores, porém às crenças religiosaspareciam se misturar a outras intenções das jovens, como aperda dos atrativos femininos. Bastante conhecido é o casode Santa Catarina de Siena que aos 15 anos, após a morte de

Page 7: Transtornos alimentares

sua irmã (parturiente) e diante de projetos futuros de casamento,iniciou restrição alimentar, preces e práticas de autoflagelamento,chegando a induzir vômito através de ervas egalhos na garganta quando forçada a alimentar-se. Catarinahavia feito um voto de castidade quando ainda era criança. Ainanição haveria gerado um estado psicológico de constantevigília e experiências místicas, vindo a falecer de desnutriçãoaos 32 anos.Embora não se possa afirmar que a atual concepção deanorexia nervosa esteja relacionada aos casos de “anorexia sagrada”,em virtude de documentação falha e incerteza quantoàs reais motivações, sentimentos e crenças das santas, algunsparalelos são evidentes: ambas não toleram as conseqüênciasdo “comer”, ambas representam “estados ideais” (beatitude naSIII 4Transtornos alimentares: fundamentos históricos Rev Bras Psiquiatr 2002;24(Supl III):3-6Cordás TA & Claudino AMItália medieval e magreza no ocidente atual) e evitação da sexualidade,do egoísmo e do alimento. Em ambos os quadros sedescrevem excesso de atividades, perfeccionismo, constantevigilância, desinteresse por relacionamentos comuns, auto-suficiênciae preferência por cuidar dos outros ao invés de seremcuidadas.Morton é o autor do primeiro relato médico de anorexia nervosade 1689, em livro sobre doenças consumptivas, no qualdescreve dois casos de “consumpção de origem nervosa”. Oautor comenta sobre a influência mútua entre processos mentaise físicos e ressalta o papel patogênico das emoções. Estesquadros não eram acompanhados de febre ou dispnéia, mascaracterizavam-se pela diminuição do apetite, amenorréia, aversãoà comida, obstipação, emagrecimento extremo e hiperatividade.O autor se mostra intrigado pela indiferença característicaque essas pacientes denotam em relação a seu estado dedesnutrição e pela preservação de suas faculdades mentaisbásicas.4Vários relatos médicos estão descritos na literatura desdeentão, porém sem receberem a atenção merecida, como o trabalhopublicado em 1860, em Paris, por Louis-Victor Marcéintitulado “Note sur une forme de délire hypochondriaqueconsécutive aux dyspepsies et caracterisée principalement parle refus d’aliments”.5 É ainda na segunda metade do séculoXIX que a anorexia nervosa emerge como uma entidade clínicaindependente, com sintomatologia e patogenia distintas, comos relatos quase que simultâneos em 1873, do médico inglêsGull e do psiquiatra francês Lasègue. Gull parece receber certaprioridade na literatura médica pelo fato de ter feito rápida referênciaà “Apepsia Histérica” em uma conferência anual da“British Medical Association” em 1868.6Esta referência, no entanto, passou despercebida por cincoanos até que em abril de 1873, Lasègue publica o artigo “De

Page 8: Transtornos alimentares

l’anorexie hystérique”, uma contribuição à nosologia dos “distúrbiosdos órgãos digestivos que ocorrem no curso da histeria”.O psiquiatra descreve neste artigo os achados clínicos deoito pacientes, de 18 a 32 anos de idade, e ressalta a origempsíquica (causa primária) dessa doença: focaliza a fenomenologiadistinta da anorexia histérica na crença mórbida de que o alimentoé lesivo e deve ser evitado. Ele identifica ainda outrascaracterísticas psicopatológicas relativas a inseguranças pessoaise busca por aprovação, e ressalta a contribuição familiarpara manutenção dos sintomas.Em outubro de 1873, Gull apresenta o tema “Anorexia Nervosa”para a “Clinical Society of London”, publicado apenas em1874. O médico descreve três casos referindo que o quadrocostuma ocorrer em mulheres entre os 16 e 23 anos e ocasionalmenteem homens da mesma faixa etária. Em sua descrição, Gull7(1874) se volta mais para os achados clínicos decorrentes dainanição prolongada, tais como a caquexia, a perda de apetite, aamenorréia, a constipação e a diminuição dos sinais vitais, emboratambém aponte o componente psicológico (sem, no entanto,priorizá-lo) e indique a necessidade de que o responsávelpelo tratamento assuma uma postura moral mais autoritáriaperante a paciente.É provável que Charcot tenha sido o primeiro a detectar, porvolta de 1889, o aspecto psicopatológico central que motivavaas mulheres anoréticas a jejuar: a “idée fixe d’obesité” ou fobiade peso.8 Outros médicos franceses teriam feito referências aomedo de engordar na época, aspecto que não teria ocorrido empaíses de língua anglo-saxônica antes da virada do século. Em1903 Janet descreve o caso de uma moça de 22 anos (Nadia),como “anorexia mental”. Durante as consultas não parava deperguntar: “M’avez vous trouvée aussi maigre que les autresfois? Faite moi le plaisir de me dire que je serais toujoursmaigre” (Você acredita que eu estou tão magra quanto da últimavez? Por favor, diga-me que serei sempre magra).Assim como Nadia, que apresentava vergonha e aversão aocorpo feminino, na anorexia, o desejo de emagrecer relacionava-se à tentativa de retardar a maturidade sexual. Janet distinguiuduas formas de anorexia com base na presença ou ausênciade fome: uma obsessiva, na qual a fome estava mantida, eoutra, histérica, na qual as pacientes a perdiam.9A partir de 1914, ocorre uma mudança marcante na compreensãoda anorexia nervosa, que passa a ser vista como uma doençapuramente orgânica (somática) quando Simmonds descreveuum caso fatal de caquexia, no qual a autópsia revelou atrofiado lobo anterior da hipófise. A anorexia nervosa passou a serconfundida com a Doença de Simmonds (hipopituitarismo) comsérias implicações terapêuticas.10O restabelecimento do conceito clássico de anorexia nervosasó ocorre após, aproximadamente, trinta anos quando Sheehan& Summers11 (1949) apontam que, apesar de existirem sintomas

Page 9: Transtornos alimentares

comuns entre os dois quadros, não havia evidências clínicasde redução da função hipofisária nem anormalidadeshistológicas significativas da glândula na anorexia nervosa.Ao longo de sua história, a anorexia nervosa também foi vistacomo um sintoma inespecífico, passível de manifestação empraticamente todos os diagnósticos psiquiátricos que levem aacentuada perda de peso. Tal concepção provavelmente decorreuda existência de aspectos inespecíficos presentes em suapsicopatologia tais como alterações cognitivas, afetivas ecomportamentais, provocadas pela inanição.12Outra forma de se conceber a anorexia nervosa foi como variantede outras doenças psiquiátricas, principalmente da histeria,13 da esquizofrenia,14 do transtorno obsessivo15 e da doençaafetiva.16A partir de 1960, o número crescente de pacientes comanorexia nervosa e as tentativas de distinguir diferentes tiposde pacientes com o quadro, parecem ter contribuído para oreconhecimento da doença como síndrome psiquiátrica específica,com aspectos característicos que a distinguem de outrostranstornos. Hilde Bruch trouxe importante contribuiçãopara a compreensão de aspectos psicopatológicos comunsna anorexia nervosa. Esta autora propôs que a psicopatologiacentral da anorexia nervosa compreendia uma constelaçãoespecífica de deficiências do ego e da personalidade, consistindoem três áreas de perturbação do funcionamento: transtornosda imagem corporal; transtornos na percepção ou interpretaçãode estímulos corporais (como reconhecimento dafome) e uma sensação paralisante de ineficiência que invadetodo o pensamento e atividades da paciente.2 Crisp consideSIII5Rev Bras Psiquiatr 2002;24(Supl III):3-6 Transtornos alimentares: fundamentos históricosCordás TA & Claudino AMrou a anorexia nervosa como “um estado de fobia de peso” noqual as pacientes buscavam evitar as demandas biológicas epsicológicas da puberdade através da manutenção do pesoem um nível pré-pubertário.17Na década de 1970, começam a surgir critérios padronizadospara o diagnóstico da anorexia nervosa com base nos distúrbiospsicobiológicos e psicopatológicos, desenvolvidos paraatender tanto as necessidades clínicas como as de pesquisa.18,19De modo geral, os critérios ressaltaram: a perda considerável depeso, a preocupação mórbida com o risco de engordar, alteraçõesna percepção corporal e disfunções endócrinas (ex.amenorréia), aspectos concebidos como diagnósticos deanorexia nervosa pelos atuais sistemas classificatórios.20,21Bulimia nervosaDesde a primeira descrição da Bulimia Nervosa (BN) por GeraldRussell22 (1979), o conhecimento deste quadro como entidadenosológica distinta tem avançado rapidamente, graças à proliferaçãode grupos de pesquisa em vários países. Este fato é, principalmente,

Page 10: Transtornos alimentares

reflexo da importância clínica e epidemiológica que aBN vem demonstrando, superando em número de publicações, ointeresse pela sua “irmã mais velha”, a Anorexia Nervosa.A BN é caracterizada, em sua forma típica, pela ingestão compulsivae rápida de grande quantidade de alimento, com poucoou nenhum prazer, alternada com comportamento dirigido paraevitar o ganho de peso (como vomitar, abusar de laxantes ediuréticos ou períodos de restrição alimentar severa) e medomórbido de engordar.O vômito auto-induzido é extremamente comum, sendo encontradoem até 95% dos pacientes, provavelmente pelo seuefeito de redução imediata da ansiedade.23 É interessante lembrarque o comportamento de forçar o vômito é muito antigo epode ser encontrado precocemente na história de diferentespovos da Antiguidade. No antigo Egito, por exemplo, grandeparte do papiro de Eber é dedicado ao estímulo e às virtudes doato de vomitar. Segundo Heródoto, os egípcios vomitavam eusavam purgativos todo mês, por três dias consecutivos, julgandoque “todas as doenças dos homens são oriundas dacomida”. Na medicina grega é sabido que Hipócrates tambémrecomendava a indução de vômitos por dois dias consecutivostodo mês como um método de prevenir diferentes doenças. Osromanos criaram o vomitorium, que lhes permitia alimentar-seem excesso durante os banquetes, e posteriormente vomitar emlocal reservado para esta finalidade, às vezes usando uma penade ave para estimular o reflexo do vômito na garganta.Purgantes eram populares já na Idade Média. De fato juntocom os eméticos (medicamentos para induzir o vômito) dominaramo arsenal terapêutico por muitos anos, sendo tudo o queum médico podia prescrever na época, prática que foi violentamentesatirizada por Moliére em suas peças.O termo bulimia tem uma história muito antiga; deriva do grego“bous” (boi) e “limos” (fome), designando assim um apetitetão grande que seria possível a um homem comer um boi, ouquase. Entre os séculos XV e XVIII, diferentes variantes dotermo, como os derivados do latim “bulimus” e “bolismos” oudo francês “bolisme”, com o mesmo significado anterior, foramempregados na literatura médica na Inglaterra, França, Alemanhae Polônia.24Desde há quase um século, pacientes com Bulimia Nervosa,como o célebre caso Ellen West, descrito por Binswanger, aparecemna literatura psiquiátrica recebendo outros diagnósticos(“obsessão da vergonha do corpo”, Janet) na ausência de umnome mais apropriado.25 Mas ainda, o caso de Ellen West apresentatodo o corolário de sintomas que hoje nos permitiria odiagnóstico, como medo de engordar, marchas exageradas (20-25 milhas por dia), apetite voraz alternando-se com dietas restritivase abuso de tabletes tireoideanos para perder peso.A sonhadora Ellen, que faz poesias, lê Rilke, Goethe, Tennysone Mark Twain, apresenta períodos de melancolia, descreve-se

Page 11: Transtornos alimentares

como alguém com “compulsão de ter de pensar em comer” e,mesmo internada num dos melhores sanatórios da época, o“Kreuzlinger”, e atendida por Bleuler, a pedido de Binswanger,não obtém qualquer melhora, cometendo o suicídio comingestão de veneno.Inicialmente descrito entre pacientes com anorexia nervosa eposteriormente entre obesos (anos 50), em meados da décadade 70, pesquisadores identificaram sintomas bulímicos entremulheres jovens de peso normal.26 A descrição histórica de 30casos por Russell, em 1979, sugeria que o quadro seria umaestranha evolução da Anorexia Nervosa e, particularmente, dosubgrupo dos anoréxicos bulímicos. Essas pacientes possuíamum “impulso irresistível para comer excessivamente”, seguidode vômitos auto-induzidos como forma de purgação e um medomórbido de engordar. A perda de peso mínima ou ausente, refereRussell, caracterizaria os piores medos das pacientes tornando-se realidade.22 Estudos posteriores demonstraram, no entanto,que apenas 20% a 30% dos pacientes bulímicos apresentavam,em sua história pregressa, um episódio de anorexia nervosa,geralmente de curta duração.27 Nomes diferentes já foramdados ao quadro, incluindo hiperorexia nervosa, bulimarexia,bulivomia, síndrome do caos alimentar, bulimia e, finalmente,Bulimia Nervosa, termo hoje, de aceitação geral.28Referências1. Parry-Jones B. Historical terminology of eating disorders. PsycholMed 1991;21:21-8.2. Bruch H. Eating disorders: obesity, anorexia nervosa, and theperson within. New York: Basic Books; 1973. p. 396.3. Bell RM. Holy anorexia. Chicago: University of Chicago Press;1985.4. Silverman JA. Historical development. In: Halmi KA, ed.Psychobiology and treatment of anorexia nervosa and bulimia nervosa.Washington (DC): American Psychiatric Press; 1992. p. 3-17.

DISTÚRBIOS DA CONDUTA ALIMENTAR:ANOREXIA E BULIMIA NERVOSASDISORDERS OF EATING BEHAVIOUR: ANOREXIA NERVOSA AND BULIMIARosane Pilot Pessa Ribeiro1; Paulo César Monteiro dos Santos2 & José Ernesto dos Santos31 Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP, 2MédicoPsiquiatra, Doutor em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP; 3Docente do Departamento de Clínica Médicada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP.CORRESPONDÊNCIA: Prof.Dr. José Ernesto dos Santos – Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de RibeirãoPreto da Universidade de São Paulo - Campus Universitário - CEP: 14048-900 - Ribeirão Preto - SP; FAX: (016) 633-1144;E-mail: [email protected]

Page 12: Transtornos alimentares

RIBEIRO RPP; SANTOS PCM & SANTOS JE. Distúrbios da conduta alimentar: anorexia e bulimianervosas. Medicina, Ribeirão Preto, 31: 45-53, jan./mar. 1998.RESUMO: A anorexia e a bulimia nervosas são distúrbios da conduta alimentar, que se caracterizampela abstenção voluntária dos alimentos e pela ingestão compulsiva, seguida de vômitos,respectivamente. Compreendem, sindromicamente, uma série de distúrbios psicológicos e comportamentais,associados a alterações somáticas, características de desnutrição do tipo marasmática,principalmente nos casos de anorexia nervosa. Esses quadros têm sido descritos predominantementeem adolescentes do sexo feminino, de classe sócio-econômica média e alta, quase sempreem países desenvolvidos.Neste trabalho, são apresentadas características do diagnóstico clínico, antropométrico elaboratorial de sessenta e oito pacientes, atendidos no Ambulatório de Distúrbios da Conduta Alimentare do Peso, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, noperíodo entre 1982 e 1997.Considerando que essas síndromes têm elevada prevalência e são acompanhadas de altamorbidade, é preconizado o melhor conhecimento de suas manifestações clínicas, tanto no meiomédico como no populacional, a fim de que o diagnóstico possa ser definido o mais precocementepossível, facilitando o tratamento e favorecendo o prognóstico.UNITERMOS: Distúrbios Alimentares. Anorexia Nervosa. Bulimia. Distúrbios Nutricionais.Nutrição do Adolescente.prevalência, não só nos países desenvolvidos, ondesubsistem as características econômicas e sócio-culturaispara o seu desencadeamento, como, também, nospaíses do terceiro mundo(1,2,3).Ao mesmo tempo, devido ao seu quadro clínicointrigante e de mau prognóstico, estes transtornos têmmerecido a atenção crescente dos profissionais da áreada saúde e da sociedade.Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: NUTRIÇÃO CLÍNICA31: 45-53, jan./mar. 1998 Capítulo IV“It (anorexia nervosa) rarely if even, affectspoor people and has not been described in underdevelopedcountries” Hilde Brush, “The golden cage:The enigma of anorexia nervosa”. Vintake Books, NewYork, pg VIII, 1979.A anorexia e a bulimia nervosas são distúrbiosda conduta alimentar que vêm apresentando elevada4546RPP Ribeiro; PCM dos Santos & JE dos Santos1. ANOREXIA NERVOSADescrita, inicialmente, por Morton, em 1694(4),como consumpção nervosa, a anorexia nervosa afeta,principalmente, jovens adolescentes, do sexo feminino,

Page 13: Transtornos alimentares

que voluntariamente reduzem a ingestão alimentarpor um medo mórbido de engordar, com perda progressivae desejada de peso, chegando a graus extremosde caquexia, inanição e até à morte. Como síndromepsicossomática, compreende alterações somáticas, importantes,caracterizadas pela desnutrição proteicocalóricae amenorréia, além de distúrbios psicológicoscomo depressão, fobia, compulsões, preocupaçãoobsessiva com os alimentos, distorção de imagem corporal,entre outros(5).A etiopatogenia inclui um conjunto de fatoresde ordem biológica, psicológica, familiar e sócio-cultural,e não, como no passado se tentou atribuir, fatoresisolados(6). O amplo espectro de distúrbios psicológicose comportamentais que integram a síndromesugere que a sua origem seja psicogênica, embora denatureza obscura. Dentro dessa linha, admite-se que aanorexia nervosa ocorra, com grande freqüência, emfamílias de alto nível social, que apresentam padrõesinadequados ou destrutivos de relacionamento interpessoal,caracterizados por uma aparente harmonia,mas por poderosos conflitos subjacentes. Valorizammais o sucesso e o jogo de aparências do que a verdadeirarealização pessoal dos seus membros. A jovempré-anoréxica se adapta muito bem às expectativas parentais,pois, pela sua inteligência, obediência, perfeccionismoe dedicação aos estudos, colabora para mantera aparente harmonia da vida familiar, mesmo emdetrimento da sua própria personalidade em formação(7).Porém, com o início da adolescência e o conjuntode mudanças de esfera biológica, psicológica esocial, esta jovem, aparentemente bem ajustada, éinvadida por sentimentos de ineficiência, desamparoe descontrole sobre o seu corpo e sua vida. Assim, abusca desesperada pela magreza representa o esforçopara readquirir o controle e a harmonia perdidos(8).A medida em que a doença progride, muitasvezes, iniciando com dietas para emagrecer, aliadas aprogramas exaustivos de exercícios físicos, o emagrecimentotende a se acentuar. E é justamente pelo quadrode desnutrição que os familiares buscam tratamentomédico, muitas vezes, com resistência por parte dopaciente.A incidência mundial é estimada em 1:100.000(9),porém, se considerarmos apenas as mulheres jovens ebrancas, de países desenvolvidos, esta taxa se elevapara 1:200(10). Há evidências de que a incidência estejaaumentando nas últimas décadas, em países como osEstados Unidos e os da Europa(11,12), além de ser oportunoconsiderar os grupos de risco, ou seja, pessoas preocupadas

Page 14: Transtornos alimentares

com o peso e a forma física (modelos, bailarinas,aeromoças e artistas) no aumento da incidência.O diagnóstico da anorexia nervosa é feito segundoos critérios estabelecidos pelo DSM-IV(13)(Tabela I), sendo fundamental afastar doenças de carátertumoral, hormonal, gastrointestinal, além de certosquadros psiquiátricos, como a depressão e a esquizofrenia(Tabela II).2 - BULIMIA NERVOSAA bulimia nervosa foi caracterizada como síndromedistinta, a partir da década de 80, pois, anteriormente,figurava apenas como sintoma coadjuvante àanorexia nervosa. Russel, em 1985(14), considera o fato,devido à supreendente mudança que a anorexia nervosavinha sofrendo nas suas formas de depressão/ouapresentação clínica, em provável resposta às modificaçõesocorridas no contexto sócio-cultural.Tabela II - Diagnóstico diferencial para anorexianervosa - DSM IV1 - Doenças gastrointestinais e consumptivas(AIDS, câncer).2 - Síndrome da artéria mesentérica, superior.3 - Depressão e esquizofrenia.Tabela I - Critérios diagnósticos para anorexianervosa (307-1) - DSM IV1 - Recusa em manter o peso corporal, ideal ouacima do peso mínimo para idade e altura.2 - Medo intenso de ganhar peso ou tornar-se obeso,mesmo se abaixo do peso ideal.3 - Distúrbios de imagem corporal.4 - Amenorréia em mulheres pós-menarca (ausênciade, pelo menos, três ciclos menstruais consecutivos).Subtipos:• Restritivo: restrição dietética.• Compulsivo/Purgativo: ingestão excessiva/vômitos,laxativos, diuréticos.47Distúrbios da conduta alimentar em Ribeirão PretoPor definição, esta síndrome se caracteriza porsurtos de ingestão maciça dos alimentos, seguidos porcomportamentos compensatórios de eliminação, porvômitos, uso abusivo de laxantes, diuréticos e atividadefísica excessiva. Esses acessos incontroláveis deingestão alimentar ocasionam sentimentos de culpa,vergonha e depressão pela falta de controle(5).Comumente, a anorexia nervosa incide em jovensadolescentes, que apresentam medo intenso deengordar e distúrbios de imagem corporal. Porém, oaspecto comportamental sugere que elas se apresentemmais extrovertidas, com caráter histérico, vida sexual

Page 15: Transtornos alimentares

ativa e, muitas vezes, dependentes de álcool e/oudrogas.A etiopatogenia da bulimia nervosa inclui, também,com grande freqüência, conflitos familiares, históriade abuso sexual na infância e questões sobre odesenvolvimento de feminilidade, ocasionando assim,dificuldade de controle de impulsos, depressão crônica,exagerados sentimentos de culpa e intolerância àfrustração e à ansiedade.As manifestações físicas, apresentadas porpacientes com bulimia, não são tão comprometedorasquanto ao estado nutricional, ao contrário do que é vistona anorexia nervosa. Vários distúrbios gastrointestinais,alguns deles sérios, e, mesmo, potencialmentefatais, são descritos na literatura , como dilatação gástricaaguda, inclusive com possibilidade de ruptura,hipertrofia de parótidas, desgaste do esmalte dentário,esofagite, esvaziamento gástrico, anormal e síndromedo cólon irritável. A hipopotassemia representa umaséria complicação, relativamente freqüente, em virtudeda associação dos vômitos crônicos ao uso de diuréticose/ou laxativos(13).Para o diagnóstico da bulimia nervosa, utilizam-se os critérios estabelecidos pelo DSM-IV(13)(Tabela III). Faz-se necessário distingui-la da anorexianervosa, já que ela pode, também, acontecer como sintomacoadjuvante da mesma, ou de forma isolada, emsubtipos de doença afetiva, esquizofrenia e obesidade,quando ocorrem episódios noturnos de voracidade,com usuários de psicofármacos (particularmente antidepressivos)e deficientes mentais. A Tabela IV mostrao diagnóstico diferencial dessa síndrome.O tratamento dos transtornos alimentares é, quasesempre, desafiador e complexo, visto que se deparacom um quadro de confusão, perplexidade e, mesmo,de franco desespero do paciente e de seus familiares.Assim, várias modalidades terapêuticas específicas sãonecessárias e desenvolvidas por equipe multiprofissional.Entre elas, destacam-se a terapia nutricional, baseada naorientação e reeducação alimentar, a psicofarmacoterapia,a psicoterapia individual e a de grupo familiar(15).Na literatura, poucos trabalhos foram publicados,mostrando casuísticas e resultados do tratamentode distúrbios alimentares no Brasil. Santos et al.,(16)em 1986, fez uma revisão de doze casos de anorexianervosa, atendidos no primeiro serviço criado para essefim, em 1982, o Ambulatório de Distúrbios da CondutaAlimentar e do Peso, do Hospital das Clínicas da Faculdadede Medicina de Ribeirão Preto - USP(HCFMRP-USP). Mais tarde, em 1990(5), os mesmos

Page 16: Transtornos alimentares

publicam extensa revisão do assunto, abordando aspectosque incluem desde o reconhecimento das síndromesaté o prognóstico das mesmas, com dados clínicos,antropométricos e laboratoriais de pacientesatendidas pelo mesmo serviço.Tabela III - Critérios diagnósticos para bulimia nervosa(307.51) - DSM IV1 - Episódios recorrentes de compulsão alimentar,que pode ser caracterizada por:a) comer, em período de duas horas, grandequantidade de alimentos;b) sentimento de perda do controle alimentar,durante o episódio.2 - Comportamento compensatório para preveniro ganho de peso: vômitos auto-induzidos, abusode laxativos, diuréticos, enemas ou outrasdrogas, jejum ou exercícios excessivos.3 - A compulsão alimentar e comportamentos compensatóriosocorrem duas vezes/semana, por,pelo menos, três meses.4 - Preocupação excessiva com a forma corporal eo peso.5 - O distúrbio não ocorre exclusivamente duranteepisódios de Anorexia Nervosa.Subtipos:• Purgativo: vômitos ou abuso de laxativos, diuréticose enemas.• Não purgativo: jejum ou exercícios excessivos.Tabela IV - Diagnóstico diferencial para bulimianervosa - DSM IV1 - Anorexia Nervosa – tipo compulsivo/purgativo.2 - Depressão com características atípicas.3 - Distúrbios de personalidade.48RPP Ribeiro; PCM dos Santos & JE dos SantosCom tais trabalhos, verifica-se que a existênciade distúrbios alimentares, em países em desenvolvimento,é notória, e, talvez, subestime-se a sua incidênciadevido a diversos fatores, entre eles a negação radicalda síndrome por parte do paciente e de sua família,retardando ou excluindo, perigosamente, a busca deassistência médica. Some a isso, ainda, o fato de queos médicos e a equipe multiprofissional ainda não estejam,em geral, suficientemente sensibilizados para oreconhecimento precoce das mesmas e preparadospara tratá-la corretamente.O fato é que, entre uma coisa e outra ou, nasoma das duas, perde-se um tempo crucial, em que sepoderia ter feito o diagnóstico, senão precoce, pelomenos, oportuno. E, perda de tempo, nesses casos,

Page 17: Transtornos alimentares

como em tantas outras situações médicas, críticas,geralmente, significa maior dificuldade em tratar, cronicidade,deterioração e, mesmo, morte.3. A EXPERIÊNCIA DA DIVISÃO DE NUTROLOGIADA FMRP-USP . ANÁLISE DE SESSENTA E OITOCASOS EM QUINZE ANOSEste estudo clínico foi realizado pela análise dasobservações e dos registros dos prontuários hospitalaresdos sessenta e oito pacientes, atendidos no Ambulatóriode Distúrbios da Conduta Alimentar e doPeso – HCFMRP-USP, desde o seu início, em 1982, atéoutubro de 1997.Esses casos, em função da sua urgência nutricional,foram espontaneamente encaminhados, principalmentepor médicos e serviços da cidade e região, namaioria das vezes, sem diagnóstico e, nos demais, sobsuspeita clínica ou, em poucos casos, com diagnósticoestabelecido. Vale acrescentar que, raramente, houveiniciativa pessoal na busca de atendimento médico, oque só aconteceu sob constrangimento familiar, explicando,de certo modo, o freqüente retardo no início dotratamento.3.1. A primeira entrevistaDevido a esses fatores, a primeira entrevistafoi conduzida de maneira cuidadosa, a fim de amenizaro clima de conflito entre os familiares e o paciente,e adquirir a confiança dos mesmos. Nesse sentido,alguns princípios foram observados: a) evitar exortações,reprimendas ou ameaças, que apenas reproduzemsituações já bastante conhecidas e muito bem manipuladaspelo paciente, dentro do contexto familiar;b) evitar qualquer sugestão que induza o paciente e afamília a se sentirem culpados pelo que está acontecendo;a idéia a ser passada é que existe um sérioproblema de saúde, cuja solução é de responsabilidadede todos; c) adotar uma atitude compreensiva eafetuosa, mas firme e desenvolta – própria de quemconhece o problema que se apresenta, para tratá-lo,ou pelo menos, dar-lhe o encaminhamento devido.Adotou-se, nesse primeiro contato, a seqüênciaassim resumida: a) constatação da queixa principal emotivo da consulta, na presença de todos – pacientese familiares; b) entrevista com o paciente, para realizaçãode avaliação clínica, incluindo exame físico eantropométrico geral (peso, altura); c) entrevista coma família, para averigüar informações dadas pelo pacientee até complementação das mesmas; d) entrevistacom o paciente e família, para relatar o diagnósticoe dar noções gerais a respeito da síndrome e suas conseqüências– particularmente sobre o quadro de desnutrição

Page 18: Transtornos alimentares

e seus efeitos sobre o estado mental e comportamento– das indicações terapêuticas e doprognóstico. Na seqüência, pedem-se exames laboratoriaisde rotina, para avaliação do estado nutricional, einicia-se o tratamento, sob a forma de hospitalizaçãoou regime ambulatorial.3.1.1. Tratamento ambulatorial e critérios deinternaçãoNos casos de início recente do quadro, em quenão houve ainda perda significativa de peso ou, inversamente,nos casos crônicos com preservação relativado estado nutricional, a melhor indicação é a assistênciaambulatorial. Ainda assim, costuma-se alertaro paciente e família quanto à possibilidade de hospitalização,se houver algum retrocesso, complicaçõesmédicas ou, mesmo, falta de recuperação satisfatóriade peso. Essa advertência antecipada permite dividira responsabilidade por uma futura internação etorná-la mais aceitável, caso venha a se tornar efetivamentenecessária. Caso isso aconteça, adotaram-se os seguintes critérios para sua indicação:a) externa e rápida perda de peso (30% ou mais emrelação ao habitual ou desejável, dentro de um períodode três meses); b) alteração de sinais vitais (hipotensãopostural, bradicardia, hipotermia); c) distúrbioseletrolíticos, principalmente hipopotassemia (geralmente,resultante do abuso de diuréticos/laxativosou vômitos recorrentes) e desidratação; d) infecçãointercorrente em pacientes severamente caquéticos;e) tentativa de suicídio ou tendência suicida e reaçõespsicóticas.49Distúrbios da conduta alimentar em Ribeirão PretoEm relação aos parâmetros antropométricos, ospacientes com AN-R apresentaram os índices maisbaixos, caracterizando quadro de desnutrição de grauIII, enquanto, nos que tinham AN-B, essa deficiênciaera menos pronunciada. Os pacientes com BN, do pontode vista nutricional, eram eutróficos (Tabela VI).Concomitante à avaliação antropométrica, quandodo primeiro atendimento, realizou-se a avaliação bioquímicadesses pacientes. Geralmente, poucas alteraçõesforam detectadas além de níveis séricos de ferrono limite inferior da normalidade e hiperbetacarotenemia.O padrão protéico (demonstrado pela albumina eproteínas totais) foi normal em todos os tipos de distúrbiosalimentares, conforme mostra a Tabela VII.A amenorréia foi outro sinal investigado durantea avaliação clínica, visto que é um dos itens doscritérios diagnósticos para essas síndromes. Dos sessenta

Page 19: Transtornos alimentares

e quatro pacientes do sexo feminino, nove (14%)não haviam apresentado menarca na época do primeiroatendimento. Das mulheres em idade fértil (n = 55),quarenta (72,7%) estavam em amenorréia há mais detrês meses.Devido ao risco de dano ósseo, em todas aspacientes, que se encontram por período longo semmenstruar, realizamos densitometria óssea, a partir doano de 1996. Onze pacientes foram submetidas a talavaliação. Observou-se que quatro delas (36,3%) apresentamquadro de osteopenia em coluna lombar e setepacientes (63,6%) já desenvolveram osteoporose, tantoem coluna lombar como no fêmur. Esses resultadosdemonstram a importância dessa avaliação e a necessidadede indicar esquema de reposição hormonal,como vem acontecendo nessaamostra.O comportamento alimentar,apresentado pelos pacientesatendidos nesse período,foi bastante típico, emrelação ao descrito na literatura.Nos casos de anorexianervosa, notou-se restrição intensada ingestão alimentar(principalmente dos alimentosmais calóricos, ricos em carboidratose gorduras), diminuiçãodo número de refeições,caracterizando, muita vezes,um padrão alimentar típico dedietas vegetarianas, com exclusãode carnes vermelhas eAlém dessas situações, a internação pode serindicada também a partir de critérios psicossociais,como deterioração do quadro por grave distúrbio familiarou isolamento social, e psicoterapêuticos, como carênciade motivação para o seguimento ambulatorial.Na abordagem desses distúrbios, a decisão dehospitalizar ou tratar ambulatorialmente é particularmentecrítica e, qualquer que seja ela, deve fazerparte de um amplo e bem estruturado plano de tratamento.Para o paciente internado, o Ambulatório deDistúrbios de Conduta Alimentar conta com equipemultiprofissional, composta por médico clínico, psiquiatra,nutricionista, além do assistente social e enfermeiro,que desenvolvem as modalidades terapêuticaspropostas.3.2. Quadro clínico, laboratorial e antropomé-trico

Page 20: Transtornos alimentares

Durante esses quinze anos de funcionamento,sessenta e oito pacientes foram atendidos no Ambulatóriode Distúrbios da Conduta Alimentar e doPeso – HCFMRP-USP. Desses, quarenta e sete pacientesreceberam o diagnóstico de anorexia nervosa,tipo restritivo (AN-R), dezessete pacientes com tipocompulsivo/purgativo ou bulímico (AN-B) e quatroapresentavam bulimia nervosa (BN). Conforme mostraa Tabela V, a maioria era do sexo feminino (n =64) com idade variando de onze a cinqüenta e doisanos, conforme o diagnóstico. Vale notar que os casosde bulimia nervosa (BN) eram com pacientes de idademais avançada que a daqueles com anorexia nervosa,do tipo restritivo (AN-R).Tabela V - Características demográficas dos pacientes com distúrbiosalimentares - HCFMRP - USPAN-R AN-B BNHipótese Diagnóstica 47 (69%) 17 (25%) 4 (6%)Sexo: Feminino 44 16 4Masculino 3 1 -Idade * 20 ± 8 22 ± 9 25 ± 4(anos) (11 - 41) (12 - 52) (22 - 32)AN-R = anorexia nervosa, tipo restritivo.AN-B = anorexia nervosa, tipo bulímico.BN = bulimia nervosa.* X ± SD (variação).50RPP Ribeiro; PCM dos Santos & JE dos SantosTABELA VI - Avaliação antropométrica dos pacientes com distúrbios alimentares - HCFMRP-USP (X ± SD)AN-R AN-B BN Valores de referênciaIMC (Kg/m2 ) 15,0 ± 3,6 17,7 ± 3,9 20,8 ± 2,5 19 - 24Perda de peso (%) 26,5 ± 11,2 23,4 ± 13,4 - -PCT (mm) 5,2 ± 3,1 10,9 ± 7,5 16,5 ± 6,6 16,5CB (cm) 18,1 ± 4,6 21,4 ± 4,5 26,1 ± 2,0 28,5CMB (cm) 15,5 ± 3,1 17,9 ± 2,7 20,8 ± 1,4 23,2IMC = índice de massa corporal (P (kg)/altura2 (m)).PCT= prega cutânea triciptal.CB= circunferência braquial.CMB= circunferência muscular do braço (CMB= CB - p x PCT).predomínio de alimentos reguladores, como frutas evegetais. Além disso, o uso de alimentos dietéticos foifreqüente (refrigerantes, adoçantes) e até a ingestãode água mostrou-se bastante prejudicada. Outros comportamentos,de caráter obsessivo, em relação à alimentação,foram detectados: 1) cortar os alimentosem pedaços bem pequenos e remexe-los no fundo doprato antes de ingeri-los; 2) mastigar lentamente pequenaquantidade de alimento e depois, cuspir; 3) esconderos alimentos ou jogar fora, dizendo para a família

Page 21: Transtornos alimentares

que a ingestão dos mesmos aconteceu; 4) evitarcomer na presença de outras pessoas; 5) observar,curiosamente, as refeições alheias e insistir para queos outros comam de tudo; 6) fiscalizar a cozinha e adespensa, fazendo compras no supermercado; 7) colecionarreceitas culinárias, preparar pratos e demonstrarsingular interesse por Nutrição.Nos casos de bulimia nervosa, a ingestão alimentar,nos momentos de compulsão, era muito alta,prejudicando, até, o cálculo calórico, por dificuldadedos pacientes precisarem as quantidades dos alimentos.Além disso, os episódios de vômitos, autoprovocadosou espontâneos, estavam sempre presentes, àsvezes concomitantes ao uso de laxantes e diuréticos.Tabela VII - Avaliação bioquímica dos pacientes com distúrbios alimentares - HCFMRP-USP (X ± SD)AN-R AN-B BNAlbumina (g/dl) 4,6 ± 0,7 4,9 ± 0,7 5,1 ± 1,0Proteínas totais (g/dl) 7,4 ± 1,0 7,5 ± 0,7 7,6 ± 1,0Ferro (μg/dl) 89 ± 37 86 ± 20 85 ± 52TIBC (μg/dl) 288 ± 98 285 ± 69 389 ± 106b - caroteno (μg/dl) 189 ± 107 220 ± 127 148 ± 8,2Vitamina C (mg/dl) 0,32 ± 0,15 0,39 ± 0,1 0,39 ± 0,19TIBC = capacidade total de ligação do ferro.51Distúrbios da conduta alimentar em Ribeirão Preto3.3. Abordagem terapêutica3.3.1. Evolução clínicaConforme comentado anteriormente, o tratamentose desenvolveu, de preferência, a nível ambulatorial,salvo em alguns casos, em que os pacientes seencontravam gravemente desnutridos e com complicaçõesclínicas de alto risco.Ao todo, vinte e sete pacientes necessitaram deinternação hospitalar (39,7%), a maioria deles (92,5%)portadores de anorexia nervosa.O período de internação variou bastante, mas,na maioria dos casos, quase nunca foi inferior a quatrosemanas. Alguns pacientes (n = 5) tiveram mais deum período de internação.A análise da evolução ponderal mostrou-se, namaioria das vezes, bastante positiva. A média de recuperaçãode peso foi de 5,1 Kg, nos casos de anorexianervosa. Aqueles pacientes com bulimia nervosa(n = 2) chegaram a perder peso (em média 2,2 Kg),devido ao controle alimentar, conseqüente à diminuiçãodos episódios, ingestão compulsiva e vômitos. Esseresultado é explicado pelo fato de estarem esses pacientessempre entre o limite normal e superior de seupeso.

Page 22: Transtornos alimentares

Durante a internação hospitalar, procurou-seadotar a via oral como preferencial, para oferecer osnutrientes necessários para a recuperação. No entanto,alguns pacientes com anorexia nervosa apresentaramdificuldade em alcançar a ingestão mínima, recomendada,por mais que ela fosse individualizada comas suas preferências alimentares. Nessas situações, osuporte nutricional foi indicado para prover o aportede calorias e nutrientes, sendo pela sonda enteral o deprimeira escolha, em dez pacientes. Optou-se por fórmulaspoliméricas, administradas, de preferência, porbomba de infusão, no período noturno, para que, duranteo dia, as refeições pudessem ser ingeridas.O tratamento da anorexia nervosa e bulimia tendea ser árduo, prolongado e de resultados duvidosose, muitas vezes, insatisfatórios. Isso se deve, em parte,às condições inerentes à doença que, na sua complexidadee rebeldia, representa um desafio a qualquer esforçoterapêutico. Por outro lado, existem os mecanismosde negação, acionados pelos pacientes e seusfamiliares, no sentido de negar a gravidade, quandonão, a própria existência do problema. Com isso, freqüentemente,não existe a mínima cooperação para oauxílio e a possibilidade de sucesso.3.4. Análise dos resultadosNos resultados apresentados, observou-se queas características da casuística, obtidas ao longo dessesquinze anos, mostraram-se em concordância comdados encontrados na literatura mundial, ou seja, amaioria dos pacientes era do sexo feminino, prevalecendoos adolescentes, sendo mais comuns os casosde anorexia nervosa, do tipo restritivo. Conseqüentemente,deparou-se com quadros de extremo emagrecimento,sem, contudo, se encontrarem alterações bioquímicasimportantes. Concluímos ser a desnutriçãodesses pacientes, freqüentemente, do tipo marásmica,com grande adaptação orgânica à diminuição da ofertacalórica e concomitante aumento da atividade física,como forma adicional de provocar a perda de pesoe adquirir a tão desejada magreza. Dados semelhantesa esta análise realizada por Santos(17) vêm a corroboraros indicativos antropométricos e bioquímicos, característicosdessas síndromes.Algumas vezes, a recuperação nutricional nãofoi obtida a nível de ambulatório, e a indicação de internaçãohospitalar foi necessária, para reverter as complicaçõesclínicas da anorexia nervosa (desidratação,desnutrição grave) e da bulimia (desequilíbrio hidroeletrolítico,ingestão compulsiva e maciça dos alimentos,seguida de vômitos).

Page 23: Transtornos alimentares

A evolução clínica, durante o seguimento, foivariável, com alta taxa de abandono do tratamento(n = 39; 57,3%) após alguns atendimentos, principalmentenaqueles casos em que o estado geral do pacientenão era grave o suficiente para permitir a adesãoimediata ao serviço. Dois casos de anorexia nervosa(2,9%) evoluíram para óbito, em regime de internação.Atualmente, cerca de vinte pacientes estão emacompanhamento, alguns devido à cronicidade dasdoenças, outros que se encontram no início do tratamento,com boa evolução, e vários casos em quaserecuperação completa.Na literatura, poucos dados são encontradossobre o prognóstico dessas síndromes devido, principalmente,a dificuldades metodológicas. Nemiah(18)identificou, na sua amostra, 70% de cura ou melhoraclínica dos seus casos, 22% de cronicidade e 8% demortalidade, este último item bem maior do que o encontradonesta casuística. Ainda sobre mortalidade,existe relato de porcentagem ainda maior (20%) naSuécia, segundo Theander(19).Esses dados só tendem a reforçar a importânciados esforços terapêuticos, que devem sempre se basearem programas multidisciplinares, que promovama reabilitação nutricional com base na reeducação52RPP Ribeiro; PCM dos Santos & JE dos Santosalimentar, acompanhamento clínico, psicológico, comportamentale familiar, que visam abranger todos osintrigantes aspectos somáticos, psicológicos, familiarese sociais que se apresentam nos casos dos distúrbiosalimentares.Devido ao aumento da incidência, nos paísesdesenvolvidos do mundo ocidental, nota-se grandepreocupação dos cientistas em aperfeiçoar os métodosdiagnósticos e terapêuticos que possam resultarna detecção de fatores de risco em grandes segmentospopulacionais e no desenvolvimento de programas comunitáriospreventivos.No nosso meio, apesar de não existirem dadosconcretos, podemos considerar, diante da experiênciaobtida e aqui mostrada, que haja subestimação da presençados distúrbios alimentares, principalmente nosgrandes centros urbanos e regiões mais desenvolvidasdo país. Tal fato, associado à alta morbidade e mortalidadejá detectada, exige imediata divulgação do quadroclínico dessas síndromes, nos meios de comunicaçãode massa, preparo e sensibilização dos médicospara o diagnóstico, diminuição da negação dos sintomaspor parte do paciente e familiares, favorecendo,

Page 24: Transtornos alimentares

assim, a busca por assistência médica e, finalmente,formação de equipes multidisciplinares que promovam,o quanto antes, tratamento específico, a fim de seremevitadas a cronicidade e a morte.AGRADECIMENTOOs autores agradecem a todos os profissionaisque participaram da assistência aos pacientes atendidose colaboraram com a revisão dos dados aqui apresentados,em especial a Dra. Silviane Vianna, Dra.Maria Cristiane Rafael de Farias, Dr. Fernando B.Chueire, Dr. Dênis Eduardo Bertini Bó, Dr. Evaldo dosSantos, Dra. Ingrid Dick de Paula, Prof. Dr. Júlio SérgioMarchini, enfermeira Maria do Rosário Del LamaUnamuno, nutricionista Milene Goretti A. Ferronato efuncionários da Unidade Metabólica – HCFMRP-USP.RIBEIRO RPP; SANTOS PCM & SANTOS JE. Disorders of eating behavior: Anorexia nervosa and bulimia.Medicina, Ribeirão Preto, 31: 45-53, jan./march 1998.ABSTRACT: Anorexia nervosa and bulimia are eating disorders characterized by voluntaryabstinence from food and by compulsive ingestion followed by vomiting, respectively. Theysyndromically consist of a series of psychological and behavioral disorders associated withsomatic changes characteristic of malnutrition of the marasmus type, especially in cases ofanorexia nervosa. These disorders have been predominantly reported for adolescent girls ofmiddle to upper socioeconomic class, and almost always in developed countries.In the present study we report the characteristics of the clinical, anthropometric and laboratorydiagnosis of 68 patients seen at the Outpatient Clinic for Disorders of Eating Behavior and ofWeight of the University Hospital, Faculty of Medicine of Ribeirão Preto, USP, from 1982 to 1997.Considering that these syndromes are highly prevalent and are accompanied by high morbidity,a better understanding of their clinical manifestations is recommended both at the medical andpopulational level, so that a diagnosis may be made as early as possible, facilitating treatmentand favoring prognosis.UNITERMS: Eating Disorders. Anorexia, Nervosa. Bulimia. Nutrition Disorders. AdolescentNutrition.4 - MORTON R. Phthisiologia: or a treatise of consumption. Smithand Walford, London, p. 4-10, 1694.5 - SANTOS PCM; PESSA RP & DOS SANTOS JE. Comodiagnosticar e tratar anorexia nervosa e bulimia. Rev BrasMed 47: 155-169, 1990.6 - SIMMONDS M. Ueber embolische prozesse in derhyphophysis. Arch Pathol Anat 217: 226-239, 1914.7 - BRUCH HB. Perceptual and conceptual disturbances inanorexia nervosa. Psychosom Medicine 24: 187-194, 1962.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1 - HOEK HW. Review of the epidemiological studies of eatingdisorders. Int Rev Psychiatry 5: 61-74, 1993.2 - LUCAS AR et al. 50-year trends in the incidence of anorexianervosa in Rochester, Minnesota: a population - based-study.Am J Psychiatry 148: 917-922, 1991.3 - OYEWUMI LK & KAZARIAN SS. Abnormal eating attitudes

Page 25: Transtornos alimentares

among a group of nigerian youths: II Anorexic behaviour. EastAfr Med J 69: 667-669, 1992.