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Transição, Estabilidade e Alternância:
Fernando Lugo e a possibilidade de inserção tardia do Paraguai no processo latino-americano de consolidação da democracia.
Mayra Goulart da Silva.
Mestranda Iuperj
Resumo: O objetivo do presente trabalho é esquematizar as etapas pelas quais passaram as sociedades
latino-americanas no caminho para a adoção de instituições democráticas, para a partir de então
realizar um breve estudo do Paraguai, como um caso de inserção tardia em tal processo. Nesse
sentido, buscarei apontar os principais fatores que retardaram sua marcha rumo à democracia. Ao
fim analisarei as eleições de abril de 2008 enquanto marco da consolidação deste regime, uma
vez que elas representaram a possibilidade concreta de que, pela primeira vez em mais de 60
anos, o Partido Colorado, no poder desde 1947, fosse derrotado. O intuito de tal exposição é
argumentar por meio do exemplo paraguaio que o processo de transição democrática, só pode ser
considerado efetivamente concluído quando, por meio de eleições livres, ocorre a transferência
do poder por parte das forças tradicionais, que dominaram os cenários políticos nacionais pós-
abertura, para governos que representam propostas alternativas.
Palavras-chave: Democracia, Transição, Estabilidade e Alternância.
1-Introdução A democracia, durante grande parte do século XX, poderia ser considerada uma exceção
no cenário político latino-americano, caracterizado por regimes de caráter marcadamente
autoritário, cujos arranjos institucionais eram refratários à vontade popular e cujos governantes
não haviam sido escolhidos por meios de eleições livres. No entanto, desde o final da década de
70 tal panorama começou a ser alterado. Iniciou-se, então, um período de gradual transformação
nos marcos institucionais, assim como nos sistemas de escolha de governo, os quais,
gradativamente e de acordo com as peculiaridades de cada país, passaram a se enquadrar nos
padrões democráticos. Este processo de transição assimétrico, e não necessariamente simultâneo
em relação aos diferentes regimes implementados na região, pode ser, contudo, analisado a partir
de um macro sistema que os abarca, uma vez que, em muitos casos, eles passaram por etapas e
problemas análogos. O objetivo desta análise é, portanto, esquematizar as etapas pelas quais as
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sociedades latino-americanas passaram no caminho para a adoção de instituições democráticas.
E, em seguida, fazer um breve estudo do caso paraguaio, para tentar observar como este país
inseriu-se tardiamente em tal processo. Deste modo, serão apontados os principais fatores que
retardaram sua marcha rumo à democracia, enfatizando a importância das eleições de abril de
2008 enquanto possível marco da consolidação deste regime. Isto porque elas apresentariam a
possibilidade concreta de que, pela primeira vez em mais de 60 anos, o Partido Colorado, no
poder desde 1947, seja derrotado.
O intuito de tal exposição é argumentar por meio do exemplo paraguaio que o processo de
transição democrática, só pode ser considerado efetivamente concluído quando, por meio de
eleições livres, ocorre a transferência do poder por parte das forças tradicionais, que dominaram
os cenários políticos nacionais pós-abertura, para governos que representam propostas realmente
alternativas. O que ocorre quando, nos primeiros anos do século XXI, vemos surgir na região
uma série de governos de esquerda1 e centro-esquerda não tradicionais, chegando ao poder por
vias eleitorais. Este fenômeno, pois, atestaria a conciliação da dimensão da estabilidade política,
conquistada na maioria dos países ao longo da década de 80 e 90, com a dimensão da
representatividade, atestada pela alternância democrática do poder. Esta, por sua vez, demonstra a
obediência às escolhas eleitorais do povo, independentemente de seu conteúdo, confirmando a
conquista da democracia por parte das populações latino americanas.
2- A ascensão eleitoral das esquerdas latino-americanas como prova da consolidação da
democracia na região.
Como coloca Samuel Huntington em seu texto “The Third Wave”, o último terço do
século vinte é um período de efervescência da democracia ao redor do mundo, quando em mais
de trinta países observa-se o esfacelamento de regimes autoritários, os quais, aos poucos vão
sendo substituídos por regimes democráticos.
É possível sistematizar a irrupção da terceira onda de democratização na América Latina
traçando características comuns em seu desenvolvimento no que diz respeito aos países da região,
o que não torna dispensável a observação da imensa diferença entre eles. Deste modo, podemos
destacar elementos comuns como: “a) a institucionalização de regras pluralistas de concorrência
1 O objetivo deste trabalho não é analisar se, de fato, as categorias progressista e esquerda podem ser aplicadas a estas novas forças, mas sim demarcar a existência de elementos que nos permitem traçar diferenças substantivas em relação aos governos anteriores e, por isso, tornam possível analisar sua ascensão eleitoral a partir da idéia de alternância.
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política e de escolha dos quadros de governo; b) a extensão da cidadania política tanto no que se
refere ao reconhecimento igualitário dos direitos políticos (voto universal, livre, direto e secreto),
quanto pela participação política efetiva da maioria absoluta da população adulta; c) a
consolidação formal do reconhecimento normativo dos direitos civis dos governados; d) o
funcionamento das instituições políticas da democracia liberal; e) o fato de se tratar de
democracias desmilitarizadas, o que significou a obtenção do controle civil sobre os militares”
(FORCHERI; 1994: 24).
A opção democrática implica primeiramente a implementação de procedimentos de
seleção de governantes por parte de seus governados, por meio de eleições livres e honestas nas
quais os candidatos concorrem pelos votos dos eleitores. Assim sendo, podemos dizer que nesta
etapa a definição de democracia utilizada é conforme a concepção dahliana, que aponta a
poliarquia como tradução empírica da democracia, envolvendo um conjunto de procedimentos
decisórios baseados nos princípios de igualdade política e soberania popular. (ANASTASIA;
2004: 11). De acordo com esta definição, as eleições, momento no qual a população exerce sua
soberania e escolhe seus governantes, expressam a essência da democracia. Todavia, é preciso
aprofundar a análise dos regimes, pois é temeroso atestar o seu caráter democrático baseando-se
apenas na observação de procedimentos, na medida em que, este status não será justamente
concedido caso as escolhas da população estejam condicionadas a elementos que restrinjam o
exercício da liberdade do povo. Nesse sentido, é fundamental percebermos se todas as camadas e
etnias que o compõem têm o direito de eleger e serem eleitas. Mas também se, uma vez
escolhidos, os governantes terão o direito de cumprirem seus mandatos sem serem ameaçados de
destituição ou golpes. Como sabemos estas ameaças tornam-se ainda mais perigosas em caso de
instituições democráticas recentemente implementadas e ainda não consolidadas pelo tempo.
Os primeiros anos que se estendem até o início da década de 90 chamam atenção pelo
temor de que as forças políticas que dominaram durante o período autoritário anterior atentassem
contra os arranjos institucionais democráticos, ainda frágeis e recém implementados. Por este
motivo, esta etapa se caracteriza pelo desmonte da herança da ditadura, principalmente no que diz
respeito a quatro aspectos: “a) retirada dos militares e dos agentes corporativos da arena política;
b) o esgotamento do longo ciclo de crises estrutural – política, econômica e social das décadas de
1960 e 1970; c) uma fase de legitimação representativa assentada numa efetiva expansão
generalizada da participação cidadã; d) a consolidação do funcionamento das instituições
políticas” (FORCHERI; 2004: 24-25).
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Por outro lado, a memória recente e dolorosa dos abusos cometidos pelos governos
autoritários fazia com que os esforços se concentrassem em impedir o seu retorno. A dimensão
prioritária era a da estabilidade. O sistema político-partidário estava sendo cuidadosamente
reerguido, de forma a evitar ao máximo qualquer ameaça à ordem institucional. Pode-se, então,
afirmar que em termos de prioridades, pelo menos no que diz respeito a este momento inicial, na
maioria dos casos a dimensão da estabilidade era colocada acima da dimensão da
representatividade, pois partimos do pressuposto de que em muitos casos pode haver uma relação
inversamente proporcional entre ambas. Ou seja, de que “nos países que apresentam
heterogeneidades estruturais combinadas com graus expressivos de desigualdades sociais e de
pobreza apresentarão um trade off entre os atributos da democracia, que favorecem a estabilidade
política, em detrimento da representatividade” (ANASTASIA; 2004: 177). Por este motivo, não é
espantoso que o rechaço à ditadura tenha sido seguido pela eleição de governos de caráter não
muito distintos no que diz respeito a posições econômico-políticas fundamentais. A ênfase na
estabilidade, de certa forma, contribuiu para que a maioria dos políticos eleitos fosse
conservadora em relação a reformas estruturais.
Tal padrão segue relativamente o mesmo naquele que seria o segundo momento do
processo de transição democrática na América Latina. Neste, o contexto político mundial é
caracterizado pela emergência do chamado Consenso de Washington, entendido como um
conjunto de modelos e ideais que expressam uma visão de tipo neoliberal em relação às funções
do Estado. Este modelo recomendava a limitação das tarefas do plano político-estatal e a
transferência de algumas das responsabilidades do Estado à sociedade. Pois, de acordo com esta
lógica, os atores privados seriam mais capazes de exercer determinadas funções de forma a
produzir melhores efeitos em termos de crescimento. Este, em virtude das modificações
implementadas, aumentaria de forma tão vigorosa que tornaria desnecessário o papel do Estado
como distribuidor de renda. Portanto, na década de 90, grande parte dos governos da região
aderem ao ideário neoliberal e implementam uma série de ajustes monetários e sobretudo fiscais
responsáveis por uma redução drástica da capacidade de intervenção e investimento estatais. Tal
adesão, por suposto, não resulta somente de pressões internacionais, mas também de uma certa
afinidade entre o conteúdo dessa nova ideologia e as posições dos principais governantes da
região, que em sua grande maioria poderiam se considerados de direita por que refratários a uma
visão do Estado como redistribuidor de renda. Por conseguinte, “prácticamente todos los países
latinoamericanos fueron víctimas de esse modelo –a excepción de Cuba -, tal fue su
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generalización, patrocinado por la extrema derecha, por la derecha tradicional, por fuerzas
nacionalistas o por partidos social-demócratas” (SADER; 2007: 59).
As conseqüências da implementação das reformas neoliberais em um contexto
estruturalmente e conjunturalmente adverso foram nefastas. Isto é, em um momento no qual o
mundo passou por sucessivas crises econômicas internacionais, a adoção do modelo neoliberal,
por parte das sociedades periféricas latino-americanas, demonstrou-se precipitada. Nesse sentido,
podemos atribuir tal precipitação, ao fato de que nas sociedades em questão, as condições
fundamentais para o bem-estar da população, em termos de infra-estrutura e educação ainda não
foram preenchidas. Tais características tornam a região um cenário no qual a ação do Estado é
ainda mais necessária, do mesmo modo que fazem sua retração ser ainda mais acintosamente
sentida pela população, cujo descontentamento com seus governantes tornou premente um
clamor por mudanças. Assim, “nunca antes partidos, coaliciones o movimientos políticos que se
reconocen como provenientes del campo de la izquierda han conseguido ser elegidos
democráticamente, casi al mismo tiempo, al frente de los goviernos de um número tan grande de
países latino americanos” (GALLEGO; 2006: 30).
Deste modo, no final do século XX e no início do século XXI, observa-se um aumento
progressivo no espaço ocupado pelas esquerdas no cenário eleitoral de diversos países, onde
políticos ligados a movimentos e partidos “progressistas” passam a ganhar cada vez mais votos
nas eleições regionais e presidenciais. Todavia, este processo não é resultado apenas do
descontentamento com os políticos tradicionais, mas também de uma certa mudança na lógica
institucional dos sistemas de governo. Assim, os esforços deixam de se concentrar
predominantemente na garantia da estabilidade dos regimes e na proteção contra um possível
retorno das ditaduras, e passam a enfatizar esfera da representatividade. Com isso a democracia,
ao longo dos anos, teria ganhado solidez e se tornado mais forte para sobreviver à ameaças
autoritárias por parte de pressões alheias ao desígnio do povo, que passa, portanto, a se sentir
livre para votar em candidatos não tradicionais. Nesse sentido, o povo passou a não se sentir mais
correndo o risco de que as forças de conservação tomem em armas para impedir que o poder
passe para as mãos de novos atores representantes de propostas diferentes. Estas propostas, a
despeito da imensa diversidade entre os movimentos sociais e partidos políticos que vêm
ganhando espaço nos países latinoamericanos, convergem em torno da crença de que o Estado
deve recuperar sua capacidade de investimento. Porque só a partir de seu fortalecimento ele pode
ser capaz de desempenhar aquela que, segundo estas novas lideranças, é sua principal função:
promover a redistribuição de renda.
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Não é possível falar sobre esta nova identificação entre a população e o voto sem
mencionar o papel fundamental exercido pelos movimentos sociais, ligados aos camponeses, aos
desempregados e sobretudo àqueles ligados às questões étnicas. No que se refere ao fenômeno da
ascensão democrática dos novos governantes “progressistas” o fortalecimento das forças sociais e
sua irrupção da esfera política reforça a idéia de alternância. Isto porque, em muitos casos, os
novos líderes trouxeram consigo para o plano político institucional – normalmente dominado
pelas elites tradicionais oriundas de camadas etnicamente e economicamente minoritárias – um
conjunto de dirigentes sociais, militantes e técnicos provenientes de setores sociais
desfavorecidos e vítimas de preconceitos em virtude de sua origem étnica ou de classe
(GALLEGO; 2006: 34). Demonstrando, portanto, também um fortalecimento quanto ao caráter
representativo das instituições, pois tal mudança nos quadros institucionais tornou-os mais
compatíveis com a população, que com isso pode se sentir mais representada.
Assim, o fortalecimento dos movimentos sociais fez com que eles se tornassem atores
políticos organizados e relevantes. Isto ocorreu não apenas no plano da sociedade civil, por parte
da manifestação de seus anseios e das pressões exercidas junto aos governos, como também no
plano político-eleitoral, posto que muitos dos novos líderes progressistas tiveram suas
candidaturas lançadas ou apoiadas por movimentos sociais. Dessa maneira, alguns segmentos,
problemáticas e conflitos que assolavam as sociedades latino-americanas, sem contudo serem
capazes de se expressar pela via institucional, passaram a ser canalizados para a esfera político-
partidária. O fato de este ser o caso do principal candidato da oposição paraguaia para as eleições
de 2008, Fernando Lugo Méndez, ligado a segmentos do movimento camponês e indígena, lhe
confere uma relevância especial para nossa análise, cujo objetivo é demonstrar como o Paraguai
se enquadra no cenário latino-americano, no que diz respeito à consolidação do processo de
transição democrática.
Outro elemento que pode ser incluído na lista de fatores que propiciaram a ascensão
democrática de governos alternativos ou de esquerda foi o fim da Guerra Fria. Isto porque,
quando o mundo se dividiu entre capitalismo e socialismo, Estados Unidos e União Soviética, a
América Latina foi, por razões óbvias, situada como área de influência americana. Nesse sentido,
qualquer movimentação política que pudesse representar uma guinada em direção à esquerda era
considerada uma grave ameaça ao equilíbrio mundial. Algo extremamente relevante para os
norte-americanos, que se sentiam acuados diante da ameaça nuclear soviética, e por isso não
mediam esforços para impedir a vitória eleitoral ou revolucionária dos movimentos e partidos
políticos de esquerda. Estes, diante das dificuldades colocadas pelos norte-americanos, viram
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suas chances de chegar ao poder, sobretudo pela via democrática, diminuírem exponencialmente
ao não terem mais como tentar se sobrepor ao apoio financeiro, logístico e militar concedido aos
representantes do mundo capitalista na região. Dessa forma, para impedir a vitória de
movimentos alternativos os EUA, muitas vezes ofereceram apoio direto aos ditadores latino
americanos.
Porém o fim da Guerra Fria operou uma transformação também nas forças de esquerda,
que em muitos casos abandonaram as doutrinas revolucionárias e radicais ao observarem o
fracasso dos regimes comunistas europeus. Com o afastamento entre conceitos de esquerda e de
comunismo, que pareciam inevitavelmente atrelados até a queda do muro de Berlin, foi possível
que as forças de esquerda adotassem a via democrática, apresentando propostas mais palatáveis
aos interesses de alguns setores importantes da sociedade como as classes médias e os
empresários. Assim, “por paradójico que luzca a primera vista, este fenómeno es inseparable del
colapso del imperio soviético. Desaparecido éste, y com la lógica de la Guerra Fría, los
movimientos y partidos progressistas del mundo – y en particular los de América Latina y del
Caribe, tan lejos de Dios y tan cierca de los Estados Unidos - , ya no tropiezan com esse techo
que colocaba a sus aspiraciones el implacable determinismo de las esferas de influencia, que
derivaba del equilibrio del terror entre la URSS y EEUU. (PETKOFF; 2005: 115).
Por fim, resta-nos tentar traçar algum dos elementos que caracterizam essas novas forças,
antes de passarmos a análise do panorama político paraguaio e das eleições de abril de 2008.
Sendo que, a análise deste contexto torna-se ainda mais relevante se o tomarmos como momento
no qual pela primeira vez existe a possibilidade de que o Paraguai ateste a conclusão do processo
de transição democrática. Com isso o país poderá se inserir de forma mais efetiva no cenário
latino-americano de concretização da democracia, a qual segundo a hipótese levantada é atestada
pela ascensão eleitoral das novas forças progressistas e/ou de esquerda. Nesse sentido, nosso
objetivo, portanto, é observar se a ascensão do ex-bispo Fernando Lugo como força de oposição
representa, de fato, uma possibilidade de alternância, inédita no cenário paraguaio.
Sendo assim, como primeira característica dessas novas forças temos o já comentado
apoio dos movimentos sociais, que na maioria dos casos é a sua principal base de sustentação.
Quanto a Fernando Lugo, tal apoio é fundamental, porque sua identidade política é construída em
cima da sua ligação com os movimentos camponeses e indígenas. E porque, de acordo com seus
discursos eleitorais, são principalmente os segmentos da sociedade paraguaia historicamente
marginalizados que ele pretende representar e incluir nos planos político, social e econômico. A
segunda característica seria o discurso de ruptura com a tradição, ou seja, uma diferenciação em
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relação às elites políticas tradicionais de cada país. Diferenciação esta, que como dissemos
anteriormente, diz respeito ao fato de que estes novos elementos, pelo menos no plano discursivo,
se afirmam defensores de um projeto alternativo de governo. Tal característica é evidente no caso
de Lugo, pois uma possível vitória de sua candidatura significaria a primeira vez que um não
membro do Partido Colorado chega ao poder desde 1947.
Em seguida, como característica comum das chamadas novas forças temos a reafirmação
dos discursos de soberania nacional e independência em relação às potências estrangeiras,
sobretudo os EUA, e conseqüentemente a busca por uma inserção independente e pragmática no
cenário internacional . Este discurso é marcante no que diz respeito a Lugo, particularmente em
relação ao Brasil, como comentaremos mais detalhadamente ao analisarmos o caso paraguaio.
Por fim, porém não menos importante, percebemos a ênfase na necessidade de recuperação do
gasto social, isto é, uma visão política diferente daquela divulgada pela lógica neoliberal do
mercado, posto que implica a ênfase nas responsabilidades do Estado quanto ao seu papel de
investidor e distribuidor de renda. Assim, estes novos líderes apontam como principais problemas
a serem resolvidos por seus governos as questões relativas ao empobrecimento de amplos setores
da população, a concentração da riqueza e a falta de acesso aos direitos sociais elementares como
educação, saúde, alimentação, habitação, etc. Desta maneira podemos dizer que os projetos
defendidos pelos políticos tomados como “progressistas” no cenário atual são distintos das
bandeiras levantadas pela esquerda durante os anos de ditadura militar, que em grande parte
visava a instauração do comunismo ou do socialismo de Estado. Porém ainda é possível enxergar
no discurso atual críticas em relação aos abusos do capitalismo, assim como a tentativa de
corrigir e superar algumas de suas mazelas. Como coloca Franflin Ramírez Gallegos em trecho
no qual se refere às características da “nova esquerda”.
“La amplitud de dichos márgenes varía en cada país, pero es posible reconocer en ellos además de la recuperación del gasto social, un conjunto de iniciativas que convergen en la dirección de abrir el escenario para superar el neoliberalismo y posicionar su específico ideario político. Entre estas iniciativas, podemos señalar: a) El retorno neodesarrollista de la acción estatal a través del relanzamiento de la inversión publica em
sectores estratégicos de la economía y en infraestructura, el restablecimiento de su capacidade redistributiva y la voluntad de recuperar la propriedad – o la gestión – de los activos públicos.
b) La inserción soberana en el escenario internacional por vía del incremento de la capacidad de negociación con los actores económicos transnacionales; el impulso de una política exterior dinámica y multilateral que replantea los nexos con los Estados Unidos; el énfasis inédito puesto en los processo de integración regional com una agenda geopolítica que busca superar el carácter estrictamente comercial de los acuerdos previos, y la apuesta por proyectos de inversión conjunta en sectores económicos de alto impacto regional y nacional (gasoductos, refinería, etc...)
c) El fomento a los experimentos de cooperación económica entre el sector público y el sector asociativo en procura de formas no privadas de propriedad y gestión productiva.
d) La innovación democrática a partir del impulso de mecanismos de democracía participativa, directa o comunitária en la gestión pública (GALLEGOS; 2006: 43-44).
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3- O tardio processo de democratização do Paraguai: Fernando Lugo e a possibilidade de
sua concretização.
3.1) Do início da república à era Stroessner
A alternância do poder no Paraguai é um fenômeno ainda não vivenciado, embora no
período entre a instituição da república e a década de 30, seu contexto político tenha sido
marcado pela disputa entre colorados e liberais, que ciclicamente ocupavam as posições de
comando em regimes de tipo semi-competitivo e não-competitivos (POWERS, 1992). A
Associação Nacional Republicana (ANR), melhor conhecido como Partido Colorado nasceu em
1887 e desde então, com pequenos interregnos, permaneceu no poder. No início do século XX, a
sociedade paraguaia havia passado por uma transformação econômico-social que enfraquecera as
bases coloradas, predominantemente situadas nos estratos mais abastados da população,
permitindo que em 1904 os liberais chegassem ao poder e instaurassem uma república de tipo
liberal. Por estas razões, podemos dizer que a política paraguaia foi marcada pela instabilidade,
até a chegada do general Stroessner ao posto de chefe de Estado em 1954. Neste período, isto é
entre 1936 e 1954, mais de 18 presidentes passaram pelo poder.
Deste modo, podemos dizer que o processo de transição democrática iniciado com o fim
da ditadura Stroessner em 1989 não representa um retorno à democracia, mas a implementação
deste modelo pela primeira vez no país. Isto porque não é possível chamar de democrático o
modelo de competição estabelecido pelos dois partidos tradicionais do país, no período entre o
seu surgimento em 1887 e o início do governo Stroessner em 1954. Estes só chegaram ao poder
por meio de guerras civis e nunca através de eleições livres. Porém, não só os arranjos
institucionais e partidários pareciam incompatíveis com a democracia. “La sociedad paraguaya,
mayoritariamente rural, paupérrima y analfabeta, estaba organizada politicamente en forma
clientelista y se encontraba subordinada a una clase política oligárquica” (RODRÍGUEZ; 2004:
251e 252).
Todavia, no início dos anos 40, o país havia mudado significativamente, com ênfase no
fortalecimento do militarismo e da autonomia institucional das Forças Armadas e, sobretudo, na
expansão do Estado, instituição que tradicionalmente emprega uma parcela significativa da
sociedade paraguaia. Nesse sentido é importante ressaltar que a relação de dependência entre
sociedade e Estado se estende inclusive às elites econômicas, que jamais chegaram a exercer um
papel autônomo significativo na condução do país. O fortalecimento do Exército permitiu que na
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década de 30 o país vencesse a guerra do Chaco contra a Bolívia, que possuía tropas melhor
equipadas e financiadas. Com isso os militares ganham confiança para disputar um espaço maior
na política paraguaia, chegando ao poder por meio de um golpe em 1940, que dá início à ditadura
do general Higino Moríngio.
Porém, ao perceber o enfraquecimento do governo corporativo-militar, o Partido Colorado
recuperou o comando do país em 1947 (ABENTE; 1989: 03). O fracasso resulta do fato de que os
militares não contavam com apoio popular, nem com sustentação por parte de outros atores
econômicos e políticos. Por este motivo, para que fosse possível manter a estabilidade da ditadura
Stroessner foi necessário buscá-la junto ao Partido Colorado. Este foi um consórcio feliz, que
estabeleceu uma interdependência mútua entre as duas instituições. Pois os colorados, por sua
vez, também não tinham a capacidade de se sustentarem no governo de forma autônoma e
estável. Sendo assim, ao longo dessa união de mais de 60 anos, entre Forças Armadas e Partido
Colorado, cada parte era responsável por cumprir funções distintas e complementares. Este
consórcio, arbitrado por Stroessner, fez com que ambos se mantivessem dependentes um do
outro, porém independentes de quaisquer outros atores, que ficaram sem forças para exercer uma
oposição consistente ou ameaçar o sistema implementado. Desta maneira, em virtude de suas
peculiaridades, este regime não pode ser tipificado apenas como uma ditadura essencialmente
personalística, ou apenas como uma ditadura de um partido, ou ainda, como apenas uma ditadura
militar, mas sim como uma síntese entre estes três modelos.
Como coloca Diogo Abente no texto “Stronismo, Post-Stronismo, and the Prospects for
Democratization in Paraguay”,
“the Stroessner regime cannot be simply described as a military dictatorship, a one-party dictatorship,or a personalistic dictatorship. It combines elements of all three forms of domination, however, and blends them in a very peculiar way. The military component provides the force and coercion, but the military does not rule as an institution. The Armed Forces have been pushed out of the process of governance and at the same time fully partisanized (partizadas) through compulsory affiliation to the governig party. The party, on the other hand, is in power only as a member of a troika. It provides political support and the necessary mass mobilization (...) The leader of this system, General Alfredo Stroessner, is the great mediator: the military man vis-à-vis the party, vis-à-vis the military.” (ABENTE; 1989: 02)
Sendo assim, podemos dizer que a ditadura Stroessner não teria durado sem o papel
fundamental desempenhado pelo Partido Colorado. Este era exercido no sentido de cooptar o
apoio da população que, caso desejasse obter qualquer benefício junto ao Estado, precisava
demonstrar apoio ao partido. Os funcionários públicos, que como mencionamos compõem uma
parcela significativa da população paraguaia, eram em sua imensa maioria filiados à ANR. A
despeito disto, os colorados não chegavam a exercer um papel ativo no que diz respeito à escolha
das diretrizes que conduziam o país, isto é, embora tenham sido o partido do Estado, eles jamais
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tiveram voz ativa, tendo desempenhado uma função de suporte no tripé estabelecido entre o
ditador, o Exército e o partido. Função esta, que implicava principalmente na cooptação da
sociedade, para mantê-la ordenadamente submissa ao governo, sendo que, isto se dava,
essencialmente por meio do clientelismo, da patronagem e do oferecimento de cargos públicos2.
Desta forma, é possível dizer que a eficiência da ANR nesse sentido, permitiu uma relativa
moderação do emprego da violência física, sem prejuízo da estabilidade, mantida pelo regime
Stroessner por mais de 35 anos.
A ditadura paraguaia também deve seu apoio às taxas de crescimento moderado que
conseguiu manter ao longo do tempo, por meio de um modelo de desenvolvimento que priorizava
a agro-exportação, principalmente as culturas de algodão e de soja. No final da década de 60, o
governo Stroessner implementou uma política de crédito rural, provocando uma significativa
expansão da fronteira agrícola (MOLINAS; 2004: 72). No período da construção da Usina
Binacional de Itaipu (1974-1981), a economia do país experimentou um boom de crescimento,
com entrada maciça de capitais e aumento expressivo no número de empregos, sobretudo nos
setores comerciais, de construção civil e no funcionalismo público. Durante esses sete anos a
aprovação ao governo Stroessner aumentou significativamente. No entanto, não é de modo algum
temeroso afirmar que a quantidade imensa de recursos despejada no país para a criação da usina
foi mal utilizada. Posto que, tal montante por não ter sido investido em políticas industriais,
educacionais e de infra-estrutura não pode contribuir para o desenvolvimento sustentável do país.
Por este motivo, quando Itaipu foi concluída, a economia paraguaia começou um longo período
de recessão, responsável por solapar as bases de apoio ao regime. Deste modo,
“no âmbito econômico, o Paraguai enfrentou restrições domésticas e externas durante a segunda metade dos anos de 1980. Esgotava-se o boom do qüinqüênio 1979-1984 proporcionado pela obra de Itaipu, que havia estimulado áreas como a de construção civil e de operações financeiras, com os altos preços internacionais atingidos pela soja e pelo algodão. Contudo, a partir de então, o Paraguai começou a enfrentar sérios problemas no balanço de pagamentos com o equilíbrio fiscal, que o obrigou à adoção de medidas de contenção. Também se deve assinalar que foi limitado o impacto do período de crescimento para a atividade produtiva paraguaia. Sua principal conseqüência foi a ampliação dos sistema de prebendas, invisivelmente gerenciadas pelo Estado e o Partido Colorado.” (HIRST; 2005/2006: 17)
2 Nesse sentido é possível traçar um paralelo entre a estrutura do Partido Colorado, e suas relações com a sociedade e o Partido Revolucionário Institucional mexicano. Como coloca Nancy R. Powers: “they are alike in the sense that
both are parties of power which constitute a national network for the distribution of patronage and a locus for the
mobilization of support for government; however, their origins and relationships with the rest of the society are very
different. The PRI sprang from a revolution, whereas the Colorados have more elite roots in a two-party restricted
democracy of the nineteenth century. The PRI has encouraged ties with other mass organization in society, and
membership in the PRI does not create a distinctive identity, whereas the Colorados operate as self-sufficient
culture. Unlike the Colorados, the PRI no longer serves as the obligatory caree path for political elites. Finally, (...)
in Mexico the party controls the military, not the reverse. (POWERS; 1992: 31)
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A despeito dos relativos benefícios econômicos propiciados, não podemos dizer que o
regime pudesse ter durado tanto tempo sem altos níveis de repressão, no entanto, gradualmente a
institucionalização da coerção e do medo levaram à internalização desta coerção por parte dos
indivíduos, que passaram a se auto-reprimirem. Porém este processo subjetivo foi acompanhado
da aniquilação de vários grupos de oposição, assim como a repressão de qualquer tentativa de
reerguimento por parte destes, permitindo uma queda nos níveis gerais de coerção aberta.
Todavia, “the story behind the surface, therefore, belies the unfortunate belief that Stroessner
has ruled almost unchallend. The balance between coercion and consent has somewhat shifted
toward the latter is the proof that repression had been so effective that the system could start
relying more on targeted repression combined with the cheaper mechanism of self repression”
(ABENTE; 1989: 05). Por isso, podemos dizer que o regime Stroessner foi uma sólida e poderosa
máquina autoritária que se sustentou não apenas pela força e pela repressão, mas pela habilidade
dos colorados em cooptar a população e obter dela seu consentimento, assim como de neutralizar
a oposição e as camadas da sociedade que não lhe eram favoráveis.
Deste modo é possível pensar até que ponto a ditadura paraguaia não implicou na
desmobilização da sociedade civil, mas na exigência de que esta mantivesse uma militância ativa,
pelo menos no que diz respeito a alguns dos seus segmentos mais importantes. Pois não só os
membros da administração pública – docentes, funcionários civis, policiais e militares –
estiveram obrigatoriamente afiliados ao partido do Estado. Mas a maior parte das organizações da
sociedade civil, como sindicatos, universidades, grêmios, associações de empresários,
trabalhadores e cooperativas de camponeses, foi capturada e passou a ser dirigida por afiliados do
partido do governo. Isto ocorreu porque caso não aceitassem tal submissão essas organizações
corriam o risco de serem consideradas subversivas, pertencentes à oposição, o que tinha por
conseqüência sua dissolução e, freqüentemente, a prisão e tortura de seus dirigentes
(RODRÍGUEZ; 2004: 252).
Todavia, para aqueles que não foram incluídos nos esquemas do poder, a neutralização se
deu sob a forma de exclusão. Esta atingiu diversos segmentos como os indígenas e os pequenos
camponeses, os quais em realidade formam a maioria do povo paraguaio, e que não foram
incorporados nos esquemas do poder. Assim, “the effective closing of the political arena outside
the Colorado Party has also been accompanied by the lack of restrictions (...) ‘No te metas en
política’ had then not only been a negative warning. It has also been a sugestion of a throughly
depoliticized alternative lifestyle, the culmination on which was the distribution of rewards,
quasi-military administered by the government and the party. Thus the ‘afiliate al partido’ was a
13
sugestion that opened even more opportunities for personal and socioeconomic advancement.”
(ABENTE; 2004: 06). Ou seja, para aqueles que pertenciam aos extratos menos favorecidos da
população a concessão de favores, empregos públicos e benefícios do Estado, em troca da
afiliação ao Partido Colorado, não era uma alternativa. E como este era o único meio de obter o
acesso a qualquer tipo de benefício, a maioria da população ficou completamente desamparada.
Excluída não apenas politicamente, por não ter o direito de escolher seus governantes, mas social
e economicamente, sem o acesso a seus direitos fundamentais. Tal situação, assim como a
sociedade paraguaia, se conserva com poucas mudanças, mantendo-se atrasada em termos
educacionais e econômicos. Tal atraso reflete-se de maneira direta na política, e pode ser
considerado um dos fatores que propiciaram uma acintosa demora, no que diz respeito ao início e
ao desenrolar do processo de transição democrática, quando comparamos o país com o resto da
região.
Assim, se no resto dos países latino-americanos existia uma dificuldade de que as
questões sociais emergissem para o plano político, no caso do Paraguai as barreiras foram ainda
maiores. O caso mais emblemático desta obstrução dos temas sociais é a questão da reforma
agrária que, embora muito relevante tendo em vista a imensa concentração de terras na região,
jamais foi tratada de maneira mais séria pelos governos e partidos no período pós abertura. Os
movimentos camponeses têm, portanto, se mantido alheios às disputas entre colorados e liberais,
do mesmo modo que não são efetivamente mobilizados pelos partidos menores. Por outro lado, a
baixa conscientização política por parte daqueles que durante anos foram excluídos de qualquer
tipo de direito fez com que a organização de movimentos camponeses fosse mais difícil e
demorada. Porém o recrudescimento da freqüência e da severidade dos problemas relacionado à
terra, como conseqüência do esgotamento da fronteira agrícola, propiciou o surgimento de novas
associações camponesas altamente politizadas, ainda que de certo modo, independentes dos
partidos políticos tradicionais (ABENTE; 1989: 32).
Desta forma a emergência de um candidato de oposição nas eleições de 2008, cuja
origem deita raízes neste tipo de entidade é um emblema de uma mudança importante na
estrutura social do país. Mudança esta que representa um avanço muito significativo no processo
de transição rumo à democracia. Como coloca Nancy R. Power no texto “The transition to
democracy in Paraguay: problems and prospects:
The problem of the land distribution raises numerous issues for the transition: issues of policy, pace, the meaning of democracy, and the role of the nascent peasant movement. As mentioned above, it is a problem exacerbated by Stroessner’s style of development that encouraged loyalists and foreigners to exploit the once vast frontier with modern agrobusinesses and ranches that require minimal labour. The result was a growing number of landless and unemployed peasants. Fogel described a series of
14
sociological efects of these changes. First, ethnic resentments have devolped because the peasants perceive foreign ownership of the best land as illegitimate. Consequently, shared experience and ethnic ties, not merely class will be the basis of social mobilization in the medium term (POWERS; 1992: 11).
3.2) A transição democrática
As transformações pelas quais passou a sociedade paraguaia ao longo das décadas de 70 e
80 não se estendem somente às camadas rurais. Os anos de crescimento econômico durante a
obra de Itaipu permitiram também o surgimento de uma classe média urbana, facilitando a
ressurreição da sociedade civil e aumentando o apoio aos partidos e movimentos responsáveis
pela oposição ao regime. Estas transformações sociais no campo erodiram grande parte da base
de apoio ao Partido Colorado, e foram somadas ao fortalecimento dos partidos e entidades civis,
que começaram a criar problemas para o regime Stroessner, que passou a ser desafiado por
alguns setores urbanos. (ABENTE; 1989: 32).
Além do fortalecimento da sociedade civil e da grave crise econômica, iniciada depois da
obra de Itaipu, que incontestavelmente drenou o apoio dado à ditadura em virtude dos supostos
benefícios financeiros que ele podia propiciar, existem outros fatores que contribuíram
significativamente para o seu fim. O término da Guerra Fria fez com que o apoio significativo em
termos de recursos políticos e monetários concedido pelos Estados Unidos à ditadura Stroessner
para apoiar o combate ao comunismo e à instabilidade na Tríplice Fronteira fosse reduzido de
forma drástica. Esta retirada não pode ter sua importância reduzida, tendo em vista que o
Paraguai foi um dos países latino-americanos que mais recebeu apoio financeiro por parte dos
EUA. Assim como também devem ser consideradas as pressões relativas às violações dos
direitos humanos que passaram a ser realizadas com a subida de Jimmy Carter ao poder em 1977,
mas também pela Igreja Católica, no começo da década de 1980, começou a criticar os crimes
cometidos pela ditadura. Dessa forma, “changes in the Catholic Church also afected the regional
political enviroment. The church has tradicionally been an actor of political import in most Latin
American countries, and until the 1960s, it frequently sided with authoritarian (...) Since 1970s,
the Catholic Church has usually supported democratization” (HAGOPIAN; 2005: 40). Tal
mudança foi muito relevante para toda a América Latina, porém sobretudo para os paraguaios,
porque a Igreja é uma das instituições mais importantes e respeitadas no país, e nos últimos anos
tem se tornado um de seus principais atores políticos.
No plano internacional, resta ainda um fator fundamental: as pressões exercidas no
âmbito regional, isto é, “a repercussão dos processos de transição democrática na Argentina e no
Brasil em meados dos anos de 1980 (...) Nesta mesma direção, os governos Sarney e Alfonsín, ao
15
instituírem o Programa de Integração Econômica (Pice), lançaram a idéia de que um processo de
integração econômica deveria estar associado ao fortalecimento da democracia na região”. Este
fator também não pode ser menosprezado em termos de sua contribuição para a falência do
regime Stroessner, uma vez que Brasil e Argentina juntos eram responsáveis por 75% dos
investimentos estrangeiros, e por mais de 80% de seu comércio (HIRST; 2005/2006: 13).
Por fim, existe o fator interno, o qual afetou mais diretamente o processo, por dizer
respeito diretamente aos atores responsáveis pela destituição de Stroessner, ou seja, os militares
descontentes com a desprofissionalização do Exército, que condicionava a obtenção de patentes
ao apadrinhamento de figuras importantes. Isto era problemático, posto que tinha um impacto
direto no acesso ao poder, abrindo espaço para o início de uma crise quanto à questão da
sucessão ao ditador, que já se encontrava idoso e doente. A disputa se deu diretamente entre os
jovens oficiais comandados pelo general Andrés Rodríguez e aqueles que apoiavam uma logica
hereditária de sucessão, defendendo a entrega do poder ao coronel Gustavo Stroessner, filho do
mandatário. Deste modo, “a sucession crisis brought down the aging Stroessner. General Andrés
Rodriguez and a group of colonels and younger generals staged a coup on February 3, 1989.
Rodríguez and the junior officers were dissatisfied with the increasing deprofessionalization of
the military and opposed to attempts by the party’s Militant wing to promote Air Force Colonel
Gustavo Stroessner to succed his father.”(POWERS; 1992: 04) Nesse sentido a crise sucessória
é, sem dúvida, conseqüência da dificuldade manifestada pelo ditador de realizar uma distribuição
interna do poder e dos recursos econômicos, de modo a satisfazer as diversas forças que
compunham e sustentavam seu governo. Por isso a crise que derrubou seu duradouro regime
pode ser vista como um resultado da insatisfação dessas forças.
Três meses depois do golpe comandado por Andrés Rodríguez, cujo governo pretendia
realizar um processo de abertura, o Paraguai tem suas primeiras eleições dentro de marcos
democráticos. Nestas, Rodríguez foi eleito com quase de 75% dos votos. Em seu governo foi
efetuada não só uma abertura política, mas também econômica, com a realização de reformas de
mercado e a redução de gastos governamentais. Entre os anos de 1991 e 1992 houve a
Convenção Nacional Constituinte e foi formulada a primeira Constituição democrática do país.
Seu processo de votação foi marcado por querelas dentro do próprio Partido Colorado em relação
à inclusão ou não da possibilidade de reeleição. A facção da ANR a favor do projeto era ligada
ao presidente, o “rodriguismo”, enquanto a facção contrária, o Movimento de Reconciliação
16
Colorada3, era liderado por Luis Maria Argaña. O movimento de Argaña sagrou-se vitorioso e a
reeleição para o cargo de presidente da República foi proibida no Paraguai. De modo que, em
maio de 1993, foram realizadas novas eleições, nas quais o general Rodríguez não pode
participar. Não obstante, como coloca José Carlos Rodríguez, o ano de 1989 marca o início de
um processo, e não a implementação de fato da democracia no Paraguai. Até porque esta,
segundo o argumento defendido na presente análise, ainda está em processo de consolidação. E,
nesse sentido, as eleições de 2003, e sobretudo, as de 2008 podem se constituir como o marco
desta concretização.
“Las primeras elecciones de la transición, ocurridas em mayo del mismo año de 1989 (el golpe había sido dado en febrero), fueron ya libres y competitivas, pero no necesariamente limpais, si tomamos en cuenta la falta completa de garantias (...) Con la liberalización, Andrés Rodríguez, apoyado en las Fuerzas Armadas, contrapesó las pretensiones de poder autoritario del partido Colorado (...) Después sería el coloradismo el que contrapesaría las pretensiones autoritarias del presidente Rodríguez, coando este quiso prolongar su mandato presidencial”(RODRÍGUEZ; 2004: 255).
No pleito de 93, a oposição aumentou significativamente o seu espaço político em
comparação com os anteriores. Tal mudança pode ser percebida pelo fato de que a soma votos
obtidos pelo candidato do Partido Liberal4, Domingo Laino, que ficou com 32%, com os 23%
obtidos por Caballero Vargas, do recém formado Partido do Encontro Nacional (PEN), foi maior
do que os 40% que elegeram o candidato colorado Juan Carlos Wasmosy.
Contudo, o processo de transição democrática paraguaia sofreu alguns retrocessos durante
o governo Wasmosy, posto que em 1996 o general rodriguista Lino Cézar Oviedo realizou sua
primeira tentativa de golpe5- evento diretamente relacionado com disputas passadas. Isto porque,
para se vingar do veto dos argañistas às intenções por parte de Andrés Rodríguez de permanecer
no poder, Oviedo e um grupo de militares ligados ao rodriguismo, burlam o resultado das
internas coloradas realizadas em 1992. Estas tinham dado a vitória a Argaña, porém o frágil
sistema democrático paraguaio não permitiu que o real interesse dos afiliados da ANR
prevalecesse perante as disputas escusas pelo poder. Dessa forma, com o apoio de Oviedo,
Wasmosy foi lançado candidato e se consagrou presidente. No entanto, suas ambições não se
limitaram ao impedimento ao projeto argañista, Oviedo desejava ocupar um papel de maior
3 Deste grupo político fazia parte o atual presidente do Paraguai, Nicanor Duarte Frutos, antes de este fundar sua própria facção, o Movimento Progressista Colorado. 4 Agora sob a denominação de Partido Liberal Radical Autêntico (PRLA) 5 O general Lino Cézar Oviedo protagonizou três tentativas de golpe: a primeira em 1994, quando se insubordinou contra o então presidente Juan Carlos Wasmosy, a segunda em 1996, e a terceira em 2000.
17
destaque no governo, mesmo não tendo sido legitimado pelo sufrágio. Logo, como Wasmosy não
estava disposto a conceder-lhe mais poder, este reage com uma tentativa mal sucedida de golpe.
O governo que sucede o de Juan Carlos Wasmosy também é marcado pela instabilidade,
sendo que Lino Oviedo, embora encarcerado em virtude dos crimes cometidos, segue
protagonista de eventos nos quais fica patente a fragilidade do processo de transição democrática
do país. Pois, o presidente eleito, Raúl Cubas era diretamente ligado a sua figura6 e o vice-
presidente, Luis María Argaña, seu inimigo político. De maneira que tal combinação, resultado
de uma decisão institucional do Partido Colorado, teve conseqüências desastrosas. Ao tentar
obter a libertação de Oviedo, cubas, foi ameaçado de afastamento por parte do Congresso, que
neste caso daria o poder a Argaña. Porém, nesse interregno, o vice-presidente foi assassinado por
supostos militantes oviedistas. Evento que ficou conhecido como “março paraguaio” ocorrido em
1999, quando sete jovens foram mortos durante protestos que sucederam o assassinato do vice-
presidente.
Em virtude da crise instaurada, Cubas foi afastado e o seu mandato concluído pelo
presidente do Senado, Luiz González Macchi, que manteve um governo de coalizão com a
oposição até 2003, ano marcante para o processo de democratização do Paraguai. Isto porque nas
eleições de 2003, vencidas por Nicanor Duarte Frutos, membro Partido Colorado, não foi
detectada a intervenção de forças antidemocráticas. Em segundo lugar ficou Julio César Franco,
do PRLA, que havia sido vice-presidente, no governo anterior. Duarte Frutos representa uma
nova liderança na ANR que, ao conquistar as bases do partido, conseguiu superar a instabilidade
resultante das disputas entre suas diferentes facções, principal fonte de ameaça à democracia
durante o período de abertura. Estas eleições, também foram importantes por mais duas razões.
Primeiramente por demonstrarem um maior espaço aberto à oposição, uma vez que grande parte
dos partidos que hoje a compõem, como o Partido Pátria Querida (PPQ) e o Partido País
Solidário (PPS), surgiram em 2003. E também porque, no que diz respeito ao Legislativo, foi a
primeira vez que a ANR não conseguiu conquistar a maioria absoluta no Congresso.
A maior fonte de instabilidade dentro do Partido Colorado sempre foi o grupo dos
militares ainda vinculados à herança stronista. Estes, contudo, ao longo da década de 90 foram
cooptados pelas forças civis do partido, com exceção daqueles ligados ao general Oviedo, que em
2002 se desligaram da ANR para fundar seu próprio partido, o União Nacional dos Cidadãos
Éticos (Unace). Com o golpe de Rodríguez em 1989 muitos generais foram compulsoriamente
6 Oviedo chegou a ganhar as internas para disputar às eleições de 1998, porém foi impedido de concorrer em virtude de seus processos judiciais.
18
afastados, dando início a um lento processo de enfraquecimento das Forças Armadas enquanto
força política, o que claramente contribuiu para o processo de estabilização. Assim, a
participação de elementos diretamente ligados ao Exército nas eleições de 2003 foi bem reduzida.
Depois de 89 nenhum militar ocupou o posto de presidente do país, porém a influência
desse grupo por muito tempo foi essencial na escolha do candidato a ser lançado pelo Partido
Colorado para tal cargo. Logo, com a superação deste ‘militarismo indireto’, em 2003
(RODRÍGUEZ; 2004: 260), podemos considerar que o processo de transição democrátic
paraguaio foi quase concluído. Quase, porque foram relativamente superadas as primeiras
dimensões do processo de democratização: a transição, isto é, a implementação de um arranjo
institucional estruturado de acordo com as regras democráticas; e a estabilidade. No entanto
restam que estas sejam completadas pela terceira dimensão: a possibilidade de alternância. De
forma a comprovar que a democracia não se limita ao plano procedimental-formal, mas inclui
também a conquista da liberdade absoluta de escolha por parte da população. Assim “la
transición democrática paraguaya transcurrió en tres etapas, desarrolladas durante cuatro
gobiernos. La democratización propiamente dicha tuvo lugar em los dos primeros (1989-98),
pero entró luego em uma severa crisis, que duró los gobiernos siguientes (1998-2003), y,
dificilmente se hubiera sostenido sin la presión internacional” (RODRÍGUEZ; 2004: 250).
Não que seja possível afirmar que a manutenção do Partido Colorado por mais de 50 anos
do poder não represente os desígnios da população ou que esta não se sinta por ele representada.
Até porque ao que tudo indica Duarte Frutos conquistou o apoio das bases do Partido Colorado,
que por si só representam grande parte dos eleitores, tendo sido eleito durante um pleito, no qual
não houve indícios sérios de fraude. Portanto, dizer que ele não simboliza a escolha do povo,
apenas pelo fato de representar a tradição e o continuísmo na política paraguaia, seria uma
afirmação de caráter puramente especulativo que dificilmente poderia ser embasada por indícios
concretos e objetivos. Todavia, de certa forma, é igualmente especulativo afirmarmos que as
escolhas democráticas da população paraguaia serão respeitadas independentemente de seu
resultado, uma vez que, até hoje esta escolha nunca implicou a transferência do poder para uma
força alternativa. Sendo assim, não temos como saber se isto realmente ocorreria, ou seja, se as
forças tradicionais, isto é, o Partido Colorado, está disposto a sair de cena, e passar o poder para
um candidato que represente de fato uma alternância. Isto porque, os atores políticos
responsáveis até o presente momento por exerceram o papel de oposição ao tradicionalismo
colorado foram os militares e o PRLA. Estes, contudo, jamais simbolizaram efetivamente uma
possível alternância, porque não apresentam diferenças substantivas quanto ao projeto de
19
governo em relação às concepções defendidas pelos colorados. Isto é, exatamente o que o
sociólogo José Carlos Rodríguez pretende enfatizar ao denominar o seu artigo sobre a abertura
democrática do Paraguai de “La Transición sin Alternancia”. Como ele mesmo coloca;
“El título del artículo La Transición sin Alternancia puede llamar al engano. Busca señalar que lo predominante en esta transición no ha sido la pérdida de poder de las instituciones de gobierno provenientes de la dictadura, y la conquista de predomínio por parte de la oposición, como en otros países, sino que lo predominante ha sido (a) el cambio de las reglas del juego político y (b) la mutación de las instituciones del tiempo de la dictadura” (RODRÍGUEZ; 2004: 273).
3.3) As eleições de 2008 enquanto possível marco da consolidação do regime democrático no
país.
As eleições a serem realizadas em abril de 2008 apresentam como principais concorrentes
a candidata do Partido Colorado e ex-ministra da Educação no governo de Duarte Frutos, Blanca
Ovelar, Lino Oviedo7 (Unace) e Fernando Lugo, lançado pela Aliança Patriótica pela Mudança
(APC, sigla em espanhol). Estas eleições presidenciais são portanto especiais, por duas razões
fundamentais. Primeiramente por surgir a possibilidade inédita de que a democracia paraguaia
seja testada pelo fenômeno da alternância, pois conforme indicam as pesquisas eleitorais existem
chances concretas de vitória por parte de Lugo. Em segundo lugar porque, pela primeira vez na
história do país, a oposição é feita por uma força política realmente alternativa, que defende
posições sociais e econômicas substancialmente diferentes das defendidas pelos colorados.
Lugo, todavia, não se define nem como de esquerda nem como radical, embora discurse a
favor de um modelo econômico menos excludente, que enfatize a temática social, sendo possível
pensá-lo como uma força “progressista”. O ex-bispo da arquidiocese de São Pedro, uma das
regiões mais pobres do país, marcada pela efervescência dos conflitos agrários, especializado em
Doutrina Social da Igreja pela Universidade de Gregoriana de Roma, tem um discurso
predominantemente religioso, se identificando especialmente com a Teologia da Libertação.
Lugo, entretanto, teve que abandonar a carreira eclesiástica para poder se dedicar a política, pois
a Constituição Paraguaia proíbe que indivíduos vinculados a instituições religiosas ocupem
cargos políticos. Por este motivo, em 18 de dezembro de 2006, ele apresentou sua renúncia ao
bispado, a qual todavia não foi totalmente aceita pelas autoridades da Igreja Católica Romana,
posto que, segundo o Direito Canônico, os sacramentos religiosos são eternos e indissolúveis.
Este problema envolvendo a legislação paraguaia e o direito católico pode vir a se transformar
7 Oviedo conseguiu, em 2007, o direito de lançar sua candidatura, por ter sido absolvido pelos crimes contra o Estado e pela acusação de ter sido o mentor intelectual das mortes que ocorreram durante o ‘março paraguaio’.
20
em uma questão mais grave caso Lugo seja efetivamente eleito, abrindo uma brecha para seu
afastamento. Nesse sentido cabe ressaltar que o fato das ameaças de impugnação por parte de
muitos membros do Partido Colorado não terem se concretizado, por si só, já representa um
grande avanço na consolidação da democracia paraguaia.
Sua candidatura também é singular por representar a união da oposição, algo que nunca
ocorrera no Paraguai, e que sempre prejudicou imensamente as chances desta chegar ao poder.
Deste modo, a base de apoio de Lugo é composta pelos mais diferentes partidos e grupos sociais.
Por isso o nome da associação pela qual sua candidatura será lançada é emblemático: Aliança
Patriótica pela Mudança, reforçando a idéia de que a ênfase da sua candidatura está na
alternância, e não em uma bandeira específica. Embora por ter sido o fundador de um movimento
social ligado diretamente à questão da terra, o Tekojoja8 , acredita-se que o tema da reforma
agraria ganhará destaque, caso ele saia vitorioso. Por outro lado, durante a campanha, um dos
principais pontos enfatizados pelo candidato é a necessidade de renegociar o Tratado de Itaipu,
considerado uma herança da ditadura stronista e um desrespeito à soberania paraguaia. Seu
argumento é que remuneração concedida pelo Brasil, consumidor de mais de 95% da energia
produzida, é muito inferior ao montante referente ao valor de mercado.
Sendo assim, a APC agrupa desde partidos de extrema-esquerda como o Partido
Movimento ao Socialismo (P-MAS), como o tradicional e liberal PLRA, além dos partidos de
centro ou centro esquerda, como o PEN, o PPS, o Partido Democrata Progressista (PDC), o
Partido Revolucionário Febrerista e o Partido Democrata Cristão (PDC), o Partido Frente Ampla
e o Partido Socialista Comunero.
É importante destacar também que mesmo sendo apoiado por diferentes partidos, a
candidatura de Lugo pode ser considerada apartidária. Estando mais vinculada aos movimentos
sociais, aos quais o ex-bispo está diretamente ligado e que formam a maior parte da sua base.
Dentre eles estão o Tekojoja, a Força Republicana, a Resistência Cidadã Nacional, o Teta Pyahu,
a Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Campesinas, a Organização da Luta pela Terra,
o Movimento Agrário Popular, a Organização Nacional de Aborígenes Independentes e a União
Campesina Nacional, que juntas representariam aproximadamente 2 milhões de pessoas que
vivem nas áreas rurais do país, número significativo, tendo em vista que a população paraguaia é
cerca de 6 milhões de habitantes.
8 Termo que significa igualdade em guarani.
21
Por fim, resta dizer que a postura combativa de Fernando Lugo em relação ao Brasil,
enfática quanto às assimetrias na dinâmica econômica bilateral, não significa que este não se
identifique com o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que é um dos principais
exemplos das novas forças da alternância na região. Ao contrário, o paraguaio, em diversas
declarações, manifestou sua admiração pela trajetória política de Lula e pela maneira como este
conduz o governo. Dessa forma, Lugo chegou a afirmar que se identifica mais com ele do que
com o presidente venezuelano, Hugo Chávez, com quem costumam associá-lo, para acusá-lo de
radicalismo. Por isso, se por um lado, caso Lugo consagre-se presidente do Paraguai, as relações
com o Brasil podem ganhar algum grau de tensão, em virtude de suas demandas pela revisão do
Tratado de Itaipu, por outro, ela poderia auxiliar no processo de integração regional, e na
consolidação do Mercosul. Isto porque ambos sempre foram prejudicados pela insegurança em
relação ao caráter democrático e transparente das instituições paraguaias. Sendo que, segundo a
tese apresentada, tal insegurança seria reduzida no caso de uma vitória de Fernando Lugo, a qual
serviria como um atestado da concretização da democracia no país,
4-Conclusão
Vemos, portanto, no horizonte político latinoamericano o surgimento de um novo
fenômeno: a alternância, a qual, de acordo com nossa hipótese, atestaria a consolidação do
processo de transição democrática, iniciada ao final da década de 70. Alternância porque implica
a emergência eleitoral de governos “progressistas” ou de “esquerda”, defensores de posições mais
refratárias à lógica do mercado, e que assumem a redistribuição da riqueza como tarefa principal
do Estado. Isto é inédito em países onde até então prevaleciam governos mais à direita, que
enfatizam o crescimento econômico como principal objetivo a ser perseguido. Por isso, a vitória
eleitoral desses novos líderes pode ser vista como uma comprovação do progresso da democracia
na região. Principalmente se levarmos em consideração um conceito amplo de democracia que se
estenda para além dos procedimentos formais, aproximando-se das idéias de representação e
auto-governo de um povo soberano, isto é, de uma sociedade governada por leis escolhidas por
ela mesma, e que se sente efetivamente representada por aqueles a quem entrega o poder.
É importante, portanto, para compreendermos o significado dessa guinada à esquerda, que
não fiquemos presos a um conceito puramente procedimental de democracia. Pois somente uma
idéia mais substantiva de democracia permite contemplar a importância da alternância como um
fenômeno que atesta o caráter democrático dos arranjos institucionais. De modo que a existência
22
da possibilidade de o poder ser transferido para uma força política realmente diferente deve ser
considerada como uma condição epistemológica a priori, embora se manifeste cronologicamente
a posteriori. Isto é, a alternância não precisaria de fato ocorrer, pois a população pode de fato
preferir a continuidade. Mas para atestar que ela existia como possibilidade, o que é uma
condição para a validação de um processo eleitoral, ela precisa ter acontecido, atestando que de
qualquer forma ela seria respeitada. Ou seja, somente se estas forças são eleitas e de fato
assumem o poder sem a intervenção de elementos não democráticos. Logo, tal comprovação
empírica é especialmente importante no caso de democracias recém implementadas e em países
onde historicamente a oposição sempre foi impedida de governar.
Por isso, a ascensão destas novas forças de esquerda ou progressistas atesta que os povos
latino-americanos ganharam efetivamente o direito de se sentir verdadeiramente representados
pelos seus governos. A garantia da representação, por conseguinte, não advém apenas do fato de
a população ter escolhido o nome de seus integrantes, mas porque pela primeira vez elas
escolheram entre discursos e projetos de governo alternativos, e tiveram sua decisão respeitada9.
Nesse sentido, podemos afirmar que esta possibilidade de alternância, não apenas nas figuras que
ocupam os cargos políticos, mas no conteúdo de suas propostas é um fenômeno absolutamente
novo. Tal afirmação ganha ainda mais relevância quando levamos em consideração o respeito por
parte dos atores políticos tradicionais e discordantes quanto às mudanças, que na maioria dos
casos, não recorreram a nenhum método anti-democrático para atentar contra a prevalência da
escolha do povo. E mesmo nos países em que tais atentados ocorreram, as sociedades souberam
resistir, demonstrando respaldo aos governos eleitos, e assim foram capazes de fazer valer a sua
vontade.
A inserção do Paraguai neste processo regional de dissolução de regimes ditatoriais e
consolidação de uma estrutura democrática foi tardio, uma vez que Stroessner ficou no poder até
1989, quando muitos dos países da região já estavam realizando eleições livres. No entanto, o
processo de democratização paraguaio é complexo, não apenas por ter começado tardiamente,
mas por ter sido marcado por uma série de retrocessos. Deste modo podemos argumentar que só
no presente momento parece que o país será capaz de conciliar as três dimensões essenciais da
democracia: transição institucional, estabilidade e alternância. Pois, durante a ditadura Stroessner
(1954-1989) havia estabilidade, porém as outras dimensões estavam completamente ausentes. No
9 O objetivo desta análise não é questionar se as políticas defendidas pelos novos líderes da região são de fato mais eficientes em comparação com aquelas implementadas pelos governos anteriores. Mas apenas salientar a importância de que estas tenham sido escolhidas por conquistarem a adesão do povo, que considera seu conteúdo, o qual na maioria dos casos é centrado no discurso social, mais favorável aos seus interesses.
23
período que se sucede a sua derrocada (1989-2003), pode-se dizer que foram implementadas as
instituições democráticas, todavia certamente não houve estabilidade, nem alternância. Logo, as
eleições de 2003 e o governo de Duarte Frutos, já demonstram por si só um grande avanço, por
conciliar os procedimentos democráticos com a estabilidade, porém sem representar uma
alternância. Nesse sentido, uma possível vitória de Fernando Lugo, nas eleições de 2008 seria
emblemático para a história política paraguaia, posto que, com isso seriam conciliadas as três
dimensões do processo de transição democrática, atestando a consolidação deste regime no país.
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