transformando suor em ouro

Download Transformando Suor Em Ouro

If you can't read please download the document

Upload: vanessa-nery

Post on 17-Dec-2015

71 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Livro sobre a vida do Técnico da Equipe Brasileira de Vôlei.

TRANSCRIPT

Simone

Liderana, competncia e obstinao so traos marcantes na carreira de Bernardmho, um profissional corn ambio constante pela vitria uma pessoa extremamente estudiosa, dedicada e apaixonada pelo que faz Essas caractersticas o tornam um dos melhores tcnicos da histria do voleibol mundial

CARLOS ARTHLR NUZMAN,

PRESIDENTE DO COMIT OLMPICO BRASILEIRO

O Bernardinho vitorioso em tudo o que f/, ele nasceu para ganhar, com muito trabalho e atitude NALBERT, JOGADOR DE VLEI DE PRAIA E MEDALHA DE OURO EM ATENAS

Falar do Bernardo fcil Meu amigo incondicional desde a dcada de 1970, ele continua sendo um grande lder, ntegro e focado como sempre foi Seus princpios e valores so o reflexo de uma estrutura familiar maravilhosa Fico muito feli7 pelo seu sucesso, porque ele mais do que merecedor de suas conquistas

RENAN DAL Zorro, TCNICO DE VLEI DO

ClMED E MEDALHA DE PRATA EM Los ANGELES

Bernardmho um vencedor por colocar no seu trabalho valores e princpios que tanto apreciamos liderana, determinao, competncia para treinar e motivar equipes e capacidade de levar crescimento pessoal e alegria aos jovens

VINCIUS PRIANT, PRESIDENTE DA UNILEVER BRASIL

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Bernardinho

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

3 Edio

SEXTANTE

Copyright 2006 por Bernardo Rocha de Rezende Todos os direitos reservados

preparo de originais Dbora Chaves

assistente editorial Alice Dias

reviso Srgio Bellmello Soares e Tereza da Rocha

projeto grfico e dmgramao Mareia Raed

capa Raul Fernandes

fotolitos R R Donnelley

impresso e acabamento Geogrfica e Editora Ltda

CIP-BRASIL CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R]

B444t

Bernardinho, 1959-

Transformando suor em ouro / Bernardinho Rio de Janeiro Sextante,

2006

Inclui bibliografia

ISBN 85 7542-242-1

l Bernardinho, 1959- 2 Jogadores de voleibol Brasil 3 Treinadores de voleibol Brasil 4 Voleibol Brasil Histria 5 Vontade 6 Autodommo

7 Excelncia 8 Conduta 9 Sucesso I Ttulo

06-2582

CDD 927 96325 CDU 929 796 325

Todos os direitos reservados, no Brasil, por

GMT Editores Ltda

Rua Voluntrios da Ptria, 45 - Gr l 404 - Botafogo

22270-000 - Rio de Janeiro - RJ

Tel (21)2286-9944-Fax (21)2286-9244

E-mail atendimento@esextante corn br

www sextante corn br

meus primeiros treinadores, Condorcet e JVaria ^Angela, minha primeira equipe - T^odrigo, uilherme, Tatrcia e Eduardo e aos grandes reforos Ternanda, ^Bruno e Jlia.

Agradecimentos

Primeiramente gostaria de agradecer ao jornalista e escritor Joo Mximo, que corn sua experincia e sabedoria me incentivou e orientou durante todo o processo de elaborao do material que ele to brilhantemente transformou em livro. Seus conselhos, oriundos de vasta vivncia jornalstica e em especial esportiva, me foram de grande valia.

Meu obrigado muito especial aos editores e novos amigos Marcos e Toms Pereira, que me instigaram e convenceram a relatar estas histrias. Compartilhamos timos momentos no processo de reviso dos textos dividindo experincias mtuas, preocupaes sobre os momentos de sucesso, suas armadilhas e como lidar corn os altos, baixos e, por que no dizer, planos de nossas trajetrias. Eles me fizeram entender que o papel do editor basicamente o de estabelecer prazos, no que demonstraram extrema perseverana para que eu cumprisse os meus, sem muito xito, devo dizer.

A toda a equipe da Sextante: Dbora, que j deve conhecer de cor o caminho do nosso centro de treinamento em Saquarema; Ana Paula, que tentava em vo me encontrar Brasil afora e que sempre me recebia corn um largo sorriso em minhas visitas editora; Dona La, senhora do caf, gua e bolachinhas que me alimentavam entre o treino da manh e o da tarde. E ao Dr. Geraldo, patriarca e coach de toda essa intrepida trupe.

A tantos amigos que dividiram comigo todas essas experincias, especialmente meus companheiros da gerao de prata, protagonistas de grandes histrias; s meninas da seleo que tanto me ensinaram e proporcionaram; e aos rapazes dessa fantstica equipe, por terem me aceitado, compreendido e nos tornado campees.

Aos companheiros da equipe Bernardinho: Z Incio, Tabach, Chico, Hlio, J.P. e Marco, Fiapo, Doe Ney e lvaro, Robertinha e todos os demais que ao longo desses 13 anos ajudaram no processo de construo dessa trajetria.

Aos treinadores e professores do Andrews e da PUC, inspiradores no processo de preparao, e aos meus colegas e amigos do colgio e da universidade que me ajudaram a concluir corn xito esse processo.

Aos professores, coordenadores, um fantstico grupo de prfissionais dedicados do Centro Rexona-Ades de Voleibol, aos amigos Nando e Dora e equipe que hoje toca corn entusiasmo o Instituto Compartilhar.

Aos grandes jornalistas e amigos Lcio de Castro e Joo Pedro Paes Leme, que me convenceram a experimentar esta aventura.

A todos os colaboradores da Confederao Brasileira de Voleibol, na figura de seu presidente Ary Graa Filho, e do Comit Olmpico Brasileiro, na pessoa do Dr. Carlos Arthur Nuzman, pelo apoio irrestrito e realizao de nossos projetos.

Finalmente, gostaria de agradecer a meu filho Bruno, que compartilhou comigo momentos de reflexo e questionamento, ao me perguntar os porqus que me fazem continuar a busca incessante de respostas; minha ruivinha Julia, por seu carinho nos momentos de desnimo; e minha amada companheira Fernanda, por sua fora permanente, sua sinceridade desconcertante e por tudo o que me proporciona de forma incondicional.

Sumrio

O descobridor de virtudes 13

Apresentao 17

Um passeio pela Grcia 19

Meus primeiros treinadores 27

A gerao de prata 41

Uma aventura italiana 57

As meninas do Brasil 77

As cubanas e ns 97

A Roda da Excelncia 109

Aos campees, o desconforto 125

A ltima barreira 149

Em busca do ouro 165

A nova Escala de Valores 181

Eplogo 205

Bibliografia 209

ndice de fotos 213

O descobridor de virtudes

JOO PEDRO PAES LEME

Como centenas de milhares de adolescentes na dcada de

1980, cresci apaixonado pelo vlei. A gerao de Bernard, Renan, William e Montanaro ensinou a minha gerao a gostar tanto daquele esporte que, em poucos anos, ele se transformou no segundo mais popular do pas. Quando, depois dos jogos do Campeonato Mundial de 1982 ou das Olimpadas de 1984, amos para a rua montar a rede e repetir a atuao dos nossos dolos, no me lembro cie algum que dissesse: Eu sou o Bernardinho. Quase todos queriam representar o papel dos titulars - nossos heris - e no do levantador reserva. Bernardinho

no tinha vaga na seleo da minha rua.

Poucos poderiam imaginar que ali, no banco de reservas da seleo, atento a tudo, estivesse sendo gerado - no ventre dsss competies e de outras tantas - o maior tcnico da histria do voleibol brasileiro e um dos maiores smbolos de liderana do Brasil. O obscuro jogador reserva da gerao de 1980 tornou-se um craque do esporte no nosso pas. No tem habilidade para realizar os atraentes e s vezes inteis - malabarsmos individuais, mas o grande astro do jogo coletivo.

Bernardinho o divisor de guas num pas que precisa aprender a importncia da cooperao, da solidariedade e do trabalho em equipe. Diga que seus jogadores so baixos e

13

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Bernardinho os far saltar mais alto. Diga que so fracos no bloqueio e ele ir torn-los os melhores do mundo. Diga que a seleo de vlei do Brasil deficiente na defesa e ele far dos seus comandados defensores imbatveis. A essncia dessa transformao a crena numa equao simples que nada tem de matemtica: TRABALHO + TALENTO = SUCESSO. No

por acaso o TRABALHO vem antes do TALENTO. Para Bernardinho - economista formado pela PUC do Rio -, a ordem desses fatores altera o produto. Apoiado no seu prprio exemplo como jogador, ele aposta no esforo e na perseverana, na disciplina e na obstinao. Sempre percebi uma lgica elementar na sua mente: melhor lapidar at a exausto o talento mdio (e determinado) do que tentar polir o diamante prguioso que no deseja polimento. Se Thomas Edison, o mago da lmpada, deixou para a posteridade a famosa frase Gnio

1% de inspirao e 99% de transpirao, Bernardinho - por mais iluminado que seja - no ousaria contest-lo.

Quando vai a empresas, a grandes corporaes ou Escola Superior de Guerra dar suas palestras, a razo dos aplausos frequentes uma s: as lies do Bernardinho se aplicam a qualquer setor da atividade humana. Ele se tornou aos poucos o smbolo da liderana moderna. Democrtico, franco, aberto, mas seguro no momento de decidir. A seleo brasileira de vlei - como exemplo bem-sucedido de gesto de pessoas - deveria servir de referncia para qualquer empresa. As possveis vaidades e os melindres foram substitudos por um enorme senso de solidariedade - uma cumplicidade, no que pode haver de mais positivo na definio desse termo.

Vinte anos depois de ser vice-campeo mundial e olmpico no papel de levantador reserva, Bernardinho, agora como tcnico,

14

O DESCOBRIDOR DE VIRTUDES

levou o Brasil ao ttulo nas Olimpadas e no Campeonato Mundial. Fez de um time sem resultados expressivos nos ltimos anos a seleo mais temida no mundo do vlei. Transformou pessoas - uma especialidade sua. Criou uma gerao segur de jogadores determinados, revigorou o nimo de alguns outros e construiu uma equipe de assistentes a quem entregaria ouro em p. Foi nesse refinado processo de garimpagem e lapidao que o Brasil viu surgir a preciosa carreira desse lder.

H muitas frases ditas pelo Bernardinho que merecem ser guardadas para reflexo. Certamente neste livro voc ir encontrar vrias delas. Algumas simples, outras complexas, mas todas corn um contedo que resume, em pequenas doses de sabedoria, o segredo de tanto sucesso. A minha preferida No fim das contas, so as pessoas que fazem a diferena. Considero essa frase um achado. Afinal, as instituies no funcionam sozinhas, no se gerem por toque de mgica, nem os cargos tm vida prpria. Equipes, empresas, corporaes ou governos so o resultado do trabalho de um grupo de indivduos. Nesse processo, preciso encontrar o que houver de melhor em cada um deles para tornar slida a instituio; faz-los entender que o esforo coletivo leva vitria, mas o talento individual desorientado tende a fracassar. Assim descobrem-se as grandes vocaes e aperfeioam-se as virtudes. Esse trabalho Bernardinho desempenha como mestre.

Hoje, qualquer adolescente que saia de casa para jogar corn os amigos depois de acompanhar as vitrias do vlei brasileiro gostaria de ser treinado pelo Bernardinho. O antigo jogador reserva que no tinha vaga na seleo da minha rua atualmente um dos brasileiros mais cobiados pelas grandes empress do pas. Traduz suas tticas vitoriosas para que funcionem

15

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

no mundo empresarial - afinal, neste mundo atuaria em qualquer posio. A cada competio, ensina tambm aos brasileiros a importncia da cooperao, da solidariedade, do esforo coletivo em busca do objetivo comum. Ensina a importncia dos jogadores reservas e de como podem ser decisivos. Como amigo e f, admiro essa sua alquimia vitoriosa que mistura ingredientes infalveis: tica, respeito, vontade, disposio, disciplina, talento. E se, no fim das contas, so mesmo as pessoas que fazem a diferena, figuras como Bernardinho so fundamentais para a transformao do Brasil.

16

Apresentao

Tudo o que sei que nada sei. SCRATES

Quando conquistei a primeira medalha olmpica como treinador de uma seleo brasileira de vlei - o bronze das meninas em 1996 - e comearam a surgir convites para dar palestras em empresas, fiquei curioso: o que ser que executivos e profissionais das mais variadas reas querem ouvir? O que h de comum entre minhas experincias e conquistas no esporte e o dia-a-dia dos negcios?

No vlei como na vida valem os mesmos princpios: a necessidade de identificar talentos, de manter as pessoas motivadas, de se comprometer corn o desenvolvimento de cada membro do grupo e, principalmente, de criar um esprito de equipe que torne o desempenho do time muito superior mera soma dos talentos individuais.

Os problemas que enfrento como treinador de equipes de vlei de alta performance so basicamente os mesmos que preocupam todas as pessoas no cada vez mais competitivo ambiente profissional: como trilhar os caminhos da vitria, encarar os desafios e presses e, o mais importante, o que fazer para permanecer no topo.

Inspirado pela leitura de biografias de lderes histricos

17

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

como Churchill e de grandes esportistas e treinadores como Vince Lombardi, fui amadurecendo um olhar prprio sobre a minha atividade. Isso me levou a formular uma ferramenta de

trabalho que chamei de Roda da Excelncia e que um dos principais temas deste livro.

ela que norteia a busca permanente da qualidade que aplico no dia-a-dia corn os jogadores para refinar habilidades como trabalho em equipe, perseverana, superao, comprometimento, cumplicidade, disciplina, tica e hbitos positivos de trabalho.

Este livro no pretende ser uma autobiografia em que brilham meus melhores momentos como jogador e tcnico. sim uma histria de liderana construda a partir de observaes, teorias e conceitos que assimilei ao longo de minha trajetria ao lado de grandes equipes - e que nos ajudaram a transformar suor em ouro. Desde os tempos em que jogava no infanto-juvenil do Fluminense, como integrante da gerao que conquistou a medalha de prata na Olimpada de Los Angeles, passando por minha iniciao como treinador na Itlia, depois na seleo feminina de vlei, at chegar equipe masculina, onde estou at hoje.

A partir dessa coletnea de leituras, vivncias e experincias, espero poder instigar voc ao processo de questionamento, de busca da soluo e de crescimento, na contnua procura de rspostas para os muitos porqus e cornos.

Espero tambm que este livro o inspire a abraar a busca da excelncia, uma filosofia de vida que me norteia e me anima desde pequeno. Assim como tento fazer corn os jogadores, gostaria de ajud-lo a sair da sua zona de conforto, a descobrir o seu imenso potencial de contribuio e a encarar cada dia como uma oportunidade de dar o melhor de si mesmo.

18

Um passeio pela Grcia

Sucesso o resultado da prtica constante de fundamentos e

aes vencedoras. T\o h nada de milagroso no processo, nem

sorte envolvida. ^Amadores aspiram, profissionais trabalham.

BILL RUSSEL

Atenas, 29 de agosto de 2004. Dentro de mais algumas hors estaremos no Ginsio da Paz e Amizade enfrentando a Itlia pelo ouro olmpico. Qual ser o desfecho dessa jornada que comeou no em nossa estria, h duas semanas, mas h trs anos e meio, quando me tornei treinador desta admirvel seleo brasileira de voleibol? Passei praticamente a noite em claro, os olhos grudados no teto, o pensamento na grande final, corn direito a breves cochilos e nada mais.

Levanto-me como se tivesse o peso do mundo no estmago. you at a varanda, volto, ando pelo quarto corn cuidado para no acordar Ricardo Tabach, meu assistente tcnico e um dos meus braos direitos. Como uma fruta e deso. So seis da manh. Os jogadores e os demais companheiros da comisso tcnica ainda dormem. Talvez estejam menos tensos que eu.

Saio para um passeio pela Vila Olmpica. Eu e meus pensamentos, agora menos concentrados nos italianos, na deciso e no ouro do que nos trs anos e meio que nos trouxeram at

19

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

aqui. nisso que penso, fiel ao que sempre achei do voleibol, do esporte em geral, da vida: a vitria no mais importante do que a certeza de termos feito todo o esforo para conquist-la.

Sol forte, calor intenso, passo mentalmente em revista toda a minha longa associao corn o esporte. Penso na famlia como ponto de partida e porto seguro de uma vida inteira. Volto ao passado do medocre jogador de futebol, do aluno de jud do professor Ynata, do tnis no Clube dos Caiaras, da descoberta do voleibol nas areias de Copacabana, do time infanto-juvenil do Fluminense e das_ lies aprendidas corn meu primeiro treinador, Benedito da Silva, o saudos Ben (a maior delas nunca jazer nada sem paixo).

Depois, j adulto, os outros clubes, a seleo brasileira e o incio da fase em que o voleibol tornou-se um dos esportes mais ppulares do pas do futebol, sem contar o enorme destaque internacional. O orgulho de ter pertencido gerao de prata de Bernard, Montanaro, Xand, Renan... ainda que como eterno reserv de William, que, afinal, sempre foi melhor que eu. O comeo como treinador, assistente de Bebeto de Freitas.

A experincia na Itlia, particularmente a primeira, na equipe feminina do Perugia. Se aquelas meninas no tivessem confiado em mim, eu no seria hoje um treinador. Depois o perodo no time do Modena, a volta ao Brasil, o convite de Nuzman para dirigir a seleo feminina, os campeonatos ganhos, os ttulos perdidos, sobretudo em duas Olimpadas, tudo antes de assumir, em 2001, as funes de treinador dos rapazes que dormem l atrs, talvez sonhando corn a vitria.

Como ser se vencermos hoje? O sucesso nos ltimos anos j colocou uma enorme responsabilidade sobre os nossos ombros, imagine se conquistarmos esse ouro. O que vir depois? Provavelmente a obri-

20

UM PASSEIO PELA GRCIA

gao de vencer sempre, a insuportvel cobrana de que nada do que fizermos daqui em diante poder ser menos que perfeito.

Considero a questo do merecimento: ser que esta gerao merece mais do que aquela que conquistou a prata, qual o vleiboi brasileiro deve mais do que medalhas? Tem mais direito do que Renan, jogador extraordinrio, meu amigo, quase um irmo? Pens na medalha de ouro que ele no ganhou e, mais ainda, na angstia que viveu durante os jogos Olmpicos de 1996 ns em Atlanta ligados em voleibol e ele no Brasil enfrentando estoicamente a leucemia do filho, Gianluca. Uma angstia que s se dsfez muito depois, quando o menino se curou e pudemos ter de volta o Renan cuja aura tanto nos animava.

No sei. A nica certeza que tenho a de que, se for uma qusto de merecimento, esses rapazes j so campees. Vencer, realmente, pode no ser tudo, mas se empenhar pela vitria a nica coisa que conta. E esta seleo, sem dvida, nunca deixou de dar o seu mximo.

Por um minuto, se tanto, me vem um pensamento meio ahsurdo: no seria melhor perdermos hoje para os italianos? Ficaramos corn a prata, que tambm uma bela medalha, e sairamos enriquecidos por termos aprendido, ao fim de uma estrada de vitrias, as grandes lies que s a derrota ensina.

Vitria e derrota, sempre os dois extremos. No voleibol no h empate, a zona intermediria entre ganhar e perder. Um esporte em que os dois ltimos pontos num tie break podem, significar a distncia entre o cu e o inferno cu para quem levar a melhor, inferno para o lado oposto. Trato de afastar o pensamento despropositado sobre as vantagens da derrota e me concentro novamente na seleo da Itlia.

21

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Estou s voltas corn minhas reflexes quando encontro Fernanda Venturini, minha mulher e uma das melhores levantadoras do mundo. Um encontro que poderia ser difcil para os dois: ela sem saber se chora a incrvel derrota para as russas nas semifinais (e a medalha perdida ontem, quando nossas meninas foram superadas pelas cubanas na deciso do terceiro lugar) ou se me d fora para a minha final, e eu dividido entre confort-la e s pensar nos italianos. Mas o encontro acaba sendo tranqilo, nada difcil. Fernanda parece mais ligada no meu hoje do que no ontem dela. Deseja-me sorte e segue para a piscina, deixando-me totalmente sintonizado corn o desafio que vamos enfrentar. E o que ainda est por vir?

Analiso o adversrio, mas aquelas so horas de decifrar o nosso prprio time. Uma reflexo decisiva, fundamental. Ontem noite, considerando que havamos enfrentado e vencido a Itlia duas vezes em um ms primeiro na final da Liga Mundial e depois na f ase de classificao destes Jogos Olmpicos , perguntei a Chico dos Santos, o assistente que dividiu comigo o planejamento ttico da seleo: O que ser que os italianos prepararam para este jogo? Resposta: Nada, Bernardo. Eles no tiveram tempo para inventar coisa alguma. Vamos pensar somente na noss equipe. E que equipe! Unida, motivada, comprometida corn uma causa: no obrigatoriamente conquistar o ttulo olmpico, mas fazer todo o possvel para merec-lo.

No se monta o melhor time sem grandes jogadores, no se constri uma mquina sem as peas certas, no se chega ao todo sem que as partes se completem. Motivo pelo qual jamais desconsiderei o brilho individual dos 12 homens sob meu comando. Na realidade,

13, se contarmos corn Henrique, tristemente cortado uma semana

22

UM PASSEIO PELA GRCIA

antes de chegarmos aqui. Se os regulamentos limitam as equipes a

12 atletas, no quer dizer que Henrique no ocupe, sempre, a mente e o corao de todos ns, o que est mais do que demonstrado em todos os jogos. Desde a estria contra a Austrlia, quando sua camisa nmero 5 foi presa por dois ganchos no nosso vestirio, dsfraldada como emblema de uma ausncia muito presente.

Como possvel no levar em conta a perseverana de Nalbert, nosso capito, um supercraque cujo desfalque, forado pelo ombro machucado, diziam que seria fatal para nossas pretenses nestes Jogos Olmpicos? corn enorme esforo, para no dizer sacrifcio, ele se recuperou, voltou a jogar e, mesmo ficando de fora nos ltimos jogos, contagiou-nos corn sua liderana. Costumo dizer que o ano em que Nalbert menos jogou foi o ano em que mais nos inspirou, pela sua luta e dedicao no processo de recuperao.

E Giovane, medalha de ouro em 1992, que jamais viu nisso motivo para se acomodar, para no fazer mais, mesmo quando reserva? Aceitou voltar seleo como soldado, no como general, e corn a humildade de quem diz: A mim, hasta estar aqui. Um abenoado? No. Um obstinado que se prepara duro para que as coisas dem certo. E quando no entra daqueles que treinam muito para fazer corn que o titular se esforce ainda mais, corn medo de perder o lugar.

E a vibrao de Ricardinho, vitria da obstinao sobre o talento? Tem um excepcional senso de observao. V os vdeos muitas vezes sozinho, estuda-os e chega dizendo: J sei o que tenho que fazer. E sabe mesmo. Gnio indomvel, s vezes deixa a emoo sobrepujar a razo. Na quadra, porm, tem sido nosso grande diferencial. A velocidade que conseguiu imprimir ao nosso jogo nos levou ao topo.

E a liderana de Giba? corn seu entusiasmo contagiante e sua

23

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

generosidade cativante, um dos mais cotados para ser eleito pela imprensa especializada o melhor destes jogos Olmpicos.

E o brilho de Maurcio, outro medalha de ouro de 1992 que enfrentou o penoso processo de passar de dolo incontestvel a suplente? Mas acabou vencendo. Amadureceu e compreendeu a importncia de sua nova funo.

E o talento de Dante, para quem um dia enviei um e-mail dizendo No me faa desistir de voc? Ele foi luta e provou ter fora suficiente para carregar o peso de substituir o aparentemente insubstituvel Nalbert. Grande jogador, espero que Dante se torne um lder para as novas geraes, transmitindo tudo o que aprendeu corn esta.

E a inteligncia de Rodrigo, esse meio-de-rede dotado de uma capacidade ttica fora do comum? Fala pouco, mas ouve, observ, aprende e faz. Tudo corn personalidade, coragem e capacidade de deciso.

E o surpreendente Escadinha, a quem todos respeitamos e admiramos por ter superado dificuldades na vida que nenhum de ns experimentou? Um vencedor, modelo de luta, de vitria da virtude, da correo. Maravilhoso libero alis, talvez o melhor dos muitos que esto em Atenas. Se a seleo brasileira merece ganhar o ouro logo mais, Escadinha o smbolo desse merecimento.

E a eficincia de Gustavo, trabalhador incansvel? O exemplo vivo de que nada substitui o treinamento, a preparao. Um jogador moldado a suor e dedicao, fabricado, transformado num dos maiores bloqueadores da histria do vlei.

E a garra de Andr Heller, um lutador que conquistou sua vaga numa disputa sempre dura, mas muito leal? Talvez por essas qualidades esteja sempre pronto para os grandes embates.

E Andr Nascimento, o filho que todo pai queria ter? Sempre

24

UM PASSEIO PELA GRCIA

de bem corn a vida, no tem medo de adversrio algum: Rssia ou Bolvia, ele enfrenta qualquer seleo corn a mesma bravura. um timo virador de bolas, considerando que tem l,95m e enfrenta adversrios estrangeiros corn mais de 2 metros.

E, por fim, a humildade de Anderson, que talvez no tenha idia do prprio valor Toca um timo violo, que no deixei que trouxesse para Atenas, certo de que perderamos o som de sua msica mas ganharamos um jogador, alm de competente, concentrado.

Em suma, jamais desconsiderei o talento de qualquer um dsss excepcionais atletas, embora, para mim, sejam astros cuja luminosidade se torna mais acentuada quando formam uma constelao. Os rapazes que enfrentaro os italianos daqui a algumas horas esto unidos, determinados, confiantes, movidos pela msma paixo e convencidos de que no teriam chegado at aqui se no fossem o que so: uma equipe.

Volto ao prdio em que estamos hospedados. Temos uma conversa final s 11 horas, mas antes o preparador fsico Jos Incio levar os jogadores ao fitness center. Durante a preleo penso que nunca mais you treinar este time de novo e isso faz corn que a conversa seja curta e, de certa forma, emotiva. Afinal, no havia razo para tenses ou temores excessivos, j que tnhamos trabalhado para viver aquilo - era o lugar em que queramos estar: a final olmpica.

Para descontrair, Ricardinho, sempre ele, completou: Se algum estiver corn medo, pode me dar a mo. Risos gerais. Qualquer que fosse o resultado, eu queria v-los de cabea erguida. Tinha certeza de que estvamos prontos para curtir aquele momento.

Ouro ou prata, o que, afinal, ainda estaria por vir?

25

Meus primeiros treinadores

^Disciplina a ponte que liga

nossos sonhos s nossas realizaes.

PAT TILLMAN

Nasci em Copacabana, no Rio de Janeiro, numa famlia de classe mdia alta que me deu mais do que o essencial: amor, conforto, instruo, exemplo de vida e intensa atividade fsica nas horas vagas.

Pelos sonhos de minha me, Maria Angela, meu futuro seria a advocacia ou outra profisso liberal. Mas, como todos sabem, sonhos de me nem sempre se realizam. Meu pai, Condorcet Rezende, deve seu primeiro nome homenagem que meu av quis prestar ao Marqus de Condorcet, precursor filosfico de Augusto Comte.

Mais que pai, o meu foi sempre um modelo de carter, de lealdade, de tica, de respeito s pessoas: So coisas que no se compram, pois no esto venda... Foi em seu livro Andanas e Caminhadas, uma coletnea de textos diversos, que conheci muitos dos lemas positivistas que influenciariam minha vida: O amor por princpio e a ordem por base, o prgresso por fim, Saber para prever, a fim de prover, Agir por afeio, mas pensar para agir, entre outros.

Desde cedo Maria Angela e Condorcet mostraram o valor da

27

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

instruo, fundamental para o nosso desenvolvimento cultural e profissional, meu e de meus irmos - por ordem, Rodrigo, eu, Guilherme, Patrcia e Eduardo. De certa forma, foram nossos primeiros treinadores. Devemos a eles o ensinamento segundo o qual - fssemos advogados, engenheiros, mdicos ou prfessores - no chegaramos a lugar algum se no estudssemos, trabalhssemos e sussemos muito, corn muita dedicao.

Toda a famlia se dedicou aos esportes. Nossos pais viam nas atividades fsicas um complemento valioso formao dos f i-

lhos. Entre todas as modalidades que pratiquei, foi no jud que me sa melhor, aluno do mestre japons Ynata. Fui vice-campeo carioca infanto-juvenil, mas o que devo de fato ao jud no so as vitrias e sim a disciplina e a possibilidade de pr racionalmente para fora a energia que todo jovem tem dentro de si.

No esqueo as pequenas punies (leves bambuzadas nas pernas) aplicadas por mestre Ynata, sem dvida as primeiras lies de perseverana e motivao que tive. Foi ele quem me ensinou a no desmoronar quando perdesse uma luta e, acima de tudo, levantar depois de cair.

O voleibol. Descobri-o na praia, onde Rodrigo e eu jogavamos corn uma turma de amigos. Nada srio, que fizssemos corn a inteno de um dia jogar para valer. S queramos brincar. E para isso bastavam uma faixa de areia, uma rede e uma bola. Se um time de verdade entrou em nossas vidas, isso se deve a Vitorio Mendes de Moraes, vizinho pouco mais velho que ns para quem o voleibol j tinha deixado de ser uma simpies brincadeira. Ele e a irm Lcia jogavam pelo Fluminense, ambos muito bons. Achando que levvamos algum jeito, Vitorio

28

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

nos convidou, a Rodrigo e a mim, para fazermos teste no mirim do seu clube. Fomos. E me tornei um botafoguense adotado pela famlia tricolor.

Quem dirigia as categorias de base do Fluminense era Benedito da Silva, o Ben. Grande treinador, maravilhosa figura humana. Um fazedor de craques - que o digam Bernard, Fernando, Bad e outros que integrariam a chamada gerao de prata.

corn Ben aprendi mais do que jogar vlei. As primeiras noes de liderana, de disciplina, da importncia de fazer parte de uma equipe, de tratar todos segundo os mesmos valores, mas no necessariamente da mesma forma, tudo isso me foi passado por ele. E mais a paixo pelo voleibol. Ben acreditava firmemente - e transmitiu isso aos seus jovens jogadores - que no se deve fazer nada na vida sem paixo.

Ben tinha um grande senso de observao. Nos treinos do infanto-juvenil do Fluminense, eu costumava brigar muito corn Rodrigo. Era meu esprito resmungo, de cobrar, de dar palpite no jogo do outro, de exigir que todo mundo se empenhasse mais. Rodrigo, timo temperamento, deixava que eu brigasse sozinho. Levava na brincadeira o que eu insistia em transformar em bate-boca. Sempre que isso acontecia, Ben parava o treino e ordenava:

- Chega, Bernardo! Vai pr chuveiro.

Tomei dezenas de banhos antecipados por deciso do treinador. Eu saa do clube inconformado. No me esqueo daquelas viagens de nibus depois que Ben me obrigava a deixar o treino mais cedo. Por que era sempre eu o culpado? Por que razo, numa discusso, s eu era expulso? Sentia-me perseguido, injustiado, convencido de que o treinador no gostava de mim.

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Uns 20 anos depois, quando dirigia a seleo feminina do Brasil, eu costumava convidar Ben para assistir aos nossos treinos no Centro de Capacitao Fsica do Exrcito, na Urca. J idoso, ele se sentava num canto, observando tudo em silncio. Um dia, no resisti e desarquivei o assunto:

- Ben, me explica uma coisa: por que, sempre que eu brigav corn meu irmo, voc me expulsava do treino e nunca tirava ele, que no queria nada?

Resposta do velho treinador:

-Justamente por isso, porque seu irmo no queria nada. Se eu o mandasse embora, talvez ele no voltasse mais e eu prcisava dele no time. J voc estava to envolvido no vlei que eu tinha certeza de que voltaria sempre.

A capacidade de Ben para motivar os jovens estava ligada sua sabedoria em entender seus atletas, desvendando seus talentos e suas limitaes, identificando os botes corretos a serem apertados. O do desejo? O da melhora da auto-estima? Enfim, era um mestre na arte de conhecer pessoas.

DEVE-SE EXIGIR MAIS DE QUEM TEM

MAIS A DAR. FUNDAMENTAL CONHECER

AS PESSOAS PARA MOTIV-LAS.

Ele percebeu em mim no a vocao ou a possibilidade de me tornar um craque no voleibol, mas a persistncia, a teimosia, a vontade de sempre voltar para um novo comeo a cada derrota. Estou mais do que convencido de que foi ele quem potencializou o meu esprito de no desistir nunca. Ben intuiu que minha luta teria de ser maior que a dos outros, mais talentosos.

Seus ensinamentos, porm, no pararam a. Foi corn Ben

30

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

que aprendi, tambm, as primeiras noes do que ser lder numa equipe. No apenas o capito, como geralmente se imgina no esporte, mas aquele que d o exemplo, seja treinando, jogando ou mesmo longe da quadra, e que contribui para o aprimoramento do time.

Eu tinha 14 ou 15 anos e ainda era do infanto-juvenil quando Feitosa, treinador dos adultos do Fluminense, me convidou para participar num fim de semana de amistosos fora do Rio. Fui, claro. Soa sempre como prova de prestgio um garoto ser chamado para jogar corn gente grande. Ocorre que, corn isso, desfalquei o infanto-juvenil. Quando me reapresentei ao Ben na tera-feira, ele no me poupou:

- Como lder, Bernardo, voc falhou. Sendo o capito da equipe, deixou seus companheiros na mo. Para ajudar os outros, abandonou justamente os que mais precisavam de voc.

Nunca me esqueci das palavras claras e duras de meu treinador naquele dia. A vaidade de ter feito alguns amistosos corn o time adulto tinha tomado conta de mim e me induzido a agir errado corn todo o grupo. corn meia dzia de palavras, Ben me mostrou quanto vale ser parte de uma equipe. Como o ns sempre mais importante do que o eu.

Ao mesmo tempo em que meus pais me incentivavam a praticar esporte, no viam corn bons olhos a possibilidade de faz-lo como atividade nica, exclusiva, quase como um meio de vida. Nos anos 1960 e na maior parte dos 1970, futebol parte, o esporte no Brasil estava longe de ser profisso. Por isso eles exigiam que eu pusesse os estudos em primeiro lugar, deixando em segundo plano minha paixo pelo voleibol.

Paralelamente ao curso de ingls (embora eu o achasse desinteressante, no tinha como escapar ao argumento de meu

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

pai: O ingls j foi um diferencial, hoje fundamental), comecei a cursar a faculdade de engenharia da PUC, mas logo me desencantei e pedi transferncia para economia.

O fato que adorei o curso de economia, pelos bons professores que tive e pela oportunidade de combinar a matemtica e o raciocnio lgico de que eu tanto gostava corn um campo de estudo mais criativo e humano. Como cursei a faculdade ao mesmo tempo em que me dedicava ao voleibol, as duas atividades se confundiram e se interligaram.

Anos depois eu compreenderia como a economia, que busca gerar o maior bem-estar possvel corn recursos limitados, me ajudou no esporte, onde devemos buscar o melhor resultado corn os recursos disponveis.

Sempre fui um jogador disciplinado. No precisei ter muita experincia para saber que um atleta, mesmo sem ser excepcional, pode conseguir superar suas limitaes corn uma superdedicao aos treinos, apoiada por hbitos saudveis de vida.

Quando o assunto dedicao aos treinos, gosto de citar Pat Tillman, jogador de futebol americano. Baixo, no muito rpido e sem o biotipo ideal para o esporte, ningum tinha grandes expectativas sobre seu futuro como atleta quando comeou a jogar no colgio. Mas ele treinava to obstinadamente e corn tamanha disciplina que garantiu sua presena entre os titulars. Era o mximo que podia conseguir, diziam. Ledo engano. Na faculdade ele se transformou em um dos destaques da equipe universitria.

Futebol profissional? Os descrentes insistiam em duvidar do futuro de Tillman, ao que ele respondia corn a maior segu-

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

rana: s me darem uma chance. Deram-lhe uma chance e ele a agarrou. Tornou-se profissional, passando a ganhar miIhes de dlares por ano.

H uma frase de Tillman que nos leva concluso de que ele tinha o famoso brilho no olhar: Disciplina a ponte que liga nossos sonhos s nossas realizaes. Todos ns temos objetivos e queremos conquist-los, mas importante que estejamos dispostos a construir essa ponte.

O que significa ter brilho no olhar? Todo mundo conhece a expresso que descreve os olhos como o espelho da alma. O brilho, no caso, reflete a intensidade que vem do ntimo, da essncia do atleta, numa mistura de vontade, disciplina, determinao e paixo. Em meus tempos de jogador eu no me dava conta de que o ardor e a chama que me motivavam a competir, e que se denominava simplesmente de raa, tinham um sentido mais amplo.

O marechal ingls Sir Bernard Montgomery, o da invaso da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, tambm acreditava na fora do olhar. No por acaso ele fazia questo de passar suas tropas em revista antes de cada batalha. Seus soldados achavam muito estranho aquele ritual. L vem aquele maluco, diziam. A gente indo para a linha de fogo e ele preocupado corn o corte de cabelo, a barba, o uniforme...

No era nada disso. No livro Master of the Battlefield (Mestre do campo de batalha), Nigel Hamilton transcreve a explicao do prprio Montgomery: ...o que eu queria era olhar bem nos olhos de cada homem para ver se percebia neles o brilho da vitria.

Desde jovem aprendi que alguns hbitos so incompatveis corn certas atividades. Para o atleta de alto nvel, por exemplo, beber, fumar, no seguir uma dieta balanceada nem compensar

33

l

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

corn repouso a energia gasta no treinamento so hbitos que podem abreviar uma carreira promissora. Drogas? Sobre estas no preciso tecer muitos comentrios: mais do que interromper carreiras, elas destroem vidas.

Sei por experincia prpria que somar hbitos saudveis a disciplina nos treinamentos me ajudou como jogador e tambm como tcnico. De nada adianta um time ou uma seleo ter os mais competentes nutricionistas e caprichar nas receitas mais balanceadas se o atleta no estiver convencido de que deve segui-las para seu prprio bem.

Como jovem iniciante sob as bnos de Ben, percebi que a nossa atitude em relao ao esporte, ao trabalho, a tudo na vida balizada por dois sentimentos: o arrependimento e o merecimento.

Nada pior do que nos arrependermos do que no fizemos ou do que fizemos mal: Ah, se eu tivesse me cuidado mais..., Ah, se eu tivesse agido de outra forma.... O arrependimento corri, arruina e faz sofrer. Por isso preciso pensar antes no que se deve fazer e como faz-lo para no nos arrependermos depois.

J o merecimento um sentimento born, alentador, construtivo. o que permite que se diga: Eu mereci o que conquistei porque fiz por onde, preparei-me, trabalhei honestamente, fui disciplinado, consciente, srio e cultivei hbitos compatveis corn o que fao. O que tambm simples.

Hoje isso que tento passar para os jogadores. Posso orient-los, mas a deciso deles.

Apesar da imensa dedicao aos treinamentos, nem sempre minha carreira foi um mar de rosas. Tive bons momentos, prin-

34

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

cipalmente a conquista do ttulo brasileiro infanto-juvenil em

1974 e do Campeonato Sul-Americano de Juvenis em 1978.

Nessa poca, tive a oportunidade de ser dirigido em vrias ocasies por Bebeto de Freitas, meu dolo desde menino. Na primeira seleo carioca que ele dirigiu, fui seu capito. Da nasceu uma grande amizade. Admirava-o desde os tempos em que era jogador, principalmente por sua postura, seu modo de orientar os companheiros durante o jogo, liderando-os, sendo quase um tcnico dentro da quadra. Para mim Bebeto era um exemplo.

Quanto aos maus momentos, o ano de 1977 foi inesquecvel. Fui convocado pela primeira vez para uma seleo brasileira, a equipe juvenil que ia disputar o primeiro Mundial da categoria. Eu estava em forma, treinava corn o entusiasmo habitual, mas fui cortado. Para um garoto de 18 anos, aquela tremenda injustia tinha o peso de uma avalanche.

Fiquei corn a sensao de que tudo acabara, de que minha vida no voleibol chegara ao fim. Um sentimento horrvel de derrota pessoal. Meu pai percebeu como eu estava me sentindo e quis me tirar da cabea a idia de que meu mundo dsmoronara: Voc est apenas comeando. Trate de treinar mais, levantar a cabea e seguir em frente, que tudo vai dar certo, disse ao me ver abatido, choroso.

A histria do sbio chins que presenteou o imperador corn um livro cabe perfeitamente aqui. O livro tinha apenas duas pginas. Ao d-lo, o sbio explicou: No momento mais triste de sua vida, senhor imperador, leia a primeira pgina e feche o livro. E no momento mais feliz, leia a segunda. O presente ter atingido seu objetivo.

Tempos depois, o azar abateu-se sobre o imprio. Uma peste matou parte da populao, uma praga destruiu a lavoura, bar-

35

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

baros invadiram as terras saqueando o que sobrara. Desesperado, o imperador lembrou-se do livro. Na primeira pgina, somente uma frase curta: Isso vai passar. Incansvel e laborioso, ele convocou seus conselheiros e pediu o apoio de seu povo para expulsar os invasores, debelar a peste e recuperar a lavoura.

Mais tarde, sua nica filha casou-se corn o filho de um imperador vizinho e os dois pases se uniram num nico e imens imprio. Feliz da vida, o imperador lembrou-se novamente do livro e foi direto segunda pgina, onde se lia apenas outra frase curta: Isso tambm vai passar. Moral da histria: no devemos nos embriagar pelas grandes alegrias nem nos deixar abater pelas grandes frustraes.

A MAIOR TRISTEZA NO A DERROTA, MAS NO TER A OPORTUNIDADE DE TENTAR DE NOVO.

Compreendi que o que para mim era uma injustia na verdade era uma deciso considerada correta pelo treinador. Poucas coisas so to difceis em qualquer atividade humana quanto a auto-avaliao. Nunca temos a idia exata do que somos, de quanto valemos, sobretudo quando a medida do nosso trabalho to ou mais qualitativa que quantitativa.

O resultado de uma partida de voleibol, por exemplo, pura matemtica. No h o que discutir. J o desempenho de um jogador, de uma equipe, no se limita ao que dizem as estatsticas. tambm uma questo de qualidade, implicando a avaliao de uma srie de valores, muitos deles subjetivos, que raramente os outros vemdo mesmo prisma que ns. O tcnico pode errar? Sim, todos ns podemos errar. O importante

36

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

tentar se colocar no lugar do outro e perceber que uma deciso difcil tambm afeta quem a toma.

Por isso, aps aquele corte de 1977, fui em frente sem perder tempo tentando descobrir se meu destino era ser um eraque, um jogador medocre ou uma nulidade. S queria jogar bem. Isso me ajudou a ser um profissional aplicado, insatisfeito comigo mesmo, buscando o aprimoramento e levando a dedicao nos treinos s fronteiras da obsesso (costumo brincar que a falta de treino me leva a mergulhar em profunda crise de abstinncia).

Eu sabia que jamais seria um dolo dos ginsios. Mas tambem sabia que o treinamento exaustivo me daria um lugar no vlei. Preparava-me para ser profissional em uma atividade na qual a autocrtica uma coisa complicada. So raros os atletas que aceitam a condio de reserva. Pior, sequer a entendem.

Em seu livro My Life (Minha vida), Earvin Magic Johnson, um dos gigantes do basquete americano, dedica um captulo inteiro aos reservas do seu time, o Los Angeles Lakers, vendo neles a essncia do trabalho em equipe que o levou a ganhar tantos campeonatos na Associao Nacional de Basquetebol, NBA. Eles nos desafiam diariamente a sermos melhores, explica.

verdade que o voleibol brasileiro estava a quilmetros de distncia do profissionalismo ento a caminho, mas ainda assim vale o que Michael Jordan, outro gnio do basquete americano, escrevu a propsito de jovens que se iniciam no esporte. Segundo ele, a maioria chega para o primeiro teste j pensando nas manses, nos carros e nos jatinhos que compraro corn os milhes de dlares que esperam ganhar rapidamente.

Poucos tm conscincia de que a fama e a fortuna so resultado do treinamento rduo a que tero de se entregar. A prepa-

37

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

rao, a entrega irrestrita ao aperfeioamento fsico e tcnico (quase sempre demandando sacrifcios), estes sim deveriam ser os primeiros pensamentos de todo jovem atleta. Sem isso, os bens e todo o resto no passam de um sonho.

O ciclista americano Lance Armstrong tambm fornece um testemunho incrvel do poder da persistncia. No livro The Long Ride (A longa jornada), Armstrong conta como voltou a competir, e a vencer, depois de sobreviver a um cncer de testculo. Ele mudou seu estilo de pedalar, que era muito impetuoso, e soube criar novas estratgias para completar o Tour de France, a prova de ciclismo mais tradicional do mundo.

Detalhe importante: at ento ele nunca havia conseguido ganhar a corrida francesa, mas aps se recuperar do cncer ele a conquistou sete vezes. Levei um born tempo para aceitar a idia de que ser paciente diferente de ser fraco, afirma Armstrong no livro.

Essa fonte inesgotvel de experincias me chega atravs dos livros que leio corn o prazer e a necessidade de quem tem de aprender mais e mais. Um deles, A incrvel viagem de Shackleton, de Alfred Lansing, fala sobre liderana, motivao, trabalho em equipe e superao. Qualidades sem as quais o famoso expiorador no teria conseguido transformar sua malsucedida expedio Antrtida - que o deixou, junto corn seus tripulantes, isolado por dois anos num bloco de gelo - numa histria de rsistncia herica.

As biografias esto entre minhas leituras favoritas. E no apenas corn relatos sobre o mundo do esporte, mas tambm sobre personagens como Charles Darwin, Winston Churchill, Gandhi, Benjamin Franklin, todos lderes, todos grandes inspiradores.

38

MEUS PRIMEIROS TREINADORES

NO VLEI COMO NA VIDA

COMPREENDER A IMPORTNCIA DA INSTRUO NO

DESENVOLVIMENTO CULTURAL E PROFISSIONAL.

DEDICAR-SE corn OBSTINAO,

NA BUSCA DE UM OBJETIVO.

ENTENDER A PAIXO COMO FATOR ESSENCIAL

DE MOTIVAO.

SUPERAR AS LIMITAES PESSOAIS PELA DISCIPLINA.

NUNCA ESQUECER QUE A VAIDADE INIMIGA DO ESPRITO DE EQUIPE.

BUSCAR O BRILHO DA VITRIA NO OLHAR

DE SEUS COLABORADORES.

39

A gerao de prata

Os guerreiros vitoriosos vencem antes de ir

guerra, ao passo que os derrotados

vo guerra e s ento procuram a vitria

SUN TZU

Como jovem levantador eu j buscava conhecer meus defeitos e minhas virtudes E o que mais me incomodava era o meu temperamento, minha maneira de ser Como aprender a usa-la a meu favor

Estudos ou voleibol - a tudo me dedico de um modo que muitos consideram obsessivo Conheo atletas corn essa caracterstica que obtiveram resultados fantsticos em suas modahdades No tinham grande talento, mas sabiam perseverar Eu mesmo talvez no voltasse seleo brasilena, depois do pnmeiro corte, se no teimasse

Para dar um exemplo conhecido, recorro ao futebol Quem no conhece a historia de Cafu Apesar de reprovado em mais de 10 peneiras - os testes em que os clubes selecionam jovens jogadores -, ele no desistiu At que um dia algum percebeu que aquele lateral de habilidade limitada possua qualidades fundamentais como determinao, seriedade e fora interior

Aqui cabe a dvida ser que as limitaes que viam em Cafu no estavam nos treinadores que o avaliavam? Ser que as rs-

41

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

tries no estavam nos padres de avaliao, que valorizavam apenas o virtuosismo e no as qualidades que o levariam a ocupar o posto de capito da seleo pentacampe mundial?

J que na seleo eu ficava a maior parte do tempo no banco, aprendi a analisar dali o estilo dos jogadores - como se saam em cada fundamento, seu empenho, seu ritmo, sua pstura ttica nesta ou naquela situao e suas reaes emocionais

- e comecei a desenvolver um born senso de observao. Detalhes que poderiam me escapar se eu fosse titular, mas que na posio de reserva eram anotados e analisados.

Sempre me interessei pelo voleibol como jogo coletivo. A interao entre os 12 jogadores me fascinava mais do que eventuais centelhas individuais. Conversava a respeito disso corn meus treinadores e gostava de trocar idias corn eles sobre tticas e estratgias. Queria sempre participar.

Outra coisa o esprito crtico proveniente justamente da soma destas duas caractersticas: a do jogador obstinado e a do reserva metido a tcnico. Irrequieto, ranzinza mesmo, eu reclamava, discutia, brigava e exigia mais dos companheiros. No aceitava desperdcio de talento, o que at hoje uma das coisas que mais me irritam.

Nunca fui aquele jogador que entrava para decidir, para fazer a diferena, mas cobrava isso dos que tinham condies para tanto. Quando via um craque relaxar, acomodar-se, conformar-se corn uma atuao medocre, protestava. E pensava comigo mesmo: Ah, se eu fosse to born quanto esse cara...

Lembro-me de um amistoso entre Atlntica Boavista e Fuji Film, do Japo. Reclamei o tempo todo dos meus companheiros de time que, por alguma razo, estavam desmotivados. Eu gritava e xingava tanto que Bebeto de Freitas me substituiu.

42

A GERAO DE PRATA

- Por que me tirou? - perguntei no vestirio depois de perdermos a partida.

- Porque voc ia acabar brigando corn o time inteiro - rspondeu Bebeto. - Voc era o nico corn vontade de jogar.

Rebati meio malcriado:

- Quer dizer que foi esse o meu prmio por querer jogar? Da prxima vez you jogar de m vontade pra ver se no saio.

claro que o treinador tinha razo: meu mpeto, minhas broncas passando da conta poderiam criar na equipe um clima ruim. O que ele e os outros jogadores talvez no soubessem que minha autocrtica tambm era muito dura. Eu no aceitav menos que 100% de dedicao. Ao mesmo tempo em que monitorava o desempenho dos meus companheiros, era igualmente severo comigo mesmo e no me perdoava pelos erros cometidos, muito menos pela repetio deles.

O hbito de criticar nunca me permitiu culpar os outros pelas minhas prprias falhas. Eu ensaiava, sem desconfiar, o papel de treinador que desempenharia no futuro.

Em 1980 fui convocado novamente e dessa vez fiquei entre os 12 jogadores que iriam disputar os Jogos Olmpicos de Moscou. Era a realizao da ambio de todo atleta. Logo aps os amistosos preparatrios, trs meses antes das Olimpiadas, estourei o menisco do joelho esquerdo e tive de ser operado. Diante de tamanha falta de sorte, todo mundo me viu fora da seleo. Todo mundo menos eu.

Na poca, abria-se o joelho para fazer essa cirurgia (a artroscopia ainda no entrara em cena) e calculava-se em trs meses, no mnimo, o tempo de recuperao. Iniciei meus exerccios no leito do hospital, jogando bola na parede, para desespero das enfermeiras. Depois, j em casa, acordava s sete da manh e

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

me exercitava de alguma forma at s 10 da noite para no perder o toque de bola.

Muitas vezes dormia durante o dia em um colchonete, no Fluminense, para aproveitar melhor o tempo. Nadava, malhav, caminhava, alongava e combinava fisioterapia treinos corn bola: sentava-me no cho e ficava jogando vlei corn a parede. O resultado que reapresentei-me seleo e voltei a jogar em tempo recorde: 28 dias.

Os Jogos Olmpicos de Moscou foram marcados pelo boicote dos Estados Unidos em protesto contra a invaso do Afeganisto por tropas soviticas. A ausncia da seleo americana no chegou a tornar a nossa participao menos difcil, pois os rpresentantes do Leste Europeu ainda formavam a linha de frente do voleibol mundial.

Sofremos duas derrotas logo nas primeiras partidas, para a Iugoslvia e para a Romnia, vencendo em seguida a Lbia e a Polnia (ento campe olmpica), numa virada emocionante. Depois vencemos a Tchecoslovquia e na fase seguinte a lugoslvia. Mesmo assim, no passamos do 5. lugar. Confirmando seu favoritismo, a Unio Sovitica foi campe.

A ascenso do voleibol brasileiro teve a contribuio de dois personagens: Carlos Arthur Nuzman, como dirigente e precursor do processo de profissionalizao do vlei no Brasil, e Bebeto de Freitas, como treinador. Sob seu comando, a seleo jamais deixou de fazer parte da elite do voleibol mundial. Bebeto era um tremendo estrategista. No s nas questes tticas, de armar o time dentro da quadra, mas em um item fundamental: o planejamento, no muito valorizado at ento.

44

A GERAO DE PRATA

Bebeto montou uma comisso tcnica, dividiu tarefas, senti que aquela gerao tinha futuro e deu a ela o melhor ao seu alcance. Seu preparador fsico, Paulo Srgio, a quem chamavamos Major, alou o condicionamento da seleo a um nvel dos mais elevados.

Bebeto foi o homem certo para participar desse processo modernizador. Tinha talento, conhecimento e sensibilidade pr, mais do que viver o grande momento, ajudar a constru-lo. Armou uma seleo competitiva e, ao mesmo tempo, bonita de se ver. corn a televiso transmitindo os jogos ao vivo para todo o pas, o pblico foi se chegando ao voleibol, familiarizando-se corn ele, torcendo e at mesmo passando a acreditar em seu sucesso diante das grandes potncias mundiais do esporte.

CASE VOLEIBOL: PLANEJAMENTO, PROFISSIONALIZAO

DO PROCESSO, INVESTIMENTO NA BASE.

Em 1981 chegou a primeira medalha em uma competio de nvel internacional: o bronze na Copa do Mundo do Japo. Mostrava que a nova gerao tinha potencial para colocar o Brasil no mapa-mndi do vlei. Promessas de craques que se confirmariam na excepcionalidade dos astros daquela seleo: Bernard, Montanaro, Xand, Amauri, Fernando, Bad, William, Renan e outros.

No ano seguinte, mais dois testes importantes: o segundo lugar no Mundial disputado na Argentina e a inesquecvel conquista do Mundialito no Maracanzinho, uma vitria empolgante sobre a Unio Sovitica na final corn o estdio lotado.

Durante o Mundialito vivi uma das mais emocionantes

experincias da minha vida como jogador. Jogvamos contra o

45

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Japo e a partida comeava a escapar de nossas mos, quando Bebeto sacou dois titulares, Bernard e William, e mandou que Montanaro e eu entrssemos em seus lugares. Atirou-nos na fogueira, mas conseguimos virar o placar e ganhar o jogo. O Maracanzinho veio abaixo.

Passada a emoo, fiquei refletindo sobre o que ocorrera. Por que razo ajudei a fazer o que um titular corn muito mais talento no tinha feito? Porque o treinador achou que naquele momento os dois reservas poderiam ajudar mais o conjunto do que os dois craques que ele substituiu.

A DISPOSIO DE UMA EQUIPE E O ENTENDIMENTO E A

COLABORAO ENTRE OS JOGADORES NA QUADRA PODEM

SER MAIS DECISIVOS QUE O BRILHO INDIVIDUAL.

Em 1983, uma grande conquista: o ouro dos Jogos Pan-Americanos em Caracas. Uma vitria da superao, pois vrios jogadores atuaram no limite do sacrifcio. Fernando e Bad, por exemplo, tiveram que ser praticamente iados ao pdio pelo restante da equipe por estarem corn os joelhos estourados.

Para mim os treinos da seleo eram como aulas ministradas por Bebeto de Freitas. Aulas prticas, proveitosas, vlidas para sempre. Nada mais natural que eu me convertesse um dia em treinador, tamanha a experincia acumulada ao longo da carreira como jogador. Meus anos de banco certamente seriam teis quando eu tivesse a atribuio de dirigir um time.

O curioso que, se por um lado comecei fazendo como Bebeto e outros tcnicos ensinavam, por outro preferi seguir o caminho oposto. Era aquela tpica sensao de desconforto corn algumas decises que acabam levando voc a pensar coisas do

46

A GERAO DE PRATA

tipo: Isso eu no faria no meu time, Se eu fosse ele, agiria de forma diferente, No concordo corn essa soluo? Pois , volta e meia essas coisas me passavam pela cabea, embora nunca tenha desrespeitado qualquer um dos meus treinadores.

Se por um lado eu jogava voleibol corn paixo, por outro lvava o curso de economia muito a srio. Adorava as aulas e os

professores que, corn sua compreenso, permitiram que eu me formasse. Embora fosse born aluno, daqueles que sentam na frente e redobram a ateno para aprender e compensar as faltas, os colegas tambm desempenharam um importante papel nisso tudo. Informavam-me sobre as aulas, passavam-me a materia e cobriam, na medida do possvel, minhas ausncias. Mais uma vez uma lio sobre o valor do trabalho coletivo. Essa tambem foi uma equipe fundamental em minha vida.

Minha freqncia s aulas era muito prejudicada pelos treinos, jogos, viagens e, quando estava na seleo brasileira, pelos perodos de concentrao. Revejo-me de madrugada no hotel, Renan dormindo profundamente na cama ao lado e eu corn a cara no livro, estudando para as provas.

Nunca me vi to dividido como naquela poca. Eu tinha dvidas se conseguiria viver do voleibol e por isso cheguei a pensar na possibilidade de fazer ps-graduao, me aprimorar e seguir normalmente a carreira de economista. Conversei corn vrios professores, entre eles Andr Lara Resende, que me convidou para um estgio no Banco Garantia.

Foi ele quem, no papel de professor, me questionou pela primeira vez sobre qual seria o meu futuro: economista ou treinador de vlei? A dvida durou pouco, assim como o estgio, que foi definitivamente interrompido em 1984, ano em que me formei. O motivo que outro banco estava minha espera: o

47

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

da seleo brasileira que iria disputar os Jogos Olmpicos de Los Angeles.

Chegamos a Los Angeles como uma das selees favoritas, ao lado da dos Estados Unidos. corn o boicote que a Unio Sovitica retribua aos americanos, seguida por outras potncias do vlei como Polnia, Bulgria e Cuba, a previso era de que a medalha de ouro dificilmente escaparia a um dos dois pases. Tnhamos de fato grandes equipes.

Iniciamos nossa caminhada corn uma vitria sobre a Argentina:

3 a l. Dois dias depois, a segunda vitria sobre a Tunsia: 3 a 0. Ento, quando devamos nos concentrar no jogo contra a Coria do Sul, perdemos tempo e energia discutindo questes de relacionamento, em vez das tticas de jogo. Foram mais de seis horas de bate-boca, de choque de vaidades, de egos fora de controle. No dia seguinte, claro, perdemos para a Coria do Sul por 3 a 1.

Depois cia ducha fria, ns mesmos e os torcedores brasileiros que nos acompanhavam de perto e de longe no acreditvamos ser possvel reverter a situao. At que, na quarta rodada, a surpresa: uma vitria impecvel sobre os Estados Unidos por 3 a O, corn um ltimo set demolidor (15-2). Terminamos a fase de ciassificao como lderes do grupo e favoritos absolutos ao ttulo.

O favoritismo aumentou quando, nas semifinais, vencemos a Itlia por 3 a l. quela altura, quem mais poderia nos roubar o ouro? No os americanos, cuja invencibilidade terminara diante de ns. Pois foram eles mesmos que cinco dias depois nos devolveram o 3 a O na final. No jogamos a metade do que tnhamos jogado antes. E os americanos apoderaram-se do ouro. A ns, a prata. Foi minha ltima Olimpada como jogador.

48

A GERAO DE PRATA

corn todas as honras que o segundo lugar em Los Angeles nos concedia, corn todo o reconhecimento internacional que pela primeira vez o voleibol brasileiro tinha, uma pergunta era inevitvel: por que a prata e no o ouro?

No pretendo dar respostas definitivas. Muito menos criticar quem quer que seja. No vejo na conquista da prata um fracasso. No mesmo. Foi, sim, o sucesso de uma gerao que ficou consagrada como a gerao de prata. corn orgulho, todos ns ostentamos no peito a medalha que nos coube. Pssoalmente, considero-me um privilegiado por ter participado daquele momento.

A gerao de prata revelou talentos, imps-se como divisora de guas entre o amadorismo incipiente e o profissionalismo de fato, foi responsvel pela popularizao do vlei no Brasil e por muito mais. Sempre lembrarei das coisas que aprendi, das emoes que vivi e dos amigos que fiz.

Mas por que a prata e no o ouro? Respondo pergunta corn outras perguntas: Ser que no havamos cado na armadilha do sucesso? Ser que no entramos na partida decisiva confiantes demais? No seria possvel que, por uma espcie de tradio no esporte brasileiro, s tenhamos perdido por sermos os favoritos?

Nenhum de ns tinha idia cio que ser dolo num pas que ama o esporte. Era natural que, vaidosos e maravilhados corn a proximidade do ttulo olmpico, tivssemos nos tornado vtimas de nossos prprios egos. Estvamos to convencidos de que venceramos os Estados Unidos outra vez que nos desconcentramos. Literalmente. Horas antes da deciso, enquanto vamos a fita da semifinal deles corn os canadenses, lembro-me que um cochilav e outro rabiscava nas costas da cadeira sua frente.

Outro pequeno exemplo de nossa imaturidade e nossa falta

49

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

de foco foi a discusso que tivemos sobre qual marca de tnis iramos usar. Apesar de a CBV ter contrato de exclusividade corn um determinado fabricante, alguns jogadores, atrados por uma oferta de U$ 500, propunham que usssemos os tnis de uma marca concorrente. A polmica foi encerrada por Nuzman: usaramos o tnis oficial e pronto.

A TRAIOEIRA ARMADILHA DO SUCESSO

UM ALAPO EM QUE COSTUMAMOS CAIR QUANDO,

EMBRIAGADOS POR EVENTUAIS XITOS, PASSAMOS

A NOS ACHAR MELHORES QUE OS OUTROS,

QUANDO NO INVENCVEIS, E NOS AFASTAMOS

DA ESSNCIA DO SUCESSO: A PREPARAO.

Quando nos acomodamos, trabalhamos menos, relaxamos e confiamos excessivamente na nossa capacidade, acabamos surpreendidos por um revs. Transpomos a linha da autoconfiana, passando auto-suficincia - camos numa cilada. Ser born no o mais importante, e sim estar bem preparado.

O torcedor, o analista e, mais do que tudo, a mdia no se cansam de nos pintar melhores do que somos quando vencemos. Se, por outro lado, as coisas no correm bem, eles fazem o inverso e dizem corn todas as letras que somos os piores, quando na verdade o provvel que estejamos em algum ponto entre os dois extremos.

claro que no foram os elogios rasgados da imprensa que nos levaram a tropear em Los Angeles. Mas eles certamente contriburam para isso. No mais, ns mesmos no tivemos forca para suportar a repentina presso que a vitria sobre os Estados Unidos colocara sobre os nossos ombros.

50

A GERAO DE PRATA

Recordo o que a propsito me disse o americano Charles Karch Kiraly, campeo olmpico em 1984, 1988 e 1992 (no vlei de praia) e considerado o melhor jogador do mundo pela Federao Internacional: No h nada melhor do que jogar contra o Brasil quando ele o favorito. Tenho a impresso de que o peso de toda uma nao colocado sobre as costas dos jogadores. Nos Estados Unidos muito diferente, talvez por j termos ganhado tantas medalhas em tantas modalidades... uma a mais, uma a menos no fazem tanta diferena.

Verdade. Essa uma premissa que tem perseguido o esporte brasileiro quase como uma maldio. Vejam o exemplo do futeboi. Quantas equipes saram do Brasil na condio de favoritas e voltaram campes? Algum pode citar o Mundial de 1962 como uma exceo, mas born lembrar que depois da contuso de Pele no segundo jogo, o O a O contra a Tchecoslovquia, o pas inteiro convenceu-se de que o bi estava perdido. At que Amarildo entrou e Garrincha fez tudo o que se sabe.

fato. O favoritismo pesa. Quando o cavalo de Rodrigo Pssoa refugou nos Jogos Olmpicos de Sydney, pensei c comigo: corn 1 70 milhes de pessoas no dorso, espera da medalha de ouro, no dava mesmo para o cavalo saltar.

Como jogador, e anos depois como treinador, jamais deixei de buscar entender por que a gerao de prata no seguiu apresentando um desempenho a altura de um voleibol vice-campeo mundial e olmpico. Foram trs anos sem resultados significativos. No entanto, a inspirao da gerao de prata brilharia como ouro em Barcelona, em 1992, quando uma nova leva de talentos surgiu mirando-se naqueles grandes jogadores e dolos.

51

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Despedi-me da seleo brasileira no Mundial de 1986, na Frana, quando terminamos em quarto lugar. Nos ltimos trs anos de carreira, s joguei por clubes.

Mas e os outros jogadores? Por que o contingente mais habilidoso no seguiu em frente? Tirando Bernard e Xand, que deixaram a seleo (o ltimo at mudou de idia depois), continuaram Montanaro, Renan, William e Amauri, todos em condies de ajudar os mais jovens a lutar por outra medalha em Seul. O que no aconteceu.

Talvez no tivssemos percebido que, finda uma Olimpada, j se inicia o trabalho para outra. No foi somente a questo da preparao, mas tambm da transmisso de conhecimentos entre as geraes que provavelmente no foi muito eficiente. Ou simplesmente respeitava-se uma caracterstica da nossa atividade, um ciclo de entressafra que necessita de um tempo para a colheita de novos resultados.

Depois de quatro anos muito confusos, corn duas mudanas de treinador em um curto espao de tempo e maus resultados, Nuzman chamou Bebeto de Freitas para comandar novamente a seleo brasileira. Estvamos a 50 dias da abertura dos Jogos Olmpicos de 1988, em Seul.

Nuzman apelava para Bebeto numa tentativa de reverter a situao. Sua misso era tornar a equipe novamente competitiv. Ao aceitar o convite, Bebeto me convocou para ser seu assistente. De incio, fiquei surpreso. Conclu que o convite se devia, em parte, amizade, mas muito tambm relao algo complicada que ele mantinha corn alguns jogadores.

Mesmo reconvocando poucos veteranos - Montanaro, Renan, Xand e Amauri , Bebeto confiava a mim a tarefa de funcionar como um elo entre a comisso tcnica e o restante

52

A GERAO DE PRATA

do grupo. Quase todos tinham sido meus companheiros de time e muitos eram meus amigos, que me respeitavam. Concordei sem ter a menor idia do benefcio futuro que aquela experincia poderia proporcionar.

Seriam quatro vitrias e trs derrotas em Seul, uma delas por 3 a O para os Estados Unidos na semifinal, cuja equipe tinha quatro dos campees olmpicos de 1984. Eles haviam conseguido fazer a transio, entenderam que o essencial era se reinventar e mudar o time que est ganhando para continuar vencedor.

PROGREDIR CONSERVAR MELHORANDO.

A. COMTE

Encontrei novamente Kiraly na Vila Olmpica de Seul. Os americanos indo treinar para a final em que venceriam a Unio Sovitica e ns para a deciso do terceiro lugar corn a Argentina (perderamos essa partida por 3 a 2, em impressionantes trs horas e dez minutos de disputa).

Kiraly carregava numa das mos um saco de bolas e na outra uma geladeira trmica. Estranhei a cena: um campeo olmpico, um craque de sua categoria, fazendo o trabalho que, entre ns, era entregue aos novatos. Sua explicao: Bernardo, se os mais novos no me vissem disposto a dividir corn eles todas as obrigaes e responsabilidades, talvez no percebessem que aquele era o nosso time e aquela era a nossa medalha, e que ramos igualmente importantes. Sem contar que eles estavam to tensos que era possvel que esquecessem o saco de bolas em algum lugar.

Aqui cabe a frase do general americano Colin Powell: No

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

deixe seu ego acompanhar sua ascenso profissional. O perigo : se voc perder a posio, para onde ir seu ego? Provvelmente despencar das alturas. A soluo , como nos mostra o melhor do mundo Kiraly, no deixar que o sucesso suba cabea.

Depois de Seul, encerrei meus dois meses de experincia como assistente de Bebeto de Freitas. Seguiu-se um ano em que olhei para vrias direes sem saber que rumo tomar.

Como meu irmo Rodrigo e eu tnhamos nos associado a Paulo Antnio Monteiro e sua esposa Amparo na ampliao do restaurante Delrio Tropical no Centro do Rio, dediquei-me inicialmente a esse projeto.

Essa primeira experincia profissional confirmou todas as minhas teorias sobre a importncia do trabalho em equipe e o comprometimento corn a qualidade. Fez-me perceber como o comportamento dos lderes se refletia no atendimento oferecido pelo restaurante.

E o voleibol? Que opes me eram oferecidas para continuar fazendo aquilo de que eu mais gostava? Chegando aos 30 anos, fui vendo aproximar-se a hora de dar adeus ao esporte. Muitos jovens talentos surgindo e as oportunidades rareando para mim. Quem sabe eu no devesse esquecer o vlei para sempre e voltar para a economia?

54

A GERAO DE PRATA

NO VLEI COMO NA VIDA

TRABALHAR A PERSEVERANA, A OBSTINAO, NO DESISTINDO NEM RECUANDO DIANTE

DE OBSTCULOS.

(Algumas pessoas corn essas caractersticas obtiveram

timos resultados no tinham um grande talento,

mas souberam perseverar.)

DESENVOLVER O SENSO DE OBSERVAO.

(Tirar proveito dos momentos em que estiver no banco de reservas.)

ENTENDER QUE O SENTIDO DE COLETIVIDADE

MAIS IMPORTANTE DO QUE EVENTUAIS

CENTELHAS INDIVIDUAIS.

COMBATER O DESPERDCIO DE TALENTO.

(Lutar contra a acomodao desafiando os limites preestabelecidos.)

FALHE AO PLANEJAR E ESTAR PLANEJANDO FALHAR.

MONITORAR CONSTANTEMENTE SUA VAIDADE.

(A vaidade um grande obstculo na busca do crescimento e na formao do verdadeiro time.)

55

Uma aventura italiana

Quanto mais voc sua nos treinamentos,

menos sangra no campo de batalha.

COLONELRED

O ano de 1989 foi de indefinio profissional. Estava pensando seriamente em deixar o voleibol quando a exjogadora Dulce Thompson me telefonou da Itlia.

- Bernardo, surgiu uma oportunidade fantstica pra voc.

- Na Itlia?

- Sim, em Perugia, uma cidade muito legal.

Por alguns momentos pensei no voleibol italiano, forte, altamente profissional, empenhado em contratar os melhores jogadores de outros pases, e perguntei a Dulce o que um clube de l poderia querer de um levantador de 30 anos, em fim de carreira, que nem em sua melhor fase interessaria aos italianos.

- No para jogar, Bernardo explicou Dulce. - para treinar o time feminino do Perugia.

- Como treinar? Eu nunca treinei ningum.

- Mas tem tudo pra isso conhece voleibol, tem capacidade de liderana, perfeccionista, um chato, um cricn.

Dulce me conhecia dos tempos de Fluminense e de seleo rasileira, onde atuou antes de se mudar para a Itlia. Por

57

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

algum motivo, ela via em mim um treinador em potencial, um possvel lder, um provvel gestor. Mas, antes que eu pudesse responder, Dulce me alertou:

- S tem uma coisa, Bernardo: a cidade legal, o clube paga em dia, o ginsio timo, tem piso macio, as bolas so novas, no falta nada, mas... - ela fez uma breve pausa - o primeiro turno do Campeonato Italiano est terminando e o Perugia, corn 11 derrotas em 12 jogos, o ltimo colocado.

Somente uma vitria, por 3 a 2, sobre o penltimo colocado e jogando em casa. Apesar de tudo isso, aceitei. Houve quem me chamasse de louco por ter embarcado em tal aventura enquanto outros me elogiaram pela coragem. Mas estavam enganados. Nem loucura nem coragem. Para mim, que preferia ficar no voleibol a voltar para a economia, era sem dvida uma oportunidade. A nica que me ofereciam para seguir vivendo do esporte. Loucura seria desperdi-la. Coragem? Precisaria dela se o Perugia no fosse o ltimo e sim o primeiro colocado.

bem mais difcil manter um time na liderana do que tiraIo l de baixo. Tudo que se fizer para quem est na lanterna h de ser para melhor. Afinal, o pior que pode acontecer a um ltimo colocado continuar em ltimo. Portanto, no precisei ser louco, muito menos corajoso, para voar rumo Itlia. Eu prcisava saber se era possvel viver da minha paixo.

Dulce estava certa. Perugia, na regio da Umbria, uma cidade de cerca de 150 mil habitantes, encantadora, hospitaleira, boa de se viver. Faria muitos amigos por l. Seu centro universitrio lhe confere uma atmosfera jovem, moderna. O ginsio era timo, exatamente como Dulce me adiantara. O clube no tinha boa estrutura e faltava tradio no voleibol: era seu primeiro ano na primeira diviso. Tudo muito novo. Para o clube e para mim.

58

UMA AVENTURA ITALIANA

Aonde o Perugia pretendia chegar? Provavelmente evitar o rebaixamento. E o que sabia eu do papel de treinador? Muito pouco.

Um dia aps minha chegada, li num jornal italiano a nica manchete corn que a imprensa local me dignou enquanto estive l. Dizia mais ou menos o seguinte: Jovem treinador de coragem chega para salvar o insalvvel. Como se estivessem espera de um milagre. Em vez de me assustar, enviei o recorte para minha me, que estava preocupada corn minha deciso de largar a economia para tentar a aventura do vlei. Achei que ela ficaria mais tranqila ao saber que, de certa forma, confiavam em mim. E acreditavam no milagre.

Coragem para qu? Pior do que estava no poderia ficar, aquela era a verdadeira oportunidade na crise: quando todos esto dispostos a tudo, abertos a novas situaes e prontos para o sacrifcio. Alm de tudo precisava descobrir se poderia viver minha enorme paixo. Seria possvel viver de voleibol?

Meu primeiro treino no Perugia. No h como esquec-lo, apesar de no ter feito praticamente nada seno observar as jogadoras. Eu chegara do Rio numa quarta-feira e segui direto do aeroporto de Roma para o ginsio em companhia de Dulce, que me serviria de intrprete at que eu dominasse o idioma, e de Mario Guarella, o diretor que a ajudara a convencer o presidente do clube a contratar um brasileiro que nunca treinara uma equipe de vlei.

Ao ver as meninas na quadra, bastaram-me alguns minutos para perceber por que eram as ltimas colocadas. Tecnicamente iam mal. Fisicamente, pior. Psicologicamente, arrasadas. Terminado o treino, pedi que se reunissem para que eu lhes

59

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

dissesse alguma coisa. Mas dizer o qu? No sabia. No s por nunca ter me dirigido a ningum como treinador, mas tambm porque meu italiano era to sofrvel que a primeira palavra que me saiu da boca foi manana, em vez de domani. At que Dulce me traduziu:

-Amanh faremos dois treinos, um pela manh e outro tarde.

Pude perceber o espanto, quase pavor, nos olhos daquelas italianas. Dois treinos por dia? Nunca tinham ouvido falar em nada parecido. Para ser honesto, nem eu mesmo sei por que tomei aquela deciso. possvel que quisesse apenas mudar aiguma coisa, provocar uma mexida no que elas vinham fazendo at ento. Tinha plena convico de que mudar era importante. Afinal, estratgias iguais nos levariam a resultados iguais. Ou seja, era preciso mudar o mtodo de preparao.

Mas possvel tambm que, sem sentir, eu j estivesse levando para minha nova misso um pouco do que havia aprendido ao longo da minha carreira - para se conquistar alguma coisa preciso trabalhar e suar muito, corn uma dedicao que no raro exige sacrifcios, e tentar esticar a corda at o limite que cada um imagina ser o seu.

Creio que o potencial das pessoas vai muito alm daquele em que elas prprias acreditam. Quando analiso um jogador, no foco naquilo que eu sei que ele no sabe fazer bem, e sim na maneira de ajud-lo a explorar e ampliar seu potencial, tentando estabelecer no dia-a-dia da preparao um processo constante de feedback.

Essa busca do aprimoramento atravs do treino intensivo j tinha - e tem at hoje - algo de vcio, de obsesso, que me alimentava desde os tempos de jogador. E essa experincia foi tu-

60

UMA AVENTURA ITALIANA

do o que levei em minha bagagem para a Itlia. Talvez ainda no o soubesse naquele primeiro treino no Perugia, mas uma das obrigaes fundamentais do treinador ter conhecimento de como o jogador pensa, como ele sente, quais so as suas expectativas e seus limites.

Recordo-me que, em 1988, quando era assistente de Bebeto de Freitas na seleo brasileira, tivemos uma discusso durante um torneio na Bulgria. Um problema corn os jogadores me levou a dar uma opinio que no era bem a de Bebeto e dos demais integrantes da comisso tcnica. Um deles, o fisiologista Edmundo Novaes, veio falar comigo:

- Sabe, Bernardo, voc ainda pensa muito corn a cabea de jogador.

Concordei:

- Verdade, doutor, e espero nunca mais esquecer como o jogador pensa, como ele se sente nas diversas situaes.

Atravs do conhecimento, tento avaliar at onde possvel esticar a corda. Muitas vezes, acomodado em limites preestabelecidos, o jogador pode no responder como deveria ao que exigimos dele no treinamento. Outra hiptese fazermos uma avaliao errada de seu potencial e, ao nos colocarmos em seu lugar, constatarmos que o seu limite inferior quele que imginvamos. Assim, podemos nos corrigir - e no esticar a corda demais.

Meu comeo na Itlia um born exemplo. Ocupando o ltimo lugar na tabela da primeira diviso, as jogadoras pareciam ter aceitado um limiar muito baixo para suas performances. Mais do que acomodadas, pareciam resignadas. Podiam me achar exagerado, um alucinado que fazia tudo sozinho, sem auxiliar, sem preparador fsico, treinando-as duas vezes por dia.

61

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

Mas no se queixavam, agarrando-se a essa tentativa como se fosse sua tbua de salvao.

Uma de minhas primeiras medidas seria escolher a capita da equipe. Em geral, se no houver algo em contrrio, o melhor legitimar a capita em exerccio. Sobretudo se ela tiver sido eleit pelas demais, como era o caso de Cristina Saporiti. Alm do que, substitu-la sem a conhecer seria uma atitude desnecessaria e antiptica. Achei por bem observ-la melhor.

Nosso comeo at que foi promissor. Treinamos na sextafeira, jogamos no sbado e ganhamos. Na segunda-feira, reiniciamos o trabalho: um circuito fsico e tcnico. A cada etapa cumprida, enquanto parvamos para recuperar o flego, Cristina pedia para ir ao banheiro, voltando minutos depois corn um ar abatido. A cada pausa para descanso, l ia Cristina para o banheiro. Deve estar passando mal, pensei. De fato, estava. O motivo de suas freqentes idas ao banheiro que, fisicamente limitada, Cristina era to consumida pelo ritmo do treinamento que vomitava nos intervalos. Passava mal, saa, voltava enfraquecida, mas no desistia.

Estava explicado por que as outras a tinham escolhido para capita. Cristina era um exemplo de determinao, de capacidade de se superar. Suas companheiras sabiam disso. Nos treinos mais rigorosos, algumas deitavam na quadra entregando os pontos, outras choravam. Mas no ela. Razo pela qual, nas trs temporadas em que dirigi o Perugia, ela foi minha nica capita.

Tecnicamente, Cristina no era um supertalento, mas tinha qualidades que a tornavam uma referncia para as outras jogadors. A mensagem que se lia em suas aes, e no em suas palavras, era a de no desistir e seguir em frente, apesar dos obstculos. Esse um dos princpios mais caros dos atributos de liderana.

62

UMA AVENTURA ITALIANA

Para exemplificar o meu despreparo e as lies que aprendia a cada dia, lembro-me de que quando cheguei para dirigir o treino encontrei nove jogadoras uniformizadas a dcima, Anna Solazzi, estava vestida paisana.

- Filha, change, cambio, vai mudar de roupa pra treinar determinei naquele idioma que era tudo menos italiano.

Anna fez corn a cabea que no. Como eu no entendia o que ela tentava me explicar, comecei a perder a pacincia. J estava a ponto de explodir quando uma jogadora menos tmida disse-me em ingls:

- Hoje ela no pode treinar.

- Como no? Ela treinou ontem...

- que hoje ela est naqueles dias.

A que perdi a pacincia de vez. Imagine um dia em que trs ou mais jogadoras estejam nos seus dias e por causa disso no haja um time para treinar ou jogar. Fiz que a atleta mudasse de roupa e voltasse quadra, sem saber que, no caso dela, aquele era de fato um perodo difcil, de dores intensas e muito desconforto.

Essa histria ilustra duas coisas: primeiro, o meu distanciamento de minhas jogadoras, que as impedia de ter comigo uma relao franca e direta. No havamos construdo ainda um elo de confiana significativo. A segunda coisa foi constatar o meu desconhecimento em relao ao universo feminino, que agora estava sob minha responsabilidade.

Isso me mostrou a necessidade de estudar o assunto, de forma a entender melhor as mudanas fisiolgicas que se manifestam de maneira diversa em cada mulher. Minha preparao como coach estava em formao.

O convencimento era provavelmente a nica ferramenta de

63

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

que dispunha para construir o verdadeiro comprometimento. Eu me esforava para convencer as jogadoras de que era prciso participar, tornar-se cmplice de um projeto que visava a nos tirar da condio inferior em que estvamos. O alto nvel de exigncia nos treinamentos no implicava nenhum mtodo de disciplina excessiva.

Seria intil tentar obrig-las. Era preciso que elas adotassem o objetivo de dar o mximo de si mesmas. E acreditassem sinceramente que tudo aquilo era mesmo o melhor a fazer. Sem comprometimento e cumplicidade, elas continuariam em ltimo lugar.

Sempre soube que no preciso ter sido um grande jogador para se tornar um born treinador. Ter jogado ajuda. Voc j sabe de muita coisa que quem nunca jogou leva tempo para desobrir e compreender. Mas ser que a experincia bastaria para me tornar um born treinador? evidente que no. Tive certeza disso assim que comecei a trabalhar no Perugia.

Meus primeiros tempos na Itlia no foram nada fceis. Minha famlia s chegaria meses depois. Sozinho, eu dedicava os dias aos treinos e as noites aos livros e aos vdeos. Mais uma vez eu pensava em como meu pai incutira em mim o hbito de ler - recordava-me de um grande nmero de livros sobre sua mesa e de como me impressionava a idia de que ele conseguia dar conta de vrios ao mesmo tempo. Ler como verdadeiro sinnimo de estudar e garantir uma boa formao profissional, no importa a carreira que se abrace.

J que eu tinha aceitado a nova funo, apeguei-me a ela como se fosse uma misso. Trabalhar duro, estudar muito, para que eu pudesse realizar meu objetivo. No me refiro s vitrias

64

UMA AVENTURA ITALIANA

e sucessos, mas a fazer tudo o que meu potencial, fsico e mental, permitisse. Foi isso o que busquei nos livros que relatavam experincias bem-sucedidas em diferentes reas.

EU TRABALHEI TANTO E TO BEM QUANTO PUDE,

E NINGUM PODE FAZER MAIS DO QUE ISSO.

CHARLES DARWIN

Comecei, na poca, a formar uma biblioteca variada, corn nfase em livros sobre estratgias, projetos e gesto de pessoas. Minha grande questo era: que conceitos e fundamentos precisaria aplicar para trabalhar no Perugia? Eu queria desesperadamente aprender a fazer de um novo treinador um born treinador.

Um dos muitos livros que li na rea de esportes, When Prie Still Mattered (Quando o orgulho ainda contava), narra a trajetria do grande Vince Lombardi e suas qualidades de liderana, conduo e formao de equipes. Lombardi foi um dos maiores treinadores de futebol americano. Comeou em 1949, como tcnico de defesa do time da Academia Militar de West Point, que tinha como treinador principal o lendrio Earl Colonel Red Blaik, famoso por sua extrema rigidez nos treinamentos. Colonel Red pregava esta mxima: Quanto mais voc sua no treino, menos sangra no campo de batalha.

Mais tarde, Lombardi tornou-se treinador e levou o Green Bay Packers a conquistar os dois primeiros ttulos do Super Bowl. Muitas das idias expostas em seus livros valem para qualquer esporte. What It Takes to Be # l (O que preciso fazer para ser o n. 1) e The Lombardi Rides (As regras de Lombardi), por exemplo, mostram as suas regras de ouro. Uma delas defende que o treinador s brilha corn o brilho dos seus atletas e que a

65

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

maior vitria v-los campees - idia que se confirma pela regra dos Jogos Olmpicos de no se conferirem medalhas aos treinadores. Para mim, a grande vitria de um treinador tocar a alma de seus atletas e contribuir para o seu desenvolvimento.

O objetivo maior de quem treina uma equipe desenvolver talentos. Muito mais do que ensinar, ajudar a aprender. Era o que Lombardi punha em prtica treinando seus times de forma realmente obsessiva. Um dia, numa entrevista, um reprter perguntou a um jogador do Packers como ele agentava trabalhar corn um intransigente, um fantico, um louco. O jogador respondeu: Ele no nada disso. Pelo contrrio, um cara muito correto, muito justo, que trata todo mundo igual... como cachorros.

Outra frase atribuda a Lombardi Winning is not everything, it is the only thing, que pode ser traduzida por Vencer no tudo, a nica coisa. Ele se defende dizendo que a frase no era essa, e sim Vencer no tudo, mas dar tudo pela vitria a nica coisa que importa.

Lombardi acreditava que ter sucesso fazer o melhor, nada menos que isso, o que pode ou no levar vitria sobre um adversrio cujo melhor, eventualmente, seja superior. A derrota nessas circunstncias, ao contrrio do que em geral se pensa, no tem sabor de fracasso.

Outro livro que me inspirou foi O jogo interior de tnis, de W. Timothy Gallwey. Isso mesmo. Tnis. A quem estranhar possa, digo que h algumas questes que mostram as semelhanas entre o tnis e o voleibol. A primeira que no h contato fsico, pois a rede separa os adversrios e, portanto, no h como impedir que o seu oponente jogue. A nica forma de super-lo sendo mais eficiente que ele. preciso tambm ocupar espaos, caso contrrio o adversrio pontuar.

66

UMA AVENTURA ITALIANA

O mesmo acontece no mundo corporativo: no h como impedir que seu concorrente produza resultados. A nica forma de venc-lo sendo mais eficiente nas prprias aes e ocupando espaos, caso contrrio ele o far.

No vlei como na vida h uma forte confluncia de conceitos, idias e comportamentos. Sob esse aspecto, curioso perceber a apropriao at mesmo da terminologia tcnica. Cada vez mais as empresas querem ter coaches entre seus colaboradores, enquanto o esporte amplia a concepo do tcnico chamando-o manager. Maior exemplo de sinergia, impossvel.

Gallwey d uma nova dimenso ao termo:

COACHINC UMA RELAO DE PARCERIA QUE REVELA

E LIBERTA O POTENCIAL DAS PESSOAS DE FORMA A

MAXIMIZAR SEU DESEMPENHO.

A partir dessa definio, todos queremos de alguma forma estabelecer parcerias desse tipo corn quem est nossa volta.

interessante notar que a palavra coach, muito usada pelos departamentos de recursos humanos das empresas, no tem sua origem no mundo esportivo, mas nas carruagens que transportavam pessoas, correspondncia e dinheiro no Velho Oeste americano, as stage coaches. Em espanhol, coche tambm quer dizer conduo, transporte ou veculo, o que confirma que o esporte tomou emprestado esse conceito para definir a figura do coach

- o tcnico que conduz a equipe, levando-a de um estgio a outro, mais apurado tcnica, fsica e psicologicamente.

H ainda um livro sobre tnis muito interessante: Winning Ugly (Ganhando feio), de Brad Gilbert, treinador responsvel pela volta de Andr Agassi ao topo do ranking. Ele conta como

67

p^l

TRANSFORMANDO SUOR EM OURO

conseguiu vencer jogadores muito mais fortes que ele graas a sua perseverana, obstinao e um treinamento radical, caractersticas que fizeram dele um excepcional treinador e motivador.

A impresso que, ao menos num ponto, os treinadores pensam igual: s talento no basta. Esse termo aparece constantemente nos livros sobre esportes. corn vrias definies e em vrios contextos, mas sempre como fator no decisivo. Importante, mas muitas vezes secundrio. A vontade de vencer, ou melhor, a vontade de se preparar para vencer o complemento indispensvel ao talento.

H exemplos histricos de equipes de superatletas que no obtiveram resultados altura do que se esperava deles. Em The Last Season: A Team in Search of Its Soul (A ltima temporada: um time em busca de sua alma), Phil Jackson relata que, aps os seis ttulos conquistados corn o Chicago Bulls entre 1991 e

1998, ele se transferiu para o Los Angeles Lakers, onde, aps duas temporadas vitoriosas, acabou perdendo em 2003 para o Detroit Pistons, uma equipe corn menos talentos individuais.

Detalhe: o Los Angeles Lakers tinha duas das maiores estrelas do basquete americano, Shaquille ONeal e Kobe Bryant. O que faltou ento? Esprito de equipe, de unio, a tal energia coletiva que leva vitria. Sem isso, o que se viu foi um time em busca de sua alma, de sua identidade, como bem definiu Jackson, que reconhece ter sido incapaz de transformar os dois talentos num verdadeiro time.

Talento, sucesso, unio, liderana, empenho, esprito de equipe, motivao, tudo isso tratado nas pginas desses livros escritos corn as tintas da experincia prtica - e no apenas

68

UMA AVENTURA ITALIANA

terica - de seus autores. Em nenhum deles, porm, encontrei esses fatores to perfeitamente combinados como no trabalho de John R. Wooden, outro personagem mtico do basquete americano. Em On Leadership (Sobre liderana) e Pyramid of Success (A Pirmide do Sucesso), ele mostra como se tornou um colecionador de ttulos, um construtor de times e um formador de craques, entre eles o extraordinrio Kareem AbdulJabbar.

Como se sabe, o basquete nos Estados Unidos tem quase a mesma fora do futebol no Brasil. uma paixo nacional, atrai multides e mobiliza milhes de dlares. Treinador e professor da Universidade da Califrnia (UCLA), Wooden comeou a esboar seu mtodo de trabalho em 1934, quando lhe ocorreu que o sucesso podia ser visto como um edifcio construdo a partir da superposio de blocos de pedra.

F /f** PACINCIA

COMBATIVIDADE

HABILIDADE

INTEGRIDADE

CONFIABILIDADE

ADAPTABILIDADE

HONESTIDADE

A PIRMIDE DO SUCESSO

AMBIO

SINCERIDADE

69

TRANSFORMANDO