trajetorias de residentes no lar vicentino - patricia redigolo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE – UFAC PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE AREA DE CONCENTRAÇÃO: CULTURA E SOCIEDADE
DIÁLOGOS, VOZES E DESLOCAMENTOS SOCIAIS: TRAJETÓRIAS DE RESIDENTES DO LAR VICENTINO,
EM RIO BRANCO – ACRE
Rio Branco, Acre, 2011
REDIGULO, P. C., 2011.
REDIGULO, Patrícia Carvalho. Diálogos, vozes e deslocamentos sociais: trajetórias de residentes do Lar Vicentino, em Rio Branco - Acre. Rio Branco: UFAC, 2011. 119f.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC
Marcelino G. M. Monteiro – CRB 11ª - 258
R317d Redigulo, Patrícia Carvalho, 1973-
Diálogos, vozes e deslocamentos sociais: trajetórias de residentes do Lar Vicentino, em Rio Branco - Acre / Patrícia Carvalho Redigulo -- Rio Branco : UFAC, 2011.
119f. : il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade) – Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre - UFAC.
Orientador: Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.
Inclui bibliografia
1. História oral - Acre. 2. História da vida. 3. Residentes em asilo. 4. Cultura e memória. 5. Linguagens e identidades I. Título.
CDD: 907.2098112
CDU: 907.2(811.2)
PATRICIA CARVALHO REDIGULO
DIÁLOGOS, VOZES E DESLOCAMENTOS SOCIAIS: TRAJETÓRIAS DE RESIDENTES DO LAR VICENTINO,
EM RIO BRANCO – ACRE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras: linguagem e identidade, da Universidade
Federal do Acre, como critério parcial para a obtenção do
título de Mestre em Letras, sob a orientação do professor
Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.
Área de Concentração: Cultura e Sociedade.
Rio Branco, Acre, 2011
PATRICIA CARVALHO REDIGULO
DIALOGOS, VOZES E DESLOCAMENTOS SOCIAIS:
TRAJETÓRIAS DOS RESIDENTES DO LAR VICENTINO,
EM RIO BRANCO - ACRE
Dissertação apresentada à Universidade Federal do Acre – UFAC,
para obtenção de título de Mestre em Letras, junto ao Programa de
Pós- graduação em Letras – Linguagem e Identidade, área de
concentração: cultura e sociedade.
Aprovada em 26 de outubro de 2011.
Banca
Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque – UFAC/MEL
Orientador
Prof. Dr. Agenor Pacheco Sarraf – UFPA
Profª. Drª. Luciana Marino do Nascimento – UFAC/MEL
Profª. Drª. Andréa Maria Favilla Lobo – CELA/UFAC
RIO BRANCO, ACRE, 2011
Para Eduardo e Sofia.
À memória dos meus amados e inesquecíveis avós:
Adelina Grazini Redigolo e José Raimundo Redigolo,
Filomena Rocatti Carvalho e Moisés de Carvalho. “onde mora minha infância...”
Aos meus pais: Nancy de Carvalho Redigolo
e Vivaldo Redigulo. “trajetórias que me constituem...”
AGRADECIMENTOS
Como percorrer um caminho, fazer uma viagem ou uma descoberta sem
a presença de companheiros, de bons companheiros? Em uma viagem rumo
ao desconhecido com quem devemos nos acompanhar? Respondo: dos
corajosos, dos generosos, dos perspicazes, dos criativos, dos esperançosos e
dos sonhadores.
Não fiz esta viagem/pesquisa sozinha, estive sempre cercada de ‘gente’,
de pessoas que ajudaram e mostraram caminhos. Suas presenças são
definitivas e definidoras em minha jornada. Essas pessoas estão comigo,
através de sonhos, vozes, gestos, afetos, imagens, sons e aromas. “Por que
jamais estamos sós. Levo comigo e em mim certa quantidade de pessoas que
não se confundem” 1 Elas são parte do que sou, compõem parte dos meus
olhares e escolhas. A essas pessoas minha gratidão e afeto.
Aos Sujeitos da pesquisa: Ivan José de Oliveira, Tereza Capóia, Carlos
Costa, Nergino Eustáquio Silva, Antonio Batista, Fausto Pessoa de Araújo,
José Francisco Carvalho, João Bento da silva. Meus amigos, muito obrigada!
Os melhores interlocutores: andamos pelos mesmos caminhos, juntos! A vocês
a minha mais profunda gratidão e afeto. Obrigada, obrigada, obrigada! Pelos
gestos de generosidade e carinho, pela atenção e paciência, pela presença
participativa em minha vida, por constituir e construir este estudo ao meu lado,
“ombro a ombro”. E mais além... A força, o olhar, a confiança, os sentimentos e
as sensibilidades com que me enlaçam e me encorajam a seguir.
Ao Professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque, meu orientador.
Foram suas aulas apaixonadas e apaixonantes que me levaram a procurar
novos caminhos. Sua sensibilidade em me sugerir novas “rotas”, outros
“rumos”; mais significativos e transformadores; sua generosidade e postura
política são fermentos desta pesquisa.
Ao Professor Dr. Agenor Pacheco Sarraf, da UFPA, meu co-orientador,
vindo das “terras das águas”, me ouviu com atenção e interessou-se por minha
pesquisa, nos “instantes” em que nos encontramos, aqui e além... Sugerindo
1 Halbwachs, M. Memória Coletiva. 2006, pp.30
caminhos, leituras e abordagens. Sim, “narrar é um processo de cura!”
Obrigada!
À Professora Drª Luciana Marino do Nascimento, da UFAC, pela leitura
cuidadosa e generosa sobre meu texto. Pelas palavras sinceras e pelo seu
compromisso com a pesquisa
Aos Meus Professores: Prof. Dr. Vicente Cerqueira; Prof.Dr. Henrique
Silvestre Soares; Profª Drª Verônica Kamel; Prof. Dr. Francisco Oswanilson
Veloso.
Aos meus Companheiros/estudantes da turma 2009, Que jornada! Muito
obrigada.
À Raquel Alves Ishii, minha parceira no Estágio Docência no Curso de
Artes Cênicas: Teatro da UFAC, ministrando a disciplina: Culturas e
Identidades Contemporâneas, ano de 2010. Obrigada pela experiência no
Conselho Universitário/UFAC e pelo incentivo para encontrar a “orientação”
atuante e significativa.
À Gislene Maria Chalub Ribeiro do Santos, coordenadora do lar
vicentino, aos funcionários, enfermeiras e professora de arte-educação, meus
agradecimentos. Ao Dr. José Rosas Paulino diretor do HOSMAC e toda sua
equipe. À Lourdes Araújo, responsável pelo arquivo médico e estatístico –
SAME/ HOSMAC, essas pessoas autorizaram minha entrada no HOSMAC e
disponibilizaram os documentos solicitados para o referido estudo.
À Universidade Federal do Acre, instituição educacional onde tive a
oportunidade de exercer um direito e também uma vontade. Sendo, portanto
um espaço eminentemente político, onde se travam lutas e enfrentamentos,
criam-se aprendizagens e possibilidades e se busca incansavelmente o
compromisso ético e o fortalecimento de sua atuação junto à comunidade. Meu
sincero agradecimento.
Ao meu amado Dudu, obrigada por você ser quem é. Por sua coragem,
inteligência, dedicação, afeto e humor. Por sua generosidade e sensibilidade
partilhada a cada dia; pelos olhares, gestos e palavras que devem ser ditas,
que nos ajudam a re-fazer caminhos e nos mostram quem - somos, quem não -
somos e quem podemos - ser. “Let it be!” Eis a questão! Lembra o que você
disse? “Vamos repetir coisas boas!”. Coisas boas que renascem: o sempre de
novo – “o eterno retorno” de Nietzsche. Sim, sim, sim...
À Sofia, minha filha amada, no tempo de cronos e no tempo de aión: “a
intensidade do tempo da vida humana, destino, duração, temporalidade não-
numerável nem sucessiva, intensiva: seu reino é o de uma criança”. (Heráclito)
À Adelina Grazini Redigolo e José Raimundo Redigolo, Filomena Rocatti
Carvalho e Moisés de Carvalho, meus avós, eternos companheiros de viagem,
a força do exemplo, da alegria, da palavra e do aconchego. Em suas casas eu
vivi e “re-faço” a infância. Experimentei os sabores, aromas, sons e gestos...
Sensações e emoções que constituem parte de que me tornei, e do que mais
tenho saudade, para onde me volto sempre.
À Vivaldo e Nancy, meus pais. Natália e Ricardo, meus irmãos. Eterno
movimento, de ir e vir: há sempre algo a fazer, aonde ir, o que sonhar, pra onde
olhar, o que se tornar... Trajetórias, (des) aventuras, viagens, “mudanças”, o
vir- a- ser que nos transforma e constitui. Obrigada.
À Irma Inês, Lucinéia, Maria Helena e José Alberto, tios e amigos
queridos. Obrigada por nutrir de afeto, palavras, viagens, passeios e livros
minha infância e adolescência. “I believe in angels. Something good in
everything I see.”
RESUMO
Esse estudo inscreve-se no campo da História Oral, tem como objetivo a
relação intersubjetiva produzida na entrevista entre os sujeitos pesquisados e o
pesquisador, através do diálogo, do “encontro” (CALDEIRA, 1992) entre os
sujeitos. A pesquisa se realiza no “território” do Lar Vicentino, asilos para
idosos, na cidade de Rio Banco, estado do Acre. Tendo como entrevistados
nove sujeitos-participantes, oito homens e uma mulher, residentes no lar.
Lançando mão da metodologia da história oral (PORTELLI, 1996), através de
entrevistas não estruturas; procuro registrar e interpretar as trajetórias, as
análises críticas, e, os deslocamentos sociais vivenciados por esses sujeitos
sociais, por meio do relato de suas “experiências vividas”, na construção de
sentidos e significados de suas vidas, a partir do tempo presente (SARLO,
2003, 2007). Durante as entrevistas - os depoentes e a pesquisadora
descobrem ou re-descobrem caminhos e possibilidades de reflexão com suas
condições de “exilados” em meio a um ambiente urbano que muda
vertiginosamente. Nessas reflexões, mudam o curso de suas intervenções e
expectativas pré-estabelecidas, “tecendo suas histórias de aventuras, sonhos,
trabalhos, amores perdidos, famílias desfeitas”. Na condição de “viajantes que
suportam este deslocamento” (BENJAMIN, 1994), “solitários”, mas não
arrependidos, aceitam pagar um tributo à “velhice” e seus significados na
sociedade moderna (BOSI, 1991, 2003, 2007) Nesse sentido: “a linguagem
liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu
esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum.” (SARLO,
2007) O passado, para os sujeitos da pesquisa, é presente e pode ser re-
atualizado a cada conversa, cada encontro onde se apresentam, sem pudores,
moralidades ou receios, pondo-se a dialogar e refazer caminhos trilhados.
Palavras - chave: história oral, entrevista, residentes de asilo, Lar Vicentino
em Rio Branco, Acre.
ABSTRACT
This study performs in the Oral History field, it has as an objective the
intersubjective relationship produced during the interview between the
interviewer and the respondents, using the dialogue, the "meeting" (CALDEIRA,
1992) between the subjects. This research happens in the nursing home called
Lar Vicentino, in Rio Branco, Acre. In the interviews there were nine
respondents, eight men and one woman, all residents of Lar Vicentino. Making
use of the Oral History Methodology (PORTELLI, 1996), through unstructured
interviews, I try to register and understand the trajectories, the critical analysis
and the social displacements experienced by these social subjects, reporting
their experiences, during the period while they were creating a meaning for their
lives, from the present moment (SARLO, 2003, 2007). During the interviews the
respondents and the researcher discover or rediscover the ways and
possibilities of reflection in the exiled condition and in a urban environment that
changes dizzily. In these reflections, they change the course of their
interventions and pre-established expectations, "weaving their adventure
stories, dreams, work, lost loves, broken families". In a condition of "travelers
that resist this displacement" (BENJAMIN, 1994), "lonely", but not regretted,
they accept paying a tribute to the "old age" and their meanings in the modern
society (BOSI, 1991, 2003, 2007). This way: "The language liberates the mute
aspect of experience, redeems it of its immediacy or of its omission and
changes it in something communicable, something usual or ordinary"(SARLO
2007). The past, for the subjects in the research, is present and it might be
updated again in each talk, each meeting, without any shame, morality or fears,
and always trying the dialogue and remake the paths taken.
Key words: Oral history, interview, nursing home residents, Lar Vicentino in Rio
Branco, Acre.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 13
CAPITULO I
Caminhos de memórias 24
CAPÍTULO II
Lar dos Vicentinos: cartografias físicas e imaginárias 60
CAPÍTULO III
Um lugar para morar é um lar? 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre renascimentos e curas: o novo 109
FONTES DE PESQUISA 112
REFERÊNCIAS 113
13
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... Lembrava-me do tempo que gastava dizendo e
redizendo, olhos fechados, caderno nas mãos:
Inglaterra, capital Londres, França, capital Paris.
Inglaterra, capital Londres. “Repete, repete que tu
aprendes”, era a sugestão mais ou menos
generalizada no meu tempo de menino. Como
aprender, porém, se a única geografia possível era a
geografia de minha fome? A geografia dos quintais
alheios, das fruteiras – mangueiras, jaqueiras,
cajueiros, pitangueiras –, geografia que Temístocles –
meu irmão imediatamente mais velho do que eu – e
eu sabíamos, aquela sim, de cor, palmo a palmo.
Conhecíamos os seus segredos e na memória
tínhamos os caminhos mais fáceis que nos levavam
às fruteiras melhores (Paulo Freire, Cartas a Cristina).
Sob a inspiração das palavras doloridas e candentes do velho mestre,
acionando os entrecortes de suas lembranças, como referenciais de
ensinamentos para nossas trajetórias cotidianas, apresento este estudo. Um
estudo que trata de descobertas, procuras e muitos encontros com pessoas
dispostas a dialogar, pensar, sentir e falar de si, de suas experiências vividas e
sonhadas. Trata-se de um exercício de aprender a ouvir, a escutar o outro, a
empreender “uma aventura, uma exploração” (CALDEIRA, 1992, p. 66), como
um viajante que sai em busca do desconhecido e enfrenta a condição de não-
saber, não - conhecer e assim apreender outros modos de vida, outras culturas
e experiências.
O diálogo e a escuta das histórias de vida, dos sujeitos sociais,
moradores do Lar Vicentino, em Rio Branco, capital do estado do Acre,
constitui o “campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias”
(PORTELLI, 1997, p.60) no qual inscrevo minha pesquisa. Nesse lugar se
apresentam conflitos, disputas e descontentamentos, compondo os diferentes
modos de pensar, sentir e ser. É esse o território que descobri - e me descobriu
- para realizar um estudo sobre a constituição do sujeito, sobre a experiência
14
individual e coletiva e, sobretudo, sobre apreender as diversas culturas, no
conflituoso campo da “cultura popular” (HALL, 2003, pp.245-246)
Os sujeitos-participantes da pesquisa2 são pessoas que autorizam
minha entrada em suas vidas, que aceitam o convite de compartilhar suas
histórias de vida e suas experiências. Assim, vou à busca do que está do outro
lado, o desconhecido, as diferenças temporais e culturais, as diferenças de
mundos. Encontro pessoas generosas dispostas a me auxiliar nessa “viagem”.
Nessa condição, considero importante o diálogo com Tereza Caldeira,
para quem o aprendizado de outra cultura é feito de uma “maneira não-
sistemática e fragmentada (...) falando, ouvindo, observando, vivendo, juntando
significados para se formar uma interpretação” (CALDEIRA, 1992, p.69). É,
pois, um processo de conhecimento, de abertura para o novo e o desconhecido
que demanda disponibilidade para estar junto, presente na vida das pessoas.
Nessa relação não se pode prever ou pressupor os “resultados” ou as “metas a
serem alcançadas”. Pois a cada dia, a cada encontro estão presentes infinitas
possibilidades de descobertas, desafios e aprendizagens.
Ao escolher dialogar com essas pessoas sou interpelada, convocada a
sair de um lugar conhecido e confortável e me lançar para o desafio de
compreender as vidas dos meus entrevistados, aprender a ouvir, observar,
interpretar e analisar, tendo consciência que tecendo os fios de suas memórias,
narrando, contando e recontando, uma pessoa já está interpretando
(PORTELLI, 1997, p.57).
Vidas e experiências diversas, vividas em muitos lugares e maneiras
diferentes, ou seja, memórias reconstruídas, atualizadas pela rememoração, no
trabalho de reinterpretar suas vidas a partir de complicadas relações familiares,
com duras e sofridas separações, influenciadas pelas condições sociais,
políticas e econômicas, que marcam suas trajetórias; as migrações e os
trabalhos. Enfim, são memórias de trajetórias históricas que se entrelaçam nos
caminhos e descaminhos da vida.
O passado é presente e pode ser atualizado a cada conversa e encontro
onde se apresentam sem pudores, moralidades ou receios, pondo-se a
dialogar e a refazer, no tempo da memória, os caminhos trilhados, lembrados.
2 Protocolo de pesquisa nº 23107.019644/2010-69 de acordo com a Resolução 196/96 do CNS/MS. Aprovação do Comitê de Ética/UFAC para o desenvolvimento da pesquisa. Datado em 21/03/2011.
15
Nesse processo, pesquisadora e sujeitos/objetos da pesquisa “mergulham” na
experiência do vivido e do sonhado; juntos se transformam e transformam em
palavras os sonhos não realizados, criam/recriam espaços e temporalidades,
na esteira daquilo que é pensado por Beatriz Sarlo, quando afirma que “a
linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a do seu imediatismo
ou do seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum.”
(SARLO, 2007, p.24).
Na tentativa de compreender os mundos dos sujeitos pesquisados e
escrever sobre estes (sujeitos e mundos), procuro evitar o olhar daquele que
está de fora, aquele olhar de piedade, lamento ou nostalgia, bem como evitar o
olhar excessivamente combativo, ou seja, àquele que vê apenas sofrimentos,
injustiças e mazelas.
Para tanto, me coaduno com os meus entrevistados, faço da minha
experiência, um aprendizado, ou seja, “um intercambio de papéis na relação do
observador e do observado” (PORTELLI, 1997, p. 60) descobrindo nas
entrevistas, com os sujeitos da pesquisa uma “troca” de saberes e vivências.
Olhares que se entrecruzam e se entrelaçam; gestos e palavras que se
misturam e se transformam a cada novo encontro.
Nessa direção, cartografando itinerários, sonhos e desejos ou
percorrendo caminhos das memórias, surge a necessidade de pensar a
pesquisa como: um encontro dinâmico entre partes que começam sendo estranhas umas às outras, mas que vão se entrosando e acabam descobrindo coisas novas (...) a minha interpretação sobre essa participação não é criação exclusiva minha, mas o resultado da troca que eu estabeleci com elas (sujeitos da pesquisa) (CALDEIRA,1992, p.75).
Ao produzir um documento oral, há que se levar em conta as
subjetividades presentes na relação pesquisador-entrevistado ou entrevistado-
pesquisador. Nessa relação, o que se produz depende da interação dos
sujeitos, do diálogo que se estabelece. Na convivência e na produção de
documentos orais, ocorre uma troca entre os sujeitos, uma relação de
reciprocidade se estabelece “uma visão mútua (...) há sempre dois temas para
uma situação de campo em que papéis do observado e do observador são
mais fluidos do que poderiam aparentar à primeira vista” (PORTELLI, 1997,
p.64)
16
Ronald Greele propõe que se examine a entrevista da história oral como:
“uma narração conversacional”, criada conjuntamente entre entrevistador e
entrevistado, contendo um conjunto inter-relacionado de estruturas (literárias;
sociais e ideológicas), através das quais se estabelece o “marco político” em
que a entrevista está inserida.
No entanto, anterior a qualquer “teorização” sobre: a entrevista na
história oral é necessário compreender de modo peremptório que estamos em
conversação com pessoas, como alerta Portelli (1997). E essas, jamais devem
ser vistas como objetos de análise, a espera de uma classificação,
quantificação, ordenamento e análise.
Deve-se se levar em conta a vida de cada pessoa com a qual
conversamos e convidamos a participar da pesquisa, e, sobretudo, como a
pessoa narra e filosofa a própria vida. Deste modo, considero essa orientação
de Portelli.
As fontes são pessoas, não documentos, e nenhuma pessoa, quer decida escrever sua própria autobiografia (...) quer concorde em responder a uma entrevista, aceita reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que possam estar à disposição da filosofia de outros. (PORTELLI, 1997, p.60).
Nessa perspectiva, a produção do documento oral leva em conta a vida
das pessoas, a relação do pesquisador/pesquisado e a maneira como as
pessoas falam de si, como contam suas vidas, interpretam e lêem suas
próprias histórias e experiências. Aí está um ponto fundamental para o
pesquisador: observar e perceber como as pessoas entrevistadas falam, vivem
ou se expressam a partir de suas culturas. Nessa atividade o compromisso
ético do pesquisador passa a ser condição indispensável para seu bom
desempenho.
Concomitante à dimensão ética, há a dimensão política inscrita no
exercício da pesquisa. O pesquisador faz escolhas; o que vai pesquisar, onde,
com quem vai dialogar. A função política está presente tanto nas escolhas do
pesquisador, como nas escolhas dos sujeitos pesquisados.
A função política está presente em toda a narração pessoal (...) a política de sua experiência concreta, suas escolhas, decisões, atitudes e ações; como realiza sua relação com o outro, com o
17
mundo, como se conduz pelo mundo nas relações e em suas produções (LANGELLER apud Greele, 1985, p.112).
Para Leite (2007) a produção do documento oral é uma operação
histórica articulada com o olhar político do pesquisador, com o espaço das
representações do entrevistado, a partir da experiência humana no tempo,
tecendo no relato individual as tramas com as relações sociais das quais faz
parte – em um viés evidentemente político.
A partir de outra perspectiva, Sarlo diferencia o olhar político do olhar
histórico, pois, este, é o olhar que organiza, arruma, oficializa uma única versão
da história; ordena linearmente, de modo cronológico e evolucionista. A autora
nos convida à olharmos as artes com o “olhar político”: uma arte produzida por
um sujeito histórico que “toma partido”, que produz a partir de um lugar, de um
tempo. O olhar político busca o que ficou às margens, o que não foi contado, o
que foi escondido, busca as “fissuras” – outros lugares, outra perspectiva abre
espaços “virtuais” da possibilidade de diálogo (SARLO, 1997, p.55)
Sob este olhar, percebo que o diálogo com as pessoas que vivem no Lar
Vicentino não pode ser ingênuo, romântico ou descompromissado. A postura
assumida é a postura ética e política. Não é um lugar para visitas/passeio,
caridades ou proselitismos, embora o lugar sofra cotidianamente a incursão de
grupos e pessoas, que para lá se dirigem com intenções de evangelizar,
doutrinar, educar. É urgente o necessário movimento da empatia, tentar
colocar-se no lugar do outro, suportar o deslocamento. Isso é possível?
Comprometo-me com os sujeitos e os convido a participar desse diálogo.
Meu primeiro contato com o Lar Vicentino tem em “hora e dia marcado”:
18 de dezembro de 2009, qual a hora? O Lar Vicentino é um asilo para idosos,
sendo uma obra social mantida pela Instituição Vicentina a fim de: “abrigar
única e exclusivamente pessoas idosas e carentes, de ambos os sexos, com
idade mínima de sessenta anos e que não possua parentes” (art. 2º do
Regimento Interno do Lar Vicentino). Essa instituição caracteriza-se como uma
“entidade de longa permanência”.3
3 As instituições de longa permanência são locais de acolhimento em regime integral, previstas na proteção social especial de alta complexidade, para atender idosos em situação de abandono ou negligência, em caso de suspensão temporária ou quebra de vínculo familiar e comunitário. As normas de funcionamento para as Instituições de Longa Permanência para Idosos estão especificadas na Resolução da Diretoria Colegiada - RDC Nº 283/2005 e na
18
A primeira vez em que fui ao Lar Vicentino, um novo coordenador estava
assumindo a direção daquela casa, por decisão do Ministério Publico Estadual.
Essa mudança fora provocada porque um grupo de residentes da instituição,
descontente com o tratamento que lhes era dispensado pela administração da
casa, resolveram formalizar denúncia ao Ministério Publico Estadual do Acre
(Inquérito civil nº 016/2009).
Consta nos autos do inquérito que um servidor da instituição e três
residentes denunciaram ao Ministério Publico as irregularidades da
administração do Lar Vicentino como, por exemplo: desvio de doação; não
prestação de contas; posse indevida dos cartões de aposentadoria de alguns
internos; más condições de atendimento e alimentação.
Além das condições físicas precárias e inadequadas do prédio, reinava
todo um descontentamento com a alimentação servida aos residentes. Durante
a pesquisa, os entrevistados manifestaram/manifestam indignação e mesmo
repugnância com relação à alimentação. “aqui eles servem osso”, diz Ivan
Oliveira, meu primeiro entrevistado. E também a insatisfação e a sugestão de
Tereza Capóia: “não tem tempero, a comida é pálida, sem cor, faz de qualquer
jeito, num dá nem vontade de comer. Que vontade de um bife, salsinha na
comida, um pouco de colorau”4. Bem como José Francisco Carvalho que diz:
“tem dias que eu só como pão e banana. Eles fazem uma farofa muita seca,
com a farinha dura, às vezes eu enjôo, e não como”5.
Essas observações feitas por alguns dos moradores da casa,
evidenciam que não são “coitados” ou “vítimas” e sugerem o quanto os sujeitos
estão conscientes ao manifestar sua indignação relativa às condições de
moradia, alimentação e funcionamento daquela instituição.
A instauração de um inquérito civil público a partir de denúncias
formuladas por residentes e um funcionário, demonstra o quanto estes sujeitos
estão comprometidos e atuantes perante as condições de vida que se
apresentam. A relevância dessa situação, às vezes por mim esquecida e pouco
valorizada, foi percebida apenas com a leitura dos autos do processo junto ao Resolução RDC nº 94/2007. Atos relacionados estão determinados na: Lei nº 6437, de 20 de agosto de 1977, que configura infrações à legislação sanitária federal e estabelece as sanções respectivas. Lei nº 10741, de 01 de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Fonte: site institucional da Fundação de Ação Social – Curitiba/PR. 4 Entrevista realizada em 22/12/2009. 5 Entrevista realizada em 05/01/2010.
19
Ministério Público do Acre. Como ignorar uma data que para os residentes
reclamantes é muito significativa? As denúncias e todo o enfrentamento
demonstram o quanto os sujeitos participam e escolhem como querem viver,
como querem e como não querem ser tratados. Não aceitam a suposta
condição de “indefesos” ou “abandonados”.
Vivem no Lar Vicentino cinqüenta e seis pessoas, sendo treze mulheres
e quarenta e três homens, segundo informações dos arquivos da entidade. A
casa é conhecida como um lar para idosos, porém ali residem pessoas em
tratamento de saúde; pessoas que sofreram acidentes de trabalho e doenças
que as impossibilitaram de continuar exercendo suas atividades; pessoas que
ali escolheram viver; e pessoas “levadas” por suas famílias e ou parentes.
Através das entrevistas com esses sujeitos sociais, busco dialogar,
observar, perceber e apreender diferentes relações no campo da cultura.
Mediante suas narrativas e histórias de vida, na análise crítica que realizam ao
falar da vivência no asilo, tento compreender seus “deslocamentos” e as
“negociações com suas rotas”, (SILVA, 2007, p.109) na construção de suas
memórias e identidades. Nesses circuitos, esforço-me por apreender o modo
como foram se constituindo enquanto “sujeitos sociais do asilo”.
A fim de estabelecer vínculos e convidá-los a participar da pesquisa, a
partir do exercício do diálogo, da oitiva com atenção, inaugura-se, pois, um
espaço e um tempo para o encontro. Suas vozes e gestos me acompanham,
aconselham e conduzem minhas escolhas neste estudo. Em cada entrevista
revivo e reinterpreto minha própria trajetória; compreendo os percursos e
trajetórias familiares. E ao ouvir suas narrativas, também realizo um “acerto de
contas com o [meu] passado” (THOMPSON, 1998, p.13).
A narrativa oral, assim como qualquer outra narrativa ou documento
escrito ou imagem requer a imaginação de quem narra. A diferença é que não
se tem a pretensão de ser um relato total, uma “verdade”. As lembranças são
versões do acontecido, olhar de quem viveu determinada experiência
(BENJAMIN, 1994, p.201). Não é a história oficial, constitutiva de uma
identidade nacional; uma tradição, fundadora de lendas ou mitos, ou mesmo a
legitimação de um modo de vida. (SARLO, 2007, p.42).
Nessa direção, podemos apreender a surpreendente
indagação/afirmação de José Bento, um ex-seringueiro de 85 anos, que reside
20
no Lar dos vicentinos: “Se você precisar eu lhe dou a minha recomendação,
pois recomendação vale mais que dinheiro” 6. Com tal recomendação, procurei
trilhar os caminhos das viagens, encontros e desencontros, das trajetórias de
mulheres e homens com quem foi possível estabelecer uma relação nos
moldes, da qual nos fala Eclea Bosi:
Narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão no final um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar quanto o das pessoas ditas importantes (BOSI, 2003, p.61).
Nessa perspectiva, esta dissertação encontra-se estruturada e dividida
em três capítulos. No Capitulo I, apresento os registros do meu diário de
campo, articulado às leituras realizadas para a abordagem da temática.
Também traço um breve histórico do Lar Vicentino, com uma descrição do
ambiente - o espaço físico da casa, a rotina, a organização e seu
funcionamento, e, fundamentalmente apresento a metodologia da pesquisa
construída a partir das relações de troca, dos encontros e dos diálogos com os
sujeitos da pesquisa. Ainda foram incorporadas as questões relativas ao
inquérito civil movido pelo Ministério Público Estadual devido às denúncias
realizadas por um grupo composto por moradores e funcionários do lar
vicentino.
No Capitulo II os sujeitos da pesquisa – meus entrevistados – narram a
experiência de viver em um asilo, interpretam suas histórias de vida e
reconstroem suas memórias a partir do tempo presente. No exercício da escuta
do “outro” e no diálogo com suas próprias interpretações faço a minha
interpretação e análise das vivências no Lar Vicentino.
No Capítulo III acompanho as trajetórias do grupo de mulheres
residentes no lar vicentino. Como se formou esse grupo de treze mulheres,
onde doze dessas foram diagnosticadas com alguma doença mental? Sendo
que seis delas foram encaminhadas e transferidas do Hospital de Saúde
Mental do Acre – HOSMAC para o Lar Vicentino. A partir dos documentos
escritos, coletados em prontuários médicos, registros e históricos arquivados
naquele hospital, bem como os dados das fichas de admissão e documentos
6 José Bento da Silva, 85 anos, ex-seringueiro. Entrevista realizada no dia 19/04/2010.
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arquivados nas pastas individuais mantidas pela entidade, procuro encontrar as
vozes “silenciadas” dessas mulheres.
Todavia, antes de qualquer coisa quero apresentar meus entrevistados,
sujeitos da pesquisa. Pessoas que me acolheram e aceitaram participar dessa
aventura, dessa descoberta. Juntos, apreendemos um pouco mais sobre nós
mesmos, a respeito de como nos tornamos quem somos, e, das lutas que
travamos consigo, com os outros sujeitos e com as condições de vida que se
apresentam peremptoriamente perante nós.
Apresento cada sujeito por ordem das entrevistas/encontros realizados.
Ivan José de Oliveira, 62 anos, pernambucano, ex-jogador, zagueiro do
Recife Futebol Clube; ex-bancário; exímio dançarino, apaixonado pela cidade
de São Paulo onde morou por muitos anos. Em virtude de derrame que sofreu,
veio morar no lar vicentino por indicação de seu irmão. Foi casado, tem dois
filhos que residem em Recife. Não tem contato com a sua família. Crítico
contumaz do lar vicentino, das condições de funcionamento, de seu tratamento,
mas principalmente das relações sociais que ali ocorrem. Ivan tem a palavra
certeira, a observação aguda, que por muitas vezes norteou os caminhos que
trilhei neste estudo. Suas indagações fundamentam algumas escolhas da
pesquisa, pois sua voz questionadora aconselha, anuncia, admoesta e pauta
alguns assuntos.
Nergino Eustáquio da Silva, 62 anos, mineiro de Lagoa da Prata. Leitor,
garçom, segurança de rodeios e espetáculos, segurança de transporte de
valores, vigia noturno, guarda de banco, pedreiro, cozinheiro, salgadeiro,
motorista, chefe de almofarixado... Sempre de prontidão. Veio para o Acre
trabalhar na construção da rodovia 364. Veio morar no Lar Vicentino devido
um acidente de trabalho que afetou sua visão. Por não ter contato com sua
família há anos, decidiu residir na entidade para deste modo receber o
tratamento de saúde adequado. Nergino tem uma ‘prosa mansa’, vai
‘enredando’ aquela que o ouve, de voz firme, de timbre grave, profundo,
materializa em sua fala o lirismo, a coragem, a decisão. Não recua diante dos
acontecimentos da vida e em suas palavras: “de um limão faz uma limonada
(...). Nada se perde tudo se transforma. E quando eu sei o lado bom eu vou, eu
não pego nada de graça. Nada cai do céu. Eu não confio em laranja que cai do
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pé pra eu chupar, por que quando ela cai, já cai podre. Eu vou tentar apanhar
ela antes...”
Carlos Costa, 56 anos, amazonense. Pintor predial, marinheiro fluvial de
convés da Companhia dos Portos e Costas do Ministério da Marinha. Reside
no Lar Vicentino em virtude do derrame que sofreu e que o impediu de
trabalhar. Pretende voltar a navegar assim que puder melhorar sua condição
física. Gosta de contar histórias, aventuras que viveu como marinheiro pelos
rios entre Belém, Manaus, Rio Branco e Cruzeiro do Sul.
Tereza Ponce Capóia, 72 anos, paulista. Foi trabalhadora rural,
cortadora de cana, colheu café e algodão. Trabalhou na agricultura no Paraná,
Mato Grosso, Rondônia e Acre. Tereza é mãe, uma mãe devotada ao filho
doente que também vive no Lar Vicentino. Após a morte de seu esposo e de
seu filho mais velho, sua nora vendeu a colônia onde residia, na zona rural de
Acrelândia, município do Acre. Tereza não se adaptou a nova moradia na
cidade; e devido ao agravamento da doença e da necessidade de um
tratamento de saúde apropriado, ambos, mãe e filho passaram a residir no Lar
Vicentino.
Antonio Batista, 83 anos, baiano. Trabalhou como boiadeiro, pedreiro, ‘o
que aparecia’. Partiu da casa dos pais na Bahia e se aventurou nesse
‘mundão’. Afirma que veio para o Acre cumprir uma profecia do Padre Cícero
que disse: “Esse menino ainda vai para na Bacia Amazônica!” e Antonio
exclama: “E eu não tô aqui?”. Da Bahia, andou por Pernambuco, Alagoas, São
Paulo, trabalhou como carpinteiro, e Companhia Ferroviária Sorocabana do
estado de São Paulo. “Andava e trabalhava.” Do interior de São Paulo, foi para
o Paraná, Mato Grosso do Sul, Rondônia e finalmente chegou ao Acre,
cumprindo a profecia. “Meu destino era andar”, e assim cumpriu o que
acreditava ser seu destino. “Aqui no acre que eu fui ter identidade, documento,
registro de nascimento”. Foi catador de latinhas, morador de rua. Agora vive no
Lar Vicentino, o qual considera se tratar de um bom lugar, “aqui tá sossegado”.
Fausto Pessoa de Araújo, 76 anos, cearense. Foi seringueiro,
garimpeiro, e aposentou-se como vigia da Secretaria de Educação do Estado
do Acre. Decidiu vender sua casa e residir no Lar Vicentino. Considera um bom
lugar, para viver. Não se casou, pois não se apaixonou o suficiente para tomar
tal decisão. Fausto é feliz, alegre, brincalhão, ‘gaiato’ como se diz, de bem com
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a vida. Sem nostalgia, tristezas ou arrependimentos conta sua vida e sorri o
tempo todo satisfeito.
José Francisco de Carvalho, 85 anos, negro, mineiro de São Gonçalo do
Sapucaí, sul de Minas Gerais. Devoto de Maria de Nazaré. Na cabeça um
chapéu de palha enfeitado por uma fita rosa, tem cabelos longos até os
ombros. De postura ereta e altiva. Veste-se com elegância: de camisa de
manga longa e calça comprida. Aprecia sentar-se na varanda para conversar e
pensar na vida. Foi boiadeiro, violeiro, militar e atleta, corredor de longa
distância, expedicionário do exercito brasileiro, do batalhão de infantaria de
Pouso Alegre, Minas Gerais “com muito orgulho.” Seus gestos e sua presença
são carregados de uma força simbólica singular, evoca as lembranças de seu
passado com carinho, afeto, delicadeza e alegria.
João Bento da Silva, 85 anos. Cearense. Foi soldado da borracha, ex-
boiadeiro. Reside no Lar Vicentino há mais de dois anos. Gosta de cantar,
conversar, contar histórias e experiências de sua vida, afirma: “Conversar faz
bem, distrai e passa o tempo.” Sua voz é branda e seus gestos são lentos,
delicados, seu olhar é atento e profundo. Sua presença emana uma sensação
de paz, com meiguice me presenteia com as seguintes palavras: “Obrigado. Se
precisar de recomendação, eu lhe dou a minha. Recomendação é melhor do
que dinheiro.”
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CAPITULO I
(...) Os poetas pretendem que reencontremos por um momento aquilo
que fomos outrora quando entramos em determinada casa,
determinado jardim, onde vivemos na juventude. Trata-se de
peregrinações muito arriscadas essas, em cujo término se colhem
tanto decepções como sucessos. Os locais fixos, contemporâneos de
anos diferentes, vale mais encontrá-los em nós mesmos. É para isso
que podem servir, em certa medida, as canseiras seguidas de uma
boa noite de sono. Mas estas, para nos fazerem descer às galerias
mais subterrâneas do sono, onde nenhum reflexo da vigília, nenhum
clarão de memória vem mais iluminar o monólogo interior, se é
verdade que ele mesmo aí não cessa, revolvem tão bem o solo e o
tufo do nosso corpo que nos fazem reencontrar, lá onde os nossos
músculos mergulham e retorcem suas ramificações, e haurindo a vida
nova, o jardim em que vivemos quando crianças. Não há necessidade
de viajar para revê-lo, é preciso descer para encontrá-lo. O que cobriu
a terra não está mais sobre ela, mas abaixo; a excursão basta para
visitar a cidade morta, é necessário proceder a escavações. Porém,
já se verá como certas impressões fugidias e casuais levam muito
melhor ainda ao passado, com uma precisão aguda, um vôo mais
leve, mais imaterial, mais vertiginoso, mais infalível, mais imortal, do
que esses deslocamentos orgânicos. (Marcel Proust. O caminho de
Guermantes. Em busca do tempo perdido)
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Caminhos de Memórias
Momento crucial de transformação de minha pessoa, o encontro com o
“mundo” dos habitantes do Lar Vicentino e com a própria estrutura física e
operacional daquele asilo, reordeno toda a minha trajetória de pesquisa e
mesmo expectativas junto ao Programa de Mestrado em Letras da
Universidade Federal do Acre. Desde o início, organizo um diário de campo7 e,
nesse diário, sigo anotando minhas idas e vindas, meus olhares e
observações, os olhares e observações de meus entrevistados e interlocutores
naquele “lar”, minhas apreensões sobre aquele “mundo” e aquelas práticas
culturais que transformam minha trajetória.
A cada visita realizada, procuro anotar minhas impressões, pequenos
trechos de diálogos, conversas e observações. Também são incorporadas as
conversas prévias com os sujeitos da pesquisa, constituindo o momento em
que me apresento e explico do que se trata a pesquisa e os convido a
participar. Também registro os escritos com os quais procuro uma interlocução
com as leituras que faço, concomitantemente, às entrevistas. Escrevo como os
encontros com os sujeitos da pesquisa me afetam e me mobilizam e, re-
significam os “fatos” da minha vida. Juntos, reinterpretamos nossos passados e
trocamos experiências.
09 de dezembro de 2009.
Ao olhar o Lar Vicentino a partir de dentro, tive sensação melhor do que
quando o via por fora, passando de carro, às vezes com olhar de piedade e
curiosidade. Bem, o fato é que dou o primeiro passo para conhecer as pessoas
que vivem em seu interior.
7Em Tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social (2003), Ecléa Bosi orienta ao pesquisador iniciante que mantenha um diário de campo “a maneira dos etnólogos”, para registrar dificuldades, dúvidas. Considera que as falhas talvez não sejam um obstáculo, mas se compreendidas, podem auxiliar na construção do caminho da pesquisa. Apresento aqui meu diário de campo para compartilhar as dificuldades e o processo inicial de minha pesquisa.
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18 de dezembro de 2009
Chego a casa num momento turbulento, alguns residentes denunciam
ao Ministério Público o mau gerenciamento, desvio de recursos e os maus
tratos por parte da administração da casa.
Encontro com Gislene, enfermeira no lar, há quatro anos. Ela está
agitada, talvez um pouco tensa, pois está assumindo a Coordenação do Lar,
em meio a denúncias e a urgência em tomar iniciativas e resoluções rápidas e
pertinentes naquele momento. Mesmo assim, me atende com interesse e
abertura, sugerindo que eu selecione quais pessoas gostaria de entrevistar; me
indica alguns idosos com Mal de Alzheimer e outros “sofrimentos do corpo”.
Com o objetivo de conhecer o local, decido andar, olhar e observar. Em
meio a esse procedimento, conheço Ivan. Seu quarto fica próximo à
enfermaria. Paro em frente à porta de seu quarto, Ivan imediatamente se senta,
e alegremente me saúda com um: “boa tarde” e, em tom imperativo, me ordena
que entre. De sua cama, próxima à janela, me chama sem rodeios ou
cerimônias. Parece que espera alguém para conversar.
Considero este momento significativo, pois quem me autoriza a entrar é
alguém que vive no local, sente, pensa e fala, a partir desse lugar. Sua
permissão é mais que um convite, ou aceite, mas uma ordem. Sua postura não
é de submissão, vulnerabilidade ou alienação. É a postura de quem aceita o
jogo da relação com o outro; é a atitude de um sujeito que deseja, escolhe e
enfrenta.
Da porta, o cumprimento e explico rapidamente sobre o que venho tentar
fazer: um estudo para colher histórias de vida e experiências vividas. Ivan
anima-se e diz: “você já é história, vai fazer história aqui.” Então, entro e me
sento em sua cama, ao seu lado. Sua cômoda está virada com as gavetas em
direção à cama. Acho isso estranho. Somente depois entendo o porquê. O
quarto está escuro, a luz está apagada, o dia está quente. Ivan não anda, teve
um derrame que o deixou sem os movimentos das pernas e do braço
esquerdo.
Começamos nossa conversa, Ivan fala de si, de sua família, me dá
alguns conselhos, diz para não ter medo, apenas trilhar meu caminho; fala das
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palavras que não são adequadas e outras que são adequadas. Conta da sua
separação, do “vício de fumar” e de alguns arrependimentos.
Por fim, me aconselha a voltar “pisando no freio”, “devagarzinho”, mas
sem receio, pois eu não devo encontrar dificuldades para conversar com os
demais residentes do asilo. Eles podem dizer sim ou não, ou seja, é uma
escolha, e arremata: “Também o que eles têm pra fazer aqui?”
A conversa com Ivan representa um começo simbólico e metafórico –
me dá boas vindas e me encoraja a seguir – percebo que não quer parar de
falar, precisa falar como o narrador benjaminiano, o qual precisa falar e
entregar sua história ao outro. Talvez um modo de garantir a imortalidade e
curar esquecimentos e isolamentos vividos.
22 de dezembro de 2009.
Passo a tarde conversando com Ivan José, 62 anos. Hoje ele parece
agitado, excitado. Está à espera para conversar, demonstra ansiedade.
Lembra-se do meu nome. Ele logo me manda limpar, “sem preguiça”, sua
cadeira de rodas, para que eu me sente e assim inicie a conversa. Começa a
falar, sem preâmbulos, ou rodeios, quer contar, “precisa contar sua vida”. Fala
de seu pai, recorda com carinho e emoção:
Papai tratava a gente bem... Ele tinha uma, uma... Não era mania era costume, se ele chegasse aqui “Boa tarde, boa tarde, boa tarde”. A mão do tamanho de uma raquete. E aí ele fazia assim ó (passa a mão no alto de minha cabeça, com os dedos entre os cabelos) “Tudo bom rapaz?” e em você do mesmo jeito: “Tudo bom moça?” ele tinha esse costume. Um belo dia, de tanto ele fazer isso aqui em mim (repete o gesto) que um belo dia, tinha uma senhora lá amiga dele. Eles se tratavam de comadre, compadre. Não me recordo... Essa dona Neném era espírita, e a dona Neném fez uma reunião espírita. E ele tava lá! Em espírito. Adivinha quem apareceu? Como se diz na gíria “quem baixo lá?” Assim que chego eu vi logo, fez logo assim em mim (repete o gesto), e eu disse: “Papai?” Eu tava numa sessão espírita. Papai já tava lá, no lugar dele, cuidado por Deus. Ele logo manifestou (...) Ixe! Afe Maria! Sim senhô!
Ivan procura reconstruir esse momento visivelmente emocionado, com
uma devoção filial tocante. Vê seu pai como um herói, uma pessoa educada e
elegante. Imagem essa que sinaliza um caminho sobre o mundo em que foi
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criado, o ambiente letrado, de uma “família educada, culta, estruturada” e de
relações familiares permeadas pela admiração, afeto e proteção.
Talvez a lembrança do pai vá além dos laços parentais, podendo
simbolizar e representar à origem, o início, a herança, o sonho de
pertencimento, e, além disso, um acalento, um conforto em poder reafirmar o
pertencimento a uma família, um lar, a uma classe social; às experiências
valorizadas, como: freqüentar boas escolas, viajar, usufruir dos bens culturais.
O que se contrapõe à sua atual situação, hoje, morador de um asilo, onde falta
a presença da família, da proteção de um ‘pai’ que passe a mão em sua
cabeça, acaricie seus cabelos e lhe pergunte: ‘Tudo bom, rapaz?’
Ao recordar ou rememorar sua trajetória, Ivan atualiza “acontecimentos”
que lhe foram e são significativos. Sua narrativa atravessa lembranças que dão
sentido à sua existência. Fala de quando jogou na inauguração Estádio do
Ceará, no governo de César Cals8. Em certo momento, silencia e, logo indaga
se eu conheço tal governador. Frente a minha negativa, dispara firme: “tá lendo
pouco! A senhora, formada, bonita, cabelo bom, branca, tinha que conhecer”.
Mais uma vez Ivan surpreende os limites de minha pesquisa, pontuando
que o lugar de onde fala o depoente, é também o lugar de sua condição étnica,
especialmente, porque vivemos em um país marcado pela fratura social, pelo
preconceito, racismo e discriminação. “Formada, bonita, cabelo bom”, são
“qualificativos” de algo constituída historicamente como a “imagem ideal”, em
oposição ao “sem saber, feio, cabelo ruim”. Ivan não deixa espaço para dúvida,
ao finalizar com: “branca”, oposto do “outro”, o “preto”, “índio”, “caboclo”,
“mestiço”.
Volto para casa muito cansada, sonolenta, sentindo náuseas. Analiso a
entrevista percebo que não limito o tempo, realizo uma entrevista sem roteiro
prévio, prefiro conversar e permitir que o entrevistado narre livremente suas
lembranças. Pelo meu entrevistado eu ainda estaria lá ouvindo suas histórias.
Ele não deseja interromper a entrevista; eu também não quero deixá-lo,
parece-me que algo pode se partir, se quebrar. Mas, o quê não pode ser
8 César Cals de Oliveira Filho (Fortaleza, 30 de dezembro de 1926 — Fortaleza, 10 de março de 1991) foi um militar, engenheiro, empresário e político brasileiro que foi indicado governador do Ceará (1971 – 1975) no governo Emilio Garrastazu Médici. Foi Ministro das Minas e Energia (1979 – 1985) no governo do João Figueiredo.
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rompido? Talvez seja o medo do rompimento do próprio tempo presente, que
lhe propicia a oportunidade de narrar sua vida a outra pessoa, de refazer
caminhos e reconstruir lembranças, re-atualizando o seu passado.
Ao lembrar, meu entrevistado não está descansando, repousando ou
contemplando sua vida. Nas palavras de Ecléa Bosi (1994): “ele está se
ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma
da sua vida” (BOSI, 1994, p.60) Do presente volta-se para seu passado e
realiza um trabalho, um exercício no qual se reconstrói imagens, sensações,
percepções e sentimentos. Interromper esse fluxo de emoções e pensamento é
romper um tempo, no sentido de intensidade, de força, por isso, o sentimento
de esgotamento físico, no entanto a vontade de permanecer tecendo o diálogo.
No dia seguinte, acordo com uma sensação de “mergulho”, no dizer de
Benjamin (1994, p.205), na vida do narrador. No caso o mergulho foi da ouvinte
que submerge na vida do narrador e de lá retorna transformada, com anseios
de busca e de encontro. Aquela sensação de quando respiramos
profundamente aliviados, como algo que regressa ao seu lugar de origem. De
algo presente, devolvido a alma: ao meu ser, realmente, um reencontro.
Volto de lá modificada, reconciliada comigo mesma. Retorno às
reflexões metodológicas, apreendendo que “quanto mais o ouvinte se esquece
de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido” (BENJAMIN,
1994, p. 205). As construções mentais de Ivan passam a ser minhas, pois as
incorporo em meu repertório de narrativas, conto e reconto o que ouço da boca
do entrevistado, recriando em meu imaginário suas “aventuras” e
“desventuras”.
Durante o processo das entrevistas, percebo que também recordo. A
inter - relação com meus entrevistados faz com que eu também sonhe o meu
passado, o real e o imaginado, de minha própria trajetória, sonhados no
imprevisível momento desse encontro, com habitantes do Lar Vicentino.
Invade-me a lembrança de minha avó materna, cantando pela casa, enquanto
preparava o almoço ou organizava a bagunça da casa em tempo de férias
escolares da molecada:
os sonhos mais lindos / sonhei / de quimeras mil / um castelo ergui / E no seu olhar / tonto de emoção / com sofreguidão / mil venturas /
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vivi / O teu corpo é luz / sedução / Poema divino cheio de esplendor / Teu sorriso prende / inebria / entontece / És fascinação / amor... 9
É a voz de minha avó, a qual ressurge em minhas lembranças e em
meus sonhos, parece ser uma cantora de ópera. Ao ouvir meus entrevistados
contando suas vidas, minhas lembranças também se misturam e se
movimentam, articulam presente/passado, reaparecem sentimentos
esquecidos, imagens de pessoas queridas, sons, aromas e sabores de casa.
Não há tristeza neste ato de relembrar, pois a sensação é de alegria,
reencontro com tempos e espaços antigos. Fragmentos de vida que se
misturam, justapõem-se e participam da construção do presente.
“Parece que eu estou vendo”, diz Ivan, refazendo, recriando seu
passado. Nesse processo, por diversas vezes se emociona, chora, sorri. Às
vezes se cala, pensa em silêncio de profundos significados: “não podemos
contar tudo”, diz e eu penso, talvez não possa lembrar tudo, a memória não
permite excessos, exageros, parece uma proteção contra nós mesmos.
Nessa direção, torna-se importante acompanharmos as questões
formuladas por Alessandro Portelli, para quem a história oral, assim como as
memórias:
Não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imagináveis. A dificuldade para organizar estas possibilidades em esquemas compreensíveis e rigorosos indica que, a todo o momento, na mente das pessoas se apresentam diferentes destinos possíveis (PORTELLI, 1997, p.72).
Ao afirmar que “não se pode contar tudo”, Ivan dá uma pista de que
colhe e escolhe os momentos vividos, elege aquelas, as quais ele julga
“narráveis” aquelas as quais ele pode contar sem danos a si mesmo, pois
relembrar também faz renascer sentimentos a muito sufocados, apagados,
silenciados e esquecidos. O “não se pode contar tudo”, dito conscientemente
9 Nota explicativa: Considero a inter - relação entre o ato de sonhar e seus conteúdos, e, as entrevistas, uma (re) construção de memórias. Nesse sentido Bosi (1994) explica que as imagens do sonho são lembranças: “quanto mais pessoal, mais livre, (isto é, menos socializada, menos presa a ação do presente) for a lembrança, mais distante, rara e fugitiva será sua atualização pela consciência” (p.51) Para Bergson a memória pura, como o sonho e a poesia, está no campo do espírito livre, já a memória-hábito, repetitiva, como a percepção “pura”, relaciona-se ao imediato, atuam como limites da vida psicológica. (idem ibidem)
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por Ivan trata-se de um modo de “censura”, uma demarcação de limites nos
quais estabelece o que e quais temas pode abordar.
Ivan afirma que “nós” não podemos contar tudo, pois o “tudo” envolve
sentimentos e pessoas para as quais elege o silêncio, a fim de protegê-las e
proteger a si mesmo. Entretanto ao “contar” sua vida, as lembranças
“submergem” inesperadamente, o passado vem à tona sem aviso.
O passado é sempre conflituoso (...). Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é invocado por um simples ato de vontade (...). Vinda não se sabe de onde, a lembrança não permite ser deslocada; pelo contrário, obriga a uma perseguição, pois nunca está completa (...). Poderíamos dizer que o passado se faz presente. E a lembrança precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a respeito de Bergson, o tempo próprio da lembrança é o presente, isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio (SARLO, 2007.pp.9-10)
Quais os “limites” da memória de um indivíduo? O quanto é possível
lembrar? A seleção que se faz ao lembrar está ancorada em que critérios? O
que desejo lembrar? O que devo ou preciso esquecer? Ao se interpelado pelas
suas recordações, estabelece escolhas, não apenas sobre o que contar, mas
também, sobre as maneiras de contar. À medida que recordamos,
reconstruímos imagens, acrescentamos detalhes, retiramos outros, atribuímos
outros significados para as experiências vividas. Há realmente limites para tal
processo?
Talvez os limites sejam estabelecidos a partir dessas escolhas, e o que
se deseja esquecer, bem como as influências das condições presentes que
podem estimular tais lembranças ou esquecimentos, impondo deste modo
limites que fazem aflorar e moldar nossas lembranças.
Bergson, através do método introspectivo, realiza um estudo sobre a
memória em si, diferencia a percepção da lembrança, embora considere que a
percepção está impregnada de lembrança, vindo “à tona” a partir das relações
com os processos corporais e atuais da percepção, ou seja, a partir das
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percepções do presente somos surpreendidos por certas lembranças que
afloram no consciente:
Aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais retemos então apenas algumas indicações, meros ‘signos’ destinados a evocar antigas imagens (BERGSON apud BOSI, 1994, p.46).
O passado vem à tona pelos caminhos da memória, mistura-se a
percepções atuais e desloca o modo como percebemos e apreendemos o
presente, “(...) ocupando assim todo espaço da consciência. A memória
aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e
penetrante, oculta e invasora” (BERGSON apud BOSI, p.47). No entanto,
conforme elucida Ecléa Bosi (1994), Bergson não faz qualquer relação entre a
memória e os “sujeitos – que - lembram” não tematiza as questões sociais,
históricas e culturais e sua relação com a memória.
Por que Ivan inicia a entrevista com esse aviso “não podemos lembrar
tudo”? Há uma defesa implícita neste aviso? Ele deseja afirmar que não se
pode contar ou lembrar tudo? Alguns dos seus silêncios podem indicar uma
escolha política e ética, mas, aqui ele também considera o esquecimento um
“articulador” da memória. O entrevistado orienta quem o ouve, informa que
pode não lembrar tudo, não quer lembrar tudo; parece dar conta de que o
esquecimento também faz parte de sua memória. “O campo da memória é um
campo de conflitos” (SARLO, 2007, p.20).
Ao anunciar que não se pode lembrar tudo, Ivan entreabre um campo de
diálogo com os limites e fronteiras para “re-fazer o passado”. Não podemos
esquecer que Ivan é residente de um asilo, não se comunica com sua família,
não recebe visitas de parentes, não anda devido às conseqüências de um
derrame; seu grupo, agora, são os outros residentes e funcionários da casa.
A “subjetividade é histórica” e desse modo apresenta contradições,
diferenças e incongruências, o que não invalida uma narrativa autobiográfica.
Isso implica que devemos considerar as relações históricas e sociais no tempo
em que se produz, bem como a imaginação presente no ato de narrar. “A
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memória, como se disse, coloniza o passado, e o organiza na base das
concepções e emoções do presente” (ROSSI apud SARLO, 2007, p.66).
Além do que, ao tentarmos controlar as nossas histórias de vida, com
uma narrativa cronológica, organizada, progressiva, no intuito de re-ordenar,
controlar e “enquadrar a memória” nos surpreendemos com “reaparições”, com
uma lembrança que vem à tona, de forma incontrolável, desarticulada e
inexplicável, através de um som, uma voz, um aroma, faz acordar algo há
muito esquecido, como as “madeleines” 10 despertam em Marcel Proust, o
passado remoto da sua infância. O esquecimento também é memória, memória
resguardada, afinal “não se pode lembrar tudo”, alerta Ivan.
5 de janeiro de 2010
O clima está quente e abafado. O ambiente agitado, pois há muitas
pessoas visitando a casa hoje. São grupos religiosos: católicos e evangélicos
que estão presentes ali; há também a presença de familiares e parentes dos
residentes na instituição; alguns trazem alimentos, como bolo e refrigerante,
trazem também roupas e móveis. Hoje, reinicia o atendimento fisioterápico.
Noto que há camas hospitalares usadas, doadas por algum hospital, a
coordenadora informa que a doação foi feita pelo Hospital Santa Juliana. A
disposição dos quartos está reorganizada, com a chegada de novos moradores
na casa e com isso ocorreram mudanças de quartos e acomodações. As
camas e as demais mobílias estão reordenadas.
A renovação no quadro de funcionários e de suas funções, as
demissões e presença dos novos contratados parece alterar a rotina da casa;
há uma agitação no ambiente. Converso com alguns funcionários,
especialmente, com Elita, a enfermeira, pois ela demonstra abertura para o
diálogo e motivação ao realizar seu trabalho. A primeira vista ela parece ser
uma pessoa com disposição e afeto, concentrada e atenciosa; conta histórias
de vida de alguns sujeitos da pesquisa e da sua relação com os residentes; diz 10 PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: “Saboreando um biscoito (Madeleine) molhado no chá, sente uma alegria inexplicável e, de súbito, recorda não só dos momentos similares da infância remota, mas (...) todo o período do seu passado que o gosto do biscoito fizera aflorar à sua consciência”. (PROUST, 2004, p.53)
34
que gosta muito de trabalhar ali, fala sobre sua vida atarefada e como passa
mais tempo no lar do que em sua própria casa.
Tereza, uma de minhas entrevistadas, tem uma boa relação com Elita.
Ela permite que a enfermeira a auxilie na organização de seu quarto, como:
arrumar um “cantinho para os retratos da família” e aceita suas sugestões para
comprar móveis novos como um jogo de mesa e quatro cadeiras, armários e
geladeira. Elita e Tereza riem juntas, fazem brincadeiras e conversam.
A situação das mulheres no Lar Vicentino me chama muito a atenção.
São ao todo 13 moradoras, seus quartos são novos e arejados. Essa ala foi
construída recentemente. O espaço reservado às mulheres é visivelmente
superior ao dos homens. Os quartos se abrem para uma varanda, há um
espaço verde com uma árvore e bancos à sombra. O lugar é bastante
agradável, claro, fresco, banhado pelo sol da manhã, acolhedor como, na
imagem idealizada de um lar. Todavia, me chama a atenção o número reduzido
de mulheres comparado ao número de homens e, ainda, a quantidade de
mulheres que são diagnosticadas e tratadas como portadoras de problemas
mentais e físicos. Chama a atenção, por outro lado, a relação afetiva que há
entre as funcionárias e as mulheres que vivem no asilo.
Ivan, em entrevista, afirma sem pestanejar: “só tem louco, nesse lugar.
Aqui não é lugar de louco, mas sim de velho”. A pergunta é: o que estou
procurando lá? Por onde pesquisar as histórias de vida? Rompimento de laços
familiares? Descaso da sociedade que coloca à margem os que não são mais
“úteis”? O que estou procurando?
22 de março de 2010.
Encontro Antonio Batista, sentado com seu “cajado”. Sento ao seu lado,
apresento-me, explico por que estou ali e pergunto se posso entrevistá-lo um
dia desses. Ele diz: “se eu souber responder”. Começamos a conversar e ele
“desata” a falar, sem antes deixar de dizer que não conversa, prefere ficar
calado, na dele. Ele vai falando sobre sua vida com simplicidade e confiança.
Estamos na varanda, de frente para uma rua muito movimentada da cidade de
Rio Branco. Às vezes não compreendo o que ele diz. Pergunto de novo e ele
repete, explicando com calma e paciência.
35
A postura de Antonio, seu andar, seu olhar, a maneira como senta, como
anda, me é familiar. Antonio é um tipo de pessoa como ele diz “na dele”, é
bastante observador. Parece-me que há, à sua volta, um limite onde ele
estabelece quem pode ultrapassar ou cruzar uma espécie de linha invisível;
uma linha de proteção. Inexplicavelmente ele permite que eu a ultrapasse.
Sua figura é bastante forte, resoluta, daquelas das quais ou você gosta
ou não gosta. No entanto, para além das aparências, Antonio traz consigo
imagens ancestrais, de uma cultura antiga vivida em comunidade, no campo,
no trabalho, no silêncio e no transbordamento de seu olhar crítico, atento. Esta
atitude está marcada em seu corpo, em seus gestos, no seu caminhar diário:
Companheiro a gente tem no trabalho, à hora de sair eu saia sozinho. Nunca andei junto... Um tem um palpite, outro tem outro... É um companheiro, dois, mas é difícil... prefiro andá sozinho. É um prazer que eu tinha... de andá sozinho.11
Antonio compreende que as relações entre as pessoas se dão a partir
de uma vivência em comum, “companheiro a gente tem no trabalho”, no
entanto, afirma que o “andar”, caminhar pela vida se faz só, pois implica em
escolhas pessoais não negociáveis para ele. Todavia o modo como narra sua
história e os elementos culturais e sociais que discutem, influenciam o “meu
caminhar só”. O tempo de agora se alarga e desdobra: o presente refaz
“sonhos”, um passado talvez, e prepara um tempo futuro. Dias antes, havia
sonhado com uma negra que chegava e me dizia coisas belíssimas. Um sonho
lindo! No momento em que converso com Antonio me lembro do sonho:
Eu estava sentada no chão da sala de uma casa simples, havia muitas pessoas, velhos, crianças. Havia música, conversa, gente na cozinha preparando a comida, parecia ser uma festa. Eu conversava alegremente, quando a velha negra entra pela porta lateral à direita e vem em minha direção e me olha, reconhece-me. Vem andando, se abaixa e toma minhas mãos entre as suas, me diz coisas que eu não compreendo, ela me conhece profundamente e seus olhos são brilhantes. Ela me diz palavras belas, eu sei que são belas sem compreender, apenas sinto a força de suas palavras. Parece que me abençoa. Sinto que nos conhecemos de outros tempos. Uma sensação de felicidade intensa, de acalento na alma.
Porém, qual é a relação entre o encontro com Antonio e o meu sonho?
Em História da Linguagem de Julia Kristeva (1969), encontro algumas 11 Entrevista com Antonio Batista, 82 anos. 12/07/2010.
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possibilidades de análise da relação entre o sonho e a linguagem, ou melhor,
as linguagens. Kristeva aborda alguns aspectos da estreita e complexa relação
entre psicanálise e linguagem; a partir dos estudos de Freud (A Interpretação
dos Sonhos) elucida que o sonho apresenta uma estrutura própria, “toma de
empréstimo” das linguagens, suas estruturas e leis para “dar forma” a matéria
dos sonhos, assim afirma: “O sonho que Freud estuda é igualmente
considerado antes de tudo o mais como um sistema lingüístico a decifrar, ou
melhor, como um escrita, com regras semelhantes às dos hieróglifos”
(KRISTEVA, 1969, p.371)
Bosi (1994) faz referência aos sonhos, a partir dos estudos de Maurice
Halbwachs, elucida que a linguagem é o instrumento socializador da memória,
a qual unifica, abrevia e justapõe no “mesmo espaço histórico e cultural a
imagem do sonho, a imagem lembrada, e as imagens da vigília atual” (BOSI,
1994, p.56).
O sonho não são imagens puramente individuais, “são representações,
ou símbolos vividas em grupo pelo sonhador” (idem ibidem) No sonho, como
na vigília, continuamos a fazer uso das noções gerais como: espaço, tempo,
causa e conseqüências, categorias atualizadas pela linguagem, sendo que na
vigília acontece de modo coerente, e no sonho de modo solto e atenuado,
porém, recognocível, sendo assim: “As convenções verbais produzidas em
sociedade constituem o quadro ao mesmo tempo mais elementar e mais
estável da memória coletiva” (BOSI, 1994, p.56).
O que considero aqui, nessa relação entre a entrevista com Antonio e o
meu ato de sonhar, são: a maneira que a fala, a postura, as memórias (re)
construídas de Antonio, as quais afetam minha própria percepção, sensação e
memória. Analisar os signos desse sonho não é minha intenção, mas sim
registrar como as interações entre dois sujeitos e suas falas podem afetar e
transformar, ou até mesmo “escavar” as memórias involuntárias de quem as
ouve, sente, sonha, percebe, influenciado pela fala do sujeito que narra;
deixando “vir a tona” à maneira de Marcel Proust, memórias de tempos
perdidos. E até mesmo, talvez “acessar” espaços e tempos diversos,
dimensões outras do ser.
Antonio lembra um “preto velho”, um “caboclo”, uma entidade de
religiosidade de terreiro. Sua presença forte conduz o rumo de nossa “prosa”,
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livre, solta, como velhos amigos que lembram suas aventuras. Ele afirma não
ter medo, não ter amarras, culpas, arrependimentos ou amarguras, crê no
destino:
Nunca tive amor, nunca, num era comigo. O meu destino era andá, até vim pará aqui na Bacia Amazônica. Fui escalado deste tamaninho (faz o gesto com seu cajado indicando sua altura).12
Sobre os “rumos” da vida, não lamenta, escolhe o “andar”, o constante
movimento de recomeçar e refazer-se. Não ancora sua “felicidade” em um
amor, em “projetos de vida”, não vê no outro um lugar de repouso. Pelo
contrário, ele se permite tentar, enfrentar, aprender, trabalhar, andar e brigar,
se for preciso:
Aqui no Acre... Eu fui... Por que eu cheguei e bati assim no ombro da senhora “senhora, me apronta uma janta aí pra mim”. No ombro dela. O individuo falou “mete a mão na cara desse nego atrevido. Rapaz, botá a mão no ombro de você, ó”. Aí eu digo “chamá de nego, num tá certo” Mandô a muié metê a mão na minha cara! Tá bom, eu fui lá no hotel,13 peguei minha faquinha, botei na cinta, voltei pra lanchonete lá do outro lado.
Antonio situa o local onde ocorreu a discussão: “era um bar na beira rio”.
A “beira do rio” hoje “urbanizada” transformada no “calçadão da gameleira”.
Esse bar já não existe mais, devido à “restauração” e reformas urbanísticas
realizadas pelo governo do estado14, na qual alguns prédios foram retirados
para construir um amplo espaço que, nas palavras de Antonio: “tudo, é só
calçadão, calçadão... Acabou aquelas casa que tinha na beira rio todinho.”
A transformação/intervenção do espaço marca o fim de um tempo, e
afeta os modos de vida das pessoas, impõe novas e outras culturas: “hoje o
movimento bom é o calçadão, a rampa, o passeio...”. Refere-se ao plano liso,
novo, sem marcas, “arrumado”, “ordenado” desse lugar. Percebe as
“construções e demolições da gameleira”, no entanto re-faz, re-cria o passado
para certificar e constituir sua identidade, hoje, agora, conquistada na luta
diária. Assim Antonio narra episódios da experiência vivida, em um bar e
restaurante, à beira desse rio, nas “sombras” dessas gameleiras. Momentos
difíceis, em que foi obrigado a “brigar” por sua dignidade:
12 Entrevista citada. 13 Hotel Libanês no 2º distrito de Rio Branco, onde Antonio se hospedava.Entrevista citada. 14 Restauração da gameleira ocorreu no período de 1999-2004, no governo de Jorge Viana.
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Digo “põe duas cerveja aí, não, uma cerveja”. Aí ela abriu duas. “eu só quero uma”. Aí ele abriu as duas já prá “criá inguiçu” (arrumar confusão). Aí tinha um assim do outro lado; aí tinha acabado de comê, chamava Rubem. “Rubem toma aqui junto comigo?” eu chamei. Aí o Rubem tomou (a cerveja) junto comigo. E de lá ele (outro cliente) falou: “deixa comigo que eu bato nesse nego forgadu”. E deu uns tapa na minha cara. Ó aí eu saí fora, oiei de um lado, oiei pro outro... Eu com a minha faquinha na mão... Aí eu saí fora da residência (em uma pensão na gameleira onde serve refeição), dele. Aí ele veio pra me batê de novo... Aí eu meti a faca nele, mas só deu um ranhão (arranhão), um ranhãozinho di nada. Aí logo... Pega, deixa, deixa, deixa... Eu ia fazê mesmo direito. Aí me mandaram pra penal. Artigo 121, 12 anos de penal só porque eu ranhei (...) Aí quando foi no jurado (júri) o proprietário do bar foi a meu favor: “Ele tá certo”. Ele foi ao meu favor. Aí intimou quem eu tinha ranhadu, ele não apareceu. Aí o juiz viu que eu tava com toda razão.15
Conflituosamente, Antonio vai tecendo sua condição na relação com um
“outro” que lhe ameaça pela força das assimetrias sociais e pela condição
física. Em sua narrativa do vivido, não fica claro se o apelo à força de sua
“faquinha” se estabelece contra sua condição de “nego” ou por ter sido
estapeado por outro cliente do bar. A condição de “macho”, signo de afirmação
masculina nos mundos amazônicos, o faz retornar à cena do conflito para, de
faca na cintura, resolver a questão que narra com orgulho. Esse “ajuste de
contas com sua dignidade ferida”, ele faz no “aqui e agora” em que
conversamos indiferentes à velocidade dos carros que passam à frente e aos
fundos do asilo, fruto da intervenção “urbanizadora” da cidade de Rio Branco
real e imaginária.
Com seu olhar atento e cativante, engraçado e crítico, conta que
precisou partir de sua casa, no Estado da Bahia, por conta de uma briga com
seu pai. O motivo foi uma mulher pela qual Antonio se engraçou, e seu pai,
com ciúme ou raiva, o agrediu, batendo em sua cabeça com uma enxada.
Antonio arrumou suas coisas e foi embora de casa, com a bênção de sua mãe
que o levou até a estrada:
eu fui lá e... metido a namorá... Nóis morava numa distância e o pai dela meio afastado. E ele (o pai dele) queria chegá, e eu de lá e ele de cá. Aí eu vi que era ele, eu vi que era ele, conversava de cá. Aí quando foi nove, dez horas, eu vi que ele não saia, eu vim embora. No outro dia eu cheguei cedo na casa da minha avó tomei café e saí. Era segunda-feira, fui trabaiá. Aí ele viu que eu tava trabaiando veio atrás de mim me deu uma enxadada, por causa da gata (...) Aí eu já
15 Entrevista citada.
39
peguei o ônibus e já fui. Por causa desse dia até hoje nunca mais eu dei bênção pra ele, nunca mais eu disse pra ele... Em 71 eu cheguei lá, ele chorô. Coisa mais difícil ele chorá, os irmão meu... Só tinha dois, três. Aí eu disse assim: “agora num adianta mais”. Eu fiquei lá uns dois, três dias, me despedi e vim embora. (...) Minha mãe me acompanhou até o meio do caminho. Nunca mais fui batê lá, e nem tenho saudade. Ele já morreu. Perdoá? Pros filho... Ele num era errado. Ele jamais era errado. Ele ainda sabe mais. Pra mãe ele era errado, casado com ela e amigado com a irmã dela. (...) Me despedi da mãe, me levô no meio do caminho, me acompanhô, me deu a bênção e ela: “juízo, juízo” e saiu e pronto. E aqui eu tô e daqui eu num saio. Eu num saio na presença dele, eu saí iscundidu, meu irmão também saiu fugido, meu irmão caçula...16
E assim Antonio inicia seu “caminhar”, rumo à “Bacia Amazônica”,
conforme profetizou Padre Cícero a seu respeito, quando era “deste
tamaninho”, conta:
Foi uma profecia... Meu destino era andá... Eu tinha meus trocado, Aí fui pra Salvadô, Espírito Santo... Aí eu cheguei lá sem dinheiro, vendi boi, era viajante de boi, aí nóis, viemo embora pra São Paulo... Eu conheci São Paulo. Eu fui pra migração.17 Migração, chega aqueles nordestino, aí junta tudo vai pra migração, ali toma banho, corta cabelo, toma vacina, arruma tudo... Tem os homens da indústria de usina que vai percurá, às oito hora da noite. Fica dentro da capital perto da Avenida São João [...] Vai o chefe o gerente, as vez vai o dono também, e fala: “que é que é que é...” E passa tudo pro lado, pro lado (explica) No outro dia dão uma sacolona grande com pão, mortadela, banana frita cocada. E dali põe a gente dentro do trem, por lugar aonde a gente vai (trabalhar) Eu fui pra Santos, até Juquiá, São Vicente. Lá eu fui trabaiá em fábrica di marcenaria, fazê móvel, di tudo quanto é tipo. Eu chegava “discurpa, discurpa... Eu me disponho”. Trabaio de servente, num serviço noutro. Num falta serviço de jeito nenhum. Num passo fome de jeito nenhum.18
Um viajante acompanhado por espíritos protetores: “quem me vê diz que
anda comigo dois, três. São espíritos bons. Antonio diz que tem a “obra da
natureza”, uma espécie de mediunidade. A obra conversa com ele, aconselha,
protege. 16 Entrevista citada. 17 Ver Sueli de Castro Gomes, Imaginário – USP, 2006, vol.12, nº 13, 143-169. “A Hospedaria do Imigrante” serviu também para receber os nordestinos que chegavam a São Paulo em busca de trabalho, como mão de obra para as indústrias paulistas. Sueli de Castro Gomes explica: “Os migrantes nordestinos incentivados pelo Estado se alojavam na mesma estrutura que muito foi usada para a recepção dos imigrantes estrangeiros, a Hospedaria dos Imigrantes, construída na gestão de Antonio de Queiroz Telles como presidente da Província, inaugurada em 1887, no bairro do Brás (ANDRADE, 1991). A edificação enorme, com capacidade de alojar cerca de quatro mil pessoas, documenta a política pública de incentivo ao fluxo, arregimentando a mão-de-obra barata para suprir o rápido crescimento da cafeicultura, embora muitos fiquem na capital para atender às necessidades urbanas em expansão. Na Hospedaria, os nordestinos pernoitavam por um ou dois dias, eram submetidos a uma triagem que consistia em verificar seus documentos, suas condições de saúde e o local de destino.” 18 Entrevista citada.
40
Esse menino vai parar na bacia amazônica”. Assim disse o Padre Cícero. E eu não to aqui? Em 43, 44, Padre Ciço falô. Com o dom da natureza “ele vai aparecê lá”. Eu era pequenininho. É o dom da natureza que eu tinha, mas não era conhecido, o dom da natureza apareceu com 17 ano. Mais eu só vim conhecê o dom da natureza aqui no Acre, o dom da natureza. Ele diz tudo, o dom da natureza é a obra da natureza. Quem tem experiência me vê e diz que eu não ando só mesmo, Eu não ando só. Eu sempre fui forte, esse é o dom da natureza, eu não tomo remédio nenhum, agora que eu tô tomando umas píula Eu sô analfabeto... eu entendo tudo pelo dom da natureza.19
Com sua narrativa impregnada de construções em que articula as
dimensões físicas às espirituais, Antonio vai constituindo cenários de uma
trajetória na qual, em diferentes localidades, vai submetendo-se ao
condicionamento do “mundo do trabalho”. Na Amazônia, trabalhou em
fazendas, em construções de casas e estradas, como a BR- 364. Trabalhava
no que aparecia, pegava carona de cidade em cidade, morava em pensões,
pagando tudo com seu trabalho e com o suor de seu rosto seu percurso de um
“desenraizado”, no dizer de Simone Weil.
Eu nasci analfabeto, o meu destino é chegá aqui, num tinha tempo pra estuda. A experiência... Pegava ônibus, chegava em hotel, trabaiava... Escrevê meu nome eu num sei, mais dinheiro eu conheço, graças a Deus. Me informava, né? Eu nunca fui atentado (roubado) em viagem não.20
Antonio afirma que antes não tinha documento, que não sabia quem
era; que só veio saber quem era aqui no Acre: “obra da Natureza”, diz,
valorizando muito seus documentos pessoais e dizendo que sem eles, a
pessoa não é nada. Conta que também tem registrado no fórum sua “lição de
moral”, onde também está escrito quem é, e afirma: “hoje em dia tá tudo lá no
computador, tá tudo lá gravado, lá diz quem você é”.
A “cidadania” de Antonio foi conquistada com muita luta e transgressão,
não foi lhe garantida ao nascer, mas sim nos embates diários e desafios
constantes. Ao reagir contra o insulto: “mete a mão na cara desse nego”, ele é
preso, julgado e absolvido, pois se verificou que Antonio apenas se defendeu,
mas foi este incidente que possibilitou o acesso à cidadania, aos documentos
19 Entrevista citada. 20 Entrevista citada.
41
pessoais, à sua “identidade” e à sua “lição de moral” (declaração de
antecedentes criminais). Preso por três meses, Antonio avalia:
Eu fiquei na penal três mês, mais por que eu quis ficá mesmo. Tinha comida, tinha dormida, o que eu ia fazê aqui fora? Fiquei lá pra esperá o jurado. (...) Aí o juiz falô: “Você num tem documento? Pode mandá pedi seu registro no cartório. Agora você tem registro”. Aí tirei minha identidade, meu CPF, e me aposentei... Aposentei mais tá tudo embruiadu (confuso) até hoje.21
Antonio diz não ter medo de nada, que morre quando Deus quiser;
mostrou marcas de atropelamento e acidente em seu corpo, mas hoje está
muito bem de saúde. Fala com ânimo, de modo franco, aberto e crítico:
Eu deito e durmo. Durmo tranquilo. Num falei que eu tenho o dom da natureza? De manhã eu passeio sozinho, de manhã e de tarde. Vou e volto. Num converso com ninguém (...) A vida tá boa, o que eu to sentindo mais é a aposentadoria que fica na casa, tá embruiada! Num vem todo mês, fica tudo na casa, não me dão nada.22
Pergunto a coordenadora por que o salário da aposentadoria de Antonio
fica “na casa”? A coordenadora explica que Antonio costuma sair, beber, e às
vezes se perder pela cidade, então esta foi uma medida de segurança. A
segurança não somente de Antonio, mas também para garantir o pagamento
mensal da casa que corresponde a 70% do salário mínimo, que é descontado
do salário de Antonio. Essa é outra face da violência experimentada pelos
habitantes do Lar Vicentino que, tratados como incapazes vão sendo
“coisificados” pela lógica que ordena e “naturaliza” tal condição para o que ali
vivem.
Quando pergunto a Antonio se ele se arrepende de algo, ele responde:
“Não me arrependo de nada. Não nasci com nada, não tenho nada, não deixo
nada, não levo nada. Vou me arrepender de quê?”
A respeito das transformações do mundo, afirma:
Hoje todo mundo tem carro. Antes só tinha carro quem era rico. Hoje um empregado tem carro. Ninguém sabe quem é rico e quem é pobre. Hoje o rico usa sapato e o pobre também.23
21 Entrevista citada. 22 Entrevista citada. 23 Entrevista citada.
42
Antonio compara sua vida passada à vida presente, compreende as
contradições e mascaramentos onde já não se reconhece quem é quem, luta
com a difícil identificação e estrutura de outra sociedade, em que o sujeito
percebe certas impossibilidades, condicionantes do ser e do agir “com o
mundo”, nas palavras de Paulo Freire. Sabe o que perdeu ou o que deixou de
ganhar, o quanto lutou para constituir-se enquanto sujeito, na árdua tarefa do
“existir” no e com o mundo.
Esboça a “consciência trágica” que fala Marilena Chauí, em que o sujeito
sabe o que é e também sabe o que poderia ser, e por isso “transgride a ordem
estabelecida”, entretanto, não transgride ao ponto de fundar outra condição de
estar no mundo: “Diz sim e diz não, ao mesmo tempo, adere e resiste ao que
pesa com a força da lei, do uso e do costume e que parece, por seu peso, ter a
força de um destino.” (CHAUÍ, 1987, p.178)
Constata a falsa “igualdade” na sociedade de consumo, em que ao
mostrar o que se tem, se esquece e camufla quem se é e, quem pode se
tornar; massifica-se, por isso “desenraiza-se” (FREIRE, 2010, p.50) Antonio
nesse momento recorre à suas raízes, volta-se à força do destino, para os
laços fraternos e para o lugar onde nasceu. Fala de sua avó:
fui mais apegado a minha avó. Eu sonhei com ela, ela entrou pela porta... abriu de repente e falou... que tinha morrido. Aí eu vendi tudo e fui pra Pernambuco. Ela tinha morrido mesmo.24
Então pergunto se ele foi criado por ela? E Antonio responde sorrindo:
“Eu é que criava ela, ela era velha, eu, novo, cuidava da roça dela”. Rimos
juntos, e também nos lembramos dos nossos avôs, de suas trajetórias, suas
histórias, suas culturas, e, o quanto essas nos constitui enquanto sujeito no e
com o mundo, apreendemos olhares e gestos, linguagens e memórias, somos
muito do que fomos ao lado deles, os reconhecemos em nossos próprios
gestos, olhares e palavras.
Antonio após o sonho volta a sua “Comala”, como no livro de Juan Rulfo,
os mortos falam, pedem e exigem um “acerto de contas”. Sua avó o visita em
sonho, está morta, Antonio sente-se compelido a prestar-lhe a última
reverência, vende tudo e parte para sua terra natal, busca outro tempo, o 24 Entrevista citada.
43
passado na imagem de sua avó, e para lá se dirige, a sua maneira, cumpre um
dever e um destino.
Antonio veio morar no Lar Vicentino por escolha própria diante das
poucas e incertas possibilidades:
(...) eu aluguei uma casa pra cá do Banco Real, antes de chegá no canal. Aí eu juntava latinha, por que num tinha... Eu fiquei idoso, trabaiava em fazenda, em colônia, todo mundo me embruiandu (confundindo), me enrolando “Ah! Tá veio”, digo: “Vou pra outro canto, num é comigo.” Aí eu fui juntá latinha. Só dava mais é pra cumê mesmo. Eu fui, fui mesmo. A experiência minha mesmo: 640 lata pra dá 1 kg. É bom. Eu juntava em clube, no final da noite... Andei na Lua Azul, no Juventus, no 14 Bis, na Exposição, tudo di péis (a pé). Nunca fui assartadu. Dava prá comê. Num pagava aluguel, ninguém chegava lá, era uma casa abandonada. Eu morava sozinho. A casa tava vazia, eu andando, aí eu entrei, entrei por mim mesmo. Tinha tudo. Pra cima do canal tem uma loja, uma oficina, eu morava encostado na loja. Eu enchi de quiabo, melancia, abóbora... O dono liberava, o terreno era limpinho... Tava tudo zelado, limpinho, num falô nada. (...) Lá morava uma muié (mulher) atentada, macumbeira, morava lá na casa também... Mandô matá o marido... Mataram o pai prá ficá com o terreno. Compraram uma camionete e um caminhão pra puxá boi e se acabô em nada. Deus é justo, Deus é justo. (...) Fiquei lá uns dois ano, aí eu vi que lá num ia dá certo, aí eu vim prá cá. Aqui num é bão (bom) demais, mais ao menos tá sossegado, né? Eu vim escalado pra Bacia Amazônica, to aqui, aqui eu to, daqui num saiu.25
4 de abril de 2010
Enquanto converso com Antonio, José senta no banco ao lado. Um
pouco exaltado e nervoso informa que está na casa há um mês. Fala baixo,
compassado, fazendo uso de um vocabulário mais “culto”. Nesse momento,
Antonio fala de Getulio Vargas26, de como não pôde estudar, que no tempo de
Getulio não havia escolas para todos:
Getulio Vargas foi o maior bandido que teve no Brasil... Por que era carro de jagunça, banditismo, analfabetismo, trabalho escravo tipo o
25 Entrevista citada. 26 Getulio Dornelles Vargas “assumiu o poder provisoriamente, em 3 de novembro de 1930, como Delegado da Revolução (chamada Revolução de 1930, na qual houve um choque entre o poder civil e o poder militar, chamado de tenentismo, pois a revolta partia dos cadetes, tenentes e capitães do exército) Getúlio consolidou-se no poder e dominaria a cena política brasileira durante 24 anos, até o suicídio em 1954, quando ocupava a chefia do governo pela segunda vez.” (Boris Fausto, 2007)
44
seringueiro aqui. Escorraçava o povo, mandava despejar aquele povo... Vi no Paraná o Getúlio. Ele morreu acabô tudo. Getúlio Vargas foi o maior bandido.27
José entra na conversa, pede licença cerimoniosamente e discorda de
Antonio, diz que “Getulio foi um grande presidente, que a aposentadoria que
temos hoje foi Getulio quem projetou...” Faz um discurso de defesa e
patriotismo sobre o “pai dos pobres”. Resolvo me apresentar e o convido a
participar da pesquisa, ele concorda, mas sem antes perguntar quem sou eu,
“É do estado? (governo). A senhora é advogada?” Supõe que eu possa ser
algum tipo de funcionária pública ou talvez assistente social, e que, assim
“resolva” sua situação, isto é, o problema com sua aposentadoria. Sabendo
que não, logo me cumprimenta formalmente, levanta-se, me dá a mão fez uma
“mesura” (inclina-se para frente)
José conta que não se casou, cuidou dos pais até os mesmos ficarem
velhos. Até sua morte e assim a vida passou. Hoje ele se arrepende, pois
acredita que pelo menos um filho a pessoa deva ter para não ficar só. Desse
modo não precisar vir para um “lugar destes”, ficar dependendo de pessoas
estranhas ou de implorar favores. Amargurado e arrependido demonstra
insatisfação em vir morar no asilo. José me conta que tem epilepsia, gosta de
beber “só um pouco” como ele mesmo diz. Enquanto fala, parece nervoso,
tenso, contrariado.
José faz uma “revisão” do passado, avalia seu percurso e escolhas,
percebe e considera que estar “em um lugar desses”, o lar dos vicentinos, onde
se “depende de pessoas estranhas”, ou seja, da vontade de outrem, das
imposições e resoluções alheias, o submetem a uma ordem e disciplinamento.
Sente-se desvalorizado, pois diz que para ser ouvido deve “implorar favores”,
assim é como se sente, como sente que é tratado, ou seja, que não há
“ouvidos atentos” aos seus menores problemas. “Se ao menos tivesse tido um
filho...” exclama José, pois considera que um filho, seja a representação
daquele que ouve, cuida, atende e que não lhe é estranho.
Dias depois, vejo José chegando, desce da ambulância do SAMU
(Serviço Atendimento Móvel de Urgência), todo sujo, escuto alguém dizer: “ele
tá bêbado, ele vive saindo, aí bebe e se perde. Volta todo machucado. “Outro
27 Entrevista citada.
45
dia uns marginal bateram nele, na rua, tentaram roubar ele.” Diz um dos
residentes. José transgride a norma, sai em busca de outro lugar, quem sabe
um lugar para ser ouvido, onde não se sinta desvalorizado, não “implore por
favores”.
Sair e beber tem sentidos e significados outros, como: liberdade, procura
e encontro, talvez o encontro com uma escuta atenta, busca por acolhimento e
afeto. Sair do território do Lar Vicentino, estar fora de um ambiente “hostil” na
sua percepção, talvez tenha um significado de procura por outros e possíveis
caminhos onde José talvez, possa se re-encontrar consigo mesmo. Trata-se de
uma atitude que o singulariza, o diferencia dos demais moradores da casa, e
que após essas “excursões” talvez se sinta atendido com mais atenção.
Volto no dia seguinte, alguém relata que José teve uma parada cardíaca
e faleceu, em sua cama, às 5 horas da manhã, que foi atendido pela
enfermeira de plantão28. Sinto uma profunda tristeza, José não está mais ali:
“um lugar desses” como ele mesmo diz. Arrisco a pensar que em sua angústia
e insatisfação José decide procurar “outro” lugar, mais além, onde não se
implore favores, onde a atenção e afeto podem estar presentes para ele.
09 de abril de 2010
Nesse dia realizo umas das mais difíceis entrevistas, intensa em
duração de tempo, breve no tempo “marcado pelo relógio”, mas, a intensidade
e profundidade dos silêncios e intervalos sem palavras, marcam o momento.
Entrevista que me inquieta e ainda causa incômodo. Ela me faz questionar se
talvez as minhas perguntas ou o modo de abordar as questões que talvez
tenha dificultado o acontecimento da entrevista. Faço aqui um relato da
entrevista e tento fazer uma análise sobre a memória e o silêncio e as
possíveis razões desse silêncio.
O entrevistado de nome Francisco, nasceu em Boca do Acre, passou
sua infância naquela cidade ao sul do Amazonas. Para ele, aquela foi uma fase
de sua vida que considera muito boa. Mora há 40 anos em Rio Branco e
“mudou-se” para o Lar Vicentino porque bebia muito e seus filhos resolveram
28 Consta no livro de ocorrências, no plantão noturno. Relatos da enfermeira de plantão.
46
“jogá-lo” na instituição. No Lar, Francisco afirma que recebeu uma “benção que
cortou o vício da bebida”. Atualmente, apenas fuma cigarros.
Trabalhou a vida toda no comércio, como viajante, ambulante, dono de
loja, dono de banca. Viajava para Porto Velho para trazer mercadorias para Rio
Branco. Conta que naquele tempo vinha de avião, trazendo quarenta toneladas
de mercadoria. Trabalhou como regatão, “baixando” o rio Purus. Enchia o
batelão29 de mercadoria e ia parando de porto em porto. As pessoas entravam
no barco para comprar, escolher a mercadoria, conversar e saber das
novidades e notícias de outras paragens. Francisco afirma que gostava muito
dessa vida, que era muito animado, que conhecia muita gente e que “corria
muito dinheiro”.
Vendia calça, camisa, cinturão, tecido, sapato... “Vendia de tudo!” afirma.
As viagens duravam 15 dias, um período apropriado, segundo Francisco para
receber “as contas” dos fregueses. Ao falar sobre suas viagens, Francisco
termina as frases com uma expressão: “É... é...” Fala expressando um lamento,
uma saudade, a lembrança de um tempo que finda, algo que foi talvez muito
bom: “é...” e interrompe o diálogo, fica quieto em silêncio.
Francisco conta que ganhou muito dinheiro, melhorou de vida e “botô”
uma loja em Boca do Acre. “Ih, rapaz...” exclama. Conta que era um armazém
grande, vendia de tudo, durante trinta anos manteve a loja com sucesso.
Casou-se em Sena Madureira, localidade onde exerceu a profissão de
vendedor ambulante. Francisco conheceu sua esposa no hotel o qual se
hospedava, “ela passava em frente ao hotel todo dia”. As pessoas do lugar o
avisavam que a mãe da menina era “valente” e o pai da menina era regatão no
Purus. “Eu sei que deu tudo certo”, diz Francisco. O pai da moça gostou muito
dele. Ficaram casados durante 25 anos, tiveram seis filhos “todos vivos, todos
vivem muito bem, com fartura”, o motivo da separação foi a “cachaça”.
Francisco bebia muito e perdeu muito dinheiro, situação que o levou à falência.
Sua esposa o visitou apenas uma vez no Lar Vicentino. Francisco diz
que não sente falta dela, que vive bem no lar. Lamenta suas perdas: “era pra tá
por cima, como meus conhecido véio que tão todos bem, com dinheiro... O
problema foi a bebida”. E conta como foi a separação:
29 Barco, embarcação que leva mercadorias, como um loja flutuante.
47
Se separamo por causa da bebida, um dia ela chegô da rua e disse: “Você vai tumá conta da família ou da bebida? Ou eu ou a bebida?” E eu digo: “é da bebida.” Aí num deu mais certo não... Sem briga, sem nada... Acabô. Hoje eu num bebo nada só o cigarro mesmo (...) A loja faliu com problema de negócio mal feito, negócio porco... A bebida? Ai, eu num gosto nem di lembrá!30
Com a separação Francisco mudou-se para Rio Banco, onde passou a
trabalhar como ambulante. Tinha uma “banquinha” na Praça da Bandeira.
Trabalhava como camelô. Ganhou dinheiro e abriu outra loja, localizada à Rua
Getulio Vargas. Suas lojas não tinham nomes; ele não gostava de colocar
nome em seus estabelecimentos: “era só loja do Francisco”. Reorganizou sua
vida: “Aí eu subi, subi, subi. Arrumei outra mulher, aí foi o fim, eu bebia e ela
bebia também e ‘passava a mão’... Aí separei de novo”.
Depois da separação, continua a beber e seus filhos decidiram “jogá-lo”,
como diz, no Lar. Faz 10 anos que reside no lar Vicentino, diz que está velho e
que o lugar dele é ali mesmo, não tem vontade de viver em outro lugar.
Francisco responde laconicamente, com frases curtas e longos períodos
de silêncio. Em certo momento da entrevista relembra suas perdas, falências,
separações. Depois emudece e passa a responder com monossílabos. Tento
conversar, pergunto como se sente, se têm planos ou alguns sonhos, porém,
Francisco não deseja falar mais, não quer lembrar: “Ai, num gosto nem di
lembrá...” é assim que expressa sua decisão, não gosta de lembrar, pois as
lembranças lhe causam desconforto, e prefere o silêncio e a solidão.
Pergunto a respeito de seus filhos, se ainda o visitam, e ele diz: “é difícil,
mais vem”. Conta que tem um bisneto, mas não sabe o nome. Cala-se, pensa,
suspira... Volta a falar que começou a beber muito novo, “com 15, 16 anos, já
tava no álcool e no cigarro” e atribui o vício às relações sociais, influenciado
pelo grupo de amigos. E diz: “faz tempo...” e se cala. Diz que não sofre, não
tem arrependimento: “Eu num penso neles.” E continua: “minha filha casô com
um bichão rico, um bichão rico mesmo. Quem manobra tudo é ele. Cuida de
tudo. Ajuda tudo...”
Sobre as atividades de lazer e sua convivência com as pessoas no asilo,
Francisco explica: “aqui tem tudo, dominó, baralho, dama, mais eu num jogo,
30 Entrevista com Francisco R. M.
48
num gosto. Lá no meu quarto eu tenho dois aparelhos de televisão. Assisto
tudo, jornal, novela, todas as novelas, tudo, até dez e meia, meia-noite...” Fica
em silêncio e enfim encontra uma maneira de se retirar e não continuar a
conversa. Assim anuncia: “Eu vou ali um instantinho e já volto. Dá tempo?”
A Narrativa de Francisco fala dos momentos de trabalho e fartura, o
casamento, os filhos, a bebida e o abandono da família; a perda de dinheiro.
Fala de maneira sucinta, não demonstra prazer ao lembrar sua história. Após
dezessete minutos de entrevista, Francisco disse que vai ”ali um instantinho...”
e não volta mais.
Logo aparece Fausto, todo animado dizendo: “num disse que o bicho é
caipira. Num gosta de contar não”. Fausto fala e recorda com alegria,
diferentemente de Francisco. Fala da família, da vinda para o Acre com seus
irmãos e sua mãe, saindo de Fortaleza no Ceará; da longa viagem de navio,
parando na hospedarias; lembra de seu pai que já trabalhava no Acre e
mandou buscar a família. Fausto tem um entusiasmo e uma jovialidade que
marcam sua fala, seus gestos e atitudes.
Conversamos sentados em um banco, debaixo de um pé de manga,
com o vento da tarde soprando. Às vezes me sinto à beira mar, tomando suco
de murici, junto à jangada onde Fausto dormiu uma vez com seu pai, como ele
conta. Fausto tem a energia de meu avô Zeca. Agitado, sempre reformando ou
inventando alguma coisa. É independente, crítico, observador. Após uma hora
de conversa, Fausto logo fala “já tá bom, né? Ele precisa comprar óleo pra
matar as formigas que tem ao redor do túmulo de sua família no Cemitério São
João Batista.
A tarde está ensolarada, quente e, ao mesmo tempo, com uma brisa
agradável. Fico pensando na conversa com Francisco. Por que ele não quis
continuar? O que fez com que ele decidisse interromper nosso diálogo? Que
perguntas eu fiz para desmotivá-lo? Ou talvez ele tenha “remexido” em um
passado por vezes doloroso?
Nesse mar de indagações sigo pela tarde adentro, buscando os sentidos
do silêncio em uma narrativa que, no dizer de Ecléa Bosi, “é sempre uma
escavação original do indivíduo, em tensão constante contra o tempo
organizado pelo sistema. Esse tempo original e interior é a maior riqueza de
que dispomos (BOSI, 2003, p.65)”.
49
A narrativa de Francisco é breve, mas muito densa em emoções,
sentimentos e lembranças sofridas. Seus silêncios me incomodam, não sei o
que dizer, permaneço ao seu lado. Espero, em conflito paciente. Mas,
Francisco não espera. O trabalho de lembrar lhe aflige e ele prefere não
lembrar, pois, “o silencio no meio da narrativa expressa, muitas vezes, o fim de
um mundo” (BOSI, 2003, p.66).
Entres indagações e dúvidas, me despeço de Fausto, e peço que
ofereça meus agradecimentos a Francisco. Marco com Fausto uma conversa
para o dia seguinte. Nesse momento, Antonio Batista passa por nós. Passa
com jeito manso e olha pra mim, me cumprimenta com ar alegre e curioso. Seu
olhar é de um menino, parece mais novo, mais jovem agora... Vai e volta e, em
suas idas e vindas, percebo um olhar curioso, bonito, uma comunhão de
olhares que se cruzam e dizem muito... Parecia feliz. Nesse instante parece
que encontro um velho amigo.
12 de abril de 2010
Nesta data, me encontro com José Francisco. Devoto de Maria.
Silêncio... Águas de riacho correndo mansa: profecia, vidência. Quem é esse
homem? De onde veio? Como veio parar aqui? Será um romeiro viajante?
Seus cabelos longos fazem parte de alguma promessa? Sento-me ao seu lado,
apresento-me e o convido a participar da pesquisa. Ele prontamente aceita e
começamos a conversar.
José Francisco de Carvalho, 85 anos, nascido em São Gonçalo de
Sapucaí, nas Minas Gerais. Boiadeiro, violeiro, corredor de longa distância,
expedicionário do exercito brasileiro, do batalhão de infantaria de Pouso
Alegre, Minas Gerais. Gestos e presença carregados de uma força simbólica,
capaz de evocar seu passado com carinho, afeto, delicadeza e alegria. Por que
consigo “ler” tudo isso nesse homem? Como posso o reconhecer?
Considero a possibilidade do reconhecimento das “marcas” que
podemos identificar no corpo da pessoa, marcas que podem dar sentido e
significar a uma memória inscrita em seu corpo, da experiência vivida, sentida
e sofrida, a qual permeia seus gestos, modos de ser e sentir; tais marcas
50
carregam em si simbologias e representações de culturas e identidades muito
presentes e constituintes de minha própria cultura. Lowenthal elucida
Lembramos das coisas, lemos e ouvimos histórias e crônicas; vivemos entre relíquias de épocas anteriores. O passado nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação, conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda consciência atual se funda em percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore um café da manhã, uma tarefa, porque já os vimos ou já os experimentamos (...). As facetas do passado, que perduram em nossos gestos e palavras, bem como em regras e artefatos, surgem para nós como “passado” somente quando as reconhecemos como tais (LOWENTHAL, 1998, p.64).
Todavia, recorro a “percepção dialética” de Walter Benjamin,
especialmente quando discute passado-presente. O filósofo anuncia que o
passado apresenta-se no presente como um “relâmpago”, são instantes em
que reconhecemos esse passado, entretanto é fugidio, breve, não permanece,
não sendo possível capturá-lo, pois, logo desvanece. Talvez, ao perceber o
relampejar desse tempo-passado, se possa recorrer a apreensão deste, pela
escrita, no registro da impressão do que se crê sentir e experimentar ao avistá-
lo, por breves e incríveis momentos.
O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele a redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram? Não tem as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente (BENJAMIN, 1994, p.223).
Olhando, ouvindo esse homem, surgem em meus pensamentos
lembranças de reconhecimento do passado e das experiências compartilhadas
no seio de minha família. Passado atualizado pela força desse presente, desse
imprevisível encontro em meio a um asilo na cidade de Rio Branco, Acre.
Sob inspiração de Proust (2004), sigo com minhas “dores e odores”.
Posso sentir o aroma de um chá feito à tarde pela minha avó, do aroma do
feijão cozinhando no fogão, do cheiro de alho fritando para preparar o arroz; a
melodia das “moda de viola” ouvidas por meu pai, o cheiro de chuva na grama
do quintal; da Ave Maria às seis da tarde, do cigarro de palha aceso, do som do
51
radio ligado lá longe... Do pernil assando em dia de festa. Reconheço-me
nessas lembranças, nesse passado com todas essas imagens e sensações, re-
significadas nesse instante vivido.
José Francisco fala com dificuldade, me esforço para compreendê-lo.
Fala calmo, compassado, sem pressa. Às vezes, fica em silêncio por um longo
período, olha longe, pensa e volta a conversar. Sua presença lembra a figura
de um profeta, um romeiro. Ele é realmente um devoto de Nossa Senhora
Aparecida. Seus cabelos são eriçados, compridos até os ombros, usa um
chapéu de palha com uma fita rosa, uma unha longa do dedo polegar para
tocar a viola. Viola a qual tocava em festas do Divino, nas Congadas,
quermesses, em sua cidade natal. Alto, ereto, altivo, muito elegante.
Senta-se diariamente, pela manhã e pela tarde, no banco da varanda
que fica na entrada do Lar Vicentino. José Francisco parece calmo, em paz
consigo mesmo, ao seu lado existe a sensação de serenidade, de
tranqüilidade. Experimenta-se a sensação de ouvir as águas de um riacho
correndo mansa... De rumo certeiro, constante, com seu fluxo permanente.
Quem vê José Francisco e sente seu silêncio, perceberá o som do seu
riacho, das águas que revolvem dentro dele e através dele. Ele observa, olha e
analisa a todo o momento. Há uma resignação em si, mas não se trata de uma
postura complacente. Há uma aceitação diante da vida, nossos “eus” se
entendem, se compreendem. Falamos de lugares pelos quais já passamos e
conhecemos. Empatia e afinidade.
Suspira várias vezes, ali, sentado contando sua vida. Está no lar
Vicentino há cinco meses. Somente conversa com os funcionários sobre seus
documentos e aposentadoria. Mas, esse tipo de conversa, sobre suas
experiências e trajetórias ninguém se interessa. Para ele falar com alguém que,
também, já passou e conhece os lugares por onde andou e conhece, é bom.
Percebo o quanto no lar Vicentino algumas relações passam a ser meramente
funcionais, administrativas, “cumpridoras da ordem e do bom funcionamento da
casa”.
Para José Francisco falar de si, revisitar seu passado a partir do tempo
de agora, vivendo em um asilo, lhe proporciona um sentimento de satisfação,
de orgulho por ter vivido tantas experiências, de pertencer a uma família
trabalhadora, enfim “relembrar o passado é crucial para o nosso sentido de
52
identidade: saber o que fomos confirma o que somos” (LOWENTHAL, 1998,
p.83).
Após conversar com José Francisco, conheço João Bento, 88 anos. Ele
está deitado em sua cama, entro em seu quarto, me apresento e o convido a
participar da pesquisa. Nesse dia faz um calor insuportável, sento-me em uma
das camas, mas logo, vou para o chão, me sento no piso, que está mais
agradável, fresco. João está disposto a conversar comigo, rememora suas
trajetórias de vida. Convido-o a passear pelo quintal, sentar debaixo de uma
árvore. Mas João se nega, pois diz que não tem cadeira de rodas, e deseja
uma exclusiva para si, não quer usar a de outro.
Conversamos meia hora. João fala com dificuldades, porém deseja
falar. Diz que assim o tempo passa mais rápido, que é bom conversar.
Rememora as histórias do seringal. Ouvindo suas narrativas minha imaginação
me faz viajar, sonhar e construir cenários possíveis.
Um momento do relato de João, entre tantos, me marca quando ele
conta que “chegava ficar até dois meses sem falar com uma pessoa”. Sozinho
em sua colocação.31 A colocação mais próxima ficava a um dia de viagem de
barco. Havia muitos bichos que rondavam sua casa, que quando se está só,
os bichos vão chegando, rondando, chegando mais, até se acostumar com o
homem, nesse caso, João Bento. Como havia muita pesca muita fartura, ele
não matava esses bichos, “tinha dó”.
João não reclama da solidão, disse que era um tempo de trabalho.
“Trabalhava e levava a vida assim”. Entre outras coisas mais, fala de como “os
americanos e os russos são bons, onde eles estão tem fartura, tem objetos
bons, tem riqueza.” Ele chegou ao seringal em 1943, veio cortar seringa, junto
com os americanos.32
31 Colocação: área destinada ao seringueiro, abrangendo “estradas de seringa”, onde ele ergue sua casa, geralmente construída de “paxiúba”, sobre palafitas, e coberto de palha. (ALBUQUERQUE, 2005, pp.158) 32 VER também o documentário: BORRACHA PARA A VITORIA. De Wolney Oliveira, 2004. Fundação de Cultura do Estado do Ceará/Universidade Federal do Ceará. Acordos de Washington; Getulio Vargas; borracha, 2ª guerra mundial; SEMTA: Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia - SEMTA foi um órgão brasileiro criado em 1943, como parte de Acordos de Washington, tinha como finalidade principal o alistamento compulsório, treinamento e transporte de nordestinos para a extração da borracha na Amazônia, como intuito de fornecer matéria-prima para os aliados da II Guerra Mundial.
53
Por fim, bate a sineta do lanche/jantar, ele interrompe a entrevista, me
informa sobre a hora do lanche. Uma funcionária entra, oferece-lhe pão e café.
João aceita o café. Aperta minha mão, agradece: “Obrigado pela gentileza de
conversar comigo”. Então, João diz com grande dignidade e grandeza, que não
pode me dar nada. Só pode me recomendar, fazer uma recomendação. E
finaliza: “Uma recomendação vale mais que dinheiro”.
Após essa conversa, retorno para casa, com a sensação de um “vir à
tona”, quando se mergulha e volta à superfície. Neste dia, cansada, adormeço
profundamente, sonho muito e ao acordar me lembro de muitos detalhes:
Acordo com a sensação de ter vindo de muito longe. Sensação de prazer,
felicidade. Lembro-me de muitos detalhes.
Assim escrevo em meu diário de campo: em viagem, hospedada
próximo a uma igreja medieval de Nossa Senhora da Conceição; no sonho
caminho no entorno da igreja, no centro de uma cidade antiga. Parece-me que
estou em alguma cidade da Espanha. Converso com entusiasmo, em
espanhol, com um homem. Pessoas dançam festivamente no pátio da igreja. É
noite. Crianças, jovens e velhos dançam e cantam. Muitos artistas de rua se
manifestam em suas artes. Parece uma festival! Saltimbancos, músicos,
dançarinos; e público se misturam. Muitas cores, sons melodiosos, clima de
confraternização. Encontro de amigos. Muita emoção e vontade de ficar ali.
Nesse momento, me lembro da bela fala de Próspero a Ferdinando: “... Somos
feitos da matéria dos sonhos, nossa vida pequenina é cercada pelo sono”
(SHAKESPEARE, 1997, p. 87).
23 de abril de 2010
Volto ao Lar Vicentino para conversar com João, nossa última conversa
foi na segunda-feira, dia 19 de abril, não o encontro em seu quarto. Procuro
pelas fichas de nomes afixadas nas portas dos quartos, o encontro em outra
ala, em um quarto ao lado oposto da casa. A janela desse quarto abre-se para
a ala feminina, onde há uma árvore frondosa, uma mangueira, que faz sombra
e refresca o ambiente que é dividido com quatro companheiros.
54
Assim que chego, João se senta e vai logo falando. Eu pergunto se ele
aprecia o “re-ordenamento” dos quartos, e ele diz que ali há um ventilador; que
está melhor, mas, por fim, confessa que não gosta da mudança, pois já está
acostumado com o antigo quarto. Também fala que, hoje pela manhã, quando
o transferiram de quarto, não explicaram porque, apenas informaram que o
mudariam para outro.
Observo que falta diálogo, de comunicação, de algumas ausências de
delicadeza e de um tratamento respeitoso permanentemente, pois, os
funcionários não perguntam ao João se ele deseja mudar de quarto, não levam
em conta a pessoa e seus hábitos. Como explica João Bento, ele já se
deslocou muitas vezes dentro do Lar, “residiu” em vários quartos, e não gosta
de mudar. Convido-o novamente para um passeio lá fora, no quintal. João,
muito educadamente, concorda, mas me diz que não tem cadeira de rodas,
uma cadeira só sua, para utilizar quando quiser. Pego uma cadeira e vamos ao
quintal, mas logo João pede para voltar para o seu novo quarto.
De volta ao quarto, encontro Fausto no corredor e combinamos nossa
visita ao cemitério, na segunda, dia 26 de abril, às 15 horas. João ouve nossa
conversa, e pergunta ao Fausto o nome de seu pai. Então, afirma que conhece
um Fausto, um compadre, muito seu amigo... Fica pensativo, em dúvida, e
indaga: “Será que não o conhece?” pergunta João. Percebo como é importante
para ele re-construir laços de afeto e amizade e reinterpretar lembranças.
Muitas indagações... Preciso aprender a olhar, a ouvir, para além dos
objetos, das coisas. O que represento para eles? Como me vêem? O que é o
real? O que é real para mim não é para eles? Quando me sento no banco da
varanda, olhamos a rua, os carros, olhamos para o quartel, mas o que
pensamos? O que desejamos? De que modo nos constituímos enquanto
sujeitos?
24 de abril de 2010.
O Lar fica em um lugar interessante. Sentada, ao lado de José
Francisco, observo o entorno. Em frente fica o Quartel do 7° Batalhão de
Engenharia do Exército Brasileiro. Entre o Lar e o quartel, a Avenida Nações
Unidas com seu fluxo constante de automóveis. Ruídos, barulho, ausência de
55
silêncio. Os carros indo e vindo para diferentes lugares. Atravessando a
avenida, fica o quartel, ou seja, a ordem militar, contrastando com a ordem do
asilo.
Ao lado esquerdo ficava um prédio de uma faculdade e agora é um
órgão do governo estadual. Atrás do asilo, há uma faculdade particular. A
avenida que passa em frente ao Lar é peculiar, por ali se concentram vários
estabelecimentos comerciais de autopeças, oficinas, lojas de material de
construção, revendedoras de carros. Peças, peças, peças, mecânica,
montagem/remontagem, concerto/desconcertos. Ali, estão os artesãos em uma
rua do trabalho, de objetos pesados, objetos de reposição.
É um lugar de comércio, vivo, agitado. O Lar está ali, rodeado pelo
quartel, por uma repartição pública, pela faculdade, pelo comércio. Olhando de
fora o que pensamos? Lembro-me quando passava de carro, apressada, e
lançava um olhar para esta casa que me parecia um lugar parado, um espaço
tranquilo, fresco, calmo... Esta casa para mim é uma espécie de esfinge a ser
decifrada. Ela me chama, ordena que a decifre.
As pessoas com quem ali converso me mostram outros modos de olhar,
de sentir, ouvir, falar, viver. Agora percebo o movimento da casa, das pessoas
que ali moram e trabalham, elas não estão “paradas”. Elas desejam viver,
conversar, encontrar amigos, passear, contar suas histórias. Elas desejam ser
cuidadas com carinho e respeito, desejam ser ouvidas. Como a rua plena de
vida, de movimento, sons, fluxo constante, encontros e desencontros, o lar
Vicentino também é pleno de vida, de acertos e desacertos.
26 de abril de 2010.
Tarde quente, mas agradável, suportável para os padrões acreanos.
Chego ao Lar e Fausto já me espera no banco da varanda, diz que não dormiu
bem a noite, à minha espera, que está ansioso com o passeio. Eu também
esperava o momento da visita e chego a questionar se tinha algum valor este
nosso “passeio”. Mas, vejo pela expectativa de Fausto o quanto o passeio é
importante. Vamos animadamente, Fausto como sempre falante e
entusiasmado. É segunda-feira, três horas da tarde, eu acompanho Fausto ao
cemitério para visitar o túmulo de sua família.
56
Fausto se sente feliz, fala do passado, das pessoas queridas, apresenta-
me o túmulo dos familiares, o local onde estão os restos mortais de seus pais,
seus dois irmãos e um sobrinho. Ele traz também a alegria e o entusiasmo, as
lembranças longínquas da sua Fortaleza. Fausto carrega consigo a intrepidez e
a gaiatice da infância feliz. Caminhando entre os túmulos, sepulturas e jazigos
de famílias, Fausto conversa, lembra e conta histórias.
Revolve o passado, re-faz caminhos. Como Antonio Batista, Fausto
volta-se para sua “Comala”33 em busca de seus “mortos”, à exemplo do Pedro
Páramo, de Juan Rulfo. Mostra-me a sepultura de um amigo, o “Piraíba”. Pára,
olha e conta que seu amigo era bom pescador. Fotografo Fausto a olhar para o
retrato do amigo. Seu olhar percorre os tempos e espaços em segundos; um
relâmpago do passado; lembranças revisitadas. Andamos e conversamos,
rimos e falamos de nossas vidas.
Meu entrevistado me diz que deseja a companhia de amigos, de velhos
amigos. Deseja cultivar a lembrança de seus pais e familiares. Não deseja todo
o conhecimento do mundo; não luta com o tempo, nem deseja um amor
romântico, como no célebre romance “Fausto” de Goethe. Apenas sonha em
ganhar na loteria, diz sorrindo:
sabe, um dinheirinho bom, rapaz, pra viver bem, comer bem, comprar uma casa, viajar à Fortaleza e passar lá uns três meses, que é pra matar as saudades de todos. Quem sabe até comprar uma casa lá, mas só pra veranear, não sabe? E depois voltar pro Acre, por que eu não me acostumo mais longe daqui não, rapaz.34
7 de maio de 2010.
Hoje pela manhã houve a comemoração do dia das mães, todos os
moradores do Lar foram convidados. Verifico “sem surpresa” a ausência de
Ivan, Fausto, Antonio Batista. Vou procurá-los. Ivan está assistindo TV, e diz
que não tem vontade de ir e que as pessoas precisam respeitar isso. Conta
que quando o convidaram, disseram: “vai ter muita comida!” e ele, então,
respondeu sem pestanejar: “Não estou passando fome”. Também me disse
33 Nome da cidade no Romance “Pedro Páramo” de Juan Rulfo. (ver: referências) 34 Entrevista citada.
57
que eu estou parecendo o pessoal da casa que diz que vai voltar, mas não
volta, demoro em fazer-lhe uma visita, e conversar.
Pergunto a ele sobre sua barba que está muita espessa e grande, ele
me diz que está esperando o “Arruda”, pois só faz a barba com o Arruda
(enfermeiro do Lar). Pergunto se o Arruda é legal com ele. Ele responde
enfático, com seu jeito, curto e grosso: “Não, ele não é legal. Ele é profissional”.
E isto basta. Compreendo que Ivan não deseja ser “convencido”, ou ser tratado
como se fosse uma criança, infantilizado ou subestimado.
Ivan exige seus direitos, quer ser tratado com respeito e dignidade; ser
cuidado por alguém competente, que realize seu trabalho com profissionalismo.
Ivan fala das relações interpessoais no Lar Vicentino e reclama por mais
qualidade não somente no tratamento, nos cuidados, mas, nas relações entre
as pessoas; nas gentilezas; nas palavras fraternas; nos gestos de carinho; na
disposição em ouvi-los. Deseja afeto nas relações cotidianas; afeto que
constrói e fortalece a existência.
Procuro Fausto e o encontro sozinho; de óculos escuro, sentado próximo
a árvore em que conversamos pela primeira vez. Ele também diz que prefere
ficar na tranquilidade. Afirma que está bem, sente-se alegre, diz que está “na
dele”. Penso que, talvez, queira dizer que faz o que crê ser certo, não
problematiza. Aparenta estar satisfeito consigo mesmo, prefere “resolver e
pronto”. E não participar da festa.
A festa que acontece na Capela, parece animada. Decido olhar de fora,
ao redor. Observar as pessoas. O modo como festejam, comem, bebem e
dançam. Não parece uma festa alegre. Há uma encenação de alegria,
emoções e demonstrações exageradas. Há muito barulho, o som está em um
volume muito alto. No microfone as pessoas quase gritam para demonstrar
“uma verdadeira e interessada participação”. Organiza-se rapidamente um
desfile de mulheres, muitas palmas, gritos, faixas de “misses”; são distribuídos
prêmios e pequenos presentes.
Algumas pessoas são convidadas/ convocadas a falar, a dar seu
testemunho, fazer “confissões de amor e carinho” aos convidados. Há uma
mesa farta de alimentos doados. O bingo começa; mais gritos de entusiasmo.
É preciso ajudar as pessoas a marcar a cartela do bingo, pois nem todos
enxergam bem, ou ouvem bem, ou mesmo tem firmeza nas mãos para segurar
58
a cartela. Alguns olham sem entender o que está acontecendo. O som continua
em alto volume. Decido procurar os que ali não estão. Por que não participam?
Quais tipos de festa participariam com alegria?
Encontro Antonio Batista em seu quarto, ao lado de um companheiro de
dormitório. Seu companheiro de quarto está lendo a Bíblia em voz alta. Antonio
Batista mexe em um ventilador. Observo pela porta entreaberta, não entro;
apenas admiro o “instante”. Gostaria de poder pintar aquela cena. Dois
homens, lado a lado, sentados na cama. Um lendo, outro mexendo no
ventilador; a cama encostada na janela; outras camas vazias, arrumadas.
Algumas roupas empilhadas no canto, em cima de uma cômoda. O dia está
quente, mas nublado. E a festa lá fora... Peço licença a Antonio, entro no
quarto e pergunto a ele por que não participa da festa. Ele me diz que nunca foi
de festa, barulho: não gosta. Fica em silêncio... Então me diz que está
aborrecido, pois: “aquela mulher [a coordenadora do lar] tirou meu ventilador de
meu quarto sem me avisar”.
12 de maio de 2010.
“Você vem aqui esporadicamente, não sabe o que acontece aqui; não
mora aqui”, diz Ivan muito nervoso, após meu questionamento e sugestão para
que deixasse o seu novo edredom, em cima da cama. Digo a ele que não há
problemas, que ninguém teria a coragem de mexer em suas coisas. Ivan
imediatamente fica furioso comigo. Agarra o edredom e me pede para levá-lo
ao quarto de Nergino, para que possa assistir a uma palestra espírita, proferida
por Divaldo Pereira Franco. O convite foi oferecido pela Rosa, voluntária no
Lar.
Ivan vai agarrado ao seu edredom verde, fluorescente; parece algo
extremamente valioso... Está agitado, “respondão” como sempre. Questionado
sobre os motivos de seu “mau humor, Ivan se irrita ainda mais. Reclama muito
da “falsidade” que, segundo ele, existe no Lar, entre as pessoas que ali
trabalham e os seus moradores. E também dos pequenos furtos de papel
higiênico, sabonete, etc. E lamenta: “meu Deus, eu não imaginava que iria
incomodar tanto os outros” - está indignado com sua condição, com a
incompreensão, com os julgamentos alheios.
59
Meu entrevistado tem consciência de sua fragilidade. No entanto, não
abre mão de ser crítico diante das circunstâncias. Ele se posiciona sem medo,
não pactua, não admite o consenso simplesmente para viver em paz, se agita
diante do que considera errado, e principalmente perante as pessoas com
quem convive. Não concilia nem se reconcilia, por isso sofre muito: “aqui eu
não tenho amigos. aqui não é lugar de amigos”. Tece um longo e veemente
discurso sobre amizade, confiança, lealdade. Por fim, afirma: “Nem eu quero
conselhos e nem tão pouco quero dar conselhos. Cada um sabe o que faz”.
60
CAPÍTULO II
Dentro da casa – de - fazenda, achada, ao acaso de outras várias e
recomeçadas distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da
gente, irreversos, grandes fatos-reflexos, relâmpagos, lampejos-
pesados em obscuridade. A mansão, estranha, fugindo, atrás de
serras e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe o
imaginar. Ou talvez não tenha sido numa fazenda, nem no
indescoberto rumo, nem longe? Não é possível saber-se, nunca mais.
(...)
Tudo não demorou calado, tão fundamente, não existindo, enquanto
viviam as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e
por onde andou o Menino, naqueles remotos, já peremptos anos? Só
agora é que assoma, muito lento o difícil clarão reminiscente, ao
termo talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a consciência. Só
não chegam até nós, de outro modo, as estrelas.
João Guimarães Rosa
Nenhum, Nenhuma.
Primeiras Estórias.
(...) aos que ficam de fora – os credores da dívida, são agora,
também, onde se realiza a missão de educar, civilizar, conduzir,
através de obras filantrópicas – participam da nação às migalhas (...).
Sociedades, obras caritativas, missionárias, evangelizadoras,
espirituais, etc (...)
Gustave Flaubert,
Educação Sentimental.
61
Lar Vicentino: cartografias físicas e imaginárias
O Lar Vicentino foi fundado pelos senhores: José Lourenço Furtado
Portugal, Enio Ayres, Raimunda Odília e Jerônimo. A casa é mantida por
doações de pessoas ou de instituições da sociedade civil, campanhas para
angariar fundos e contribuições dos residentes aposentados35. O Lar Vicentino
Raimunda Odília,36 localiza-se na Avenida Nações Unidas, bairro Estação
Experimental, na cidade de Rio Branco, capital do Estado do Acre, na
Amazônia brasileira, tendo sido fundado pela Sociedade São Vicente de Paulo
no ano de 1958.
A instituição é uma obra social do Conselho Particular de Rio Branco
mantida pela Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP), fundado em 1º de abril
de 1955. “Trata-se de uma associação civil, de direito privado, beneficente,
caritativa e de assistência social, sem fins econômicos; doravante denominada
simplesmente de Conselho Particular”. (art.1º do Estatuto do Conselho
Particular Rio Branco da Sociedade São Vicente de Paula).
Quanto a Sociedade São Vicente de Paulo é uma organização católica
internacional de leigos, fundada em Paris, no ano de 1833, por um grupo de
jovens cristãos. Colocada sob o patrocínio de São Vicente de Paulo, inspira-se
no pensamento e na obra deste Santo, esforçando-se, sob o influxo da justiça e
da caridade, por aliviar os sofrimentos do próximo, mediante o trabalho
coordenado de seus membros.
Segundo o regimento do Lar Vicentino, a entidade é destinada para
abrigar única e exclusivamente pessoas idosas carentes de ambos os sexos
com idade mínina de 60 anos e que não possua parentes, segundo seu
regimento interno, artigo 2º. A instituição também recebe auxílio das esferas
municipais e estaduais, como por exemplo, reformas e ampliação do prédio;
isso se deve neste caso por se tratar do único lugar que abriga em caráter
permanente a pessoa idosa na cidade de Rio Branco, não havendo no
município uma “instituição de longa permanência para a pessoa idosa”. 35 No Art. 13º do Regimento interno/2007 do Lar Vicentino, diz: A pessoa idosa residente no lar Vicentino, obriga-se a contribuir com 70% de seus vencimentos, se houver, para ajudar na manutenção dessa casa (Art. 35 parágrafo 1º e 2º da lei 10.741/2003). 36Acesso em 13.01.2011, disponível em: http://www.dioceseriobranco.com.br/sociedade-sao-vicente-de-paulo-vicentinos)
62
O vínculo com a igreja católica se faz presente apenas por se tratar de
uma obra social vicentina mantida pela Sociedade São Vicente de Paulo, a
qual segue os princípios doutrinários da Igreja Católica, não recebendo
qualquer donativo por parte desta. Pode se afirmar que há um apoio moral e
político. Todavia, o Lar Vicentino não é uma obra social da Diocese de Rio
Branco, apenas compõe sua congregação37 e recebe em ocasiões especiais a
visita dos representantes da igreja; como ocorreu na data da inauguração da
ala feminina38, o bispo, dom Joaquim Pertinez, compareceu como
representante da Igreja Católica.
O edifício do asilo situa-se em um amplo terreno, com duas entradas,
uma frontal e uma lateral à esquerda. Ao entrar pela frente, passo por um
portão simples de tamanho médio, que é trancado com um cadeado no período
noturno. Entre o portão e a casa, há uma distância de aproximadamente dez
metros de comprimento. Caminho por uma rampa que leva à varanda da frente
da casa. Trata-se de uma varanda estreita, cercada por madeira com bancos
largos e compridos, onde durante o dia, sempre se pode encontrar pessoas
sentadas conversando ou silenciosas, olhando o movimento da rua,
observando a agitação da casa e o vai e vem constante dos residentes,
funcionários e visitantes.
Pela entrada lateral a esquerda de quem olha a frente da casa, há um
portão para entrada de carros. A entidade possui uma Kombi sem ar-
condicionado e muito barulhenta, que é utilizada diariamente, levando pessoas
para consultas e exames médicos, aos bancos, às compras, trazendo
mantimentos, donativos, e entre outros serviços necessários.
O estacionamento é amplo e arborizado, sendo que alguns funcionários
e visitantes costumam guardar ali seus automóveis. Há um banco de concreto
disposto em semicírculo onde, geralmente, os residentes do Lar ou outras
pessoas ficam sentadas, conversando ou tomando o sol da manhã.
37 Consulta junto a Diocese de Rio Branco/Acre, setor de documentação, cuja responsável é a Irmã Marinella Brizzi. A irmã informa-nos que o conselho particular é uma sociedade leiga, que comunga a partir dos princípios católicos e participa da congregação da Igreja Católica no Acre; sendo que qualquer pesquisa sobre o conselho particular cabe somente a esta associação civil informar. 38Construída no ano de 2006, no governo de Jorge Viana. A ala feminina Dona Sílvia recebe este nome em homenagem a genitora do governador. A nova ala é composta por oito quartos, área de convívio, banheiros coletivos e duas varandas. Fonte: Jornal Página 20. Rio Branco – AC, 14 de maio de 2006.
63
Sempre que vou ao Lar Vicentino, costumo entrar pelo portão lateral,
passo em frente à capela. Tal capela é pequena, com boa luminosidade,
arejada, de aspecto agradável, em seu interior há duas imagens suspensas na
parede, a saber: imagem de Nossa Senhora e outra de São Vicente de Paulo.
Nesse lugar, anteriormente se realizava a missa matutina aos domingos, o que
é lamentado por um dos entrevistados, José Francisco: “antes tinha missa aqui,
missa católica. Era bom”.
Atualmente, é um espaço para festa e comemorações, há bancos de
igreja, cadeiras e uma grande e comprida mesa de madeira. Há um banheiro
lateral, uma sala para recursos pedagógicos e uma sala para reunião, onde se
reúne semanalmente o Conselho Particular. O salão é arejado e aberto,
cercado por grades. Um lugar para festas e uma capela cercado por grades,
que permanecem abertas durante o dia, sendo trancados à noite. É a sede do
Conselho Particular. As grades impõem um limite de território e expressa a
separação entre o Lar e o Conselho.
No grande salão, são ministradas aulas de arte e recreação para os
residentes que desejarem participar. Geralmente, as aulas são realizadas pela
manhã, freqüentadas na maioria das vezes pelas mulheres e dentre elas,
apenas três ou quatro comparecem. São aulas de pintura livre com giz de cera,
recorte e colagem, artesanato. O fator que desmotivou a participação de
Antonio Batista é assim expresso por ele: “lá só ensina desenho de criança.
Não ensina a lê não. E eu sou analfabeto. Elas num ensina nós não.”
Antonio expressa sua indignação diante da postura das professoras, as
quais não percebem, não sabem, ou não desejam atender a anseios e
necessidades daqueles. Antonio sente e compreende tal atitude como um
modo de desqualificar o sujeito, pois não leva em conta sua condição de
“analfabeto” e o tratam de modo infantilizado: “ensina desenho de criança”.
Tem consciência de que o trabalho poderia e deveria ser outro: “elas não
ensina nós não”. Talvez, “ensinar” a partir das motivações, desejos e vontades
dos sujeitos, e não subestimá-los. A infantilização da pessoa “idosa”,
marginaliza, desvaloriza, enfraquece e subjuga o sujeito, age como uma força
na tentativa de torná-los incapazes, dependentes e domesticáveis.
64
Percorrendo o território do Lar Vicentino sob a influência das vozes dos sujeitos que a habitam
Entro pela porta principal da casa. Logo na entrada há dois sofás; um de
cada lado do corredor, à direita de quem entra; no alto há uma imagem de são
Vicente de Paulo; à esquerda uma televisão e um mural com algumas
informações, tais como: regulamento da casa, cópia do estatuto do idoso,
pequenos recados de instrução e conselhos, datas dos aniversários, entre
outros pequenos textos. À direita, está a sala da coordenação, mesas da
coordenadora e da secretária, computadores, telefone, cartazes, informações
gerais. A iluminação natural é boa, as condições físicas, como a pintura e o
piso estão gastos, manchados, desbotados.
Saindo da sala da coordenação, ando pelo corredor principal. O piso é
formado por lajotas brancas. Nas laterais há outro piso mais áspero, branco e
cinza, com desenhos ondulados. Este piso fica rente às paredes laterais; logo
abaixo, as barras de segurança fixas nas paredes ao longo do corredor.
Nesse corredor, estão os primeiros quartos: são nove. É denominada
como ala masculina, destinada àqueles que estão em boas condições de
saúde e não necessitam de cuidados especiais; nem de auxilio para tomar
banho ou se alimentar. Em cada quarto, residem três ou quatro pessoas. As
camas são simples em madeira e os colchões estão em péssimo estado, pois a
maioria perdeu a densidade e se encontram muito desgastados.
Há cômodas que são utilizadas coletivamente para guardar os objetos
pessoais. Muitos residentes conservam uma mala com cadeado para guardar
seus objetos e as relíquias mais preciosas. Por exemplo, na mala de Carlos,
onde estão seus CDs, fotografias, documentos e certificados, tudo bem
guarnecido em uma mala com um cadeado. Carlos, como tantos outros, afirma
que ali se deve tomar cuidado para não ser roubado. Percebo a situação
ameaçadora a qual fere os direitos básicos do indivíduo e neste caso, a
segurança e a proteção.
Carlos tem medo de ser roubado, desconfia dos moradores e dos
funcionários. Não se sente tranqüilo e seguro, sabe que ali é um território que o
desafia a manter-se sempre em alerta, defendendo seus bens, suas relíquias,
ou seja, símbolos de sua identidade, memória e história de vida.
65
Tais objetos são “cacos” a partir dos quais ilumina seu passado, e por
meio destes reconhece um valor, enriquecendo de sua experiência vivida, e,
confere sentidos e significados para o presente: o aqui e o agora no Lar
Vicentino.
as relíquias tangíveis sobrevivem na forma de características naturais ou artefatos (...) mas nenhum objeto ou vestígio físico são guias autônomos para épocas remotas; eles iluminam o passado apenas quando já sabemos que eles lhe pertenceram. (LOWENTHAL,1998, p. 149).
Cada quarto possui sua organização, própria. Aparentemente, parecem
iguais, mas ao olhar com mais atenção percebo as particularidades de quem ali
vive e marca com sua presença o ambiente, através de objetos de uso pessoal,
roupas, calçados, camas, cômodas, armários, entre outros. Estes objetos são
pequenos tesouros e simbolizam a singularidade de cada pessoa.
Diferencia os sujeitos em suas particularidades, preferências, escolhas e
modos de vida. Diferenciar no sentido de atribuir qualidades para cada sujeito.
São também fragmentos que “atestam o passado” (LOWENTHAL,1998,p.66)
biologicamente pelo desgaste e envelhecimento; e historicamente pelas formas
e anacronismos, como explica Lowenthal.
Alguns móveis são doados por pessoas da comunidade ou instituições.
Os residentes também podem comprar seus móveis, tais como: armários,
cômodas, banquetas, ventiladores. Tal aquisição depende da renda de cada
um e da possibilidade de armazenar em seus quartos, estes objetos.
Ao visitar os quartos, observo e fotografo os objetos pessoais que estão
em cima das cômodas, tais como: perfumes, desodorantes, colônias,
hidratantes, creme para barbear, pequenos televisores, rádios, etc., ou seja,
pequenos “luxos” que estão organizados com cuidado em cima de um móvel.
Alguns enfeitam os móveis com pequenos objetos e também com os retratos
de familiares e amigos.
Quase todos possuem seus objetos arrumados ou guardados em uma
gaveta, mala, armário ou cômoda. Acredito que, além de cuidados de higiene
estes objetos também representam um “canto de casa”, um lugar pessoal, que
proporcionam a sensação de pertencimento, na tentativa de ordenar seus
mundos, proporcionar um pouco do sentido de estabilidade e segurança.
66
A relação com tais objetos, os quais singularizam o sujeito, possibilitam
manter suas marcas pessoais, para que nem tudo seja institucionalizado,
homogeneizado. Angela Mucida explicita sobre a segregação asilar e como
pode ser a vivência em um asilo onde se tenta institucionalizar os sujeitos,
retirando a possibilidade de conservar seus traços pessoais e “discipliná-los”
mantendo-os sob controle. Assim afirma:
A demanda é a de que os sujeitos apaguem seus traços particulares a favor do bom funcionamento da rotina. Nessa empreitada, além do excesso de medicamentos antidepressivos e inúmeros “calmantes” que buscam calar sob qualquer preço aquilo que insiste não calar, impera a uniformização dos quartos, dos utensílios a serem utilizados, das atividades. Os sujeitos devem deixar para trás todas as lembranças, todos os hábitos, todos os gostos e escolhas para se adequarem ao grupo. (MUCIDA, 2006, pp. 86-87).
Acompanhando essas observações de Mucida, noto a atitude do sujeito
que resiste a esta empreitada, na tentativa de marcar sua presença, com seus
traços pessoais através dos objetos. Alguns optam por uma parede colorida,
como o quarto do Lula, o qual possui uma parede roxa. Outros instalam suas
redes, ou acumulam objetos pessoais em um canto, como parte da mudança
de sua última morada. Por exemplo, Fausto Pessoa guarda em seu quarto,
algumas panelas, dois televisores, um toca-discos, banquinhos para as visitas,
mesinhas, baldes e bacias, uma bicicleta nova e um guarda-roupa, bem como
mantém pendurado no alto da cabeceira de sua cama um retrato seu ao lado
de seu pai.
Percebo o valor dos objetos, das gavetinhas, dos criados-mudo, dos
livros, de um pequeno abajur, de um tapete ao pé da cama. Para quem vive em
uma instituição, onde tudo deve ser coletivizado, um pequeno objeto pessoal
tem um valor incalculável. Objetos que lhes dão singularidade, que trazem
lembranças, que particularizam o sujeito. São pedaços das suas histórias de
vida, por isso são seus tesouros, seus bens mais caros.
Encontro-me novamente no corredor principal. Este somente recebe luz
natural através das portas abertas dos quartos; e das varandas existentes à
frente e ao fundo, durante o dia. Sigo de quarto em quarto, à direita são os
mais quentes, pois o sol da tarde aquece muito o ambiente, sendo que no
verão acreano as tardes são quase insuportáveis para quem vive ali, deitado
67
na cama, dependendo de outros para se locomover. Não há um sistema de
refrigeração de ar, somente alguns ventiladores pessoais doados ou
comprados pelos residentes. Às vezes são partilhados com os companheiros
de quarto. Tenho a sensação de que o lado esquerdo do prédio é mais fresco,
tendo em vista que algumas janelas se abrem para o pátio interno da ala
feminina, onde há uma frondosa árvore e um pequeno jardim gramado com
bancos ao redor. Ao lado direito, no fim do corredor vejo o bebedouro coletivo, em um
canto escuro, próximo ao banheiro, sendo que as paredes a sua volta estão
escurecidas, úmidas. Há somente um copo de plástico verde em cima do
reservatório de água e o copo é usado coletivamente.
Ao lado do bebedouro, está o banheiro interno masculino, também
coletivo. Suas instalações estão precárias, inadequadas para a segurança das
pessoas, há azulejos quebrados, e a iluminação é fraca; os assentos do vaso
sanitário estão quebrados, não há chuveiro elétrico e a limpeza não é realizada
repetidas vezes durante o dia, o que causa um odor desagradável. Coisas
velhas para pessoas velhas. Eis o que nos parece. Não há manutenção,
reposição de material e adequação do ambiente para servir às pessoas. Eis o
retrato do descaso, e da desqualificação dos sujeitos.
Perto dali, há uma porta que sai para um pequeno espaço aberto, onde
existem dois canteiros com pequenos arbustos entre o primeiro prédio e o
segundo. O telhado segue unindo ambos. Há bancos encostados nas paredes,
onde pessoas passam as manhãs e as tardes. Conversam, ouvem música,
tomam o lanche da tarde. É nesse lugar que acontecem as reuniões religiosas,
com leitura da bíblia e o canto, com frequência semanal. Observo um desses
encontros, onde há pregação, oração e louvor com cantos evangélicos.
O grupo evangélico comparece semanalmente no lar, sendo formado por
um casal. A mulher realiza a leitura de um texto bíblico, o homem canta e toca
o violão e, ambos ‘pregam a palavra do senhor’ aos moradores interessados.
O grupo católico não realiza culto ou missa, mesmo havendo uma
capela para tal, apenas se apresentam como voluntários individuais fazem
doações de material para higiene pessoal, móveis usados, etc.
O grupo espírita é representado por uma pessoa que prefere conversar,
trazer livros, e palestras em DVD para um pequeno grupo, sendo que duas ou
68
três pessoas participam. Não há visitas de grupos de religiões de matriz
africana, como a umbanda ou o candomblé.
A escolha em participar destes grupos é livre e pessoal, não há
obrigações ou imposições para que participem dos encontros. Os grupos
religiosos que visitam o Lar têm como objetivo “levar a palavra de Jesus”,
catequizar, evangelizar, “consolar os aflitos”, convidar para participar de suas
congregações. Não considero totalmente negativo a presença destes grupos,
pois, nestes encontros, há a possibilidade de diálogo, confraternização,
momentos de alegria e descontração.
Outros grupos estão presentes na casa, como por exemplo, um grupo de
estudantes de fisioterapia que por seu turno, auxiliam na terapia e nos
cuidados dos que necessitam de tratamento. Tendo se tornado querido pelos
moradores, por apreciarem sua presença no Lar e respeitarem seus trabalhos.
Há visitas de grupos da “terceira idade”; grupos de estagiários de
Serviço Social das faculdades e universidades existentes em Rio Branco e de
pesquisadores – como eu – que se dirigem ao lar com diferentes interesses e
expectativas.
Todavia, o que diferencia a minha presença dos demais grupos? Na
condição de pesquisadora, na produção de conhecimento, procuro o diálogo
com os moradores do Lar Vicentino, para aprender com as pessoas, apreender
as culturas ali existentes, descobrir outras possibilidades de pensar sobre a
vida; a existência; as escolhas; as astúcias e as produções de cada sujeito, que
aceite compartilhar sua experiência.
Diferencio-me dos outros grupos visitantes, na medida em que, não
estou ali para evangelizar, catequizar, “salvar almas perdidas”, conquistar
adeptos ou fazer proselitismo. Não lanço para meus entrevistados o olhar de
piedade, ingenuidade; ou, o olhar e a postura “acadêmica”, erudita, letrada, que
deseja “explicar” o mundo sob sua ótica. Não creio na postura romântica que
busca uma origem, uma tradição, tão pouco, não pretendo “civilizar os
desfavorecidos da sorte”. Busco estar presente no diálogo com os sujeitos da
pesquisa a fim de compartilhar experiências, interpretações, sentidos e
significados no entrelaçamento das culturas.
Deste modo, percebo o quão singulares são meus entrevistados.
Fazem escolhas a todo o momento. Não participam de todos os grupos que
69
visitam o lar. Fausto, Ivan, Tereza, José Francisco, Nergino são alguns dos
meus entrevistados que não participam dos cultos religiosos. Afirmam que não
gostam e não possuem interesse. Antonio Batista, às vezes, senta por perto e
ouve. Ivan diz que nem se dá ao trabalho de ouvi-los e que quando quiser um
milagre vai até a Igreja. Tereza conclui que “essas pessoas falam, falam de um
jeito enrolado que a gente não entender. Pensa que nós é besta! Promete um
monte de coisa, mas é só conversa, só enrolação”.39
No estatuto do Lar Vicentino, o art. 7º Parágrafo único dispõe que:
somente serão permitidas nas dependências do Lar Vicentino, realizações de
eventos religiosos de caráter católico. Na prática o estatuto não é respeitado,
pois, não está em consonância com o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/art.50 -
Das obrigações das entidades de atendimento, no inciso X: propiciar
assistência religiosa àqueles que desejarem, de acordo com suas crenças.
Ao permitir a entrada de grupos evangélicos, entre outros, a direção da
entidade tenta cumprir o que prevê o Estatuto do Idoso, descumprindo as
regras do regimento interno do Lar, que permite apenas as “realizações de
eventos religiosos de caráter católico” (art.7º, parágrafo único).
Em contraposição aos meus entrevistados, que possuem no âmbito do
asilo, certas liberdades e possibilidades de escolha; há um grupo que não
dispõe das mesmas possibilidades e vivem sob restrita liberdade, sendo
“vigiadas". O grupo, ao qual me refiro, é constituído pelas mulheres do Lar
Vicentino, ou seja, moradoras da “ala feminina”.
Cabe aqui ressaltar que minha entrevistada Tereza Ponce Capóia
residente na “ala feminina”, porém, diferencia-se desse grupo de mulheres,
pois não está ali “internada” devido ao diagnostico médico, e sim por outras
razões, as quais explico mais à frente no capitulo III
Há um portão que separa a ala feminina da ala masculina. Algumas
vezes, encontro este portão trancado com um cadeado ou atado com uma faixa
de gaze, ou com uma luva descartável. A ala feminina é composta por oito
quartos bem arejados, com janelas grandes, com boa claridade, muito limpos.
Há um espaço interno, coberto com mesas e cadeiras, um televisor e uma
geladeira para uso coletivo. Um banheiro coletivo, com instalações novas,
39 Entrevista realizada em 06/04/2010.
70
porém, sem manutenção, pois falta consertar uma porta e um sanitário
inutilizado. No pátio interno, existe um espaço ao ar livre com uma grande e
frondosa árvore, mas o quintal está descuidado, há pequenos vasos de
plantas, um banco embaixo da árvore. As mulheres preferem ficar na área
coberta, ao redor da mesa ou nos bancos das varandas.
Volto ao corredor principal, que se abre para outra ala, essa ala possui
três quartos à esquerda, uma dispensa para guardar mantimentos, uma área
de convívio com uma grande mesa e cadeiras, um aparelho de televisão, um
banheiro ao fundo utilizado pelos funcionários da casa. À direita fica a
lavanderia, a cozinha, o refeitório, a enfermaria, o consultório médico e a sala
de fisioterapia. No corredor próximo à parede esquerda, ficam enfileiradas as
cadeiras de roda.
Um dos quartos é destinado aos internos que necessitam de cuidados
especiais, uma espécie de “DTI” (Dormitório para Tratamento Intensivo), com
camas hospitalares usadas, doadas pelo hospital Santa Juliana, sendo que tal
quarto possui três leitos. O ambiente é claro e arejado. Os outros dois quartos
seguem o mesmo padrão dos demais, camas simples de madeira, colchões
velhos, cômodas para uso coletivo. Nesses quartos residem as pessoas com
dificuldade de mobilidade que necessitam de cuidados e acompanhamento
constante dos enfermeiros e dos “cuidadores”, tais como: auxílio no banho, na
higiene diária, na alimentação e no vestuário.
No fundo do corredor há um espaço para convivência, ali algumas
pessoas assistem a programas, novelas e filmes pela televisão. Nesse espaço,
há uma mesa com cadeiras e um banheiro, o qual é utilizado, coletivamente,
pelos funcionários da casa, o que constitui uma apropriação do espaço, tendo
em vista que já que o referido banheiro destina-se às pessoas que ali residem,
conforme explico logo abaixo, necessitam de um local adequado para sua
higiene diária.
A sala de passar roupas fica logo em frente à área descrita, servindo
também como refeitório para os funcionários da casa. Ao lado, fica a cozinha
que tem um bom tamanho; é clara e arejada, com uma pia grande, uma mesa
média ao lado do fogão industrial, uma pequena despensa para o
armazenamento dos utensílios da cozinha, armários de madeira para guardar
71
copos, talheres e pratos. Entre a cozinha e o refeitório, há um balcão com um
microondas instalado, no canto.
Da cozinha para o refeitório, vejo uma mesa grande e larga e quatro
bancos ao longo de suas laterais. A maioria dos moradores faz, nesse espaço,
suas principais refeições do dia: café da manhã, almoço e jantar. Alguns
moradores preferem alimentar-se em seus quartos, levando seus pratos de
sopa, pães e frutas para lá, e, reservam suas porções para saborear quando
bem lhes aprouver.
Esse é um costume que desagrada alguns funcionários, pois estes
reclamam que “dá baratas”; que se trata de “mania”, fazer as refeições em seus
quartos; que causa problemas de higiene e gastos com dedetização. A
administração da casa orienta para que todos façam as refeições no refeitório,
mas alguns moradores seguem com seus hábitos.
Observo a persistente luta para manter antigos costumes, posto que, ao
fazer as refeições, alguns moradores escolhem a melhor maneira: a partir da
necessidade; escolhendo o local que lhe for agradável, íntimo, pessoal e
reservado, sendo seus quartos, local para repouso, mas também, para fazer
refeições.
Ao decidir não fazer as refeições em local estabelecido pela
administração do Lar, junto aos demais moradores, em um local comum,
impessoal, coletivo, com regras especificas, esses moradores demonstram
recusa à uniformização e uma forte resistência em manter antigos costumes,
bem como resguardar suas individualidades, identidades e culturas.
A “mania” de fazer as refeições no quarto, como julgam alguns
funcionários do lar, pode estar relacionada com aquilo que representa o quarto
para seus moradores. Talvez, não sejam apenas quartos, mas sim “seus lares”,
um lugar onde não somente sirva para o repouso, mas, para descansar,
conversar, receber visitas, e por que não fazer suas refeições?
Em seus quartos, que os indivíduos, talvez, se sintam um pouco mais
livres das regras e normas da administração, representando também um lugar
de autonomia, de liberdade. O quarto é um lugar de refúgio e resistência às
normas e padrões disciplinadores dos antigos costumes e modos de vida.
O discurso da higiene e saúde contribui para tentar “convencer” os
moradores a cumprir as regras e não causar “desordens” e ou “descontroles”,
72
ao cumprirem os horários previstos para as refeições, nos lugares
determinados para cada função, tornando-se educados, com a finalidade de
manter a higiene. “Cada indivíduo no seu lugar, e em cada lugar, um individuo
(...). A disciplina organiza um espaço analítico” (FOUCAULT, 2008, p. 123).
Desse modo, para estabelecer e exercer o controle dos corpos:
importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, portanto, para conhecer, dominar e utilizar (...) A disciplina cria localizações funcionais, espaços úteis, distribui e divide estes espaços, com rigor (FOUCAULT, 2008, p.123).
Ao apresentar minha visão sobre a estrutura arquitetônica, os ambientes
físicos e sociais do Lar Vicentino, com seu histórico e territórios, ou seja, os
lugares habitados pelos sujeitos pesquisados, procuro não apenas descrever,
mas situar o lugar onde vivem os sujeitos e ainda situar o local onde escolho
fazer este estudo.
Minha perspectiva é provocar a sensação de descoberta para aquele
que entra pela primeira vez em um lugar desconhecido, e se surpreende com a
experiência. Também tentar auxiliar na ruptura com certas dúvidas,
pressuposições e pré-julgamentos a partir do olhar de fora. Tentei explorar o
ambiente e delimitá-lo para mudar a perspectiva e assim olhar a partir de
dentro do lar.
Tal exercício é uma descoberta e um convite para compreender as
relações interpessoais que ocorrem cotidianamente no asilo. Ao olhar para o
Lar Vicentino, quais as questões que provocam nossa curiosidade? Que lugar
é esse? Quem vive ali? Como vivem seus moradores? Por que decidiram viver
em um asilo para velhos? São todos “pobres velhinhos desamparados”? São
todos abandonados, rejeitados por suas famílias? Como são tratados? É um
lugar que maltrata quem ali vive? Eles estão ali no fim da vida, à espera da
morte? O que pensam, sentem e falam sobre si? Qual a crítica que produzem
ao analisar suas próprias vidas?
73
Diálogos, vozes e deslocamentos sociais: o encontro com o “outro”
José Francisco de Carvalho40, 85 anos, devoto de Nossa Senhora da
Aparecida, conta que em sua cidade natal São Gonçalo do Sapucaí, sul de
Minas Gerais, as festas religiosas duravam uma semana, ele participava das
congadas, dançava, cantava e tocava viola, se confessava, comungava. Toda
a família, parentes, compadres e vizinhos participavam. Era um acontecimento
religioso, social e cultural, espaço para encontro, casamentos e batizados. Seu
rosto se ilumina quando narra sua experiência:
Quando tinha festa fazia quermesse, semana santa... tinha uma casinha na cidade, nós alugava. Eram oito dias de festa, ia uma turma “festá”, aí vinha, aí depois ia a outra. Ficava numa casa alugada. Levava mantimentos de casa (da roça). A congada, a festa do divino, a festa de São Benedito, de Nossa senhora do Rosário... É bom demais, num é essa desconfiança que tem hoje nos outro lugar, né! Eu mesmo era rapaz moço, levava seis, sete, oito moças nas festas. Tudo por minha conta. Festa de ano novo os pais deixavam ir.41
José Francisco fala de um tempo que se findou; as festas; as
comemorações e de como sua família se preparava para participar destes
rituais e tradições. Havia tempo no sentido de duração, período em que era
destinado para “as festas oito dias”. Alugava-se uma casa, levavam-se
alimentos para as famílias e amigos que juntos festejavam.
Ao relatar, exclama, no tempo presente: ‘É bom demais!’, atualizando os
sentidos e sentimentos vivenciados nestas festas, e, além disso, faz a crítica:
“num é essa desconfiança que tem hoje...” A desconfiança, para José
Francisco, afetou as relações sociais e o modo de festejar. Eis o re-significar
suas lembranças mais queridas sob a ótica da vida presente.
Eclea Bosi (2003, p.191), assevera que os cultos religiosos com sua
liturgia, cantos e danças se constituem como uma possibilidade de
enraizamento, de refazer os laços afetivos, familiares e sociais com a
comunidade e com os antepassados. Tal processo ocorre através da retomada
de gestos, cantos e palavras, por exemplo, na liturgia de uma missa. Ao
participar dos cultos, preparar o ambiente, os objetos consagrados, cantar,
40 Entrevista realizada em 13/04/2010. 41 Entrevista citada.
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saudar, a pessoa religa-se consigo mesma e com a memória dos que já não
estão mais presente.
Pergunto a José Francisco se ele ainda toca a viola. Ele diz que agora
não toca mais, porque não tem mais sua viola, mas conserva a unha do dedo
polegar na medida certa para dedilhar o instrumento. Canta a canção de
saudação de São Gonçalo, demonstra a coreografia dos romeiros que
participavam da festa e diz: “a gente leva todo ano as viola pra benzê, né. É um
costume antigo dos tempos dos reis de Portugal, eles que trouxeram pra cá, é
muito antigo”.
Rotina no asilo/exílio: sentimentos e vivencias dos moradores
A religiosidade vivida, hoje, no Lar Vicentino, é bem distinta da
experiência religiosa de José Francisco, na qual havia fortes elementos
culturais, relações sociais entrelaçadas; enraizadas a partir da relação do
sujeito com o lugar onde nascia e vivia. No asilo, não há mais a vivência de
uma religião ancorada em uma cultura. Tereza esclarece seu ponto de vista,
sobre um grupo religioso que visita o Lar Vicentino semanalmente:
Milha filha mora em Juína, em Mato Grosso, é um cidadão (cidade grande) que é a coisa mais linda. Esses dias um senhor, de uns crentes, vieram trazer bolo, que de vez em quando eles trazem. Ele disse: “dona Tereza a cidade tá a coisa mais linda’. Lá tem a rádio, se eu achasse o endereço da rádio.42
Tereza conta que o pastor, membro de um dos grupos religiosos
evangélicos que costuma visitar o lar e conhece a cidade de Juína,
comprometeu-se em encontrar sua filha, mas “só ficou na conversa” nas
palavras de Tereza. Tal promessa representa uma estratégia de apelo
emocional para fazer com que a pessoa participe dos cultos, frequente a igreja,
e se torne membro da congregação, e, deste modo, é possível alimentar a
esperança do reencontro com um ente querido.
Nas palavras de Tereza, a ação dos grupos religiosos é assim definida:
“só fala, fala muito pra confundir a cabeça da gente”. Ela percebe que não há
compromisso ético; apenas palavras para convencer, para seduzir ou encantar
42 Entrevista citada.
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quem as ouve. O objetivo é o proselitismo. Na atitude do pastor, mesmo sendo
com “boa intenção” está presente um olhar para as pessoas que ali vivem,
julgando-as ingênuas, carentes ou manipuláveis.
Souza (2003) analisa o asilo como uma instituição burocrática, onde a
configuração hierárquica se dá a partir do lugar que cada um ocupa no seu
interior. Lugar esse onde se estabelece relações de poder que expressam uma
organização e são materializadas em suas normas e regulamentos. “Na
condição de internos, o idoso se encontra submetido a um conjunto de regras
que serão postas em vigor por meio de estratégias...” (SOUZA, 2003, p. 2).
Além das regras explicitas, há regras informais, mais “sutis”, que
ocorrem pela manipulação de privilégios e punições, convencendo o interno a
tornar-se obediente e assim “adaptar-se”.
Observe o relato de Ivan José de Oliveira43, 61 anos sobre sua
experiência conflituosa em viver no Lar Vicentino, pois é alguém que precisa
dos cuidados alheios, mas não aceita as normas e regras, e questionando
incansavelmente as atitudes de alguns funcionários, tentando exercer a sua
cidadania:
Um copo com água vai daqui pra ali e passa quarenta minutos. Que é isso? A assistente social, dona Ivone, a irmã dela trabalha no Banco do Brasil. Ela me trata bem, e eu a respeito muito. Então tem por obrigação me tratar bem. Por que eu a trato bem, porra! Eu posso ter um milhão de problemas, você vem conversar comigo eu vou estourar com você? Por quê? Que direito... Eu tenho... Que direito eu tenho? Me diga? Qual direito eu tenho pra lhe tratar mal? Me diga? Não... Eu tenho que lhe tratar bem! Se eu tiver com problema eu tenho que me virar. Mas lhe tratar mal nunca! Não sou muito de dividir não. É o problema! Quando eu to com dinheiro eu não tenho problema não. À noite eu assisto “cama de gato” (telenovela) Eu gosto. Tem o sobrinho do Chico Anísio, como a figura principal, Marcos Palmeira. Eu assisto à novela dele. (Olha pro cartaz fixado acima da TV) e diz: Eu não sei quem foi que escreveu isso (regra: Permitido assistir TV até às 21 horas). Isso aí não tá dizendo nada. Por que isso aí eu faço mil vezes melhor. Eu não sei quem tentou fazer isso. Não tá dizendo nada. Esse negócio de regimento interno. Que negócio de regimento (...). Eu vou comer agora, pra noite eu não comer mais. Por que a noite é horrível! É pão ruim com café frio. Eu vou comer logo agora (...). Com esse aí eu converso (Nergino Eustáquio). Tens uns aqui que por mim eu não dava nem bom dia. E eles tão dando sorte que eu não to podendo andar. Eu vou voltar a andar por esses dias, você vai ver o que eu vou fazer com eles (...). Esse aí tem uma história pra contar. Ele é um homem culto. Ele não é pangaré igual à gente não. (sobre Nergino Eustáquio). Eu tive um problema de derrame. Diz meu irmão que já conhecia isso aqui. Eu acho que ele não conhecia bem não. Eu acho que ele não conhecia
43 Entrevista realizada em 05/01/2010, Rio Branco/Acre.
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como eu conheço, não. Nem com ele morando aqui há 300 anos. Se eu fosse ele o levaria para minha casa, minha casa. Mas eu sou eu e ele é ele. Ele não conhece isso aqui não (...). Eu pedi até aqui (para fazer contato com a minha família) pra... Aqui tá assim... Aquelas desculpinhas que eu não gosto. Digo assim: “Tá bom, tá bom, não precisa não. Tem um amigo que tem computador dei os dados a ele. Ele vai conseguir pra mim, muito obrigado, desculpe lhe incomodar”. Hoje com o computador com quinze dias não resolvi isso não? Que isso rapaz (...). Não deixo essas daí (funcionárias) fazerem minha barba não. Um horror! Machuca tudo, faz com má vontade. Eu to esperando o Arruda, o enfermeiro, eu só faço a barba com ele. Ele é profissional (...). Aqui ninguém dorme bem, tem um cara que tá ali, se viu um cara tossindo ali? Esse cara mora lá... Ele dorme lá onde eu durmo. Ele dorme lá. Como ele tá fazendo agora, ele faz a noite e ninguém fala nada! E pra mim dormir, eu sou meio chato, eu não durmo com barulho. Não durmo! Não adianta falar não (...). Ele tosse por que ele quer! Porra! Que isso rapaz (...). Um dia deste eu tava meio jururu. Eu não notei não, mas as meninas da fisioterapia notaram. É um ‘negocinho’ ruim! Acho que era um principio de depressão. (...). Eu não to dizendo, aqui, parece que eu to em outro país. Eu, sendo brasileiro. As pessoas pra me entender é uma briga. Eu até pergunto: “Tem alguém aí que fala um pouquinho de português?” Porra! É difícil de me entender, só isso! Além de ser difícil de me entender, eles tem (põe o dedo na cabeça) muito curto. Oh, meu Deus! Que quê isso? Não gosto disso não! Por onde eu passei eu conquistei amigos. O único lugar que eu não fiz amizade foi aqui. Eu vou lhe dizer uma coisa. A Volkswagen em São Paulo tem trinta mil funcionários, isso aqui, tamanho de uma bunda de uma galinha, com seis funcionários, tem mais fofoca e falsidade do que na Volkswagen (...). Uma das coisas que tinha que mudar é o seguinte: eu não gosto de gente com duas caras. Não gosto, não adianta. Nem respondem, sabe. Uns tapado. Uns tapado. Eu não tenho amigo aqui não e nem quero. Fico na minha! Pronto, acabo. Fico sentado, sozinho, acabô. Fico sonhando com a mega-sena, quem eu vou ajudar. Ave Maria (...). Por isso eu sou a favor do pagamento. Às vezes eu fico apertado pra ir ao banheiro, aí eu peço a essas moças aí que trabalham aqui. Por que elas, quem paga elas somos nós, veteranos. O desconto daqui é 70% do meu ordenado. 70%? Eu deixo o dinheiro todo aqui! Aqui! Primeiro aqui! Eu peço, ficam arengando: “Não, não sei quê” Não quer ir, vai com má vontade. Eu digo: “Menina, quanto tu quer pra me levar ao banheiro? Que vinte contos?” Isso é quando eu recebo dinheiro. Aí ela diz: “Tudo bem”. Quer vinte contos pra colocar no teu celular? Tu me leva? “Levo”. Então pronto. (faz o gesto: oferecendo o dinheiro) “Não, não quero”, diz a moça. Digo: “tome, aceite”. Pra mim é horrível. E eu não tenho muita paciência. Eu sempre fui assim... Eu não sei esperar não. Eu sempre fui velho. E essas perguntinhas bobas? Ih, rapaz! Isso aí me mata (...). Aqui, aqui cinco e meia da manhã ninguém dorme mais. Tem um a mulher aí parece uma galinha d’angola. Falam alto. Elas fizeram enfermagem. Tudo. Eu digo: “parece que vocês não fizeram”. Eu até perguntei pra uma hoje: “você cursou enfermagem numa fábrica de alumínio?” “Por quê?” Ela perguntou. Eu digo: “como é que têm certos desenhos em hospital, em casa de repouso, maternidade, uma enfermeira bonita assim (faz o gesto: dedo na boca indicando silêncio). Vocês não fazem silêncio?” Eu não entendo mais nada. Aí depois na minha ausência, eles ficam falando de mim, diz que eu sou ignorante. Eu posso até ser ignorante, só não sou burro. Não sou burro, nem engano. Eu não conheço só Rio Branco, não, eu dei uma andadinha boa (...). Estatuto? Agora eu quero ver se funciona. Eu quero saber como é que funciona. Igual aqui. Agora, eu que... Saber
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como é que funciona... Eu vou pra 62 anos. To começando a ficar velho, mas eu quero saber como é que funciona. Igual aqui, pra quê escrever aquilo ali (Mantenha o ambiente limpo) Pra quê? 100% daqui são analfabetos, inclusive eu.44
O depoimento de Ivan apresenta inúmeras críticas a respeito de
diversos aspectos do asilo. Entretanto, é necessário para analisar e
compreender suas queixas, um olhar sob a perspectiva da relação entre Ivan e
alguns funcionários. Já que Ivan não acata “ordens”, muito menos aceita
qualquer tipo de tratamento; ele mesmo se considera “sem paciência”; “velho”,
no sentido de ser intransigente e “ignorante”, no sentido de grosseiro. De
qualquer modo, as críticas e análises que faz sobre o Lar são claras,
pertinentes e agudas.
Falta de diálogo e atenção, a demora no atendimento de suas
necessidades, as regras que não compreende; a alimentação “fria” e “ruim”, a
perda dos vínculos familiares, o pagamento obrigatório e compulsório de “70%
do seu ordenado”, o que não lhe garante cuidados adequados, afeto, dialogo e
atenção. A falta da amizade, a incompreensão e rejeição, pelo modo como fala,
às vezes, soa de forma grosseira para alguns funcionários e Ivan se sente um
estrangeiro, em seu próprio país, conforme afirma.
No território do Lar Vicentino, ele pergunta: “Alguém aqui fala um
pouquinho de português?” Mas afinal, o que deseja Ivan? Talvez, o que deseja
a maioria das pessoas, se traduz por: atenção, respeito, afeto, alimento quente
e saboroso, cama aconchegante, silêncio, bom sono e diálogo.
No entanto, Ivan não faz concessões, não se submete, e sim, protesta.
“Por favor, sem perguntinha besta”, me disse, cansado de ser tratado como
alguém desprovido de vontade própria e de capacidade de refletir, escolher e
posicionar-se frente ao mundo e as coisas do mundo. “Eu posso ser ignorante,
mas não sou burro”. Arremata Ivan, para, em seguida, ficar em silêncio, calado
com seus pensamentos e juízos.
Para Nergino,45 as maneiras de transitar no Lar e de se relacionar com
as pessoas são outras. Primeiro por que ele não está na mesma condição de
Ivan, o qual faz uso de uma cadeira de rodas, necessitando, nesse caso, de
44 Entrevista citada. 45 Entrevista realizada em 29/03/2010. Rio Branco/acre.
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auxílio até para ir ao banheiro. Nergino pode locomover-se e cuidar de si
mesmo. Veja o que diz sobre morar no Lar Vicentino:
Aqui o tratamento é bom, a medicina, os médicos tudo é bom, na medida do possível, é bem... Tem toda a assistência, principalmente aqui dentro. Dificilmente, apesar dos pesares do nosso SUS – Sistema Único de Saúde, não é tão eficiente, mas dentro do possível é dez. Por que não falta remédio, não falta nada, não falta médico, roupa limpa, toalha, sabonete, creme dental, tratamento dentário, aqui dentro tem. Aqui dentro do lar. Eles se viram aí vão atrás do doutor aí... até prótese dentária já conseguiram pra muita gente aqui. Não no meu caso, mas vejo fazer pros outros também. Quer dizer, na medida do possível... É uma entidade que eu acertei (...) eu conversei com a Ivone, grande amiga, era a assistente social aqui (...). Por que com o supérfluo eu não gasto, não gasto a toa. Por que em vez de eu pegar ônibus, todo dia, eu fui a pé ao Detran, peguei a carteira, que eu sou deficiente visual, e tenho direito ao passe livre. Ao passo que muita gente que tá aqui dentro não faz isso. Eu falo: ‘Vamo lá! Fica três quarteirões daqui’. Não vai. Eu, cego, fui lá. Pedi a Maria Helena, que é professora daqui. Maria Helena é muita amiga minha. “Vai comigo lá?” “Cê sabe onde é?” Fica três quarteirões daqui. Fui lá uma vez então eu contei. Fui lá aprender o caminho. Depois fui lá tirar a carteira. Então eu sempre procuro... Eu vejo o lado bom das coisas (...). A economia é à base da prosperidade, mesmo que não prospera, mas pelo menos na hora que precisa tem. Ninguém sabe o dia de amanhã. Ninguém é adivinho (...). Meu salário tá muito defasado agora... só to com um salário mínimo, eu ganhava R$ 1.100,00 na época quando eu... encostei... que me deram o seguro... pra, pra desemprego... que seria o... auxílio doença... pra depois eu me aposentar. To só com o auxilio doença (...). Eles sabem que eu to aqui (família). Depois que eu fiquei cego, eu não... Não... Eu quero recuperar, eu vou ao Paraná... Então fica aquele negócio, eu recuperar, se tem condições de me locomover, não chegar naquela condição de indigência, né? Por que eu vou dizer, a indigência não é só... não é só financeira não. A indigência de... até locomover, pra tomar banho, fazer a barba... Leva um tempo (...). Na minha gaveta, se alguém mexe lá, eu fico doido, por que eu coloco as coisas pra mim. Tem cortado de unha, tem barbeador, tem lamina Gilette tem sabonete, tem perfume, é fácil pra gente saber. O perfume tem o musk, o cashmere bouquet ou qualquer perfume, sei escolher pelo cheiro, já tá ali, o tamanho do frasco... Já sei a posição certa. O cortado de unha, tudo. Sabonete, toalha, roupa limpa, roupa suja. Eu nunca deixo roupa suja no quarto, eu ponho pra fora, prá num dá mau cheiro. A gaveta minha, a mala... Eu sempre fui muito de, de... Cuidar da roupa...46
Nergino não se sente desrespeitado no asilo, avaliando que ‘na medida
do possível, o tratamento é bom.’ Preocupa-se com questões imediatas, tais
46 Entrevista com Nergino Eustáquio, realizada em 29 de março de 2010. Nergino trabalhava em uma fazenda, onde era almoxarife, motorista, responsável pelo abastecimento de mercadorias e produtos. Ao fazer a limpeza do poço artesiano da fazenda, feriu seus olhos com um produto químico que o cegou e deste modo parou de trabalhar. Decidiu morar no lar Vicentino para receber o devido tratamento de saúde. Atualmente saiu do lar para casar-se, vive com sua esposa que também é cega.
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como: remédios, itens de higiene, médicos e ‘um lugar pra dormir que não
chova.’
Nergino recebe um tratamento melhor do que Ivan? Observo
atentamente como conversa e solicita aos funcionários algo do que precisa.
Extremamente educado, contido e bem humorado. No entanto, é muito
exigente quanto a alguns atendimentos dos funcionários, como levá-lo ao
médico em dia e hora previamente marcados. Qualquer atraso faz Nergino,
então, reclamar à coordenação, com firmeza e polidez.
Noto que sua vida profissional contribuiu para “educá-lo” para conviver
coletivamente em uma instituição. Trabalhou como vigia noturno, cozinheiro,
pedreiro, garçom, segurança de banco. Através do treinamento, recebeu
noções de disciplina, ordem, obediência, resistência física, cumprimento de
ordens, todas estas habilidades auxiliam Nergino a “adaptar-se” com mais
facilidade ao asilo, conforme suas palavras: “Meu pai forçava o pessoal a
estudar, forçava a gente a aprender. Meu pai foi militar, ex-combatente do
exército brasileiro e ferroviário”.
Nergino valoriza a disciplina e a ordem e explicando como deve estar
arrumada sua gaveta, “cada coisa em seu lugar”, de modo que lhe ofereça
segurança e a possibilidade de independência.
Converso com José Francisco47. Ele está há cinco meses no lar
Vicentino. Morava em Acrelândia e veio para Rio Branco providenciar a
segunda via de seus documentos pessoais, perdidos em um incêndio. Para ele,
o “pessoal” do Lar Vicentino:
é bom, trata a gente bem. Não conversam muito, só mesmo sobre os documentos e a aposentadoria. Conversa mesmo, da vida, dos lugares que eu passei, assim como a gente conversa, aí não. Só mesmo coisa de documento (...). Eu sou general expedicionário do exército brasileiro. E num é disso que eu tô atrás? Da aposentadoria. Por isso que eu tô aqui, pra me aposentar. Ninguém me aposenta. Por isso que eu tô aqui. Tem todos os papéis, tem tudo. Precisa ter com quem conversar, para chamar a pessoa conhecida. Com quem a gente conversa não entende. E agora? (...) Que hora são agora? Esse lanche deles aí... É eles faz uma farofa, me faz mal. Eu tomo leite, como pão, banana tem de fartura... Pão de milho. Agora no almoço, eu almoço bem. Num é que bom. É diferente a janta, né? Eles fazem farofa e eu passo mal. Eu fico... tem vez que eu paro de comer. Não é todo mundo que pode comer... E aquele que tá doente?
47 Entrevista realizada em 13/04/2010. Rio Branco/Acre.
80
Então tem dia que eu como só banana, pão com manteiga. Aqui tem fartura de pão, de leite.48
Nesse pequeno trecho da conversa, podemos observar a análise crítica
a qual realiza ao relatar com sutileza o modo como o tratam: “Não conversam
muito”, ou seja, se conversa apenas questões burocráticas, na pressa do dia-a-
dia não se interessam pela vida; pela trajetória das pessoas.
Não pretendo aqui julgar a melhor forma de atendimento, ou
simplesmente criticar as pessoas que ali trabalham e apontar falhas, mas sim
mostrar uma compreensão acerca da via de mão dupla, pois, de um lado,
temos a administração do Lar e do outro, os idosos residentes que desejam e
necessitam participar qualitativamente no Lar, ou seja, serem ouvidos em suas
necessidades; consultados sobre mudanças que incidem diretamente em suas
vidas, visto que a entidade existe para acolhê-los, e mais ainda, esses sujeitos
contribuem mensalmente com 70% de suas aposentadorias, sua participação
representa não somente respeito, mas também significa direitos adquiridos
enquanto cidadão.
A interpretação que José Francisco faz das relações sociais me parece
muito significativa para se perceber o quanto não há diálogo, havendo somente
uma preocupação em cumprir suas funções e a impossibilidade de ser
compreendido em suas “necessidades” gera, no sujeito, sentimentos de
incompreensão, desvalorização e isolamento. Ele desconhece os motivos da
sua não-aposentadoria; confia na intervenção de “uma pessoa conhecida” que
encaminhe seus documentos. E pergunta: “E agora?”
José Francisco preocupa-se com as normas estabelecidas, horários e
regras. “Que hora é agora?” pergunta. Alguém toca a sineta para o jantar,
servido às 16 horas (é servido neste horário para facilitar a troca de
funcionários do turno da noite). José Francisco pára a conversa e explica sobre
a ‘farofa’ oferecida no jantar. Tereza e Ivan também já comentaram sobre esta
refeição ‘dura’ e ‘seca’. Estas são as definições: “dura” e “seca”, como não
fazer uma associação direta com as relações sociais que atravessam o lar:
“dura” e “seca”.
48 Entrevista citada.
81
“Temos fome de pão e qualidades”, diz Gonçalves Filho (1992, p.16),
sugerindo de forma instigante na qual o alimento sem a presença do afeto de
nada serve, na alimenta a alma, o ser. A alimentação do asilo carece de
qualidade, não apenas na composição e escolha dos alimentos, mas, também,
daquelas qualidades empregadas no preparo do alimento. José Francisco
ressalta: “tem vezes que eu paro de comer”, demonstrando sua
insistência/desistência em alimentar-se. Faz concessões, tentando “adaptar-
se”, mas, às vezes, prefere somente banana, pão e leite. Aproveita o almoço,
talvez mais apetitoso e questiona: “e aquele que tá doente?”
Afinal, todos devem aceitar o mesmo cardápio? E as particularidades de
cada um? Ao relembrar sua história de vida nas fazendas em que trabalhou; da
infância em Minas Gerais, onde o alimento significava colheita, trabalho,
“fartura”, comunhão e comemoração. Em contraposição, no Lar Vicentino, o ato
de alimentar-se para José Francisco, exige um esforço, pois as “farofas”, como
as relações sociais, são duras e secas.
Tecendo os fios de sua experiência vivida no Lar Vicentino, Carlos
Costa,49 de 56 anos, interpreta sua trajetória, reconhecendo suas dores e
sofrimentos nas dores e sofrimentos de seus companheiros de caminhada:
Eu tive um derrame. É uma coisa que dá que a gente acredita que só dá em pessoa idosa. Por que tem colega de vinte e cinco anos que “pegou” um derrame também (...). Um amigo meu, me via (no hospital) me reconhecia. Eu não reconhecia nada, nada. Aí eu fiquei pensando, pensando... Aí depois, quando me levaram pra o INSS, pra ver se me aposentava lá, né. Aí eu não sabia de nada, aí quando eu saí do Pronto Socorro, eu olhei... digo “eu conheço esse... Eu... Perdido. Eu fiquei... Os médicos mesmo assim não aceitaram. Não me aposentaram. O que podiam fazer era me encostar” (licença por acidente de trabalho). Eu nunca tinha ganhado só um salário... Nos lugares que eu trabalhava... Quando o salário mínimo era dez cruzeiros na época de 79... Eu ganhava cinquenta cruzeiros. Eu ganhava. 50
“Eu ganhava”. Com essa constatação de um pretérito que acusa perdas
no presente, Carlos fala de um tempo em que se sentia vencedor e valorizado.
Um tempo de vitórias, pois, agora ele sente que está perdendo. O que Carlos
está perdendo? Ele considera, não somente o ponto de vista financeiro, mas
49 Entrevista realizada em 05/04/2010. Rio Branco. 50 Entrevista citada.
82
também demonstra a insatisfação do sujeito que se sente desqualificado,
“encostado” a espera de melhores tempos.
Carlos ressalta a importância do grupo de amigos que além do apoio, da
companhia e do carinho; também lhe auxiliam a lembrar quem é, ou seja, sua
identidade, de homem trabalhador, competente e estimado. Meu entrevistado
compartilha os sucessos e os fracassos, buscando a confirmação de que é
mais do que um morador do Lar Vicentino, que sofreu um derrame, ou seja,
deseja construir uma representação plural e vitoriosa de si mesmo.
Eu passei por um momento difícil, mas agora eu me sinto, graças a Deus, bem de saúde (...). Aqui, a gente gosta, por que todo tempo o pessoal é... Tem muita gente legal aqui. Só tem uns caras que são meio ruins, mas é uma coisa que a gente não liga pra isso. Se num vai com a cara, a gente vai prá cá. Muita gente vai no caminho errado (...). A mulher lá... Aqui (refere-se à coordenadora) não vai com a minha cara, num sei por quê. Quando ela veio quinta-feira, ela disse que eu podia fazer o que eu quisesse que eu nunca ia ficar bom disso. A senhora aí... Aí eu disse pra ela “Tá bom”, digo: “Olha, só tem uma pessoa que fala se eu vou ou não vou. Que eu acredito que é o Nosso Senhor, e mais ninguém. Ele sim.” (...). Quando eu cheguei aqui não falava, não andava. Quer dizer já tava falando, mas bem pouquinho. Agora não. Tô andando numa boa. Todo dia, todo dia fisioterapia. Agora eu tô melhorando.51
Carlos passou por difíceis experiências, não tinha a compreensão de
que um derrame pode ocorrer a qualquer pessoa, e não somente em “idosos”.
Sua condição de saúde o leva para um asilo, em princípio para acolher
“idosos”, passando a receber apenas um salário mínimo e deixando de
trabalhar. Ele conta que foi o incentivo de amigos e a sua fé que fez com que
melhorasse.
No hospital, o médico lhe disse que não acreditava em sua melhora. Na
perícia médica do INSS, não o aposentaram, alegando que ele era muito novo
e poderia ter uma boa recuperação. Imobilizado parcialmente, Carlos passou a
levar “uma vida de pensamentos”, tentando recuperar a memória e, aos
poucos, vai retomando os movimentos do braço, da face direita, a fala. Suas
lembranças se aguçam a partir da visita ao INSS: “eu olhei... Eu conheço este
lugar”. Em busca da “memória perdida” se ampara nos relatos dos amigos que
encontra no Mercado do Bosque e o acompanham em sua recuperação,
através das caminhadas e passeios pelo bairro. 51 Entrevista citada.
83
No asilo vive uma tensa relação com pessoa encarregada pela
coordenação do local e com outros residentes. “Ela, a mulher aí, não vai com a
minha cara. Não sei por quê?” afirma Carlos. Ele não sente o apoio devido à
sua recuperação. No entanto, diz que “o pessoal é legal”, apenas há alguns
“caras ruins”, com os quais Carlos prefere não se relacionar, “desviar” do seu
caminho, o que indica que para se viver no Lar Vicentino, há que se observar
certos códigos de comportamento e conduta. Fazer escolhas, desviar o
caminho, evitar “os caras ruins”, enfrentar desafios e não aceitar que alguém
“profetize” seu futuro.
Fausto52 considera: “aqui cada um chega de um jeito diferente.” Cada
interno tem suas histórias e motivações para morar neste asilo. Alguns por
abandono da família, outros, por doenças, pobreza, desamparo, ameaça de
morte, ou para fugir dos abusos da família. Outros, “escolhem” viver no Lar “por
escolha própria”.
Com a tal afirmação, Fausto pretende se diferenciar dos demais
residentes, considerando as particularidades e histórias individuais. Fausto não
se considera velho, nem “idoso”; não reclama do lugar, afirma que gosta de
viver ali, mas se for preciso protestar contra qualquer coisa que o desagrade ou
prejudique os demais internos diz:
é só ir ao ministério público. Como eu e o Lorival fomos, por que o pessoal aí tava enganando os “velhinhos”, ficando com o dinheiro deles. Aí eu fui lá, eu conheço o pessoal lá. Aí pronto. Chamaram o “chefe aí” pra depor e se explicar. E depois ele até saiu da administração. Se precisar eu vou de novo (...).
Um aspectos que gera muito descontentamento diz respeito a
alimentação no Lar Vicentino, o preparo dos alimentos e o cardápio servido foi
e tem sido motivo de desagrado por parte dos residentes. Tereza, Ivan, José
Francisco, João Bento, meus entrevistados, demonstraram grande insatisfação
com relação aos alimentos oferecidos e a maneira com que estes lhe são
apresentados. Vale ressaltar que o descontentamento com alimentação foi um
dos fatores que orientou alguns residentes a denunciar ao Ministério Público as
condições inadequadas vivenciadas no Lar Vicentino, assunto já apresentado
anteriormente.
52 Entrevista realizada em 09/04/2010. Rio Branco/Acre.
84
Desse modo é um tema recorrente nas entrevistas, pois marca a
condição de “não estar em casa”, e, conflituosamente traz a tona sentimentos,
sentidos e significados relacionados às suas culturas e suas identidades; suas
falas re-constroem memórias de tempos de trabalho, colheita e festejos...
Tempos de dificuldades, carências, de luta, a partir de suas migrações
impulsionadas pelas políticas, justificadas pelas necessidades de melhores
condições para se viver.
Portanto, a crítica feita pelos sujeitos aos alimentos servidos vai além,
esta trata das duras e conflitantes relações sociais e interpessoais, das
relações de poder, de hierarquia e violência; dos “dis-sabores” vividos no
território do Lar Vicentino pelos meus entrevistados. Veja o que diz Fausto:
Aqui eles só serviam osso. Só osso pra comer. (...). Aqui mesmo tem gente que não come macarrão, já diz logo “eu não quero macarrão no meu prato, só quero arroz e feijão”, é daquele costume que não podia comer macarrão. É tinha isso. Macarrão era só pra doutor, aquelas épocas de 30, 35, 36, 38... Era comida de doutor, que comia aquelas comida frita: bife, macarrão, arroz... “Ah rapaz, fulano tá passando é bem, come até macarrão, parece até que é rico já, lá.” Assim se dizia quando a pessoa tava bem de vida. E hoje é tão comum. E a turma diz: “não bota macarrão, pode botá fora”. E eu aproveito e digo: “bota no meu prato”. Aí ela vai e enche a cumbuca de macarrão, só com o macarrão já dá vontade de deixar a outra comida.53
Levando-se em conta que hábitos alimentares demonstram distinção,
posição social e costume. No cotidiano do Lar Vicentino manifestam-se
diferentes formas de percepção do mundo, diferentes práticas culturais que são
estruturadas e ancoradas nas diferentes trajetórias das mulheres e homens
que ali vivem. Desde esse lugar, em que as contestações são armas culturais
para não se deixar homogeneizar na pasteurização de um “bando de coitados”,
as falas e narrativas produzem conceitos que traduzem não apenas a vida da
cidade de Rio Branco, mas a visão de mundo dos sujeitos históricos que ali
vivem.
No tempo dele (governador Jorge Viana) foi desse jeito, paga no dia certo. Com o Binho é do mesmo jeito. É bom, por que o sujeito já tá aperreado por dinheiro, já pega aquele dinheiro antes do mês, né? E eu sou gastador pra daná! Rapaz, por que eu preciso... Agora mesmo (...). Outro dia a coordenadora disse que ia fazer uma horta pra gente cuidar. Eu disse a ela “eu não cuido. Já trabalhei demais, trabalho pesado, trabalhava no roçado da minha família. Mas hoje eu quero
53 Entrevista citada.
85
fazer outras coisas. Não quero serviço pesado. Se precisar de alface só comprar no Araújo, não é? Já tá pronto, limpinho...” Isso é passado.54
Essa intervenção política, consciente e por demais incisiva, é elaborada
e re-elaborada cotidianamente por Fausto Pessoa de Araujo, 76 anos, que foi
seringueiro, garimpeiro e vigia na Secretaria Estadual de Educação do Acre,
onde trabalhou até aposentar-se. Como qualquer sujeito, ele enfrenta os
desafios da vida e deseja experiências mais significativas, atualizando suas
perspectivas de vida no presente vivido. Não aceita disciplinamentos e
ordenamentos, rejeitando as orientações e a indicação de como ocupar seu
tempo, pois, o tempo de Fausto, é o “agora”.
Táticas como essa: a decisão por comprar uma bicicleta para andar no
quintal em frente a casa, são atitudes de rebeldia e contestação, no entanto
delimitadas a partir de um território, o quintal do Lar. Fausto disse-me que tem
medo de andar com sua bicicleta na rua, pois pensa nas conseqüências de um
acidente, tais como: a dependência de outra pessoa e a recuperação lenta e
dolorida. Então, como um “menino rebelde, mas precavido” opta por andar em
sua nova bicicleta no quintal, e, se sente feliz com essa possibilidade. Também
convida Antonio Batista para soltar pepeta.55
Dirijo-me a Antonio Batista,56 86 anos, e o convido a compartilhar
comigo sua perspectiva sobre o asilo. Para ele que chegou e se aposentou no
Acre.
Mas meu dinheiro tá acabando aqui, sem direito a nada. Isso é que eu sinto. Uma embruiada (confusão) Entra um, entra outro e eu fico sobrando (...). Eu tenho 86 anos. Dinheiro eu não tenho, fica na mão deles. Pois num me levaram lá pro HOSMAC? Pegaram minha mala, do meu quarto, com 400 reais na mala e meus documentos, meu talão de cheque, CPF, tão com ele até hoje, e não me entrega. Me levaram pro HOSMAC pra fazer essa sacanagem. Só pra fazer isso (...). Aqui não é bom demais, mas ao menos to sossegado, né? Eu vim escalado pra bacia amazônica. To aqui e daqui eu não saiu (...). A vida tá boa o que eu to sentindo mais é a aposentadoria que fica na casa tá embruiada (confusa). Não vem todo mês não, fica todo na casa, não me dão nada.57
54 Entrevista citada. 55 Pipa; papagaio, pandorga, arraia. 56 Entrevista realizada em 31/03/2010. Rio Branco/Acre. 57 Entrevista citada.
86
Antonio se sente lesado, enganado, e tratado como uma criança. Lesado
em sua autonomia e independência para decidir como gastar o salário que
recebe na condição de aposentado. Ora se sente “embruiado” (enganado), ora
sossegado em viver no lar. Sabe que viver nas ruas, “catando latinhas”, como
já fez para “pagar suas contas”, é cansativo, perigoso e incerto. Também morar
em “casas abandonadas”, como já foi obrigado a fazer é um risco para sua
vida. Prefere o “sossego”’ vigiado do Lar. Todavia, manifesta sua indignação
por estar vivendo sob a “tutela” da administração da casa.
Assim como Antonio, João Bento, 85 anos, soldado da borracha, recebe-
me em seu quarto para uma conversa. Com sua voz fraca, quase inaudível,
fala dos seringais, de como já trabalhou na vida, das festas e caçadas, dos
bichos: companheiros da mata, do ataque sofrido por índios bravos, dos cantos
e rezas que costumava embalar o corte da seringa. Esforça-se para se manter
sentado, seu olhar e entusiasmo é cativante:
Eu sou aposentado pelo Funrural. Fui soldado da borracha. Minha mulher me deixou e foi viver com outro. Aí o cara deixou dela, aí ela voltou e quis receber uma parte da minha aposentadoria. Por que eu tava recebendo a aposentadoria de soldado da borracha. (...). Conversar faz bem, distrai, passa o tempo. (...). Eu não tenho cadeira de rodas só minha mesmo. (...). Fico parado pensando no meu serviço na igreja. Igreja Batista. Na igreja eu canto, eu gosto de cantar, de criar uma música. (...). Eu não saio muito por que eu não gosto de dar trabalho pros outros.58
João permanece em seu quarto quase todo o tempo, a não ser para
tomar banho, fazer exames, alimentar-se. Ao falar de si e de suas ricas
experiências motiva-se, agita-se, sente orgulho de sua coragem, da
experiência de trabalho nos seringais. Enaltece os “americanos” e “russos” por
que: “onde eles estão tem fartura, tem riqueza, coisas materiais”, afirma.
Não possuir sua própria cadeira de rodas é um problema para João
Bento. Considera inadequado o uso coletivo das cadeiras de roda e essa
situação o desagrada ao ponto de preferir permanecer o maior tempo possível
em seu quarto, deitado em seu leito.
João sente a necessidade de seus próprios objetos, podendo fazer uso
destes quando e como lhe aprouver ou desejar. A cadeira de rodas representa
58 Entrevista citada.
87
um espaço, um domínio só seu, bem como uma conquista ao direito a
mobilidade, a liberdade e a dignidade. Uma cadeira de rodas própria tem um
significado importante, pois ai está presente uma simbologia de liberdade e
autonomia de movimentação e locomoção.
As diferentes opiniões e formas de diálogo com o mundo dos sujeitos da
pesquisa e suas experiências, críticas e perspectivas sobre o Lar Vicentino.
Cada um deles, ao seu modo, aborda as relações interpessoais, as regras,
normas, regulamentos e funcionamentos do asilo.
Tomam a palavra e oferecem as suas versões do acontecido, suas
percepções do vivido. Suas questões são urgentes, desafiadoras do presente,
perturbadoras da ordem e das representações culturais e sociais construídas
em torno das imagens da velhice, do idoso, do asilo, da terceira idade, dentre
outras denominações e idéias pré-concebidas. São pessoas críticas e
conscientes do que falam, como falam e de onde falam.
88
CAPITULO III
CORO:
Uma aula de antropologia
Apresentada pelas escravas
O que o nosso número, o número de escravas – o número doze – sugere às mentes
instruídas? Há doze apóstolos, dozes dias de férias no Natal, sim, doze meses. E a palavra
mês o que sugere às mentes instruídas? Sim, o senhor, lá do fundo? Correto! Mês designa as
fases da lua, como todos sabem. Não há coincidência, não há coincidência alguma em que
sejamos doze, e não onze ou treze, nem as oito escravas a ordenhar o conto popular!
Pois não éramos simplesmente escravas. Não éramos meras serviçais ou braçais.
Claro que não! Sem dúvida tínhamos funções mais importantes que essas. Poderíamos ser as
doze virgens, em vez de as doze escravas? As doze virgens selenes, companheira de Ártemis,
a deusa da lua, virginal e mortífera? Poderíamos ser sacrifícios rituais, sacerdotisas devotas
que cumpriram seu papel...
(...)
Mas espere – na verdade, há treze! A décima terceira é nossa Suprema Sacerdotisa, a
encarnação da própria Ártemis. Sim, ela era nada mais nada menos que a rainha Penélope.
Portanto, provavelmente nosso estupro e subseqüente enforcamento representam a destruição
do culto matrilinear da lua, por parte de um grupo de bárbaros usurpadores patriarcais que
defendem um deus-pai. O chefe deles, Odisseu, reclamaria a coroa ao se casar com a
Suprema Sacerdotisa de nosso culto, ou seja, Penélope.
(...)
Poderíamos prosseguir. Querem ver pinturas em vasos, objetos esculpidos para o culto
à deusa? Não? Tudo bem. Mas não precisam ficar nervosos por causa disso, caras mentes
instruídas. Não precisam pensar em nós como moças de verdade, de carne e osso, a sofrer
dores reais, verdadeiras injustiças. Talvez seja muito incômodo. Descartem as partes sórdidas.
Considerem que somos puros símbolos...
Margaret Atwood.
A Odisséia de Penélope.
89
Um lugar para morar é um lar?
O que é um lar? Onde está o lar? Realmente existe o lar ou é uma
construção de sentidos e significados que perseguimos ao longo da vida, a
cada dia, a cada relação que fazemos e desfazemos. Etimologicamente lar em
latim lare significa: a parte da cozinha onde se acende o fogo, semelhante a
uma lareira. Utiliza-se figurativamente a palavra lar para designar a casa de
habitação de uma família; ou para referir-se ao torrão natal; a pátria. Indicar
ainda o ninho ou toca de animal. Além disso, lar ou lare também pode
assinalar a superfície da prensa onde assenta o vinhaço ou o lar do pão, isto é,
a parte do pão que assenta sobre o lar do forno. Portanto, o termo: lar se
entrelaça a muitos significados que se relacionam, tais como: casa, família,
calor, pão, alimento, lugar de nascimento.59
Talvez, o lar esteja presente na espera, que um dia se realize o sonho,
de casa, família, calor, pão, alimento. No entanto, o termo também está
marcado pela falta, carência ou incompletude. Há sempre e ao menos um
pouco de solidão presente; de ausência; saudade; um cheiro, um som, uma
luz, uma alegria, esperança, espera, algo que nunca se completa. Uma
infância. Muitas imagens, muitas vozes. Algo que prende e sufoca, acolhe e
acalenta, nutre e fortalece, rompe e se desfaz. Um lar é feito de relações com o
outro e consigo mesmo.
Das razões e dos porquês, muitas pessoas transformam o Lar Vicentino
em seu próprio lar e na perspectiva de desconstruirmos mitos e falsas imagens,
recorremos às palavras de Tereza Ponce Capóia, 72 anos, moradora do Lar:
Meu filho, muito doente, foi transferido do Hosmac- Hospital de Saúde Mental do Acre para o Lar Vicentino. Eu não tinha para onde ir e aceitei o convite da diretoria para viver nesse lugar. Muitas pessoas acham que nós vivemos aqui abandonados, que os funcionários se aproveitam do nosso dinheiro, isso aqui não existe. Esse é nosso lar, e não é pelo nome da casa não, é porque onde existir respeito, carinho, comida e amor esse é um lar de verdade, e isso nós temos muito. Gostaria muito de voltar a viver na colônia, lá tudo é bom. Sinto muita falta de quando podia trabalhar no que era meu, mas também me dói muito lembrar como as pessoas são malvadas e não se
59 Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa.
90
importam em deixar uma anciã no fim da vida sem um teto para chamar de seu. Mas isso tudo agora é passado, a vida que levamos aqui é muito boa, essas meninas são verdadeiros anjos para nós.60
Tereza foi entrevistada pelo jornal O Rio Branco, no momento em que se
comemorava um ano de serviços prestados pela nova coordenação, que havia
sido instituída por ordem do Ministério Público, em virtude das denúncias sobre
a antiga administração. Convidada a falar, a entrevistada defende a vida no lar
Vicentino e conceitua: “Esse é nosso lar, e não é pelo nome da casa não, é
porque onde existir respeito, carinho, comida e amor esse é um lar de verdade,
e isso nós temos muito”.
No entanto, Tereza segue e diz que “gostaria muito de voltar a viver na
colônia, lá tudo é bom”. Conceitua o que é um lar para si mesmo, e tenta
encontrá-lo, na instituição. No lar vicentino nem tudo é bom para Tereza, ela
não se sente em casa, sente falta de trabalhar no que é seu, de ser respeitada,
ter carinho, comida e amor. Ela modifica o teor da sua fala quando está em
uma entrevista “mais oficial”.
Ao entrevistar Tereza,61 em uma tarde nublada e chuvosa, ela estava
sentada em sua cadeira de balanço. Seu aparelho televisor sempre ligado,
como um companheiro cúmplice e atento; ela relata sua vida no campo, as
experiências de trabalho por inúmeros lugares, tais como: São Paulo, Paraná,
Mato Grosso, Rondônia e Acre.
Filha, esposa, mãe e trabalhadora rural, esta tem sido sua vida, sempre
no campo. Trabalhou nos canaviais do Paraná, onde foi muito feliz. Lembra
com saudade das aventuras no trabalho, a convivência familiar, a relação com
seu esposo, as peripécias dos seus netos. Conta com tristeza como perdeu a
colônia, após a morte do marido e do filho mais velho, e como foi espoliada
pela nora.
Convidada a morar com uma amiga e sua família, Tereza recusou,
explicitando suas razões:
Não, Nunca. Pode ser o que for, por mais boa que seja a pessoa, nunca, né? É mió morá sozinha, do que... Uma hora tá mais enjoada, outra hora é mais... É por que a pessoa é diferente. Aí ela... Nunca é igual à casa da gente.
60 Entrevista concedida em 06/04/2010. 61 Entrevista citada.
91
Durante a entrevista a funcionária do lar traz o lanche da tarde, cujo
cardápio é composto de um copo de vitamina e biscoitos. Pergunto se deseja
fazer sua refeição e Tereza faz uma expressão de contrariedade, dizendo:
eu num gosto desta vitamina não, me repuna (repugna). To mal do estômago, num to comendo direito. Aqui, Deus me perdoe falar, num tô reclamando, mais aqui a comida num tem gosto, num tem tempero, é sem cor. Eu já falei, já mudaram num sei quantas vez a cozinheira, mas num tem jeito. Eles colocam coentro em tudo. Num usam salsinha, né, que nem nóis usa, num usa um pouquinho de colorau. Deus me perdoe falar! Quando eu vejo aquela carne muída branca, num consigo comer ela não. Que saudade de um bife bem passadinho com salsinha, bem temperadinho... aqui eles serve uma farofa de ovo é boa, mais é muito seca difícil de comer. Deus me perdoe num quero reclamar de comida não, mas... (...) Na roça, criá porco... Quando davam oito horas da noite, dava vontade de comê leitoa “Ai que vontade de come uma leitoa veia assada! Ah!” Num tinha nada que vê quarqué hora da noite, matava uma leitoazinha lá. A que tivesse mais gordinha... Ah Meu Deus! Num fala.62
Ao ler o depoimento de Tereza, concedido ao jornal O Rio Branco,
observo o modo como a entrevistada responde ao jornalista. Faz uma
avaliação do lar Vicentino, mas não deixa de mostrar suas intenções e desejos.
Ela sabe o porquê, para quem e como deve falar ao jornal, sobre o lugar em
que vive atualmente.
Admiravelmente polida, mas jamais ingênua ou acrítica Tereza se
posiciona sobre sua condição de moradora do lar. No entanto, não deixa de
expor seus sonhos, seus desejos para outra vida. Porém, na entrevista que me
concede, sua atitude é de abertura, confiança, empatia, reciprocidade. Sinto
um alargamento dos horizontes. Tranqüila e alegre, ela tece com singularidade,
suas recordações e lembranças. Mas, essa singularidade tem os limites:
da cultura do próprio tempo e da própria classe. Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentre da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um (GINZBURG, 2006, p.20).
O exercício da liberdade de Tereza com a palavra, a partir dos
horizontes de suas possibilidades, de sua cultura; do tempo presente, com as
particularidades de seu modo de falar, de pensar, sentir e significar, re-elabora
suas lembranças; as experiências vividas; as dores e alegrias sentidas. O lar
62 Entrevista citada.
92
de Tereza está dentro dela própria, ela mora em si mesmo, sendo seu lar, mais
que físico, ou seja, é um lar feito de memória; de sentimentos e de uma
belíssima história de vida. Tereza habita suas raízes. Assim observa José
Gonçalves Filho:
As experiências só nos alimentam na medida em que as construímos, mas, em certa medida, uma raiz nos tem a nós mais do que nós a ela. Não produzimos nossas raízes, nem somos meros reflexos delas: nós inventamos nossas raízes à medida que as habitamos (GONÇALVES FILHO, 1991, p. 14).
Embora vivendo em uma instituição asilar, Tereza não se deixa levar por
opiniões alheias, ou condições estabelecidas. Ela participa, escolhe, lembra,
fala, avalia, analisa criticamente as pessoas, o funcionamento da casa.
Tereza se rebela ao compreender que deve dominar as diversas formas
do discurso, para se defender e defender a imagem do lugar onde vive
atualmente: seu lar provisório. Assim o discurso que Tereza faz ao jornal é
muito diferente do que expõe a mim na entrevista. Ela se permite com astúcia
utilizar maneiras distintas para declarar algo.
Para o veículo de informação, o jornal, que pretende divulgar as
“verdadeiras” condições de vida dos moradores do lar Vicentino, Tereza diz
aquilo que considera “certo”, “apropriado” e “permitido” dizer. Durante a
entrevista sente-se autorizada a criticar, dizer o que não lhe agrada, comparar
seu lar e o atual; avaliar a qualidade da alimentação servida aos residentes, e
assim por diante.
Os novos sujeitos do “novo” passado são “caçadores furtivos” que podem fazer da necessidade virtude, que modificam sem espalhafato e com astúcia suas condições de vida, cujas práticas são mais independentes do que pensaram as teorias da ideologia, da hegemonia e das condições materiais, independentes, inspiradas nos distintos marxismos. No campo desses sujeitos há princípios de rebeldia e princípios de conservação da identidade, dois traços que as “políticas públicas” valorizam como auto-constituintes (SARLO, B. 2007, p.16).
É nessa perspectiva que compreendo os sujeitos da pesquisa, ou seja,
os considero como os “novos sujeitos” que transformam suas vidas de modo
criativo, inteligente e crítico.
93
Indivíduos participativos, os quais produzem de modo inventivo outras
possibilidades, a partir de situações adversas, são conscientes de suas
escolhas no campo onde se situam, negociam, transgridem e re-criam novas
formas e atitudes, bem como se rebelam e também conservam seus modos de
vida.
As histórias de vida e testemunhos não são reconstituições tranqüilas do
passado. Seguindo a perspectiva adotada por Walter Benjamin, é preciso
destacar que o passado é um campo conflituoso, um campo de disputa onde
estão em jogo desejos e vontades, bem como a subjetividade e a perspectiva
de quem os reconstrói a partir da experiência do presente (BENJAMIN, 1993).
A “subjetividade também é histórica” (SARLO, 2007), pois se faz e se re-faz na
experiência e no tempo.
As contradições, conflitos e conciliações estão presentes no Lar
Vicentino assim como estão em qualquer espaço onde há um grupo de
pessoas que convivem e que necessitam da relação próxima com o outro. As
diferenças estão presentes e é preciso que estejam, pois, trata-se de sujeitos
com vontades e desejos diversos. Talvez uma alternativa possível seja lançar
um olhar com atenção e interesse para cada um desses sujeitos e questionar
quais são suas carências, urgências, necessidades, sonhos e projetos.
Somos seres fundamentalmente necessitados de participação e qualidades. Justamente por isso, quando somos historicamente obrigados a viver em uma cidade, que fere nossa capacidade de participação (...) e também fere a nossa capacidade de nos relacionarmos qualitativamente com as coisas e com as pessoas (porque o sentido das coisas e dos laços sociais se reduz a valores meramente econômicos), nesses contextos tão adversos à participação, nesses contextos de desqualificação, morremos um pouco, se não morremos completamente, mesmo tendo às vezes o que comer (GONÇALVES FILHO, 1991, p.16).
Não basta o alimento, nos alerta Gonçalves Filho, descortinando
questões de fundo, também, subjacentes ao presente estudo. Ao adentrar no
Lar Vicentino, inicialmente, empreendo uma busca de um sentido para minha
pesquisa e encontro um mundo, ao mesmo tempo, desconhecido e familiar; ao
me colocar como interlocutora daqueles que me permitem entrar em suas
vidas, torno-me uma referência para que expressassem suas angústias,
94
alegrias, tristezas e buscas de afeto. Dessa forma passo a ser cobrada e
mesmo confundida com aqueles que deveriam lhes dar assistência.
Nesse processo passo a viver e a tratar de uma dificuldade, um
enigma, o encontro com algo desconhecido; tento fazer uma análise da difícil
relação com o “outro”, quando este “outro” não pode dizer em palavras o que
lhe vai à alma. Apreender a ouvir e ver, observar olhares e gestos, ou
pequenas frases desconexas, fragmentos que podem auxiliar e indicar o
caminho. Essa condição é acentuada, talvez ao extremo, quando se fala das
mulheres que vivem no Lar Vicentino.
Durante a pesquisa o encontro com elas, por razões inconscientes, foi
evitado. Mas o distanciamento e a passagem do tempo propiciam caminhos
não previstos e o completamente imprevisível, não planejado entre em cena.
Cada momento é único, cabendo ao pesquisador capturá-lo no instante. É
nesse diapasão que apresento as mulheres do Lar dos Vicentinos, bem como a
maneira que “invento” para compreendê-las ou compartilhar instantes vividos
em suas companhias.
Quem são essas mulheres?
São moradoras do Lar Vicentino, com um longo histórico de
internação em instituições de saúde. Mulheres que foram transferidas para o lar
Vicentino, vindas do Hospital de Saúde Mental de Rio Branco (Hosmac). São
treze mulheres internas na casa, sendo que a primeira vista, são muito
semelhantes entre si, em seus vestuários e maneiras: vestidas com seus
camisolões de algodão com cores claras, cabelos cortados a la garçon, olhares
perdidos em horizontes diversos e longínquos, rostos “abobalhados” e sorrisos
“pueris”.
Confesso que quando as vejo pela primeira vez, não sinto qualquer
interesse em conhecê-las, simplesmente não me causava curiosidade para
empreender um estudo sobre suas vidas, ou sua condição, com o tempo e a
vivencia da pesquisa de campo me aproximo, o que me desperta certa
curiosidade, mas, não ainda ao ponto de traçar um plano de inseri-las neste
estudo. As questões pontuadas no momento do Exame de Qualificação foram
oportunas e estimulantes para dar um passo nessa direção.
95
Entretanto, como compreender o mundo de quem ali vive, apenas a
partir das análises de quem pode narrar sua experiência? E aquelas que não
podem narrar? Como construir um estudo em que as próprias mulheres
tivessem a oportunidade de se expressar? Novas dúvidas, muitas incertezas
que procuro “resolver” intuitivamente, posto que lidar com “as mulheres” me era
um desafio improvável, um verdadeiro “problema” de pesquisa.
Como estava à procura de histórias de vida narradas pelos próprios
sujeitos e sustentadas pela construção/desconstrução de suas memórias,
identidades e significados de suas culturas, dialogar com “as mulheres” era
para mim considerado impossível, e talvez pouco interessante.
Como posso compreender essas mulheres e suas histórias? A partir
de que perspectiva o diálogo pode ocorrer? Como ouvi-las, sem recorrer às
narrativas de “outros”, como: médicos, enfermeiros, funcionários, familiares?
Não há respostas acabadas, resoluções e justificativas, no entanto,
para mim essas mulheres são enigmas, e, decifrá-las, compreendê-las, tentar
construir uma “ponte”, através do dialogo organizado a partir de outra lógica,
outro sistema, a partir de seus gestos, olhares, atitudes, pequenos relatos,
observando seus quartos e objetos pessoais, talvez seja um caminho possível.
Decido colher “cacos”, pedaços de histórias, fragmentos de seus
cotidianos, observar atitudes, movimentos, maneiras de ser e agir.
A Pesquisa documental: leituras, questionamentos e interpretações
O arquivo do lar Vicentino fica em uma pequena sala, à direita de
quem entra no prédio, na qual funciona, também, a recepção e a sala da
administração, é o local onde pesquiso sobre as mulheres. No arquivo, em
gavetas de metal, estão ordenadas as pastas individuais. Solicito autorização
para a leitura e a jovem secretária me oferece uma mesa com cadeira para que
eu possa fazer minhas anotações.
Seguindo minhas anotações, percorrendo as trilhas do discurso
médico, avanço em meio aos prontuários de outras mulheres que vivem no Lar
dos Vicentinos. Nesses prontuários, observo que, as mesmas apresentam
históricos com alguns pontos em comum. O grupo observado compreende
treze mulheres. A idade delas variam entre 52 à 103 anos. Cinco delas são
96
viúvas e oito solteiras; duas foram encaminhadas ao asilo pelas famílias; cinco
transferidas do Hosmac e três foram encaminhadas pelo serviço social do
governo do Estado do Acre. Dez dessas mulheres são analfabetas e três
cursaram até o terceiro ano do Ensino Fundamental. Três delas apresentam
problemas dificuldades na fala; uma com paralisia infantil e problema na fala;
nove com transtornos mentais graves; uma não há registro e uma apresenta
apenas problemas na coluna. Todas são aposentadas e contribuem com 70%
de seus rendimentos para o pagamento da mensalidade do Lar Vicentino.
Os dados descritos foram coletados diretamente dos históricos e
registros médicos arquivados no Hosmac,63 bem como em fichas individuais e
contratos de prestação de serviço arquivados na entidade. Os dados são frios,
“verdadeiros” em sua “cientificidade”.
Transcrevo a seguir trechos dos registros pesquisados, de cada uma
dessas mulheres. A fim de resguardá-las, garantindo o direito de sigilo de suas
identidades, seus nomes foram por mim alterados. Cremilda: nascida em 20 de abril de 1944. Deu entrada no lar em 02
de julho de 2007. Não há registro do seu estado civil; não-alfabetizada;
aposentada. Foi encaminhada pelo filho. Tem uma procuradora para
administrar seu benefício (aposentadoria). Consta registrado em arquivo: termo
de declaração da Promotoria Especializada de Defesa da Cidadania, o termo
trata de questões relativas a aposentadoria de Cremilda, que era administrada
por sua irmã, a mesma, obrigada por força da lei comprometeu-se em entregar
o cartão de aposentadoria na administração do lar.
Célia: nascida em 24 de maio de 1959. Solteira, não alfabetizada,
aposentada. Célia foi internada no lar por sua família, está aposentada.
Segundo laudos médicos apresenta paralisia infantil desde os dois anos de
idade, não fala, anda com dificuldade, pois tem o lado esquerdo da face
paralisado. Nos documentos pesquisados no Lar Vicentinos consta o registro
de que Célia tem “problemas” com sua irmã que utiliza seu cartão de
benefícios. Também consta uma ocorrência judicial (estelionato) e registros
63 Dados pesquisados no Serviço de Arquivo Médico e Estatístico – SAME do Hospital de Saude Mental do Acre. Período: 23/05 à 31/05/2011; Responsável pelo arquivo: Lourdes Araújo; e apoio técnico de Marilza da Silva Lopes, técnica de enfermagem.
97
bancário onde se vê que foram efetuados empréstimos na conta-benefício
(aposentadoria)
Guiovanda: nascida em 27 de maio de 1952. Solteira, tem dois filhos.
Não-alfabetizada é aposentada. É egressa do Hosmac, onde recebeu alta em
setembro de 1998. Apresenta um longo histórico médico de controle de
tratamento. Ela foi diagnosticada como portadora de psicose não-orgânica e
esquizofrenia. Foi re-internada diversas vezes, sendo encaminhada para o Lar
Vicentino, em 31 de agosto de 2002. Em seu histórico está registrado que não
possui respaldo familiar; apresenta um estado mental estável; não é
dependente para a realização de sua higiene pessoal e alimentação.
Atualmente é beneficiada com o Amparo Assistencial da Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS),64 consistente de salário mínimo. Há em seu arquivo
o contrato de prestação de serviços do Lar Vicentino, onde se prevê o
pagamento mensal correspondente a 70% de seus rendimentos.
Nos arquivos do lar vicentino, consta o registro de observações da
assistente social do HOSMAC, encaminhado para o lar, assim diz: Avaliação
técnica – a paciente apresenta um estado mental estável, não é dependente
para a realização de sua higiene pessoal e alimentação. Atualmente é
beneficiada com o Amparo Assistencial da Lei Orgânica de Assistência Social –
LOAS, que consiste em um salário mínimo. Há também um contrato de
prestação se serviços do lar dos vicentinos, em nome de Guiovanda.
Maria Adélia: nascida em 5 de agosto de 1908. Aposentada. Segundo
informações na ficha de admissão do Lar vicentino, a mesma não anda e
necessita de cuidados para sua higiene pessoal, alimentação e locomoção.
Não há maiores detalhes em seu histórico. Seu registro de nascimento foi
expedido por ordem judicial, em 13 de março de 2007.
Romilda: nascida em 12 de maio de 1954. Solteira, aposentada, não-
alfabetizada. Saiu do Hosmac em 3 de setembro de 2009, encaminhada para o
Lar Vicentino. Segundo consta em seus registros médicos, se encontra em
tratamento ambulatorial no Hosmac, e no momento tem prescrição de
psicofarmacos (medicamentos para doença mental). Paciente esquizofrênica
grave, esteve internada em condição de residente no Hosmac no período de 23
64 LEI nº 8.742, de 7 de setembro de 1993. Dispõe sobre a organização da assistência Social e dá outras providencias.
98
de fevereiro de 1979 a 3 de agosto de 2008, data em que foi encaminhada para
o lar vicentino. Não tem condições laborativas e de praticar atos da sua vida
civil.65
Maria: nascida em 18 de março de 1941. Solteira, não-alfabetizada.
Transferida para o Lar Vicentino, em 31 de agosto de 2007. Sua primeira
internação no Hosmac foi em 7 de outubro de 1986. Diagnosticada com
esquizofrenia, não possui ficha individual de admissão no lar ou qualquer
registro mais detalhado.
Terezina: nascida em 4 de novembro de 1943. Viúva, não-
alfabetizada, aposentada. Deu inicio ao tratamento médico em 5 de fevereiro
de 1981, no Hosmac com diagnóstico de esquizofrenia. Segundo atestado
médico consta que: “é portadora de transtorno mental crônico e grave. É
incapaz definitivamente para exercer atividades laborativas e de praticar atos
da sua vida civil”. Foi transferida para o Lar Vicentino nesta mesma data. Sua
filha está internada no Hosmac, na condição de residente, desde 24 de outubro
de 1994.
Mariana: nascida em 12 de julho de 1944. Viúva, não-alfabetizada,
aposentada. Foi encaminhada para o Lar Vicentino pela família. Os médicos a
diagnosticaram como portadora psicose não-orgânica não-especificada.66 Em
sua ficha de admissão no lar consta que a residente é acamada, não anda, e
necessita de cuidados para higiene, alimentação e locomoção.
Marialva: nascida em 20 de agosto de 1941. Casada, alfabetizada,
encaminhada ao lar por entidade de assistência social sem identificação. Não
há um registro mais detalhado em seu histórico, apenas uma declaração onde
se lê que sua irmã veio ao Lar Vicentino entregar seu cartão de benefícios, com
senha, aos cuidados da administração da casa, datado de 10 de janeiro de
2010.
Marizete: nascida em 25 de dezembro de 1917. Viúva, funcionária
pública aposentada, cursou até a 3ª série do Ensino Fundamental. Foi
65 Atestado pelo Dr. Mauro Hashimoto, médico psiquiatra do Hosmac. 66 Segundo o Código Internacional de Doenças -CID-10 - conceituado para padronizar e catalogar as doenças e problemas relacionados à saúde, tendo como referência a Nomenclatura Internacional de Doenças, estabelecida pela Organização Mundial de Saúde, a psicose não-orgânica significa que não é causada por uma doença clínica, mas sim por uma doença mental. Há várias doenças nesse grupo. Agora, todas as doenças mentais que possam ter sintomas psicóticos são chamadas não orgânicas (esquizofrenia, bipolar, depressão grave, etc).
99
encaminhada ao lar pela família. Ficou nesse asilo até 9 de novembro de 2010,
quando saiu pela primeira vez, retornando em 3 de janeiro de 2011. Em 4 de
março de 2011, foi entregue aos cuidados da família.
Mirele: nascida em 19 de agosto de 1937. Consta registrado no
arquivo do lar uma declaração onde se lê: que sua irmã veio ao lar para fazer a
entrega do cartão de benefício com a senha, à instituição administrativa lar
vicentino. Datado em 10 de janeiro de 2010.
Tereza: nascida em 21 de dezembro de 1937. Viúva, trabalhadora
rural aposentada. Estudou até a 3ª série do Ensino Fundamental. Passou a
viver no Lar dos Vicentinos, encaminhada pelo Serviço Social do Hosmac,
onde seu filho estava internado. Foi despejada de seu lar, tendo que viver em
uma moradia emprestada na cidade de Acrelândia (Acre). Em virtude da
doença mental do filho mais novo e das condições precárias e insatisfatórias
em que vivia naquela cidade decidiu residir no Lar Vicentino.
Elvira: nascida em 13 de agosto de 1952. Solteira, não-alfabetizada e
aposentada. Em 11 de novembro de 1979 registra-se a primeira internação.
Não há histórico ou registro detalhado, somente em: 14/03/2007 – “queda em
só nível com ferimentos do couro cabeludo. Foi feito um “raio-x” (exame
médico). Encontra-se, em anexo, alguns receituários com prescrição de
medicamentos. Não há registro do histórico da paciente, apenas diagnósticos
de doenças, segundo o Código Internacional de Doenças – CID 10 – como por
exemplo: F80 (transtornos específicos de desenvolvimento da fala e da
linguagem); F72 (retardo mental grave); F71 ( retardo mental moderado); F 29
(psicose não orgânica não-especificada)
Anexado aos documentos de Elvira, consta um laudo médico no
qual se lê que ela: “... é portadora de deficiência mental grave, pueril,
deficiência física. É incapaz de exercer atividades laborativas para prover
meios para sobrevivência. Necessita de benefício da Previdência Social”.67
Essas mulheres são uma representação do esquecimento, do
silenciamento na construção de uma memória oficial que descarta certas
versões, menos atraentes, na construção da história que se quer como única. A
67 Dr. Mauro Hashimoto, 08/10/2008. Laudo médico – Serviço de Arquivo Médico e Estatístico – SAME. Hospital de Saúde Mental do Acre – HOSMAC. Responsável pela documentação: Sra. Lourdes Araujo. Pesquisa realizada em 31 de maio de 2011.
100
imagem das mulheres representa a possibilidade de mergulhar no
desconhecido, em lugares subterrâneos e escuros; uma possibilidade de
“escavação interior” em busca de compreensão e descobertas sobre a vida,
sobre a alma humana.
Trata-se da atitude semelhante àquele que chega pela primeira vez a
um país distante e se depara com uma cultura desconhecida, “estranha” e
diversa da sua realidade, mas que, aos poucos, a partir das relações
vivenciadas percebe o quanto há semelhanças em si; pode ser uma
experiência carregada de sentimentos e impressões transformadoras, tais
como: o medo, a solidão, o vazio, a doença, a mudez, mas também a doçura, a
ingenuidade, a bondade, o carinho, a gentileza, a curiosidade, a ânsia de viver.
Em uma tarde ensolarada e comum, no Lar Vicentino, três mulheres
estão sentadas na grande mesa da entrada da capela, acompanhadas da
professora. Naquele local são realizadas as atividades de pintura com giz de
cera, recorte e colagem; a participação de todos é facultativa. Elas estão
colorindo desenhos traçados pela professora. Dirijo-me até elas, cumprimento-
as. Elas sorriem e me contam as “novidades”.
Pergunto a Célia o que aconteceu com seu braço e seu olho
esquerdo, pois há hematomas em seus braços. Célia não fala, gesticula,
balbucia, aponta. Alguém diz: “Ela está dizendo que caiu no banheiro,
ensaboou muito o corpo e caiu; não quebrou nada; foi atendida, levada ao
hospital, não sofreu lesões graves”. Pergunto se ela estava sozinha e ouço
como resposta que “sim, estava. Ela toma banho sozinha.” Célia sorri para
mim, e continua sua “narrativa” sobre o acidente.
A partir desse contato e após todo um levantamento de documentos
escritos sobre o deslocamento dessas mulheres para o asilo, percebo questões
significativas para a compreensão da condição feminina no lar.
Após a leitura dos documentos arquivados no Hosmac e no Lar
Vicentino, penso em Célia, nas marcas deixadas pelo acidente no banheiro;
divago sobre os cuidados que temos com os recém-nascidos, todos os
procedimentos para o banho, a troca de roupas, a alimentação, e como
sustentamos suas mãos aos primeiros passos. Então penso na desenvoltura
de um corpo adulto, forte, saudável, que realiza movimentos automáticos,
101
acostumados as atividades cotidianas. Volto a imaginar Célia no banheiro,
enquanto leio os registros, históricos e os prontuários médicos:
Célia. Nascida em 24 de maio de 1959, solteira, não-alfabetizada,
aposentada. Foi encaminhada pela família para o Lar Vicentino. Segundo laudo
médico apresenta paralisia infantil. Não fala, anda com dificuldades, pois tem o
lado esquerdo paralisado. Consta em sua ficha o registro de um termo de
declaração, expedido pela Promotoria Especializada de Defesa da Cidadania,
onde se lê que sua irmã administradora de sua aposentadoria estava fazendo
uso indevido de seus rendimentos mensais. Por essa razão foi obrigada,
judicialmente, a entregar o cartão de benefícios à administração do Lar
Vicentino, principalmente, porque Célia, agora, encontra-se sob a
responsabilidade dessa instituição.68
O que posso apreender sobre Célia? Posso compreendê-la? Sim, é
possível compreendê-la e estabelecer um dialogo com essa mulher, mas, o
dialogo requer a presença do “outro” em sua vida. Dia após dia, vivenciando o
cotidiano do asilo, as atividades, a rotina, e os eventuais “acidentes”.
A pessoa que traduz o que Célia diz é alguém presente em sua vida;
alguém que participa, ouve, observa e apreende a maneira de ser dessa
mulher e das outras mulheres, estando autorizada a traduzir o que Célia tenta
me dizer. Alguém que também sofre, no sentido de suportar as condições ou
situações vividas com o “outro”, a partir de um território e de um tempo.
Observo a relação dessas mulheres, que se comunicam através da
realização de atividades em comum, em participação em eventos triviais, mas
que geram cumplicidade, afetividade e compreensão. Nessa direção, é preciso
destacar, com Teresa Caldeira, que embora:
a história de vida e o relato de história oral ofereçam informações imprescindíveis, não se podem ser pensados como fontes auto-suficientes. Tem que ser concebidos como elementos de um sistema de dados variados e que se articulariam no processo de reconstituição de uma determinada cultura ou da história de um determinado grupo social (CALDEIRA,1992, p. 71).
Nessa perspectiva surge a possibilidade de compreender e apreender
sobre essas mulheres, não somente a partir de relatos, mas de registros, 68 Pesquisa realizada maio/2011. Documentos pesquisados no Serviço de Arquivo Médico e Estatístico -Same/ Hosmac e no arquivo do Lar Vicentino.
102
documentos, e mais além, através do olhar atento, curioso, interessado, para
além das palavras faladas e escritas, mas de maneira não-sistemática e
fragmentada, “falando, ouvindo, observando, vivendo, juntando significados
para se formar uma interpretação” (CALDEIRA, 1992, p. 69).
Aos poucos, mergulho nesse desconhecido e somente com o passar
das horas, com infindáveis questionamentos, motivada por literaturas e leituras
diversificadas, as quais transformaram e ampliaram minha imaginação, tão
fundamental para compreender outras possibilidades vou apreendendo
maneiras de narrar e interpretar mundos desconhecidos.
“Qualquer pesquisa antropológica é um processo contínuo de negociar
diferenças entre o pesquisador e o grupo estudado, entre o que se pensava
antes e o que se descobre no decorrer do encontro”, destaca Caldeira (1992,
p.70). Desse modo, reinicio o processo de interpretação, agora mais
aprofundado, “procedendo a uma escavação”, à maneira de Proust, de um
modo mais significativo, porém, muito mais sutil, delicado, e por vezes
imperceptível. Agora, olho com mais atenção para as pequenas lembranças e
recordações.
“Um copo d’água...”: apreendendo olhares, gestos e outras linguagens Realizo minha pesquisa durante o dia, posto que nos horários
noturnos o Lar Vicentino cerra suas portas para os visitantes. Numa certa
tarde, tranqüila e calma, com clima ameno, olho pela janela e vejo as
mangueiras que rodeiam a casa, o quintal limpo, organizado. Alguns
moradores aparecem para conversar ou solicitar algo. No “fundo da tarde”,
continuo lendo, anotando e imaginando.
Em meio aos registros dos prontuários, surge Elvira, que pede, à sua
maneira, um copo para tomar água. As “informações” sobre sua trajetória são
secas e frias. Nascida em 13 de agosto de 1952. Solteira; não alfabetizada;
aposentada. Sua primeira internação no Hosmac data de 11 de novembro de
1978. Foi transferida para o Lar Vicentino em 6 de março de 2008. Mediante
estudo de caso realizado pelo Serviço Social do Hosmac e decisão judicial.
Segundo laudo médico expedido para solicitar sua aposentadoria:
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é portadora de deficiência mental grave, pueril; deficiência física. É incapaz de exercer atividades laborativas para prover meios para sobrevivência. Necessita de benefício da Previdência Social.69
Procuro nos armários, encontro na geladeira apenas um copo de
plástico para café e lhe ofereço. Elvira serve a água e saboreia, devolvendo o
copo em seguida. Diz algo que não compreendo. Estamos a sós na sala, então
ela pousa lenta e delicadamente sua mão sobre o meu peito, e depois, pousa
sua mão em seu próprio peito, me diz novamente algo e sai, dirigindo-se ao
seu quarto.
Seu gesto gentil e afetuoso me emociona e, com a passagem dos
dias, compreendo o quão valoroso foi aquele momento, àquela imagem. Suas
impressões e sensações me dizem muito. Mas não há palavras, apenas gestos
simples e sinceros, repletos de ternura e atenção. Uma comunicação que
desnuda meus pré-conceitos e me faz lançar um novo olhar para essa mulher
sensível e inteligente a desafiar as noções “normalizadas”, no dizer de Foucault
(2008) instaladas em minha subjetividade, controlando meu olhar.
Percebo nesse momento que o que se coloca, portanto, no panorama
dessa discussão é um poder disciplinador instituído como saber-poder. Um
saber médico que, aliado a um saber jurídico, e, principalmente, a todo um
aparato discursivo presente nas estruturas arquitetônicas de locais especiais –
asilos, hospitais psiquiátricos, prisões –, nas roupas, no corte dos cabelos e
nos próprios corpos definem a condição de “alienação” a algumas pessoas que
ai residem (FOUCAULT, 1999) e, neste caso, a mulheres como Elvira, tratada
como incapaz de gerir sua própria vida ou “governar-se”.
Que tipo de poder é esse, indaga Foucault, “capaz de produzir
discursos de verdade que são numa sociedade como a nossa, dotados de
efeitos tão potentes?” Em sociedades como a que vivemos, responde ele:
Múltipas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro (...). Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade (...). Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado,
69 Atestado pelo Dr. Mauro Hashimoto. Médico Psiquiatra do Hosmac.
104
somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto, regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade (FOUCAULT, 1999, pp. 28-29).
Essa lógica de produção da verdade e do poder, que é saber, me fez
lançar um olhar de indiferença para as mulheres “doentes mentais” do Lar
Vicentinos. Olhar que se alterou mediante a insistência de meus interlocutores
quando do Exame de Qualificação, mas que se quebrou mediado por um toque
de mãos, um simples toque de mãos, a comunicar com precisão e desenvoltura
outros domínios da verdade. E esse domínio passa pela possibilidade do afeto
e da socialização ou do contato com outra pessoa.
Percorro os desvãos de Elvira: suas dores, sua “insanidade”, suas
vontades violentadas. Observo-a sorrindo, colorindo papéis com a mesma
meiguice com que carrega sua inseparável boneca: dorme com a boneca,
almoça, passeia, vai ao médico, participa das aulas de artes e recreação,
sempre acompanhada da boneca. Mas que boneca é essa? Que formas físicas
e simbólicas ela desenha na imaginação e no dia-a-dia dessa mulher?
Sigo os “atalhos” de sua silenciada memória. Elvira foi residente do
Hospital de Saúde Mental do Acre – Hosmac, durante muito tempo, antes de
ser transferida para o Lar Vicentino. Naquele hospital de “alienados”, pelos
imprevisíveis caminhos do viver a vida, engravidou de outro residente. A
criança, recém-nascida, foi entregue para adoção. Nesse processo,
nterceptada em sua capacidade de “auto - governo”, Elvira passou a preencher
esse outro vazio em sua vida e, como que em resposta à violência física e
simbólica, desde então, passou a carregar a boneca/bebê em seu colo.
Observo a atitude resoluta dessa mulher que, de modo consciente,
enfrenta a violência do poder disciplinador e da verdade do discurso médico,
jurídico, normalizados por nossos olhares, que lhe imputam a insanidade e a
incapacidade de se governar, de ser sujeito de sua vida. Com a constante
presença da boneca/bebê ao colo – erigida ao símbolo de sua insanidade –,
subverte a ordem de nosso discurso, de nosso saber-poder.
105
Com esse ato, Elvira não permite que o que lhe ocorreu se apague: é
uma luta contra o esquecimento. Seu silêncio é carregado de gestos. Seus
gestos são carregados de dor.
É necessário reconverter o silêncio em voz daqueles que viveram desde dentro o acontecimento. Os acontecimentos são concretos. O inumano é um acontecimento plural, ele não pode ser apenas mais uma figura que se perde na abstractização da dor (...). Sem a memória o homem seria sempre o espectro de sua liberdade. Estranho, ele seria apenas a materialidade de um presente em que todos os possíveis foram impossíveis. A liberdade não é para além da memória enquanto direito. Mas, “desde que os acontecimentos vividos pelo indivíduo ou pelo grupo sejam de natureza excepcional ou trágica, esse direito torna-se um dever: o de se lembrar, o de testemunhar” (VILELA, 2001, pp. 243-244).
Acompanhando essa inquietante reflexão de Eugênia Vilela,
apreendemos que a constante e desafiadora presença da boneca/bebê no colo
ou nos braços de Elvira, mais que um enfrentamento à ordem é um testemunho
sem palavras das violências sofridas. Sua condição de mulher, mãe e “doente
mental”, está ali presente - a boneca no lugar do bebê ou, nas infinitas
possibilidades de sua imaginação, o bebê no lugar da boneca -. Ela é incapaz,
diz o laudo médico: “... é portadora de deficiência mental grave, pueril; e
deficiência física. É incapaz de exercer atividades laborativas para prover
meios para sobrevivência...”.70
No entanto seu gesto nos leva a pensar nas dimensões da memória e
em sua capacidade de testemunhar, como forma de diálogo com o que não diz,
o “indizível”, o vivido e com isso, retornando a Vilela, como mecanismo para a
compreensão do acontecido:
É imprescindível deixar ser tocado (...). No testemunho, aquele que se manifesta passa a existir para além de um discurso legitimado pelos jogos de verdade, uma vez que “a reconstituição do passado é percebida como um ato de oposição ao poder”. As memórias são, afinal, uma cicatriz que dá sentido à ligação da vida e da morte (...). A memória é participação na verdade do mundo. Negamos a verdade àqueles a quem despossuímos da memória. Sem ela, a violência é a única possibilidade. Assim, ao incorporarmos a história do outro no presente, o outro deixa de ser uma inconsistência ontológica (VILELA, 2001, p. 245).
70 Laudo Médico. Dr. Mauro Hashimoto, 08/10/2008, Serviço de Arquivo Médico e Estatístico – SAME. HOSMAC. Pesquisa feita em 31/01/2011.
106
Nos gestos de Elvira, é possível antever uma irrupção contra a
violência física e simbólica e contra a face mais amarga da violência,
caracterizada por Bessa Freire (2004) como um “esquecer o esquecimento”.
Na construção que faz e nos silêncios e esquecimento há que muitas vezes
somos levados e também nos permitimos sustentar, opõe-se à ordem das
coisas e das palavras (FOUCAULT, 2007, p.20)
Elvira não se cala. Ao invés disso, sustenta a experiência vivida
através de seus atos e gestos delicados e “controversos”, suscitando
questionamentos e curiosidades, indicando a presença de algo interrompido,
proibido, interditado e descartado. Desnuda e traz à tona seu sofrimento, sua
produzida “incapacidade”. Leva com ela o “objeto/memória”, num deliberado e
político ato de transgressão em que denuncia o que lhe foi escondido, não-
permitido, retirado contra sua vontade; expõe sua dor aos olhos de todos, para
não permitir o esquecimento.
Levando em consideração que as impressões, as lembranças, os
esquecimentos estão em constante movimento, ou seja, que não há um
passado imóvel, definitivo, o que podemos guardar do passado são
impressões, sensações da experiência vivida; temos a necessidade de
“escavar”, mexer, re-atualizar o passado a partir do tempo presente, das
precisões atuais. “Esquecer, assim como recordar, força-nos a selecionar,
destilar, distorcer e transformar o passado, acomodando as lembranças às
necessidades do presente” (LOWENTHAL, 1998, p.77).
A exemplo de Maurice Halbwachs, Lowenthal elucida que para
relembrar o passado, acessar o arquivo de recordações, contamos com a
memória individual, posto que é pessoal o que se vive, sente, imagina; e a
memória coletiva o grupo social, como: família, amigos, colega de escola ou de
trabalho, auxiliam na reconstrução, re-ordenamento e re-significação da
memória individual: “partilhar e validar lembranças torna-as mais nítidas e
estimulam sua emergência” (LOWENTHAL, 1998, p.80).
A boneca/bebê de Elvira faz com que a lembrança se mantenha
presente, atualizada individual e coletivamente, pois, ela partilha com as
pessoas com as quais convive, e com os outros que a observam, sua memória
e condição “irrealizada” de mãe. Desse modo, consideramos com Lowenthal
que:
107
As lembranças são reconstruções ecléticas, seletivas, baseadas em ações e percepções posteriores e em códigos que são constantemente alterados, através dos quais delineamos, simbolizamos e classificamos o mundo a nossa volta (LOWENTHAL, 1998, p.103).
Portanto, para lembrar é preciso selecionar, descartar, reorganizar
novas maneiras de elaborar e construir reflexões sobre o vivido, trata-se do ato
de pensar, de abstrair, construir simbologias, com o auxilio da imaginação. “As
lembranças precisam ser continuadamente descartadas e combinadas;
somente o esquecimento nos possibilita classificar e estabelecer ordem no
caos” (LOWENTHAL, 1998, p. 94). Desse modo, interpreto no gesto de Elvira
um ato de reflexão e construção de uma lembrança. Não algo “pueril, débil ou
anormal”, mas sim um ato de lembrar que exige imaginação e inteligência.
Elvira, Cremilda, Célia, Marialva, Tereza, Marizete, Guiovanda,
Terezina, Maria Adélia, Mariana, Maria, Romilda, Mirele e as outras mulheres
interditadas do Lar Vicentino reabrem a ferida da condição feminina nos asilos,
hospícios e hospitais-presídios brasileiros. Seus prontuários convencem os
leitores, os familiares, os pesquisadores de que são “incapacitadas” para viver
a vida “normal”, mecanismo normalizador da internação, da tutela e da
medicalização de seus corpos em nome de um bem-estar individual e coletivo.
Reside aí, em nossas subjetividades subordinadas às lógicas
colonizatórias e mercadológicas, a força dessa “vontade de verdade”, no dizer
de Foucault, essa poderosa e
(...) prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura (FOUCAULT, 2006, p.20).
Os corpos das mulheres do Lar Vicentino–, são corpos-denúncia.
Suas vozes mudas, sua decantada “incapacidade” física e/ou mental atestam
não o silêncio, mas a ruptura com o mesmo. Assim denuncia Beatriz Sarlo
(2005): “Os corpos não mentem (...) marcados pela miséria (...). Marcas das
condições indignas de vida gravadas nos corpos dos excluídos, dos credores
108
da dívida (social e histórica) que não foi paga”. Insiste para que olhemos a
materialidade de seus corpos e assim aponta
Uma sociedade não se sustenta apenas por suas instituições, mas, principalmente, por sua capacidade de gerar expectativas de tempo. O corpo e o tempo estão ligados: uma vida é um corpo no tempo. A dívida é também uma dívida de tempo porque quando o corpo não recebe aquilo de que necessita, o tempo se torna abstrato, inapreensível pela experiência: um corpo que sofre sai do tempo da história, perde a possibilidade de projetar-se adiante, apaga os sinais de suas recordações.” SARLO, 2005, p. 15)
Seus corpos testemunham e, no testemunho, como destaca Eugênia
Vilela, “é necessária uma linguagem outra”, uma linguagem que ultrapasse “a
linguagem humana dos nomes” e que dê sentido às coisas não ditas, mas nem
por isso ausentes. Nessa “anti - linguagem”, ou outra linguagem, do corpo e do
gesto - os corpos das mulheres – e os dos homens – do Lar Vicentino “não são
os enunciadores de enunciados; são eles próprios a enunciação e o enunciado,
justapostos” em seus corpos (VILELA, 2001, p. 249).
Pode-se até evitar ver as cicatrizes causadas pela miséria, mas o fato é que os corpos exibem as marcas do endividamento. Elas podem ser ignoradas, mas como, estão gravadas neles, não podem ser apagadas. (SARLO, 2005, p.16)
Ivan diz que “não de pode contar tudo” e que “cada um sabe o que
faz”. Elvira toca minhas mãos e meu peito com afeto e segue, por entre
corredores, salas e outros espaços do Lar Vicentino com sua boneca-bebê no
colo. Fausto não vai à festa, não está “morrendo de fome”. Não é por alimento
que reduz sua expectativa de vida. As vozes e os gestos dos “habitantes”
daquele asilo, meus interlocutores nesta pesquisa, produzem sentidos,
significam trajetórias, desafiam verdades.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre renascimentos e curas: o novo
Sentia-me cheio de forças, a vida se estendia mais longa diante de
mim; é que eu recuara até as boas fadigas da minha infância em
Combray, no dia seguinte àquele que fomos passear no caminho de
Guermantes. Os poetas pretendem que reencontremos por um
momento aquilo que fomos outrora, quando entramos em
determinada casa, determinado jardim, onde vivemos na juventude.
Trata-se de peregrinações muito arriscadas essas em cujo término se
colhem tanto decepções como sucessos. Os locais fixos,
contemporâneos de anos diferentes, vale mais encontrá-los em nós
mesmos (Marcel Proust, No caminho de Guermantes,2004)
No conto Nenhum, nenhuma, de Guimarães Rosa, um menino se
encontra em um casarão – de - fazenda. Caminha pelos corredores da antiga
casa, encontra-se com um homem sem feição, com uma moça “linda e
recôndita”, com um moço que “ainda não sabia sofrer”. Conhece uma velhinha,
tão velhinha, pequenina, que parece até uma criança. Ali o menino brinca,
pergunta, sonha, descobre, “escuta com as mãos e sente com os olhos”. O
menino está só, mas, ali, acompanhado de gentes e coração, ora ternura, ora
duvida, ora medo, ora brincadeira, acalento; estranhamento e compreensão...
O menino parte dali, já não-mais, é outro. O que aconteceu?
Naquele território encontra-se consigo mesmo. Com o que foi, com o
que é e com o que será. Compreende a fluidez da vida: “mesmo um menino
sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminho por onde a gente tem de ir-
beirando entre a paz e a angústia”. Então, volta para casa, montado à garupa,
com o moço, ambos choram pela moça que ficou, cuidando da velha,
velhinha... Ao retornar encontra seus pais em suas funções rotineiras:
“construindo muros novos”. O menino grita: “vocês não sabem de nada, de
nada! Ouviram? Vocês se esqueceram de tudo o que, algum dia sabiam...”
110
Desconhece seus pais, “tão estranhos”, e desconhece a si mesmo, descobre-
se outros.
É assim que traço meu caminho pelo Lar Vicentino. Nesse casarão
repleto de portas/passagens, janelas/aberturas/ensolaradas, quartos/enigmas,
corredores/estradas, clarões e escuridões, sons e aromas. Constituindo, dessa
maneira, um território habitado por gentes, camadas e camadas de mundos, de
lugares, de sentimentos e subjetividades: “às galerias mais subterrâneas do
sono (...) é necessário proceder às escavações”, aconselha Marcel Proust. A
viagem vivida e sonhada se finda e recomeça. Realizo a descoberta que me
dispus no início da jornada. Nos diálogos/encontros produzidos com os
sujeitos: “a escuta do outro”, à maneira de Teresa Caldeira, suscita um
movimento no qual se exige disposição para tal exercício; coragem e
capacidade de sofrer o deslocamento, como o viajante que parte de seu lugar
de origem e corre o risco do ignorado, do inesperado, do incognoscível.
O percurso-estudo, “vida-sonho”, propicia a experiência do renascer, do
recomeço. O paradoxo de adentrar/mergulhar em um “asilo” casa - mundos,
“lugar de velhos”, sendo eu, sujeito-envelhecido de velhos e inúteis discursos e
partir/emergir desse território sendo outro; um novo – rejuvenescido - sujeito.
Onde se deu a curvatura, onde se vergou o arco?
O ato de narrar dos meus entrevistados, sujeitos da pesquisa, produz
um “campo de possibilidades, reais e imagináveis”, no qual mergulho para
apreender novas culturas. Na trama de suas histórias de vida, mediadas pela
linguagem, constitui-se a pesquisadora, mas também renascem outros “eus”: a
filha, a mãe, a menina, a mulher, a professora, a atriz, a escritora... Tal
exercício possibilita o mergulho e o renascimento para um novo olhar. Como a
criança que brinca e joga, e assim deseja o “sempre de novo”, no dizer de
Benjamin, os narradores reconstroem/constroem memórias e passados,
avaliam o que viveram, re-significam suas “peripécias”, remodelam os sentidos
de seus fracassos e erros, “enfrentam suas feras”, mas também revivem
sentimentos de alegria, de ternura, de saudades, de afetos.
O “sempre de novo e da maneira mais intensa”, aqui é refeito pela
palavra: os triunfos e as vitórias. Por meio da linguagem – e da “anti-
linguagem”, ou melhor, de uma linguagem outra, do corpo e do gesto –
transformam suas vidas em algo comunicável e criam vastos “campos de
111
possibilidades”, renascem diversas e ricas fontes de saber, sentimento e
alegria. Vivenciam um processo de cura, como considera Beatriz Sarlo (2007).
A cicatrização das dores e sofrimentos e aquilo que ficou rompido, agora, no
presente, tecido, costurado pelo avesso, em suas dobras, através de seus
retalhos/ fragmentos de memória. Por isso um ato político.
Considerei a possibilidade de ouvir e coletar e dialogar com narrativas
de trajetórias individuais/coletivas, “apreender culturas”, “dialogar com
memórias”, num in-tenso processo em que os sujeitos me convocaram ao
passado/presente, ao “tempo de agora” benjaminiano e, sem lamentos,
tristezas ou nostalgia, me levarem pelas mãos, gestos e olhares para, ombro a
ombro, através dos tempos e espaços diversos e do diálogo interessado
produziram encontros, indagações e partidas para outros encontros possíveis.
Desse modo, tentando romper os “pré-conceitos”, mantive-me motivada
pela aventura de estar presente e compartilhar modos de vida. Neste sentido,
considero as palavras de Teresa Caldeira, sobre a apreensão de uma cultura,
que: “é feita de fragmentos, assistemática”, onde o não planejado, o “acaso”
pode produzir o surpreendente, enfim o inesperado.
Entre renascimentos e curas, por fim, algo novo nasceu: “a construção
de uma nova identidade: talvez a pesquisadora, professora e pessoa gerada na
e pela palavra, nas narrativas dos entrevistados”. Trespassada pelas
linguagens, identidades e subjetividades dos sujeitos/viajores, aos quais essa
pesquisa é tributária. Parafraseando Agenor Sarraf Pacheco essa pesquisa é a
tradução de um texto polifônico, que se vale da oralidade, enquanto
propriedade coletiva, produzida na confluência de muitas histórias, saberes e
vivências. Uma pesquisa escrita “a muitas mãos”...
112
FONTES DE PESQUISA
DEPOIMENTOS ORAIS
Ivan José de Oliveira, 62 anos, pernambucano, ex-jogador, zagueiro do
Recife Futebol Clube; ex-bancário.
Nergino Eustáquio da Silva, 62 anos, mineiro de Lagoa da Prata.
Carlos Costa, 56 anos, amazonense. Pintor predial, marinheiro fluvial de
convés da Companhia dos Portos e Costas do Ministério da Marinha.
Antonio Batista, 83 anos, baiano. Trabalhou como boiadeiro, pedreiro, ‘o que
aparecia’, “catou de latinhas”, foi morador de rua.
Fausto Pessoa de Araújo, 76 anos. Cearense. Foi seringueiro, garimpeiro, e
aposentou-se como vigia da Secretaria de Educação do Estado do Acre.
José Francisco de Carvalho, 85 anos, mineiro de São Gonçalo do Sapucaí,
sul de Minas Gerais. Foi boiadeiro, violeiro, militar e atleta, expedicionário do
exercito brasileiro, do batalhão de infantaria de Pouso Alegre, Minas Gerais.
João Bento da Silva, 85 anos. Cearense. Foi soldado da borracha, ex-
boiadeiro.
Tereza Ponce Capóia, 72 anos, paulista. Foi trabalhadora rural, cortadora de
cana, colheu café e algodão.
DOCUMENTOS ESCRITOS Serviço de Arquivo Médico e Estatístico – SAME do Hospital de Saúde Mental
do Acre – HOSMAC. Período da pesquisa: de 23/05/2011 à 31/05/2011.
Arquivo cadastral e documental do LAR VICENTINO, em Rio branco, Acre.
Maio/2011.
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