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TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES: MIGRAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO Lucas Gomes da Silva 1 Joselma Gomes Pereira 2 Elvis F. Ferreira Lima 3 RESUMO: O texto pretende abordar a importância de se discutir o enfrentamento ao tráfico internacional de mulheres a partir de uma perspectiva de gênero e dos direitos humanos. Meninas e mulheres são alvos de exclusão social e de profundos índices de desigualdade, merecendo destaque no que se refere à busca de liberdade e justiça social. Buscar-se-á analisar as circunstâncias políticas, sociais e culturais que condicionam a migração e o tráfico de mulheres na atualidade. As evidências que serão demonstradas neste estudo clarificaram os dados apontados na literatura no que se refere à associação entre condições estruturais de desigualdade social e vulnerabilidade ao tráfico para fins de exploração sexual. Percebe-se que no decorrer dos últimos anos tem ocorrido uma feminização das migrações, e mesmo que violência e a discriminação de gênero possam não ser o resultado direto desse fenômeno, o aproveitamento do mesmo por parte de quem se envolve ativamente na exploração de mulheres socialmente vulneráveis tem tido como consequência um aumento substancial da vitimização feminina. A instituição do trabalho feminino forçado, no decurso das migrações, joga luz sobre um complexo de relações sociais de gênero e de classe desequilibradas e assentes numa distribuição não equitativa de poder entre homens e mulheres. No decorrer do texto ficará nítido que por ser uma problemática de contexto multidimensional, de caráter criminoso e velado, o tráfico de mulheres ainda precisa de um árduo “trabalho de conscientização da sociedade” de nossa parte, para que cheguemos a uma real mudança na abordagem do tema, e a inclusão, de fato, da temática na agenda pública brasileira. Palavras-chave: Tráfico internacional de mulheres; Gênero; Migração; Direitos Humanos. 1 Mestrando em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados UFGD; E- mail: [email protected]; 2 Mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados UFGD; E- mail: [email protected]; 3 Mestrando em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados UFGD; E- mail: [email protected]; Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES: MIGRAÇÃO, DIREITOS

HUMANOS E GÊNERO

Lucas Gomes da Silva1

Joselma Gomes Pereira2

Elvis F. Ferreira Lima3

RESUMO:

O texto pretende abordar a importância de se discutir o enfrentamento ao tráfico

internacional de mulheres a partir de uma perspectiva de gênero e dos direitos humanos.

Meninas e mulheres são alvos de exclusão social e de profundos índices de desigualdade,

merecendo destaque no que se refere à busca de liberdade e justiça social. Buscar-se-á

analisar as circunstâncias políticas, sociais e culturais que condicionam a migração e o

tráfico de mulheres na atualidade. As evidências que serão demonstradas neste estudo

clarificaram os dados apontados na literatura no que se refere à associação entre condições

estruturais de desigualdade social e vulnerabilidade ao tráfico para fins de exploração

sexual. Percebe-se que no decorrer dos últimos anos tem ocorrido uma feminização das

migrações, e mesmo que violência e a discriminação de gênero possam não ser o resultado

direto desse fenômeno, o aproveitamento do mesmo por parte de quem se envolve

ativamente na exploração de mulheres socialmente vulneráveis tem tido como

consequência um aumento substancial da vitimização feminina. A instituição do trabalho

feminino forçado, no decurso das migrações, joga luz sobre um complexo de relações

sociais de gênero e de classe desequilibradas e assentes numa distribuição não equitativa

de poder entre homens e mulheres. No decorrer do texto ficará nítido que por ser uma

problemática de contexto multidimensional, de caráter criminoso e velado, o tráfico de

mulheres ainda precisa de um árduo “trabalho de conscientização da sociedade” de nossa

parte, para que cheguemos a uma real mudança na abordagem do tema, e a inclusão, de

fato, da temática na agenda pública brasileira.

Palavras-chave: Tráfico internacional de mulheres; Gênero; Migração; Direitos Humanos.

1 Mestrando em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD; E-

mail: [email protected]; 2 Mestranda em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD; E-

mail: [email protected]; 3 Mestrando em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD; E-

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INTRODUÇÃO

O aumento do trânsito de pessoas e de bens, resultante das políticas de livre

circulação, apesar de por um lado constituir um ganho importante a nível de civilização,

tem contribuído para acentuar as desigualdades sociais, e por conseguinte fomentando as

assimetrias no acesso às oportunidades de trabalho, reforçando a precariedade das

condições laborais (Miko, 2003), especialmente entre as mulheres (United Nations

Develop- ment Programme – UNDP, 2006). Algumas formas de exclusão no que tange o

público feminino têm sido, nos últimos anos, significativamente condicionadas pela

feminização das migrações (Miranda, 2009), um processo cada vez mais notório em nossos

dias, seja na Europa, ou no resto do mundo, e que se apresenta como uma das

características mais marcantes da era atual das migrações (Castles & Miller, 2003). Por

mais que a violência e a discriminação de gênero possam não ser a resultante direta da

feminização das migrações, este processo tem servido para que parte daqueles que se

envolvem ativamente na exploração de mulheres socialmente vulneráveis tirar proveito,

tendo tido como consequência um aumento substancial da vitimação feminina.

O tráfico de mulheres, constituindo-se numa das formas de opressão feminina que

melhor espelha os efeitos da feminização das migrações, tem vindo a ser estudado a partir

de uma análise de gênero (Raymond, 2002; Conselho da Europa, 2005), mas cada vez mais

com base numa grelha teórica interseccional (Schecter, 1998). O tráfico de pessoas,

principalmente aquele que envolve exploração sexual, reveste-se de particularidades muito

peculiares, de entre as quais destacam-se as especificidades de gênero, de classe e de

pertença étnica (Neves, 2010). O trabalho feminino forçado, no decurso das migrações,

reflete relações sociais de gênero e de classe desequilibradas e assentes numa distribuição

não equitativa de poder entre homens e mulheres (Moghadam, 1999; Nolin, 2006). Não

existindo num vazio social, o gênero emerge e constitui-se no âmago de matrizes sociais

nutridas por relações estreitas entre as questões da etnicidade, da cultura e da classe

(Hondagneu-Sotelo, 2005). As dinâmicas dos processos de migração não são aleatórias,

muito menos biologicamente determinadas, estando antes dependentes de condições sócio

demográficas como a etnia, o sexo, a classe social e a idade, assim como de outras

condições como o nível educacional, a ocupação, o estatuto conjugal e as pressões políticas

e económicas associadas a zonas geográficas particulares (O.McKee, 2000).

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Os dados apresentados no Relatório Anual sobre Tráfico de Seres Humanos, de

2009, produzido pelo Ministério da Administração Interna, confirmam a tendência global.

O tráfico, e principalmente para fins de exploração sexual tende a materializar- se quando

se interseptam determinadas pertenças identitárias. A pertença sexual, aliada à pertença

étnica e de classe, é um fator que traz risco para o envolvimento em situações de

exploração sexual. Assim, percebe-se que as vítimas de tráfico, das quais destaca-se as

para fins de exploração sexual são sobretudo mulheres estrangeiras, com idades

compreendidas entre os 20 e os 30 anos, que provêm de países com nítidos contrastes

sociais, onde as taxas de pobreza e de precariedade social são muito elevadas.

A discriminação interseccional apresenta-se como produto das posições de

marginalização que as mulheres migrantes são forçadas a assumir, sendo crucial analisar-se

o modo como estas múltiplas pertenças determinam a vulnerabilidade à vitimação

(Crenshaw, 1991), nomeadamente à vitimação sexual. Enunciaremos de seguida os

contributos da teoria da interseccionalidade para o estudo das migrações e do tráfico de

mulheres, principalmente para fins de exploração sexual. Tudo o que até agora foi dito

mostra a importância de discutir o enfrentamento ao Tráfico de Pessoas a partir de uma

perspectiva de Direitos Humanos que considere as mulheres:

[...] como sujeitos atuantes, auto-determinados e posicionados de maneira

diferente, capazes não só de negociar e concordar, mas também de

conscientemente opor-se e transformar relações de poder, estejam estas

enraizadas nas instituições de escravidão, prostituição, casamento, lar ou

mercado de trabalho (KEMPADOO, 2005, pg.61-62).

1 TEORIA DA INTERSECCIONALIDADE, MIGRAÇÕES FEMININAS E

TRÁFICO DE MULHERES

Foi na Primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, organizada em 1975, que

a consciência internacional frente aos diferentes rostos que a discriminação pode

apresentar começou a despontar, solidificando-se verdadeiramente 20 anos depois em

Beijing, através da realização da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres. No

âmbito deste último evento foram produzidas recomendações que exortaram a

indispensabilidade de se reconhecer a importância da idade, da deficiência, da posição

socioeconômica e da pertença a um determinado grupo étnico ou racial na análise da

discriminação de gênero. O pressuposto da interseccionalidade começava então a afirmar-

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se, determinando assim a necessidade de se contemplarem as diversas pertenças

identitárias na compreensão das situações de desigualdade social.

Entalhado enquanto formulação teórica, no âmbito dos estudos feministas nórdicos,

a teoria da interseccionalidade desponta atualmente como a abordagem multidisciplinar

mais importante da teorização feminista e antirracista no que respeita à análise da opressão.

Nitidamente influenciada pelos feminismos negros e pelas teorias pós-coloniais, a teoria da

interseccionalidade resgata a reflexão sobre o impacto das hierarquias sociais e culturais de

gênero e de classe.

Idealizada por Kimberlé Crenshaw, durante a década de 90 do século XX:

[...] o termo interseccionalidade pretende firmar a relação de interação e de

interdependência que se estabelece entre algumas categorias identitárias

potencialmente vulnerabilizantes. A autora, uma teórica da área legal, publicou

dois textos fundamentais, Demarginalizing the intersection of race and sex: A

black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and

antiracist politics e Mapping the margins: Intersectionality, identity, politics and

violence against women of color, em 1989 e em 1991 respectivamente, no

âmbito dos quais salientava a incapacidade da lei para tornar visíveis as

experiências de discriminação das mulheres negras, argumentando que a

discriminação sofrida por este grupo era de natureza interseccional (BERGER &

GUIDROZ, 2009, pg. 15).

No intuito de encontrar similitudes e pontos de convergência entre os movimentos

antirracistas e os estudos feministas (que nem sempre equacionaram a discriminação a

partir de uma concepção racial), Crenshaw (1991) propôs uma matriz de análise das

relações sociais que não se limitasse a considerar a multiplicação das categorias

identitárias. A proposta da autora parte de uma base estrutural e dinâmica, sendo a

interseccionalidade não a justaposição de tipos de discriminação, mas antes a interação

desses elementos.

A ideia de interação entre formas de subordinação, segundo Piscitelli (2008),

permite transpor a noção de “[...] sobreposição de opressões. Por exemplo, a ideia de que

uma mulher negra é duplamente oprimida, à opressão por ser mulher deve ser adicionada a

opressão por ser negra” (p. 6). Não se busca a soma de diferentes modalidades de

discriminação, mas compreender como elas se intersectam. Assim, a teoria da

interseccionalidade tem como proposta examinar como as diversas categorias identitárias

interagem a múltiplos níveis para se manifestarem em termos de desigualdade social. Os

modelos clássicos de compreensão dos fenômenos de opressão, como os baseados no

sexo/gênero, na raça/etnicidade, na classe, na religião, na nacionalidade, na orientação

sexual ou na deficiência, não agem de forma independente uns dos outros, se inter-

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relacionando e criando um sistema que reflete a intersecção de múltiplas formas de

discriminação.

Dita discriminação interseccional afeta especialmente as mulheres. A opressão

feminina, fruto da raça/etnia, religião, casta, nacionalidade e de outras categorias

sociopolíticas, se agrava com a discriminação de gênero. Como resultante, as mulheres,

mais do que os homens, são sujeitas a múltiplas formas de violação dos direitos humanos.

O gênero intersecta outras identidades constituídas discursivamente, como a raça, a classe

e a sexualidade, o que torna impossível separar o gênero das intersecções políticas e

culturais no domínio das quais o gênero se produz e é mantido.

Nesse diapasão Nogueira (2001), a experiência interseccional é maior do que a

soma do racismo e do sexismo. A interseccionalidade enfatiza por isso a

multidimensionalidade das experiências vividas dos sujeitos marginalizados, salienta-se

contudo, que propostas de análise da identidade como camadas removíveis e separadas

redundam em generalizações abusivas.

Conforme pontua Crenshaw:

A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em

contextos onde forças económicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o

pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam

sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto

de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo

(estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que somente o aspecto

mais imediato da discriminação é percebido, enquanto que a estrutura que coloca

as mulheres na posição de “receber” tal subordinação permanece obscurecida

(CRENSHAW, 2002,p. 176).

Crenshaw observou as dinâmicas da interseccionalidade estrutural sobretudo no

trabalho que desenvolveu em casas de acolhimento situadas em comunidades pobres de

Los Angeles, com mulheres vítimas de violência na intimidade (Crenshaw, 1991). Na

maioria dos casos, a violência física que levou estas mulheres a procurar apoio nas

referidas casas de acolhimento, era a manifestação mais imediata das suas vivências de

subordinação. Muitas destas mulheres estavam desempregadas ou tinham empregos

precários e eram pobres. À experiência da violência perpetrada pelos companheiros

somavam-se outras experiências de vulnerabilidade, de igual gravidade, contribuindo esta

interação para uma situação de elevado risco social. O risco social acentua-se quando a

estas experiências se adicionam outras pertenças identitárias específicas. As mulheres

migrantes são particularmente vulneráveis à discriminação (Crenshaw, 1991). As

migrações trazem consigo experiências de discriminação interseccional, na medida em que

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as mulheres migrantes são afetadas pelas suas múltiplas pertenças identitárias, encerrando

estas o somatório de diferentes formas de opressão.

Conforme aduz Machado (2005):

[...] coisificação do migrante permite a exploração radical a que estão sujeitos,

tanto no país de origem, antes do ato de emigrar, como no país de recepção, após

a entrada na nova sociedade. A migração pode ser, pois, um continuum de

experiências de discriminação, não só no país de origem, mas também no país

receptor. Na verdade, as realidades sociais recentes (ou pelo menos de

apreciação mais recente) convidam-nos a reconhecer a importância da

interseccionalidade nos estudos migratórios. Ao assumir que a raça/etnicidade, a

classe e o gênero são processos culturalmente definidos, a teoria da

interseccionalidade reconhece que as posições sociais ocupadas por cada um/a

influem na decisão de permanecer ou não no país de origem, na decisão de

migrar ou não migrar. A observação das inter-influências a que as migrantes

estão sujeitas, não só permite compreender como as estruturas sociais

condicionam as decisões migratórias, mas também como é produzida a praxis

dessas decisões. (MACHADO, 2005, p. 05)

A segregação de gênero nas estatísticas e na pesquisa sobre migrações deve dar

lugar a uma observação atenta e rigorosa das especificidades de gênero, mas também de

outras pertenças identitárias. Trabalhar com múltiplas categorias de pertença é como

defende Piscitelli (2008), dispor de ferramentas analíticas para apreender a associação de

múltiplas diferenças e desigualdades: “[...] não se trata apenas de observar a diferença

sexual, nem a relação entre género e etnia/raça ou género e sexualidade, mas da diferença,

em sentido amplo, para dar cabida às interações entre possíveis diferenças presentes em

contextos específicos” (Piscitelli, 2008, p. 266). Os sistemas de opressão sobrepõem-se e

se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se tocam

(Crenshaw, 2002).

É muito comum, na literatura, a comparação das diferenças existentes entre homens

e mulheres migrantes, não sendo, contudo, essas diferenças problematizadas com o intuito

de se sistematizar o que as constrói, as condiciona ou as mantém. Parte-se igualmente do

princípio de que as experiências das mulheres são homogêneas entre si, assim como as

experiências dos homens, não se assumindo que existem diferentes grupos de mulheres e

de homens e que as especificidades desses diferentes grupos ocasionam diferentes

experiências de subordinação. Desta feita, os estudos migratórios têm privilegiado os

fatores econômicos na explicação da decisão de migrar, não se atentando para o fato que a

questão econômica é apenas parte do problema e não o problema em si.

Como preleciona Crenshaw (2002):

As mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde

o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência,

estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias.

As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões,

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posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas,

devem negociar o “tráfego” que flui através dos cruzamentos. Esta se torna uma

tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções.

O tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim como os processos

migratórios, poderá traduzir (e traduz muitas vezes) uma forma de discriminação

interseccional. As vítimas são oriundas de grupos marcados por múltiplas

opressões. O tráfico deve entender-se no contexto das migrações, e, nesse

sentido, deveremos procurar a explicação para o seu surgimento e expansão nas

teorias tradicionais das migrações. (CRENSHAW, 2002, p. 177)

Todas as estimativas sinalizam para o fato de as mulheres e das crianças de sexo

feminino serem as principais vítimas do tráfico de pessoas, o que também se deve, em

grande medida, à crescente feminização da pobreza. Mas o tráfico não é meramente o

resultado de relações sociais de gênero hierarquizadas. Define-se por tráfico de mulheres

um amplo conjunto de situações de exploração baseada no desequilíbrio de poder entre as

partes: as vítimas e os traficantes. Este desequilíbrio pode caracterizar-se por desigualdade

de gênero, desigualdade étnica, desigualdade econômica, desigualdade etária, entre outras

manifestações de desigualdade.

A discriminação de gênero sofrida nos países de origem, especialmente no que

respeita ao acesso ao emprego, torna as mulheres mais susceptíveis à exploração sexual,

sendo esta muitas vezes promovida por outras mulheres (Carling, 2006). A oportunidade

das mulheres migrarem em condições regulares, estando limitada pelas suas parcas

qualificações académicas e pelos seus diminutos recursos económicos, leva-as a aceitar

mais facilmente as falsas promessas dos/as angariadores/as e a migrar clandestinamente.

Em contextos social e economicamente desfavorecidos, o baixo estatuto das mulheres e a

persistente violação dos seus direitos, são fatores de risco para o seu envolvimento em

práticas sexuais forçadas. A obstrução à escolarização e à educação das meninas, a

vinculação do papel das mulheres a responsabilidades domésticas e familiares e o

impedimento destas à participação política e à vivência da sua sexualidade plena faz com

que a desigualdade de gênero seja reforçada e legitimada.

A vulnerabilidade ao tráfico parece estar também dependente da subordinação

étnica ou racial, sendo alguns grupos frequentemente mais visados do que outros. Uma vez

nos países receptores, as vítimas continuam a sofrer os efeitos dessa subordinação, já que a

ilegalidade as remete, ou para a invisibilidade, ou para a visibilidade distorcida. Muitas

vezes tratadas pelas populações dos países receptores como estrangeiras e prostitutas, as

vítimas de tráfico resistem em pedir ajuda e são frequentemente privadas dos seus direitos

fundamentais (como o direito à assistência médica). Segundo Neves (2016):

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A usual confusão entre tráfico e prostituição motiva que muitas vítimas

permaneçam na obscuridade e não sejam devidamente apoiadas. Se estas

mulheres tiverem nacionalidades conotadas com o trabalho sexual, a indiferença

social é ainda mais evidente. As vítimas brasileiras são especialmente

negligenciadas em termos de protecção social. Ao assumir-se que a

nacionalidade brasileira é predominante na indústria do sexo em Portugal, toma-

se a sua situação como uma opção “laboral migratória”, o que faz com que

passem despercebidas evidências de exploração e tráfico Santos et al., 2007).

Mais ainda, a crença na naturalização da violência associada à prostituição, faz

com que muitas vezes a violência seja legitimada, não só por quem a pratica mas

também por quem dela é alvo. As condições que levam as mulheres a ser

vulneráveis ao tráfico para fins de exploração sexual, nomeadamente o

desemprego e a precariedade social, dão lugar a outras, igualmente

incapacitantes. (NEVES, 2016, p. 07)

A manutenção das situações de tráfico perpetua a noção de coisificação do/a

migrante (Machado, 2005). “O tráfico não é uma esfera distante do universo da legalidade,

restrito ao submundo do crime; o tráfico compartilha com a sociedade uma “inscrição

simbólica” que permite a sua própria existência” (Machado, 2005, p. 14).

2. A MIGRAÇÃO COMO EXPRESSÃO DELITIVA: O TRÁFICO DE

SERES HUMANOS

Uma análise mais detalhada do tráfico ilícito de migrantes escapa ao alcance deste

estudo, sem dúvida, não se pode falar de tráfico sem mencionar a esta outra situação

delitiva. O tráfico ilícito de migrantes configura um crime contra as leis migratórias de

entrada de um Estado através da burla dos requisitos estabelecidos para tal migração. Sua

definição aparece no Protocolo Adicional em matéria de "Tráfico Ilícito de Migrantes por

Terra, Mar e Ar”, que complementa a Convenção das Nações Unidas contra o Crime

Organizado Transnacional.

O protocolo, no seu artigo 02 define tráfico como:

a) Por “tráfico ilícito de migrantes” se entenderá a facilitação da entrada

ilegal de uma pessoa em um Estado Parte do qual dita pessoa não seja nacional

ou residente permanente com o intuito de obter, direta ou indiretamente, um

benefício financeiro ou outro benefício de ordem material;

b) Por “entrada ilegal” se entenderá a travessia da fronteira sem haver

cumprido os requisitos necessários para entrar legalmente em um Estado

receptor;

Sua relação o tráfico de pessoas está ligado a extrema vulnerabilidade das pessoas

que entram e permanecem de forma irregular em outros países, essas devido a sua

clandestinidade não estão em condições de reclamar seus direitos nem de maximizar suas

oportunidades, são presas fáceis do tráfico. Além disso, as organizações criminosas que

fornecem passaportes e vistos falsos, possuem ramificações que derivam em grupos de

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aliciadores e traficantes que sequestram e exploram os cidadãos que viajaram com

documentação falsificada. Esses grupos retêm seus passaportes e vistos, e a partir dai

começando o processo de sofrimento e exploração descrito em detalhe nos documentos que

versam sobre o assunto como o supramencionado.

Migrações internas, ou seja, que ocorrem dentro de um país geralmente passam

despercebidos porque que são muitas vezes interpretado como mudanças de residência

motivadas principalmente por razões familiares, trabalho ou estudo. No entanto, quando

envolvem populações vulneráveis e em risco e são geridos por terceiros sem o

conhecimento ou consentimento dos pais ou parentes pode muito bem ser o deslocamento

causado por traficantes levando pessoas para serem objetos de exploração.

Não existe um “modelo de vítima” o que mostra a importância de discutir o

enfrentamento ao Tráfico de Pessoas a partir de uma perspectiva de Direitos Humanos que

considere as mulheres:

[...] como sujeitos atuantes, auto-determinados e posicionados de maneira

diferente, capazes não só de negociar e concordar, mas também de

conscientemente opor-se e transformar relações de poder, estejam estas

enraizadas nas instituições de escravidão, prostituição, casamento, lar ou

mercado de trabalho (Kempadoo, 2005, p.61-62).

2.1 TEMAS ASSOCIADOS À MIGRAÇÃO E AO TRÁFICO DE

MULHERES

Um fenômeno que se verifica em todos os povos e culturas, através dos tempos, é

o medo ao outro. Em torno da migração e do tráfico de mulheres, este medo adquire

características particulares. Atualmente esses temores reaparecem diante dos milhares de

pessoas que se aglomeram nas fronteiras dos países mais ricos, em busca de uma

oportunidade de sobrevivência e trabalho, em busca de uma vida digna.

Esse medo ao desconhecido se conecta a preocupação por seus postos de trabalho

e pelos serviços que devem prestar ao Estado. A mescla que resulta, unida a preconceitos

racistas subjacentes, é muito danosa.

A xenofobia e o racismo não são a herança dos europeus ou dos norte americanos.

Em nossa região a situação também está presente, com diferentes nuances e diferentes

gradações sobre cidadãos de Estados vizinhos, especialmente para com os pobres que

migram em busca de trabalho.

O enfrentamento ao tráfico de pessoas não pode:

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[...] ignorar as razões para migrar e as necessidades e desejos das pessoas de

deixarem seus países para melhorar de vida, mesmo que isso envolva ser

contrabandeado e trabalhar em condições deploráveis no comércio sexual. Isso

conduz a fugir do problema da atuação e autodeterminação dos migrantes e leva,

portanto, a métodos e estratégias não adequados às necessidades deles

(Kempadoo, 2005:69).

As mulheres que são objetos do tráfico, se deve somar à discriminação étnica e

racial a estigmatização, que acarreta a vítima do tráfico, uma situação que as levará ao

isolamento.

Identifica-se vários fatores como causadores da migração e do tráfico de

mulheres. Entre esses fatores, a pobreza, a insegurança e a violência aparecem como os

mais importantes. Uma grande maioria das mulheres que migram e particularmente as

vítimas do tráfico, vivem em condições de pobreza, falta de oportunidades de trabalho,

muitas delas já foram violentadas, ou vivem em territórios que já tiveram ou tem conflitos

armados. A maioria, em decorrência das razões supracitadas teve pouco ou nenhum acesso

à educação.

A equiparação da migração com o tráfico tem se mostrado a intenção política de

alguns Estados para justificar, sobre o argumento de proteção as vítimas, as restrições

migratórias. Esse fenômeno tem ocorrido em países que são receptores de grandes números

de migrantes.

Um amplo número de mulheres que são traficadas tem como destino o turismo

sexual, que é amplo e explicitamente anunciado na internet, onde se mostram, com perfis

racistas e sexistas, as maravilhas do sexo “exótico”. Porém, além do turismo sexual

explícito, as organizações de mulheres têm denunciado muitas propagandas das agências

de turismo, que promovem o turismo sexual e a prostituição, ao anunciar as maravilhas de

cada país, com anúncios que sugerem natureza exuberante e inevitavelmente acompanham

a imagem de mulheres bonitas, com posturas sedutoras que fazem entender que o país é um

paraíso sexual, criando-se um estereótipo de que as mulheres são fogosas e sempre

dispostas à relação sexual.

São numerosos os casos de mulheres traficadas que foram consideradas

imigrantes ilegais pelas autoridades, e essa classificação ocasionam ações de deportação ou

prisão. Muitas dessas mulheres foram vítimas do tráfico exatamente porque estavam

fugindo de situações de miséria ou de outros perigos que estavam ocasionando risco a sua

vida ou integridade física. Devolver essas pessoas ao seu lugar de origem significa ignorar

a existência de riscos, não levar em consideração a problemática da vítima e envia-la a um

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lugar de onde ela estava fugindo e detê-la como se a mesma fosse criminosa agrega uma

nova forma de vitimização além da que o indivíduo já estava sofrendo.

3. TEM SENTIDO CONECTAR MIGRAÇÃO COM TRÁFICO DE

MULHERES?

Uma ênfase exagerada na conexão entre migração e tráfico de mulheres pode

produzir desdobramentos indesejados. Nem todas as imigrantes são vítimas do tráfico de

mulheres, assim como nem todas as vítimas do tráfico são destinadas a prostituição. A

ênfase na conexão pode ser usada por correntes que procuram valer-se do problema do

tráfico e da proteção às mulheres como uma desculpa para restringir a migração em seu

território. A criação de um perfil da “mulher traficada” oferece suporte para a

discriminação sexual em amplas e variadas formas.

É nossa clara intenção chamar a atenção acerca da proporção desigual de

responsabilidades direcionas aos Estados com relação a prevenção do tráfico de pessoas e

o controle migratório que se percebe no Protocolo Adicional à Convenção da Nações

Unidas contra a Criminalidade Organizada Internacional relativo à Prevenção, Repressão e

Punição ao Tráfico de Pessoas.

O texto desse tratado põe mais atenção nas vítimas que nos causadores do ato

delitivo e nas atividades migratórias de controle que na investigação e sanção do delito de

tráfico de pessoas.

Se a preocupação é a prevenção, repressão e sanção do tráfico de pessoas, o texto

do protocolo deveria dedicar uma parte significativa a coordenação entre os diversos

órgãos de segurança, a troca de informações, medidas nacionais e internacionais de

prevenção que estiverem direcionadas no combate a este crime, que constitui na atualidade

um negócio bilionário.

Para Kempadoo:

Ao priorizar o crime, a punição e o controle da imigração, a abordagem do

governo global diverge agora das perspectivas que foram geradas a partir de

cuidados com a justiça social e os direitos humanos, particularmente das

mulheres [...].

[Além disso] problemas estruturais globais que produzem o tráfico –

globalização, patriarcado, racismo, conflitos e guerras étnicas, devastação

ecológica e ambiental e perseguição política e religiosa – são raramente tocados

no paradigma hegemônico sobre o tráfico. São esses problemas estruturais que

permanecem como fenômenos globais importantes para analisar, desconstruir e

combater (Kempadoo, 2005, p. 68-69).

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CONCLUSÃO

Ao término desse estudo, a discussão e análise dos desafios listados deve

constituir uma prioridade para a comunidade de direitos humanos, os governos e as

organizações internacionais.

Para enfrentar um problema da magnitude que tem o tráfico de mulheres, requer

maior apego aos tratados internacionais que regulam o tema, bem como prestar muita

atenção à forma como os diplomas internacionais estão inseridos na legislação local.

Em uma análise sobre os problemas enumerados no texto do Protocolo das

Nações Unidas sobre Tráfico de Pessoas, percebe-se que a principal preocupação gira em

torno da constatação de que o peso não foi equilibrado entre as diretivas para combater os

criminosos e as medidas que se referem à vítima. Essas últimas medidas tendentes à

proteção acabam por penalizar a vítima.

Diante do contexto analisado, é necessária uma análise mais aprofundada das

políticas governamentais acerca dos efeitos da migração em todas as suas áreas:

econômica, social e cultural. A participação da sociedade civil e de organizações não

governamentais é de vital importância no intuito de propor estratégias para uma migração

ordenada, segura e regulada. A problemática da migração deve estar ligada às relações

internacionais, à solidariedade internacional e à responsabilidade compartilhada,

principalmente entre Estados fronteiriços e não ser encarado como problema de segurança

nacional (CORREIA, 2010, p.11).

O tráfico de mulheres seja para fins sexuais comerciais, trabalho ou serviços

forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de

órgãos constitui um fenômeno difundido no mundo todo que ameaça a dignidade das

pessoas e tem se proliferado de maneira intensa nas últimas décadas, adquirindo novos

métodos e rotas. O presente texto tem o intuito de lançar luz sobre esta questão do tráfico

de mulheres ainda muito pouco conhecida da sociedade e até mesmo das autoridades

competentes para o seu combate. A sociedade no geral ainda possui pouca ou nenhuma

informação acerca do tema, as políticas públicas são muito discretas e as campanhas de

publicidade e conscientização, bem como programas de assistências as vítimas ainda não

constitui uma realidade.

Entende-se por tráfico toda situação envolvendo o transporte e a transferência de

vítimas para um lugar diverso do de sua residência valendo-se para tal do emprego da

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força, usando de violência e outras formas de coação forçando a realização de ações contra

a sua vontade. A exploração incluirá desde o trabalho forçado em situação análoga a de

escravatura a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual.

É importante também abordar a figura do traficante, do aliciador e pessoas que se

apropriam do fruto do trabalho da vítima. O fim precípuo do tráfico é garantir lucros ao

traficante e toda a rede que compõe a prática perverso crime.

O combate ao tráfico de mulheres encontra muita dificuldade, primeiro para

identificar e chegar às vítimas que, por medo de represálias, são relutantes em noticiar o

crime. Tanto é assim que, embora o tráfico seja um crime que ocorre de forma intensa no

país, quase não existem denúncias nos órgãos policiais e pouquíssimos julgamentos em

tribunais. Além disso, o vazio penal e da ignorância difundida sobre o assunto, faz com que

os crimes sejam julgados sobre itens como cárcere privado, lesão corporal, ameaça,

sequestro, entre outros.

Tráfico de mulheres constitui um tema complexo tanto na sua concepção como

em sua compreensão. O tráfico de mulheres possui uma infinidade de arestas que se

entrelaçam o que dificulta uma abordagem de forma clara acerca do tema. É um problema

novo em sua concepção, porém antigo em sua existência. O Protocolo de Palermo que

cunha a definição de tráfico de pessoas foi elaborado em 2000, tendo entrado em vigor em

2003 e ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.017, de 12/03/2004, que promulgou

esse Protocolo.

A ideia de tráfico encontra origem no conceito de tráfico ilícito de migrantes,

também definido no Protocolo de Palermo que é um adicional à Convenção das Nações

Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e

Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Ambos os fenômenos

(tráfico de pessoas na modalidade tráfico de mulheres e o tráfico ilegal de migrantes)

cobram um crescente protagonismo na agenda internacional surgindo com força também

nas agendas dos Estados, sejam eles de origem ou de destino, o que mostra a preocupação

desses com a expansão do tráfico de pessoas.

Muitas incertezas e dúvidas rodeiam o assunto do tráfico de mulheres em pleno

processo de desenvolvimento conceitual e legislativo. Se há sem dúvida uma certeza, é a

de que esse problema viola os direitos humanos das pessoas, e que, portanto, deve ser

encarado desde a perspectiva dos direitos humanos. O tema guarda estreita relação com

outro problema, que é a discriminação de gênero. As soluções para o problema devem ser

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abrangentes e não se concentrarem exclusivamente no desenvolvimento legislativo e

punitivo. Estratégias de combate ao tráfico de mulheres devem contemplar a prevenção e a

assistência às vítimas, e sua reintegração.

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