tráfico de órgãos e partes do corpo humano na região … · 3.4 limitações do estudo 27...

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Maputo, Fevereiro de 2016 Estudo sobre o Tráfico de órgãos e partes do corpo humano na Região Sul de Moçambique

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Estudo sobre oTráfico de órgãos e partesdo corpo humano na Região Sul de Moçambique

Organização:

Financiamento:

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Esmeralda MarianoCarla BragaAndrea Moreira

Maputo, Fevereiro de 2016

Estudo sobre oTráfico de órgãos e partesdo corpo humano na Região Sul de Moçambique

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Estudo sobre oTráfico de órgãos e partes do corpo humano

na Região Sul de Moçambique

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Ficha Técnica

Título: Estudo sobre o Tráfico de órgãos e partes do corpohumano na Região Sul de Moçambique

Autores: Esmeralda Mariano, Carla Braga e Andrea MoreiraRevisão linguístico: Miguel Ouana

Capa e projecto gráfico: Lourenço Dinis PintoPaginação: LDP Consultores EI

Número de registo: XXX/RLINLD/2015Fotografia capa: Lourenço Dinis Pinto e recortes de jornal

Tiragem: 1000 cópias Organização: CEMIRDE

Financiador: CAFODImpressão: INTERACT Moçambique Lda

Maputo, Fevereiro de 2016

Os conteúdos desta publicação são da responsabilidade dos autores, não reflectindo necessariamente o posicionamento da

CAFOD e CEMIRDE.

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Estudo sobre oTráfico de órgãos e partes do corpo humano na Região Sul de Moçambique

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ÍndiceAbreviaturas 4Prefácio 5Agradecimentos 7Sumário Executivo 9Conclusões 11

Antecedentes e Contexto 13I. INTRODUÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO 13 1.1 Como surgiu o Estudo 13 1.2 Objectivos do Estudo 13 1.3 DefiniçãodeConceitos 14

II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO 15 2.1 Contexto Sócio-cultural 15 2.2 AspectosassociadosaoTráfico 16 2.3 Locais do Estudo 18

III. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO 25 3.1 Desenho e perguntas do estudo 25 3.2 Técnicas e instrumentos usados 26 3.3 ConsideraçõesÉticas 27 3.4 Limitaçõesdoestudo 27

ApresentaçãoeAnálisedosResultados 29IV. REVISÃO DA LITERATURA 29 4.1 Literatura Internacional 29 4.2 LiteraturaeInformaçõessobreMoçambique 32

V. RESULTADOS E ANÁLISE 37 5.1 Conhecimento sobre o fenómeno 37 Oquesedizeoqueseouve 37 Registo de casos e Evidências 38 Corpos sem partes 39 Osmeiosdecomunicaçãosocial 40 O desaparecimento de pessoas 42 5.2 Pessoasenvolvidasnestapráticaeáreasdeactuação 42 Ricos e vulneráveis 43 Religiãoemagia 44 O “El Dourado” 46 A ambivalência da medicina tradicional 48 5.3 Entendimentosobremotivaçõesefinalidadesdaprática 50 Simbolismo das partes do corpo 50 5.4 Estratégias usadas para lidar com o fenómeno 51 Éumacoisamuitosilenciada 51 Passos positivos 53 5.5 Políticas,LegislaçãoeAcçõesInterventivas 54

VI. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES 57 6.1 Conclusões 57 6.2 Recomendações 58 Bibliografia 61

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na Região Sul de Moçambique

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Abreviaturas AMETRAMO Associação dos Médicos Tradicionais de MoçambiqueCAFOD Catholic Agency For Overseas DevelopmentCEMIRDE Comissão Episcopal para Migrantes, Refugiados e DeslocadosFRELIMO Frente de Libertação de MoçambiqueIDH Índice de Desenvolvimento HumanoINE Instituto Nacional de Estatística ISRI Instituto Superior de Relações Internacionais LDH Liga dos Direitos Humanos MISAU Ministério da Saúde OIM Organização Internacional para a Migração ONG Organização Não-GovernamentalPGR Procuradoria-Geral da República PNUD Programa das Nações Unidas para o DesenvolvimentoRENAMO Resistência Nacional de MoçambiqueSANTAC Southern Africa regional Network against Trafficking and Abuse of

ChildrenTVM Televisão de MoçambiqueUNICEF United Nations Children’s Fund

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Prefácio

O desenvolvimento da pessoa humana constitui uma das prioridades da Igre-jaeé,porisso,queapromoçãohumanaeaevangelizaçãosempreseconfun-diramnaacçãodaigreja,aolongodosséculos.Fielaesteprincípio,aIgrejaCatólica,emMoçambique,fazsuasaspreocupações,asangústiasealegriasdos homens (cf. Vaticano II, Gaudium et Spes, 1) e, por isso, tem levado a cabo acçõesconcretas,visandoobem-estarhumanoesocialdaspopulações,emdiferentes esferas: moral, religiosa espiritual e, até, material.

Opresenteestudo,sobreotráficodeórgãosepartesdocorpohumano,aparecenessa linhaenacontinuidadedeumtrabalhoqueamesma Igrejavemrealizando,sobretudodesde2003,aquandodosprimeiroscasosfaladosderaptoetráficodepessoas,deórgãosepartesdocorpohumanoque,naaltura,fezcorrermuitatinta,pois,poucosacreditavamnaquiloque,hoje,nãosóéinegável,masquesetransformounumfenómenodedimensãoplanetá-ria,cujocontroloconstituiumgrandíssimodesafioparaosgovernoseinsti-tuições,taiscomoapolícia(nosseusdiferentesramoseespecialidades),ostribunais, etc.

AComissãoEpiscopalparaMigrantes,RefugiadoseDeslocados(CEMIR-DE)eaComissãoEpiscopalparaJustiçaePaz,eassuascongéneresaoníveldasDiocesessãoosprincipaisinstrumentosdaIgrejanaáreasocialequetêmpromovido e participado em conferências, seminários e congressos nacionais e internacionais de alto nível.

EstetrabalhoéfrutodepesquisapromovidapelaCEMIRDE,emparceriacomaCatholicAgencyForOverseasDevelopment(CAFOD).Porisso,quere-mosagradeceraestanossaParceira(CAFOD),quenospotenciouetornoupos-síveisestaspáginas,quepomosàdisposiçãodopúblicoeesperamosquesejamumcontributoválidoparaaconsciencializaçãodessemesmopúblico, tendoemvistaocombateàquiloquesechamade“novaformadeescravatura”.

Com os nossos sinceros votos de um bom aproveitamento

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Agradecimentos

Arealizaçãodesteestudonãoteriasidopossívelsemaabertura,acoragem,ointeresseeacolaboraçãodeváriaspessoaseinstituições.Osnossosagra-decimentossãodirigidosatodosetodasquenosconcederamoseutempoeaceitarampartilharsuasexperiênciase inquietaçõesemtornodeumtematãosensível,silenciadoeassustador.UmespecialagradecimentoàCEMIRDEeàCAFODpelaconfiançahumanaetécnicaàequipadepesquisa.

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Sumário ExecutivoOpresenteestudoenquadra-senoâmbitodaCampanhadeCombateaoTraficodeÓrgãoseSeresHumanosemMocambiquequeaComissãoEpiscopalparaMigrantes,RefugiadoseDeslocados(CEMIRDE)vemorganizando.OlivroqueaquiapresentamoséresultadodeumaparceriaentreaCEMIRDE,OrganismodaConferênciaEpiscopaldeMoçambique(CEM),eaAgênciaCatólicaparao Desenvolvimento Internacional (CAFOD). A CEMIRDE tem como principal missãomarcarpresença juntodapopulaçãoemmovimento,naassistênciahumana, espiritual, pastoral, legal e, quandopossível,material, ajudando-aparaquesejaprotagonistadesuahistóriaecontribuaparaacriaçãodeumasociedade mais justa, humana e fraterna.

Oobjectivodoestudoconsisteemadquirirummaiorconhecimentoecom-preensãosobreotráficodeórgãosepartesdocorpohumano,indicarosprin-cipaisfactoresquecontribuemparaaocorrênciadofenómeno,afimdeiden-tificarestratégiasmaisadequadasparaoseucombatenascomunidadeslocaiseoutrasinstituiçõesprovedorasdeserviçosessenciais,nastrêsProvínciasdaregiãosuldeMoçambique,Maputo,GazaeInhambane.Apartirdosresultadosdoestudo,aCEMIRDE,emparceriacomaCAFOD,tencionarealizaractividadesformativasdesensibilizaçãojuntodapopulaçãolocal.Pretendeainda,conhecerasInstituiçõesEstataisedaSociedadeCivilcomprometidascomofenómeno,porformaacoordenartrabalhosemparceriaeencaminharpossíveiscasosquemereçamatençãoespecíficadosdiferentessectores.

Ametodologiaqualitativausadanesteestudo,foidesenvolvidapelaequi-pade investigação contratada, constituídapor trêsantropólogasedoisas-sistentes (umantropólogoeumsociólogo), emconsultaçãoe coordenaçãodaCEMIRDEedaCAFOD.Odesenhoeelaboraçãodosinstrumentosdepes-quisa,definiçãodogrupoalvoedoslocaisdoestudo,contoutambémcomaparticipaçãodeactivistase líderes comunitáriosquecolaboramcomaCE-MIRDE.Paraalémdaapuradarevisãodaliteraturanacionaleinternacional(artigoscientíficos,relatórios,documentoslegais)econsultasemrede,fez-sea recolha de dados nas comunidades por meio de visitas, contacto directo, entrevistasindividuaissemiestruturadasediscussãoemgruposfocais.Parti-ciparam de forma livre e consentida 116 actores e informantes chave: (líderes religiosos,tradicionaisecomunitários,profissionaisdajustiça,dasaúde,dacomunicaçãosocial,activistassociais,homensemulheres,nacomunidade,ejovens das escolas maiores de 18 anos) das três províncias, nomeadamente, nos distritos de Magude, Moamba, Chokwé, Massingir, Massinga e Govuro. As razõesparaaescolhadoslocaisdepesquisadevem-se,dentreoutrosfactores,àintensamobilidadehumana,vulnerabilidadeegruposderiscoquecaracte-rizamosmesmos.

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Os resultados do estudo incidem sobre o seguinte:Oconhecimentosobreotráficoderiva,emgrandeparte,dosmeiosdeco-

municaçãosocialquesãoaprincipalfontedeinformaçãosobreofenómeno.Otráficoenvolveumaredecomplexadeintervenientes,desdeosindivídu-

osqueencomendamosórgãos,àquelesqueexecutama“tarefa”deosextrai-rem,ouosqueostransportam.Osmédicostradicionaissãoapontadoscomoosprincipaisutilizadoresdeógãosequemosencomenda.Oúltimobenefi-ciário raramenteé conhecido.Pensa-se tambémqueaspessoasenvolvidasnotráficosãopoderosas,“capazesdeanularqualquertentativaderepressãojurídicaepolicial,atravésdaofertadebenefíciosmateriais”.

Quantoàsmotivaçõesefinalidadedotráfico,seporumladoháquemre-corraàmagiaesubsequenteutilizaçãodeórgãosafimdefazerfortunaoudeaaumentar;outrosháque,numcontextoemqueaprópriavidaeórgãosoupartesdecorpodesereshumanosadquiremvalordemercado,emsituaçãodepobreza,comercializamessesórgãos.

Predominaosilênciosobreotráfico.Aspessoastêmmedodeseexpressar,temendoretaliações,perseguiçõesasipópriosouaseusfamiliareserecean-doservítimasdefeitiçaria.

Noquedizrespeitoàlegislação,onovocódigopenal,emvigorapartirdeJulhode2015,pelaprimeiravez,puneaposse,transporteetráficodeórgãose partes do corpo humano.

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ConclusõesAdesigualdade,asdiferencasentreaextremariquezaeapobrezaconstituemopanodefundodotráficodeórgãos.Predominaorecursoàmagiaeautiliza-çãodeórgãoshumanoscomomeiodeobtere/ouincrementarbenefíciosma-teriais.Afeitiçariaparececonstituirumaforçaniveladoradastensõessociais,derivantesdasdisparidadesentrericosepobres,oquenoschamouaatençãopara um problema social e económico mais profundo.

Deigualmodo,constatámosavulnerabilidadeaotráficoporpartedaspes-soas, particularmente, os jovens e criançasque vivemno seuquotidiano aexclusãosocialeeconómica.

Constatámostambémafaltadepreparaçãodasinstituiçõesenvolvidasnalutacontraotráfico,anecessidadetantoderecursoshumanoscapazeseco-nhecedoresdamatériacomoderecursosmateriaisefinanceiros.Poroutrolado,aarticulaçãoentreasdiferentesinstituiçõesenvolvidasétambémaindafrágil.Porexemplo,oreconhecimentodopapelquetemamedicinatradicio-nalparecequenãoencontraenquadramentonosdiscursosjurídicose,conse-quentemente,naapropriaçãoeaplicaçãodasleispelaspessoas.

Asrecomendaçõesqueseapresentamnestedocumentoequedecorremda análise e das conclusões, têm como objectivo principal contribuir para a melhoria das actividades a serem desenvolvidas pela CEMIRDE em colabora-çãocomasváriasinstituições.Nelassesalientamodesenvolvimentodepolí-ticasinclusivas,coordenaçãoesinergiasentreosváriossectores,capacitaçãodosrecursoshumanosecriaçãodeinstrumentosemecanismosparamelhorlidarcomofenómeno.Oestudorecomendacomoprioridadeapromoçãodecampanhasdeeducaçãocívicaesensibilizaçãosobreotráfico,sobretudo,emzonasrurais.Umconhecimentomaisaprofundadodofenómenorequerare-alizaçãodepesquisasalém-fronteirassobreotráfico.

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Mapa do Sul de MoçambiqueProvínciasondeserealizouoestudo:Maputo,GazaeInhambane

M a p u t o

G a z a

I n h a m b a n e

Legenda

Locais onde se realizou o estudo

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Antecedentes e Contexto

I. INTRODUÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO

1.1 Como surgiu o Estudo OprojectodepesquisasurgiudanecessidadedaCEMIRDEdeobterumco-nhecimento e compreensão mais amplos sobre o fenómeno do tráfico deórgãosepartesdocorpohumano,nasregiõesreferenciadas,assimcomoso-breosmecanismosderespostaspostosemprática,afimdedelinearacçõesdeconsciencialização,prevençãoecombateaestecrimequeafectaomundointeiroeMoçambique,emparticular.ACEMIRDE,emparceriacomaCAFOD,naperspectivadedarseguimentoàssuasacçõesemdefesadosDireitosHu-manosdaspessoasemmobilidadeenoâmbitodaCampanhadeCombateaoTráficodeÓrgãosedeSeresHumanos,solicitouacolaboraçãodeinvestigado-ras/esparaodesenhoeimplementaçãodoestudo.Aequipadeinvestigaçãoé composta por Esmeralda Mariano e Carla Braga, ambas doutoradas em An-tropologia,eAndreaMoreira,doutorandaemAntropologia.AequipaintegratambémdoisassistentesdepesquisacomograudelicenciaturaDavidAnésioNhazilo,emAntropologia,eCelsoAlexandreVilanculos,emSociologia.

A realização desta pesquisa faz sentido pelasmotivações apresentadaspelaCEMIRDEeCAFOD,justificadapelaescassezdeestudosquedocumen-tameanalisamoassuntoemMoçambique.Sendoobjectodeinteressedaan-tropologia,aproduçãodeconhecimentoatravésdesteestudo,contribuiparaaanálisedarealidadesocialnoâmbitodasciênciassociais.

1.2 Objectivos do Estudo Definiu-secomoobjectivogeraldoestudo:compreenderofenómenodetráfi-codeórgãosepartesdocorpohumanonaregiãosuldeMoçambique,nasuavertente social e cultural.

ObjectivosEspecíficos:• Analisaroscontornosdofenómenoeasdiferentesdimensõesdomesmo

nasprovínciasdeMaputo,GazaeInhambane;• Descreveraspercepçõessobreofenómenoentrediferentesactores(estu-

dantes,polícia,líderescomunitários,médicostradicionaiseprofissionaisdesaúde,entreoutros);

I. INTRODUÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO ESTUDO

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• Documentarasestratégiasdegestãodoproblema,tantoanívelindividualcomo a nível institucional;

• AnalisaraspolíticaseasintervençõesdasinstituiçõesdoEstadoedaso-ciedade civil.

1.3 Definição de ConceitosDeformaapermitiracompreensãoeanálisedofenómenoqueconstituiob-jectodesteestudo,sãoapresentadosabaixoalgunsconceitos.

Tráfico de PessoasOtráficodepessoasécaracterizadopelo"recrutamento,transporte,transfe-rência,alojamentoouacolhimentodepessoas,pormeiodeameaçaouusodaforçaououtrasformasdecoerção,derapto,defraude,deengano,doabusodepoderoudeumaposiçãodevulnerabilidadeoudedaroureceberpagamen-tosoubenefíciosparaobteroconsentimentoparaumapessoatercontrolosobreoutrapessoa,paraopropósitodeexploração.Aexploraçãocompreen-de,pelomenos,aexploraçãodaprostituiçãodeoutremououtrasformasdeexploraçãosexual,otrabalhoouserviçosforçados,aescravaturaoupráticassimilaresàescravatura,aservidãoouaextracçãodeórgãos”.(DefiniçãodeTráficodePessoassegundoaConvençãodePalermo–NaçõesUnidas,2000).

Tráfico de Órgãos HumanosOtermo"tráficodeórgãos"agrupatodaumagamadeactividadesilegaisquevisamcomercializarórgãosetecidoshumanosparafinsdetransplante.En-globaotráficodepessoascomaintençãoderemoverosseusórgãos;“turis-mode transplantes”, emqueospacientesviajamparaoexteriorembuscadeumtransplante(ilegal)deumdoadorqueépago;eo tráficodeórgãos,tecidosecélulas,queserefereatransacçõescomerciaiscompartesdocorpohumanoquetenhamsidoremovidasdepessoasvivasoufalecidas(StudyonTraffickinginHumanOrgans,EuropeanUnion,2015).

Tráfico de Partes do Corpo HumanoApesardaausênciadeumconceitointernacional,aLigadosDireitosHuma-nos(LDH)Moçambique(2009)consideracomotráficodepartesdecorpo,otransporteouomovimentodeumapartedecorpo,queratravésdeumafron-teiraquernointeriordeumpaísparavendaoutransacçãocomercial.

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II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO

2.1 Contexto Sócio-culturalDeacordocomocensode2007,Moçambiquetinhaumapopulaçãodecercade vinte milhões de habitantes, predominantemente residentes na área rural (INE,2007).Estima-sequeactualmentetenhaultrapassadoos25milhões.1

Duranteaguerraquedevastouopaís, entre1976e1992,as condiçõesdevidadapopulaçãoforamalteradassignificativamenteeasmovimentaçõesdentro e para o exterior do país foram imensas. Maputo, a capital política, ad-ministrativaeeconómicadeMoçambique,sofreuumaumentodrásticodasuapopulaçãonoperíododaguerracivil,devidoàmigraçãointernaderefugiados(Espling, 1999; Bénard da Costa, 2002).

Moçambiquetemsidopalcodeviolênciapolíticanasuahistóriarecentequeincluiaopressãocolonial,alutapelaindependência,políticaspós-colo-niaisviolentase,porúltimo,aguerraentreogovernodaFRELIMOeaRENA-MO, entre 1976-1992, mas em termos de “longue durée” poderia incluir-se tambémaescravaturaeotrabalhoforçado(Braga2012:186).

Aextremaviolênciaexercidaduranteaúltimaguerraincluiusequestros,recrutamentoforçadoemutilaçõesdenarizes,orelhas,lábiosepeitos(Braga2012).Perguntamo-nosatéquepontoaactualextracçãoviolentadeórgãoshumanos,porumlado,ecoapráticasassociadasàbuscaderiquezapormeiosmágicos,e,poroutro,podetersidoreforçadaeatébanalizadaduranteacha-mada“guerrados16anos”.Emqualquerdoscasos,sobressaiafragilidadeeprecariedade da vida humana perante a extrema violência.

Paraalémdisso,umamudançadramáticanascondiçõesdevidadapopu-laçãoocorreutambémnoâmbitodaintroduçãodosprogramasdeajustamen-toestrutural,econsequentereduçãodeoportunidadesdeempregoformal,aumentodos custosde vida e faltade serviçosurbanos (Espling, 1999).Aimplementaçãodeumprogramadeajustamentoestrutural,em1987,numpaísmassacradopelosefeitosdeumaguerraqueacaboupordurar16anos,teveconsequênciasdevastadorasparaamaioriadapopulação.Oimpactoin-dividual e social da guerra agravado pelas políticas económicas neoliberais, particularmente, o programa de reajustamento estrutural está amplamente documentado (Bowen1990;Marshall1990).Em2012,Moçambiqueaindaeraconsideradoumdospaísesmaispobresdomundo.Considera-sequeem2014,“aeconomiadeMoçambiquecontinuouaregistarbonsresultados,com

II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO

1www.ine.gov.mzacedidoa14-07-2015

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um crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) de 7.6% e com as pers-pectivasapermanecerempositivas.Éesperadoumcrescimentosustentadode7.5%,em2015,ede8%,em2016”.Contudo,amaioriadosmoçambicanos(55%)aindavivenolimiardepobreza–comumrendimentoinferiora0.6USD/dia,aquémdosparâmetros internacionalmenteaceites(1.0USDe2.0USD/dia).SegundooRelatóriosobreoDesenvolvimentoHumano(RDH)de2014,doProgramadasNaçõesUnidasparaoDesenvolvimento(PNUD),Mo-çambiqueencontra-sena178ªposiçãoentreos187países,comumÍndicedeDesenvolvimentoHumano(IDH)de0.393(Santosetal.2015:2).

Moçambique,pelasuaposiçãogeográfica,historicamenteconstituiupalcodecontactoscomerciasecruzamentosculturais.Opaís,caracteriza-seporumprocessocontínuodetransição,eumuniversosocialemrápidatransforma-ção,ondediferentesformasculturaiseeconómicascolidem,coexistemeseinterpenetram. Existe uma diversidade religiosa considerável e formas sin-créticas,comumaltoníveldemobilidadedoscrentesqueseguemdiferentesreligiõeseformasdecurasimultâneas,oque,porvezes,geracontradiçõesdevaloresepráticas.Aspromessas,propostasesoluçõesfornecidaspelasdife-rentesigrejas,paraaliviarasafliçõesindividuais,propiciamaconcorrênciaentreasigrejaseconduzosindivíduosdesesperadosevulneráveisàprocuradecuraerespostasparaassuasinquietaçõesquotidianas(Mariano,2014).OcrescimentodeseitasreligiosasemMoçambiqueencontraespaçonumam-bientedepobrezaextrema,emcondiçõesdedesempregoebaixoníveldees-colaridade.

AmigraçãodapopulaçãoparaaÁfricadoSul,maioritariamentemasculi-na,doSuldeMoçambiquevemocorrendohámaisdeséculoemeio.AfaltadeoportunidadesdeempregoemMoçambiquereforçoua tendênciaexistentedemigração laboralparaaÁfricadoSul,nãoapenaspor trabalhadoresdosexo masculino (a maioria como mineiros), mas também por trabalhadoras dosexofeminino.Cadavezmaismulheres,jovensecriançaspassamafron-teiraembuscademelhoresoportunidadesparasesustentaremeàssuasfa-mílias,utilizandocanaisirregularesdemigração,queosdeixamvulneráveisàexploração.Umasériedefragilidadesinstitucionais,controlosfronteiriçosnegligentes e susceptilidade ao suborno desempenham um papel importante noaumentodassuasvulnerabilidadeseviolaçãodosseusdireitos.

2.2 Aspectos associados ao TráficoUm estudo elaborado pelo Instituto Superior de Relações Internacionais(ISRI),encomendadopelaProcuradoria-GeraldaRepúblicaefinanciadopelaSave the Children Moçambique,em2014,sobreo“TráficodePessoasemMo-çambique,emparticular,deCrianças”,concluiqueMoçambique,dadaasualocalização geográfica e conjuntura sócio-económica, constitui fonte, e ao

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mesmo tempo, corredordo tráficodepessoas, sendooprincipaldestinoaRepúblicadaÁfricadoSul.Ascriançasconstituemasprincipaisvítimasdo“negócio”, sendo tratadas comoobjectosde troca “mais rentáveisdoqueotráficodequalqueroutramercadoria”.Oestudoindicaqueaszonasruraisesuburbanassãoasmaisafectadas,devidoàincapacidadedeintegraçãodosjovensnascomunidades,comoconsequênciadoselevadosníveisdepobrezaefaltadedisponibilizaçãodeempregosporpartedoEstado.Assim,aspesso-assãotraficadasdocampoparaascidadesegrandepartedosrecrutadoressãopessoasconsideradasinsuspeitas,taiscomoantigosvizinhosdasvítimas,antigoscolegas,familiaresemembrosdeinstituiçõesreligiosas(ISRI,2014).

OsdadosdoestudoelaboradopeloISRIestãoemsintoniacomumestudoanterior da Save the Children (2009)quesugerequeotráficointernoeexplo-raçãoocorrepormeiode“truques”ouenganoemmuitascomunidadesemMoçambique,perpetradoemgrandeparteporparentesecolegasdascrian-ças.Noestudoreferido,informantes-chaveecriançasinquiridastambémsereferiramaotráficoparafinsderemoçãodeórgãos.Emboraosexemplosporeles fornecidos estivessemassociados aoque tinhamouvidodizer aparen-tementeatravésderumores,essasnarrativastinhamumefeitosignificativonosentidodeprotecçãoesegurançadessascrianças.Muitasdessascriançasestavammaispreocupadascomapossibilidadederemoçãoforçadadeórgãosdoquecomotráficoparafinsdeexploraçãolaboralousexual(Save the Chil-dren, 2009).

Elísio Jossias(2006),noâmbitodoestudosobretráficodemenoresemMoçambique,coordenadoporCarlosSerra,procurouentenderoscontornosdestamatérianaprovínciadeMaputo.Amobilidadesocial(migraçõesparaaÁfricadoSuleSwazilandia),motivadapela faltadeoportunidadesepelapoucaesperançaderealizaçãoindividualnoslocaisdeorigem,foiidentifica-dacomofactordevulnerabilidadedascrianças.OsdepoimentosrecolhidosemRessanoGarciaapontaramparaasprovínciasdeGazaeInhambanecomofocosderecrutamentodascrianças.

AmigraçãointernadecriançasdesacompanhadasparaRessanoGarciaémaioritariamentede rapazesdos14aos17anosde idade,queencontramtrabalhonocomércioinformal.Asraparigassãomenosvisíveis,estandonor-malmenteenvolvidasnotrabalhodomésticoounaprostituiçãoinfantil.Apro-ximadamenteumterçodosjovenstemcomodestinofinalaÁfricadoSulecorreoriscodesertraficadonafronteirapelosmareyane,designaçãolocaldosindivíduosquefacilitamapassagemilegaldepessoasparaaÁfricadoSul(Verdasco, 2013). Assim, os mareyanerealizamatravessiailegaldemulheresecrianças,apéoudetáximinibus, a partir tanto de distritos como Moamba eMagudecomodaprovínciadeGaza,paraaÁfricadoSul.Noentanto,comaajudadosmotoristasdostáxis,esteshomensrealmentetraficampessoasparafinsdeexploraçãosexualelaboral(Save the Children, 2009).

II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO

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Natentativadeescaparàpobreza,abusoeviolênciaaquesãosubmetidosnosseuslocaisdeorigem,ascriançasejovensprocuramumasaídanamigra-ção.Ovalorhistóricodamigraçãoparaadquirirstatusassociadoàidadeadul-tatambémjogaumpapeldecisivonadecisãodemigrar.Poroutrolado,estascrianças,normalmente,nãotêmacessoàescolasecundárianosseuslocaisdeorigem,factorqueaslevaaprocurartrabalhopara,porvezes,continuaremosestudos (Verdasco, 2013).

Defacto,amigraçãoclandestina,sejadecriançasouadultos,constituiumarealidadequeseconfundecomotráficodesereshumanos.Apartirdamigra-çãoclandestina,aspessoaspodemserrecrutadascomomão-de-obrabarata,ouparaexploraçãosexual,particularmente,nocasodasraparigas,ouaindaemoutroscasos,paraaextracçãodeórgãos.

Afragilidadedasfronteirasextensascomváriospaíseseacorrupçãodasautoridadesdesegurançacontribuemparaavulnerabilidadedascriançasejovensquesemovimentamdesacompanhadosdepessoasqueosprotegem,constituíndoumterrenopropícioàacçãodostraficantes.Emconjugaçãocomváriosoutrosfactores,comooanalfabetismo,faltadeinformação,estruturafamiliarepobrezasãocontextosquepropiciamaocorrênciadetráficodese-reshumanosparaváriasfinalidades.

AgrandereportagemdaTVMde2012“Oscaminhosparaotráfico”mostraafacilidadecomqueaspessoas“saltam”asfronteiras,evidenciandoafragi-lidadedosistemaeeventualcorrupçãodasautoridades,umavezqueébemvisívelestamovimentaçãoirregulardeindivíduos,deumladoparaooutro,incluindocrianças.

Noentanto,édesublinharqueotráficodeórgãoshumanosnãoconstituiumfenómenonovonemseverificaapenasemÁfrica,estendendo-seaoutrasregiõesdoglobo(Ásia,AméricadoSul,Europa)noâmbitodeuma“economiaglobal de partes do corpo humano”. O mercado de partes do corpo humano constitui,portanto,umaformade“comodificação”daprópriavidaassociadaàproliferaçãode“economiasocultas”(ComaroffeComaroff1999:283-291).

2.3 Locais do Estudo

Moamba – Província de MaputoO distrito daMoamba está localizado no norte da província deMaputo, a115KmanoroestedaCidadedeMaputo,nafronteiraprincipalentreMoçam-biqueeÁfricadoSul.DeacordocomasprojecçõesdoINE(2012),apopulaçãodo distrito da Moamba, em 2015, é de cerca de 68.231 habitantes, maiorita-riamente,jovem.Tendoemcontaocarácterdeficitáriodapráticadaagricul-turanestedistrito,amaioriadapopulaçãotemrecorridoàÁfricadoSul,parasuprir as suas necessidades alimentares e de bem-estar (INE, 2009). A migra-

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çãoparaÁfricadoSulrepresentaumdosprincipaismeiosdesubsistênciadapopulaçãododistrito.

O posto administrativo de Ressano Garcia, no distrito da Moamba, é a fron-teiradopaíscommaioresfluxosmigratórios,comumamédiadiáriade5000pessoasapassar.Apopulaçãodavilaéestimadaem8977pessoas,masumaestimativa mais realista é de 15.000, incluindo mineiros, comerciantes, turis-taseimigrantesemsituaçãoirregular,quesóficamporalgunsdiasouhoraspara fazernegóciosna fronteira.RessanoGarcia tem sido consideradoumimportante foco comercial desde o período colonial. Evidência disso é a linha ferroviáriaqueligaMoçambiqueàÁfricadoSulatravésdestafronteira,comoscomboiosqueligamMaputoeKomatipoort(Verdasco,2013).

Magude - Província de MaputoOdistritodeMagudetemumapopulaçãodecercade59.162habitantes,dosquais50.7%sãojovens,31.850sãomulheres,eosrestantes27.312sãoho-mens. O distrito é considerado como o maior produtor de gado bovino a nível nacional (INE, 2009; 2012).

Distrito de Magude, 2015

Pudemosobservarconstruçõesrecentesdevivendasdegrandesdimensõese até “luxuosas”, em grande parte inacabadas, na vila de Magude. Segundo a população,estedesenvolvimentoédecorrentedapráticaextremamentelu-crativadacaçaaorinoceronteparavendadoscornosdesteanimal.Fomosin-formadosqueessasconstruçõesnãoestãoterminadasdevidoaofalecimento“prematuro”dosseusproprietários.DeacordocomoquesedizemMagude,acaҫaaoxibejana (rinoceronte) é uma actividade levada a cabo por uma rede de indivíduosinfluentes,chamadosdepatrões,quecontratamserviçosdejovensfisicamenteágeis,maseconomicamenteesocialmentedébeis,osrikanhana (aquelesque cortamos chifres).De forma recorrentenosdisseramqueos

II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO

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jovensdeMagudeenvolvidosnestaactividade,depoisdeexecutaremacaҫaduasoutrêsvezes,sãomortosouporautoridadesSulAfricanasouporoutrosmembrosdarededequefazemparte,deixandoviúvas,porvezesgrávidas,eórfãos.“TodoodistritodeMagudeestácontaminado”,disse-nosumchefedelocalidadedeMapulanguenereferindo-seaestefenómenoqueémotivodepreocupaçãoesofrimentodemuitasfamíliasdodistrito.Aparentemente,osenvolvidossãomaioritariamentejovensentreos25e35anos,polígamos,comumamédiade3mulheres,estastambémmuito jovensemuitasvezesmenores de idade (entre 12 e 17 anos).

Mapulanguene,nafronteiracomaÁfricadoSuladjacenteàreservadeani-maisdesignadaParqueKruger,jáfoiemtemposumcorredorparaaÁfricadoSul.“Jánotempodaguerrapararefugiados(...)Agorajánãoháespaçoparamigrar para a África do Sul”, sublinhou um chefe de localidade.

Posto Administrativo de Mapulanguene, 2015

Chokwé – Província de Gaza SegundooINE(2010),aprojecçãodapopulaçãodeChokwéparaoanode2015édecercade205.572,dosquais91.339sãohomens,e114.233sãomu-lheres.Amaioriadapopulaçãododistritoé jovem.Noquetangeàtaxadeanalfabetismo,oINE(2013)referequeChokwétemumataxade58%depes-soasanalfabetas.Quantoàsinfra-estruturasdesaúde,oINE(2013)advogaqueodistritodeChokwépossuiumafracacobertura,dispondode1hospitalrural,10centrosdesaúdeematernidade,8postosdesaúde(INE,2013).Oprincipal meio de subsistência do distrito de Chokwé é a agricultura, visto queestaregiãopossuiexcelentescondiçõesparaapráticadaagricultura,com80%dapopulaçãoactivanestesector(INE,2013).

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Gazaétambémumaprovínciadecriadoresdegadobovino.Pudemosob-servaremváriasocasiõesque sãomaioritariamente crianças, algumasdosseus5ou6anos,quepastamogadocomgranderesponsabilidade,atraves-sando diariamente terras e estradas. Vários líderes locais de Chokwé referi-ramqueumdosmaioresproblemasqueenfrentamnodistritoéoroubodegado e a impunidade dos ladrões. Um líder comunitário de Chokwé contou-noscomgrandefrustraçãoqueiniciouumprocessojudicialderoubodegadoem2004eaindanãoteveresposta:“Comonãotenhodinheiro,nãoconsigoresolver!”.

Distrito de Chokwé, 2015

Massingir - Província de GazaApopulaçãoprojectadaparaodistritodeMassingirparaoanode2015édecercade35.224,dosquaisamaioriasãojovens,vistoque45%têmidadein-ferior a 15 anos (INE, 2010). O principal meio de subsistência do distrito é a prática da agricultura, seguida de outras actividades como a pecuária, a pesca, acaça,acriaçãodeanimais,asilvicultura,eaexploraçãoflorestal.Atéaoanode2010,estedistritotinhacercade4055pequenasemédiasempresas,e11empresas grandes (INE, 2011).

UmaquestãoquetemtidoumgrandeimpactonodistritodeMassingir,talcomoobservámosemMagude,éapráticadecaçaaorinoceronte.Eradetalformarecorrenteentreos jovens(dosexomasculino)daregião,quequemnão participasse era considerado covarde,menos homem, como se ilustracom o seguinte trecho:

II. CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ESTUDO

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“Aquilofazquemtemcoragem(...)Aqueleshomensquenãovãosãoconsi-deradosmulheres”(Homemdacomunidade,Massingir,2015).

Ofactoéqueentre40a50jovensmorreramnoexercíciodestaactividade.Hojeemdia,oproblemajápassouasercomasherançaseasdívidasquedei-xaram,nomeadamente,comoscurandeirosqueelesprocuravamparapedirprotecção.Asfamíliaséquesofremasconsequências,nosinformouumamu-lher da comunidade. Por outro lado, em Massingir, tem ocorrido um fenómeno quepreocupaapopulaçãoeinterferenofuncionamentodasescolas.Consistenosfrequentesdesmaiosdasmeninasnasescolas.Aspessoasnãoencontramexplicaçõesplausíveisparaofenómenoefrequentementeoatribuemàinter-vençãode“curandeirosvindosdefora”.

Massinga – Província de Inhambane Paraoanode2015,apopulaçãodeMassingaéprojectadaem127.727,dosquais56.987homens,e70.740mulheres(INE,2010).Estedistritotemumapopulaçãopredominantemente jovem.Um factoaassinalaréquenas suasáreasrurais,odistritocontemplabastantepopulaçãoidosa,enquantoosjo-vensestãomaisconcentradosnasáreasurbanas(INE,2010).Osserviçosdesaúdenãoconseguematenderasnecessidadesdapopulaçãoemgeral.Omes-moacontececomosectordaeducaçãoemqueosserviçosoferecidosaindanãosãosuficientesparagarantirumaboaformaçãoescolarparaamaioria(INE,2007).Aagricultura,apecuária,eapescasãoasprincipaisactividadesdesubsistênciadodistritodeMassinga,bemcomoamigraçãomasculinaparaa África do Sul (INE, 2007).

Aparentemente,nestedistrito,éfrequenteabuscademenores,principal-mente do sexo feminino, para serem trabalhadoras domésticas em Maputo, o queégeralmenteaceitepelospais,queconsideramqueéumaoportunidadeparaassuasfilhaseumafontederendimentoparaafamília.Orecrutamentodestamão-de-obrapodeserdesviadaparaoutrasfinalidades.Os jovensdosexomasculino,geralmente,vãoparaaÁfricadoSulàprocuradetrabalho.

SegundoumamédicaqueentrevistámosemMassinga,oscasosmaisfre-quentesdeviolênciaencaminhadosparaosserviçosdesaúdesãocasosdeviolaçãosexual,incluindocriançasdos2aos10anos(2015).

Govuru - Província de Inhambane SaindodeMassingaemdirecçãoaGovuro,apaisagemvaisealterando.Oscoqueirosvãosendosubstituídospelos imponentesembondeirosesurgemna paisagem as ndumbha (casas dos curandeiros).

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Distrito de Govuro, 2015

OdistritodeGovurolocaliza-senonortedaprovínciadeInhambane.Apro-jecçãodapopulaçãodeGovuropara2015édecercade41.635habitantes(INE,2010).Amaioriadapopulaçãoé jovem(42%abaixodos15anosdeidade), e é maioritariamente feminina. O distrito de Govuro está dividido em dois postos administrativos, nomeadamente, Nova Mambone e Save. O prin-cipalmeiodesubsistênciaéaagriculturaeapecuária.Noquetangeàtaxadeanalfabetismo,oINE(2012)asseveraqueapopulaçãodeGovuropossui73%dapopulaçãoanalfabeta, sendoamaioriaconstituídapormulheres.A taxadeescolarizaçãoébaixa,registandocercade30%daspessoascom5anosoumaisquefrequentaramaescola.Amaiortaxadeadesãoescolarencontra-senointervalodos10aos14anos(INE,2012).QuantoaosistemadeSaúde,em-boraseregistemmelhoriasdarededesaúde,elacontinuainsuficiente,regis-tandoumaunidadesanitáriapara6milpessoas,eumtécnicodesaúdeparacada 1200 residentes no distrito (INE, 2010).

Segundoalgumaspessoasemposiçõesdechefianasinstituiçõescomquemconversámos,aspreocupaçõesdasautoridadeslocaisestãomaisrelacionadascomamigração,principalmente,comastentativasdemigraçãoilegalnaPon-te do Rio Save. Como o controlo é bastante cerrado na ponte, algumas pessoas provenientesdepaísesvizinhostentamentrarnopaísatravésdasflorestas.Oobjectivo,namaioriadasvezes,échegaràÁfricadoSul.MuitosdosmigrantessãodeorigemMalauianaeSomali.Apolíciadácontadecasosdetrânsitodeestrangeirosemsituaçãolegal(comodevidopassaporte),masemcondiçõesdesumanas, transportados “como animais” em contentores sem as mínimas condiçõesdesegurançaehigiene.

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Ponte do Rio Save, 2015

Aescolasecundáriapassouatertambéma12ªclasseenãosomentea10ª,e este factoparece ter aumentadoapresença epermanênciade jovensnodistrito. Para além disso, o desenvolvimento de salina também proporciona novas oportunidades de trabalho para os jovens. Contudo, nas localidades do distrito,osjovensterminamosestudosna7ªclasseesóaquelesquetêmpos-seséquepodemcontinuaraestudarforadosseuslocaisdeorigem,ficandoemregimedeinternato.Nãohámaiormenteoutraocupaçãosenãoapráticade agricultura. Segundo um líder religioso, depois de terminada a escola, as meninasnãotêmoutrohorizontequenãosejaocasamento.Deacordocomum polícia, o abuso sexual de meninas de aproximadamente 12 anos é muito frequente,emmuitoscasosefectuadoporjovensde17/18anos.Aresoluçãodestescasosé,geralmente,realizadaatravésdeumacordoentreosfamilia-resdavítimaeoagressor,factoqueoentrevistadoilustroucomasseguintespalavras:“Casalá,vocêviolounossafilha.Seviolouficacomela,égenro.Aca-bou!” (Polícia, Govuro, 2015).

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III. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO

Opresentecapítulodescreveametodologiadetrabalhoutilizada,odesenhodo estudo, os instrumentos e técnicas usadas para a recolha dos dados, trata-mentoeanálise,easlimitaçõesdoestudo.

Participaram no estudo 116 indivíduos de diferentes idades maiores de 18 anos, pertencentes a diferentes instituições, tais como: daprocuradoria,polícia,ONGs,organizaçõesdasociedadecivil,profissionaisdesaúde,comu-nicaçãosocial,assistentessociais, líderescomunitáriosereligiosos,médicostradicionais, familiares de vítimas, estudantes da escola secundária, homens e mulheres da comunidade. Através da técnica de “amostragem por bola de neve”,identificámosparticipantescomconhecimentooucomvivênciassobreamatériaemestudo,assimcomopessoasvítimasdetráficoeseusfamiliares.

3.1 Desenho e perguntas do estudoO presente estudo é de carácter qualitativo, método mais adequado paraavaliarcomdetalheasexperiências,percepçõesesignificadodapopulaçãoeinformanteschaverelativamenteaofenómenoeparaacederàsmotivaçõespara recorrer a estas práticas.

Tendoemcontaosobjectivostraçadosparaesteestudo,recorremosso-bretudoàstécnicasdeDiscussõesdeGruposFocais(DGF),EntrevistasIndi-viduais(EI)eobservaçãodirecta,procurandoresponder,masnãolimitando,as seguintes perguntas:• Quaisaspercepçõesexistentessobreotráficodeórgãosepartesdocorpo

humano? • Qualainterpretaçãoqueosváriosactoresfazemdotráfico?• Quaisosmotivosparaotráficodeórgãosepartesdocorpohumano?• Quaisasorigensedestinosdosórgãosepartesdocorpohumano?• Quaissãoosmétodosouestratégiasutilizadaspelostraficantesparaabor-

dar as vítimas? • Quemsãoasprincipaisvítimas?• Qualopapeldosdiferentesactores:saúde,educação,judicial/criminal,so-

ciedadecivileanívelcomunitárionagestãodestescasos?• Quaisospontosdeinteracçãoentreaspráticasdamedicinatradicionalea

extracçãodosórgãos?

III. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO

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3.2 Técnicas e instrumentos usados Foramutilizadasdiferentestécnicasderecolhadeinformação,nomeadamen-te,deanálisededocumentos,entrevistasindividuais,gruposdediscussãofo-cais e conversas informais (indicado na tabela a seguir). As entrevistas semi-estruturadaspeloseucarácterflexívelpermitiramacederainformaçõesmaisdetalhadas, incluindo as dimensões de análise essenciais para responder aos objectivos do estudo. Os guiões para as entrevistas semi-estruturadas e gru-posfocais,foramelaboradoscombasenasinformaçõesrecolhidasnarevisãoda literatura e nos Termos de Referência da CEMIRDE e ajustados ao longo do estudo,porformaaincluirnovasquestões.

Discussão de Grupo Focal com estudantes. Província de Maputo, 2015

Tabela de entrevistas

Local Entrevistas Discussão em Conversas Individuais Grupo Focal informais

Maputo 27 2 6

Gaza 4 5 -

Inhambane 19 4 7

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3.3 Considerações ÉticasOestudofoiaprovadopeloComitéNacionaldeBioéticaparaaSaúdedoMI-SAUeainvestigaçãoseguiuosprincípioséticosusuaisnestetipodeinvesti-gação.

DevidoànaturezadelicadadotemaaequiparealizouemMaputoumafor-maçãodeumdia,sobremetodologiaeéticana investigação,paraosassis-tentesdepesquisaeospontosfocaisdascomunidadesqueparticiparamnorecrutamento dos informantes e actuaram como guias no terreno.

As questões éticas relativas ao respeito pela autonomia, anonimato e aconfidencialidadeforamlevadasemconsideração.Osparticipantesnestees-tudoforaminformadossobreosriscosebenefíciosdasuaparticipação,tantode forma oral como por escrito, através do consentimento informado. As en-trevistas foram gravadas mediante prévio consentimento dos participantes.

3.4 Limitações do estudo Alimitaçãomaisimportantedoestudodizrespeitoàsuaaplicaçãocircuns-critaàregiãoSuldeMoçambique,quenãopodeserconsideradorepresenta-tivo de todo o país. Uma permanência, mais longa no terreno, permitiria obter maioracessoainformaçãoeobservaçãodirectadasdinâmicassociais.Dadaacomplexidadeesensibilidadedasquestõesemcausa,otempoéfundamentalpara uma análise mais aprofundada.

III. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO

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Apresentação e Análise dos Resultados

IV. REVISÃO DA LITERATURA

Opresentecapítuloincidesobreestudos,relatóriosedocumentosqueabor-damo temado tráficodepessoas epartesdo corpohumano.Dividiu-seocapítuloentreliteraturaanívelinternacional,comenfoquenocontextoafri-cano,eespecíficasobreMoçambique.

4.1 Literatura InternacionalOavançodabiomedicinaedatecnologiamédicacriouumamaiorprocuradeórgãoshumanosparatransplante.Otráficodeórgãoséhojeumarealidadeemquasetodoomundo,tendoaumentadoonúmerodeindivíduosenvolvi-dosnonegócioilícitodetráficodeórgãoshumanosparafinsdetransplante.

De acordo com Ávila et al (2008),omercadodeórgãostemasuamaiorex-pressãonocrimeorganizado,atravésdeconexõesinternacionaiseconstituia terceira actividade ilícita mais lucrativa da actualidade, perdendo somente paraotráficodearmasededrogas.

O“mercado”deórgãoshumanosparatransplantesé,defacto,umfenóme-notransnacionalaltamentelucrativoqueenvolvecomplexasredesdecrimeorganizado.AantropólogaNancyScheper-Huges(2004)temvindoaestudarotráficoilícitodeórgãoshumanos,circuitosqueenvolvemcompradores,ven-dedores, mediadores e cirurgiões de diferentes partes do mundo. Segundo Scheper-Huges(2000),aÍndiacontinuasendo,anívelglobal,olocalprivile-giado para a troca doméstica e internacional de rins comprados a doadores vivos.Muitos pacientes viajampara locais onde órgãos humanos são obti-dosatravésdetransacçõescomerciais,porexemplo,aÁfricadoSultemsidoapontada como país para “turismo de transplantes”. Residentes das favelas doRecife,noBrasil,sãorecrutadosparaviajaratéDurban,naÁfricadoSul,onde se submetem a cirurgias para remover um rim a ser transplantado em pacientesvindosdeIsrael(Scheper-Huges,2011).

Moniruzzaman(2012)refere-seao“mercadodocorpo”,emBangladesh,particularmente,acomoaspessoasemsituaçãodevulnerabilidadeeconó-micasãolevadasavenderosseusrins.Estesestudosassociamoaumentodo“turismo médico” aos diferentes níveis de desenvolvimento e padrões de desi-gualdadeanívelglobal.Istoé,otráficodeórgãosparafinscirúrgicosestáin-corporadonumsistemamaiordetrocaeextracçãoatravésdasdiferençasderiqueza(Moniruzzaman,2012).Soboeufemismoda“doação”,aspessoasven-demosseusórgãosporpobreza,masosbenefícioseconómicossãolimitados

IV. REVISÃO DA LITERATURA

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oumesmonegativos,umavezqueestaspessoasficamcomasaúdedeterio-radaeasuaempregabilidadelimitada(Shimazono,2007).Asespecificidadescontextuaisdomercadodeórgãosperdem-senumdiscursouniversalizanteegeraldotráficodesereshumanos,tornando-seassimdifícilconceberformasdeimplementarrespostasanti-tráficodeorgãos(Yea,2010).

Defacto,otráficodeórgãosenquadra-senoquadrodetráficodepessoas.Nãoexistem fronteirasclarasnasdefiniçõesde tráficohumano.O tráficoéumaformadepoderemqueseutilizaavulnerabilidadedaspessoasparaasexplorarecontrolar,emtrocadepagamentoseoutrosbenefícios,comoofertadeemprego,obtendodestemodooconsentimentodasvítimas.Estassãoco-locadasnumasituaçãoemqueperdemporcompletoosseusdireitos,ficandosobadependênciadostraficantes(MonteiroeOsório,2009).

“Ostraficantesexploramnãosóocorpo,mastambémasprofundasinquieta-çõesecondiçõesdevidadesvantajosasdasvítimas”(UNESCO,2006,p.34).

Otráficodepessoasé,pornatureza,umnegóciocomplexo,secretoeperi-goso,dedifícilacessoeenfrentamento.Sãopoucasasvítimasdestecrimequetêmcoragemdetestemunharcontraos traficantesporreceioderetaliaçãoporpartedosmesmos,derecriminaçãoporpartedassuasfamíliasepordes-confiançanaacçãodapolícia.Outradificuldadeencontradaparaselidarcomoproblema,équeesteseconfundecomosfluxosmigratóriosirregularesecontrabandodemigrantes,sendodifícildistinguirasvítimasdetráficoentreestesfluxos(UNESCO,2006).

Temsidoreportadoqueemalgunscontextos,aextracçãodeórgãoshu-manosnãotemfinalidadescirúrgicas,massedestinaàpráticade“rituaisdefeitiçariaoumagia”.Nasúltimasdécadas,relatosderoubodeórgãosgenitaistêmsidofrequentesnaÁfricaCentraleOcidental.Diz-sequeosórgãosgeni-taismasculinosroubadossãovendidosaosmédicostradicionaisparausoemcerimónias (Lombard, 2013).

Noiníciodosanos90,rumoresdeassassinatosdecriançasetransportedassuascabeçasdoZimbabweparaaÁfricadoSulalarmaramapopulaçãodaregião.Osacrifíciodecriançasserviacomoexplicaçãoparaoenriquecimentorepentino das pessoas (White, 1997).

Discursossobretráficoempartesdocorpohumanosãoprevalecentestam-bémnaÁfricaEquatorial(Bernault,2006).Recentemente,aexpansãodaperse-guiçãoaosalbinosnaTanzâniaepaísesvizinhostomaproporçõesalarmantes.Partesdocorpodoalbinosãomutiladasetraficadaspeloseusupostopoderemtrazerriquezaesorte.OJornalNotícias(16/09/2015)refereque,segundodadosdasNaçõesUnidas,desde2000,jáforamassassinadospelomenos76albinosnaTanzânia.Actualmente,emMoçambiquetêmsidoreportadoscasosdepersegui-çãoaosalbinos,nomeadamente,nasprovínicasdeNampulaeZambézia.

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IV. REVISÃO DA LITERATURA

Jornal Noticias de 16 de Setembro de 2015

NaÁfricadoSul,relatossobreassassinatosdepessoasparaextracçãodepartesdo corpousadasnapreparaçãode certo tipodemedicamentos tra-dicionais têm uma longa história (Labuschagne, 2004). Estes medicamentos, chamados muti,referem-seasubstânciasfabricadasporespecialistas,pesso-asdetentorasdeumconhecimentosecretoparafinspositivosdecura,envol-vendopurificação, fortalecimentoouprotecçãodepessoasdeforçasmalig-nas,oupodemservirospropósitosnegativosdafeitiçaria,trazendomásorte,doençaemorteaoutros,ouainda,enriquecimentoilícito,epoderaofeiticeiro(Ashforth, 2008).

Nadécadade1990,naÁfricadoSul,osmeiosdecomunicaçãosocial,di-vulgaramvárioscasosdeextracçãodeórgãosdocorpohumano,queforamatélevadosatribunal.Essesórgãos,geralmente,debebésejovenseramusa-dosparafinsmágicosrelacionadoscomafertilidade,êxitonosnegóciosesor-tenoamor.Depreferência,osórgãosdeviampertenceracriançascommenosde12anosdeidadeeserretiradosquandoocorpoestivesseaindaquente.Asmãosconstituem“símbolosdeposse”,osolhosimplicamvisãoeosgenitais,fertilidade(ComaroffeComaroff1999:290).Aequaçãoentrecorpohumano,dinheiro e poder remonta a séculos passados (Bernault, 2006).

Noentanto,édesublinharqueotráficodeórgãoshumanosnãoseverificaapenas em África, estendendo-se a outras regiões do globo (Ásia, América do Sul,Europa)noâmbitodeuma“economiaglobaldepartesdocorpohumano”.

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TalcomoosComaroff(1999),Geschiere(2006:224)mencionapráticasdefeiti-çariaestudadas,porexemplo,porFavret-Saada(1977),naFrança,eporTaussig(1987), na Colômbia. O mercado de partes do corpo humano constitui, portanto, umaformademercadorizaçãodaprópriavidaassociadaàproliferaçãodoquedesignam“economiasocultas”(ComaroffeComaroff1999:283-291).Osfacto-resquecontribuemparaestesfenómenosnãosãoapenasapobrezaouapriva-çãomaterial,pormaisdurasqueelassejam,massimainterligaçãodoseguinte: Apercepçãodequegrandesriquezassãopossuídasapenasporumpeque-

nogrupodecidadãos(riquezasatéaliinimagináveisereunidasdemodomuitorápido),frequentementeassociadaàutilizaçãodemecanismosmis-teriosose/oumágicos;eumsentidodedesesperoperanteaexclusão(Co-maroffeComaroff1999:284).

4.2 Literatura e Informações sobre Moçambique

“DesdeaindependênciapolíticadeMoçambique,asrealidadesmudaram,assimcomosemodificaramospesadelosdasociedade;noentanto,ope-sadelodafeitiçariapersiste”(Meneses,2008p.170).

Asacusaçõesesuspeitasdepráticasdefeitiçaria,associadasaotráficodeór-gãoshumanos,têmconhecidoumarenovadaimportâncianosúltimosquinzeanos.EmMoçambique,ofenómenofoiamplamentedivulgadodevidoàreper-cussãodoscasosocorridosnoCentroeNortedeMoçambique,em2004.Osrumores,boatoseacusaçõesdetráficodeórgãosepartesdocorpohumanoconstituem“umaimagemampliadadavulnerabilidadeeviolênciaqueocorrenopaís”(Meneses,2008p.162).Aanálisedestesboatosrelativosàpráticaeacusaçõesdefeitiçaria,nocontextodotráfico,constituiumaportadeentradaparaacompreensãodacomplexidadedofenómenonumambientesocioeco-nómicoassimétrico,“pressõesdamonetizaçãoeconómica”e“desarticulaçãosocialdascomunidades”,quecaracterizaarealidadedeMoçambique(Mene-ses,2008p.174).Asfrequentesacusaçõesdefeitiçariaocorrememtemposdecriseeconómica,dedegradaçãosocialeescassezdeoportunidadesparaaascensãosocialeeconómica.“Oslíderespolíticossãoamplamentereferencia-dosporrecorreremàfeitiçariaafimdeassegurarempoderesucesso”(Me-neses, 2008 p. 169).

Adivulgaçãodaexistênciadeumaredequesupostamentetraficavacrian-çasepartesdocorpohumanonaprovínciadeNampula,abalouacomunidadenacional e internacional no início de 2004. A partir deste momento, a sociedade civileosdecisorespolíticospassaramaprestarmaioratençãoaoproblemaeassumiramumaposiçãomaisproactiva.OentãoMinistrodoInteriorconfirmoupublicamenteaexistênciadepráticasdefeitiçaria,envolvendopartesdocorpohumano no país, como se ilustra com o seguinte recorte de jornal.

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IV. REVISÃO DA LITERATURA

Jornal de Notícias de 16 de Março de 2004

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Realizaram-se na época investigações, envolvendo, inclusive, peritos dasaúdeparaapurarofundamentodetaisdenúncias,sem,contudo,ter-secon-seguidoreunirprovasquecomprovassemotráficodeórgãoshumanosparafinsdetransplante.Ocasoestavarelacionadocompráticasdefeitiçariasemenquadramentonodiscursojurídico(Meneses,2008).

SegundoAlexandreBaía,queprocurouentenderarelaçãoentreodesapa-recimentodemenoresetráficodeórgãoshumanos,nasprovínciasdonorteecentrodopaís,noâmbitodoestudocoordenadoporSerra(2006),asrepor-tagenssobretráficodemenoreseórgãoshumanosnaprovínciadeNampulaatingiramoseupicocomasdenúnciasfeitasporcomunidadesreligiosaslo-cais, acusando um casal estrangeiro a viver numa propriedade nos arredores deNampuladedesaparecimentodemenoreseextracçãodeórgãos.

Segundooautor,estasdenúnciaseaelevadamediatizaçãodocaso,criaramumambientegeraldemedonapopulação.Contudo,peranteas“acusações”dasociedadecivilereportagensveiculadaspordiversosórgãosdecomunica-ção,nacionaleinternacional,asinstituiçõesgovernamentaisafirmaramque“tudo se resume a rumores sem provas”.

NorelatóriodeumainvestigaçãolevadaacabopelaProcuradoriadaRe-pública,em2004,lê-se:“Emrelaçãoaodesaparecimentodemenores(...)hávárioscasosregistados(...).Todavia,das investigações feitasnãoforamen-contradoselementosquesustentemseromóbildetaisraptosaextracçãodeórgãoshumanos(...).”(PGR,2004emBaía,2006p.235).

Desdeoano2000,quetêmsidováriososrelatóriosdeOrganizaçõesInter-nacionais e reportagens da imprensa nacional e internacional a dar conta do fenómeno,tantodetráficodepessoascomodepartesdocorpohumano,ten-docomoprincipaldestinoaÁfricadoSul.SegundoaLigadosDireitosHuma-nos(LDH)deMoçambique,aextracçãodeórgãoshumanosemMoçambique,devidoàformacomoosórgãossãotransportadoseextraídos,indicaqueestáassociadaa"práticastradicionaisprejudiciais",emparticular,à“feitiçaria”,enãoatransplantes.

Nãosóasorganizaçõesdasociedadecivileinstituiçõesgovernamentais,mastambémosdiferentesmeiosdecomunicaçãosocialtêmfrequentementeapresentadodiferentescasosdeviolêncianocontextodotráfico.Ospratican-tesdamedicinatradicionalsãoapontadoscomopromotoresdaextracçãodeórgãoshumanos.AÁfricadoSuléummercadoimportanteondeseacreditaqueosórgãossexuais,coração,olhosecérebrosãousadosnamedicinatradi-cionalparacurardoençasdecorrentesdaSIDA,impotênciasexualeinfertili-dade,eaindaaumentaropodereriquezadoindivíduo(UNESCO,2006).

NoseuestudosobretráficodemenoresemMoçambique(2006),CarlosSerraesuaequipadepesquisapartiramdahipótesecentraldequeotráficodemenores sedestina àprostituição e exploração sexualnaÁfricadoSul,aotrabalhoforçado,eàextracçãodeórgãosparafinsmágicosoucirúrgicos.

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IV. REVISÃO DA LITERATURA

Contudo,segundoosautores,foimuitodifícilencontrardadosqueconfirmas-semahipótesedetráficodeórgãos,sendoesteumfenómenomarcadopela“cultura do silêncio”. O “clima de secretismo” envolto no tema, relacionado comcrençase“práticassupersticiosas”,dificultaoacessoàinformação(Ser-ra, 2006 p. 19).

SegundooestudodaLigaMoçambicanadosDireitosHumanos(2009)so-bretráficodepartesdecorpoemMoçambiqueenaÁfricadoSul,ocorremmutilaçõesregularesepartesdocorposãotraficadaspelafronteiraentreosdoispaíses.Apesquisamostratambémqueofluxodotráficoacontecemaio-ritariamentedeMoçambiqueparaaÁfricadoSul.SimonFellows,autordoestudo,afirmaque,nabasedeste fenómeno,estáumafortecrençaemquepartes do corpo humano magicamente tratados podem resolver problemas sociaisetornarosmedicamentostradicionaismaisforteseeficazes.

Oautorsalientaaindaque,entreasprincipaisorganizaçõesdosDireitosHumanos,existeumpressupostodelongadatadequeotráficodepartesdocorpoestáapenasrelacionadocomtransplantes,oquedificultaumadefiniçãomaisabrangentedofenómenoeconsequentelegislaçãoqueocriminalize.EmMoçambique,atéàpublicaçãodoestudoacimareferido,haviaapenasumaleidetráficodepessoas(Leitráficohumanonº6/2008),quenãocontemplavaotráficodeórgãos.

No estudo conduzidopela LDHMoçambique, denunciava-se a fragilida-deinstitucionalnocombateaotráficodeórgãoshumanosdevidoàfaltadeumconceitodetráficodepartesdocorporeconhecidaanívelinternacionalesublinhava-sequeaausênciadumadefiniçãoclaradoconceitocondicionavaosucessodequalquertentativadecombateàactividade,persistindoassimumagraveviolaçãodosdireitoshumanos.

Tráficoéoactodemovimentarecomercializaralgoilegal.Umavezqueestarnapossedepartesdecorpoparafinscomerciaiséconsideradoilegal,orelatóriodaLDHMoçambiqueargumentaqueomovimentodeumapartedecorpoparavendaoutransacçãocomercialétráficodepartesdocorpo.

OnovoCódigoPenaldeMoçambique,queentrouemvigornodia02deJulho de 2015, revogando um texto de 1886, já inclui o crime por posse e transportedeórgãosepartesdocorpohumanonoartigo161,persistindo,noentanto,problemasnasuainterpretação.Noentanto,umjuristareferiuquesubsistemproblemasnainterpretaçãodalei.Assim,questiona:Penaliza-seapossedequalquerpartedocorpohumano?Cabeloseunhasdevemsertam-bémconsiderados?Issolevou-oaconstataroquedesignoude“hierarquiadepartes do corpo humano”.

Umestudoposterior(2013)daSANTACemcolaboraçãocomaLDH,sobreotráficodepartesdocorpohumanonoParqueTransfronteiriçodoGrandeLimpopo,provouaexistênciado tráficodepartesdocorpoperpetradoemMoçambique,ZimbabweeÁfricadoSul.Odestinodaspartesdocorpoéem

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grande parte a África do Sul. Em 80% dos corpos encontrados tinham-lhes sido removidos os órgãos genitais. Suspeita-se que empresários, especial-mente,deorigemasiáticaque,emcolaboraçãocomindivíduosdaregiãoe,emespecial,commédicostradicionais,sãoosprincipaisactoresnestepro-cesso. Os médicos tradicionais, em particular, afirmam ter conhecimentosparafazerenriqueceralguématravésdapreparaçãodemedicamentoscompartes do corpo humano. Foram também relatados casos de assassinato ritu-al,desaparecimentosdecrianças,movimentos transfronteiriços ilegaisnãocontrolados,tráficodesereshumanosecontrabando.OparquedoLimpoposeestendeemvastasmatasdeflorestasquerepresentamalocalizaçãoide-al para os movimentos secretos e clandestinos destas redes criminosas. Os agentes da lei têm baixa capacidade para interceptar perpetradores ou pros-seguirasinvestigaçõesparaconclusõesdesejáveis.Acresce-sequeamaioriadospolíciasnãotemconhecimentosnemhabilidadesparacombaterotráficode partes do corpo.

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

Neste capítulo, apresentam-se os resultados do estudo baseado em entrevistas individuais, grupos focais e conversas informais com diferentes actores ligados àsdiferentesinstituiçõesquetêmcontactocomofenómenoecomascomuni-dades.AsnarrativasdosparticipantesdesteestudosãoanalisadastambémàluzdeoutrosestudosrealizadosemÁfricae,emparticular,naÁfricaAustral.

5.1 Conhecimento sobre o fenómenoOconhecimentoqueaspessoastêmsobreofenómenoderivasobretudodosmeiosdecomunicaçãosocial(primariamente,televisão,mastambémjornaise redes sociais). Raramente as pessoas relatam casos ocorridos no seu am-bientepróximo,massimemoutroscontextosgeográficos,porexemplo,emdistritosvizinhos,outrasprovínciasepaíses.Noscasosdeextracçãodepar-tesdocorpomenciona-sequedificilmente são identificadososexecutores.Contudo, especula-sequeosmédicos tradicionais utilizamessaspartesdocorpoparafinsmágicosedeenriquecimentoilícito.

O que se diz e o que se ouve“Àsvítimasdosleõesestãofaltandoolhos,genitaiseórgãosinternos(...)

IssoporqueogrupovendeórgãosparaamedicinatradicionalnaTanzânia”(Israel,2009p.158).NumdistritoruraldoNortedeMoçambique,emMui-dumbe, entre 2002 e 2003, circulavam rumores acusando a elite local de ma-nipularumgrupodeleões-homenseengajar-seemtráficodepartesdocorpohumano. Estes rumores causam uma dramática experiência de violência na região,manifestanacaçaelinchamentodosfeiticeirossuspeitosdeestaren-volvidos.SegundoPaoloIsrael(2009),estecasoenquadra-senamaiorpartedaproduçãoacadémicasobreoocultoAfricano,quesurgiunasúltimasduasdécadas, onde o oculto é um terreno privilegiado para explorar crises da mo-dernidade capitalista, discursos contra-hegemónicos e economias morais.

Acredita-sequeosanimaissãousadosparaapráticadefeitiçariaealgu-masvezestransformadosemescravosdofeiticeiro.Osfeiticeirosdisfarçamassuasacçõestransformando-seemanimaisoufabricandoanimaisquecum-pram as suas ordens (West, 2009).

Os participantes do nosso estudo contaram-nos episódios dramáticos, envolvendoanimaisperigososepredatórios,comocobrasecrocodilos,quecomiamassuasvítimas.NazonadeMambone,diz-sequeosfeiticeirosadqui-rem mamlambonaformaderaízesvivasquebrilhamànoite,e,maistarde,transformam-seemcobrasdasfamíliasquepropiciamriquezaatravésdeac-tosdefeitiçaria.Ousodemamlamborequersacrifícioshumanosregulares.

V. RESULTADOS E ANÁLISE

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Em Ressano Garcia, narra-se também episódios de desaparecimento de pessoasnorioUmbelúzi,atacadasporcrocodilosequevoltavamsemosór-gãos.A comunidade interrogava-se sede facto se tratavadeumanimaloudealguémquesetinhaencarnadonocorpodocrocodilo. “Ocrocodiloqueexistiaaquinoriosótiravaostestículosaoshomens,aopassoquenocasodasmulheres desaparecia todo o corpo. Surgiu um boato e as pessoas pensavam queocrocodiloeradeum feiticeiroporquecomiaatéa cabeça” (Activista,Maputo, 2015).

Ocasodo transportedecabeçasdecriançascongeladasna fronteiradeRessano Garcia foi referido por vários dos nossos informantes: “Em Ressa-noGarcia,falava-sedepartesdocorpoencontradasnafronteira,cabeçasdecrianças,pés,mãozinhas,e,principalmente,deórgãosgenitais.Eupessoal-mentenuncaviessesórgãos.Numaocasiãohaviaumaglomeradodepessoasnafronteira.Disseramqueprenderamumasenhoraquetinhaumabaciadeximacontendoórgãosgenitaisefoilevadapelapolícia.Maisoumenosháseisanos,tivemosumcasoquenoschocou,de17cabeçascongeladasnabagagei-radeumcarrodirigidoporumasenhora.Oscomentárioseramquepareciacarnecongeladaenquantoeramcabeçasdecrianças.IntervieramaspolíciasSulAfricanaemoçambicana.Converseicomumasenhoraqueviu,masqueserecusava a falar sobre o assunto” (Religiosa, Maputo, 2015).

“Hámuitoscasosquesefalamporaíquedepoisnãoseconsegueapuraraverdade,comissonãoquerodizerqueotráficodeórgãosnãoaconteça,masninguémjádissequeencontramosfulanocomoórgãox,oqueéfrequenteéouvirdizer,eacoisaterminaporaí(…)Jáouvidizerqueaosimigrantesilegaislhestêmsidoextraídosórgãosaoinvadiremafronteira,masnãotenhoprovasdisso, se calhar se a nossa fronteira de Mapulanguene estivesse operacional iria ouvir alguma coisa concreta” (Líder comunitário, Maputo, 2015).

Registo de casos e Evidências “Nonossodistritonuncahouveumcaso registadode tráficodeórgãos,

mas há alarmes” (Líder comunitário, Inhambane, 2015).

Conduzirumestudodestanaturezarequerparticularatençãodevidoaoriscodeenviesamentodasinformaçõesfundamentadoemespeculaçõeseboatos.Contudo,afaltadeevidênciasnãosignificaasuaausência.Considerarevidên-ciasapenascasosbaseadosemregistosformaisreconduzàminimizaçãodoproblema.Verificamosapartirdosrelatosqueofenómenoébastantesentidoepreocupaaspessoas.Suspeitasdefeitiçariaeaidentidadedosresponsáveisnãopodemserverificadasatravésdeumaobservaçãodirecta,ediferentestiposdeevidênciasãorequeridos(Niehaus,1997).

“EuandavaainvestigarocasodequatrocorposencontradoscomalgumaspartesemfaltanodistritodeChicualacuala.Umfaltavaacabeça,outro,osór-

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

gãosgenitaismasculinos,outro,osdedoseoutro,osintestinos.Duasdasvítimaseramlocaiseasoutrasduasnãoeramconhecidas”(Activista,Maputo,2015).

EstedepoimentoilustraaexistênciadofenómenoemMoçambique.Contu-do,constatamosqueanívelinstitucionalexistealgumarelutânciaemadmitiraexistênciadomesmo.Informantesdasáreasjurídicas,dasaúde,edapolícia,refugiando-senaausênciaounúmeromuitolimitadoderegistodecasosefec-tivos, ou substanciados por registos médicos e legais, ou relatórios criminais, atribuemumadimensãolimitadaaofenómeno.Maisainda,constatámoscomfrequênciadiscursosdiscrepantesentreosdiferentessectoresintervenientesemrelaçãoaoqueconstituemevidências.

“Emboranãotenhamoscasosreportadosdetráficodeórgãosoupartesdocorpohumanoissonãosignificaquenãoocorram,masnãochegamanós”(Informante PGR, Maputo, 2015). Segundo um informante do Ministério da Justiça(provínciadeInhambane)esteéumassuntoescondido,compoucoscasosreportados.Aprocuradoria temprocessos,cujamédiaanualdosquevãoatéaojulgamentopodeserde3ou4casos,deextracçãodeórgãosparafins“obscuros”.“SabemosquenoNorte,Centro,Zambézia,Manica,têmsidoencontrados corpos com partes em falta. Na província da Zambézia, entre2013e2014,foramregistadosalgunscasosdetráficodeórgãoshumanosemqueosarguidosforamcondenadoscompenasentre16e20anos”(Informan-te PGR, Maputo, 2015).

Corpos sem partes “Nuncameconfronteicomumaquestãodetráficodeórgãos,massimdepar-tes como dedos, orelhas e unhas” (Informante Jurista, Maputo, 2015).

“Nãosefaladetráficoparafinsdetransplante.Otermoemsiédesconhe-cidopelapopulação.Exclui-setambémahipótesedesetratardeextrac-çãodeórgãosparafinsdetransplantepelosmétodosdeconservaçãodosmesmose faltadecondiçõesmédicasparaoefeito”(Informante Jurista,Inhambane, 2015). De acordo com um médico especialista, é pouco prová-velqueemMoçambiqueseverifiqueotráficodeórgãosparatransplantedevidoadificuldadesdeordemtecnológica.Paraotráficodeórgãoscomfinscirúrgicosapessoateriaquesertraficada.Estescasosdecorposen-contrados sem partes estariam certamente mais relacionados com práti-casmágicasedefeitiçaria.

Omesmomédicoreferiuquesesuspeitavanoimagináriocomumquetraba-lhadoresdasmorgueslevavamórgãosdecadáveres.Ouvimosqueemalgu-mas localidades se vendia água usada na lavagem dos mortos. Esta parece queserveparaadormeceraspessoas.Porexemplo,érelatadoqueosladrõesutilizamestaáguaparaadormecerosmoradoresepoderemroubarbensnas

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casas.LuiseWhite(1997),nasuapesquisanoZimbabwe,tambémapresentarelatossobreretiradadeórgãosnasmorgues,duranteasautopsiasevendados mesmos aos médicos tradicionais.

Umfenómenoque tememergidocomobastantepresentenosdiscursosdaspessoasdodistritodeGovurutemsidoaexumaçãodecorposnoscemi-térios.Diz-sequedesenterramaspessoasapósosfuneraisparatirardiversaspartesdocorpo,principalmente,acabeça.Contudo,apolíciareferequetemencontradodificuldadesnainvestigaçãodoscasosquechegamaserdenun-ciadosdevidoàfaltadecooperaçãoporpartedapopulação,nãotendoassimconseguido provar a ocorrência dessa prática.

Em Magude, informantes relataram o caso de uma rapariga encontrada mortanasplantaçõesdecana-de-açúcarsemseios,língua,órgãosgenitaiserótula do joelho. Segundo os nossos informantes, os casos de assassinato no canavialsãofrequentes.Umoutrocaso,ocorridoem2014,foiodeumara-parigaquedesapareceuemJunhoefoiencontradamortaemSetembronasplantaçõesdecana-de-açúcarquandoostrabalhadorescolhiamacana,estan-doasentradasatéondeestavaocorpoassinaladascomsinaisdecruz.

Umagentedapolíciarelatou-nostambémque,em2013,noBilene(Ma-cia), dois jovens de 16 e 17 anos de idade assassinaram o seu colega de es-cola, extraíram-lheosórgãosgenitaisparavendê-losaumcomerciantenoChokwéque,supostamente,eraconhecidocomocompradordeórgãoshuma-nos.Osexecutoresforamdescobertosepresospelapolícia,queinstaurouumprocesso-crime.Estesforamjulgadoseocrimefoiqualificadodehomicídioporquenaalturanãoexistiaodispositivolegaldetráficodeórgãoshumanos.Nesteprocessonãoforamencontradasprovassuficientesquecondenassemo mandante.

“Aquimatam-semuitaspessoas,masnão te vãodizer. Esta é uma zonaperigosaondenãosepassaànoite.Meutioémuitoconhecidoporquedizemquematavapessoasetiravaórgãossexuaisparavenderaospescadoresquelevavamparacurandeirosaquidaregiãoparatratarredesdepesca”(Mulherda comunidade, Inhambane, 2015).

Uma participante no estudo também nos relatou o assassinato de um seu familiarem2007quandoesteiaàpesca.Encontraram-nomortosemosge-nitais.Foramidentificadasepresasalgumaspessoaseimediatamentesoltasporinsuficiênciadeprovas(FamíliadaVítima,Inhambane,2015).

Os meios de comunicação socialNoperíodocolonial,asconsultasnoâmbitodamagiaocorriamdemododis-cretoeatéclandestino,masactualmenteaansiedadeassociadaàspráticasdefeitiçaria,à“magiafinanceira”,aoassassinatoritualemortesnãonaturaissãoveiculadasnasigrejaseatravésdarádio,televisãoeaténainternet(ComaroffeComaroff1999:286).

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

“AquiemMaputo,em98/99houveumcasoconhecidodeumacabeçacor-tada.Doisarguidosinterpelaramumcolegazambeziano,atraíram-noparaomatoecortaram-lhecabeça,extraíram-lheolhos,etc.Transportaramacabeçanumsacodeplásticoe foramatéàmesquita (Maputo)encontrarum líderreligiosomuçulmanoqueaparentementetinhaencomendadoacabeça.Apo-lícia interpelou os dois indivíduos e eles foram presos, julgados e condenados. Oreligiosochegouaserdetido,masnãohouveprovassuficientesparaocon-denar” (Informante PGR, Maputo, 2015).

Talcomojásemencionounarevisãodaliteratura,umcasodeextracçãodeórgãosverificadoemNampula,em2003,tomouproporçõesinternacionais,tevegrandecoberturamediática,despertando,porisso,aatençãoparaofenómeno.

Nas redes sociais, como o facebook, também se tem publicado sobre o as-sunto e a indústria cinematográfica. Por exemplo, vários filmes nigerianostêm dedicado algum destaque à questão do tráfico (GDF com estudantes,Inhambane, 2015).

“Nãoéumfenómenonovoparaalgumaspessoas.AntesdaindependênciahaviacasosdepessoasmortasedepessoasquesaíamdeMoçambiqueparaaÁfricadoSulenãovoltavam,semnoentantoassociarmosasmortesede-saparecimentosaotráficodeórgãos.Aspessoastinhammedodofenómeno“tatápapá,tatámamã”e“guiguisseka”,quesignificaatrapalharumapessoa,agarrá-laefazer-lheoquequiserdeformaagressiva.AscriançasnãopodiamandarsozinhasporquetinhammedodeserlevadasporhomensdaÁfricadoSul” (Informante ONG, Maputo, 2015).

EmMoçambique,estefenómenodetráficodeórgãoscomeçaaserobjec-todeatençãoapartirde2003.OcasodeNampuladespertouaatençãodogovernoedasociedadecivil.Poucotempodepois,aLigadosDireitosHuma-nosacompanhouocaso,divulgadonosmeiosdecomunicaçãosocial,deumacriançade9anosvítimadaextracçãodosseusórgãosgenitaisnaprovínciadeManica.Acriançasobreviveueaspessoasenvolvidasnocrimeforamiden-tificadas e presas,mas não há informações sobre o desfecho do processo.Instituiçõesnacionais e internacionais estiveramenvolvidasno tratamentomédico-cirúrgicodacriança(InformanteONG,Maputo,2015).

Estescasosderammaiorvisibilidadeefizeramdivulgaçãoaestefenóme-nodetráficodeórgãosepartesdocorpohumanocomoumarealidade.Actu-almente,aatençãoestámaisviradaparaosalbinos,matériamuitodivulgadapelosmeiosdecomunicaçãosocial,passandoaconstituirumapreocupaçãoanívelpolítico.Defacto,estenãoéumfenómenonovocomoilustraaexpres-são“osalbinosnãomorrem,apenasdesaparecem”(InformanteONG,Maputo,Agosto de 2015).

Apesardeexistireminformaçõesquesãodivulgadaspelosmeiosdecomu-nicaçãosocialeatravésdeorganizações(ONGs)quecolaboramcomaprocu-radoria,aindaélimitadooregistooficialsobreonúmerodevítimas.

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O desaparecimento de pessoasOdesaparecimentodepessoaspodeestarassociadoaotráficodeórgãos.Otráficodepessoasémaisvisíveledocumentadodoqueotráficodeórgãosporquegeralmenteosórgãosdaspessoastraficadassãoextraídosnoutroslugares. Na fronteira com a África do Sul, em Ressano Garcia, podem obser-var-se gruposde criançaspassaremdesacompanhadasouacompanhadasporadultosqueascriançasparecemnãoconhecer(InformanteONG,Ma-puto, 2015).

“Aspessoasdesaparecem!NãoexisteumdistritoemquenãotenhamsidoreportadoscasosdepessoasqueforamparaaÁfricadoSulenuncamaisvol-taram” (Activista, Maputo, 2015).

Émuitofrequentequeosfamiliaresnãomantenhamcontactocomaspes-soasquesaemsupostamenteparatrabalharouestudarnaÁfricadoSul.Por-tanto,mesmoquesejaumacriançaouumjovem,podemficarumanosemfalar,masnãosepreocupam,pensandoqueestábemlánaÁfricadoSul(In-formanteComunicaçãoSocial,2015).

Um dos nossos entrevistados tinha 16 anos e era vendedor ambulante quandofoialiciadopordoismoçambicanosdeidadecompreendidaentreos24eos28anosque lheofereceramtrabalhomelhorpago foradeMaputo,masemMoçambique.Iniciouaviagemjuntoaduasjovensdeaproximada-mente11e14anosdeidade,mas,aolongodopercurso,informaram-lhesqueo destino era a África do Sul. Atravessaram clandestinamente a fronteira e, numlocalermo,doishomensimobilizaramojovemde16anosenquantoumterceiro lhe cortou um dos dedos. Quando lhe iam cortar uma outra parte do corpo,doismembrosdogrupodetraficantesqueerampolíciassulafricanosinfiltradosnaredeimpediram-noeo jovemfoisocorrido.Estecasosuscitaváriasquestõesdeordeméticarelacionadascomacondutadestespolícias,queassistiramepermitiramquefossedecepadoasanguefrioumdosdedosdo jovem, com o objectivo de obter provas.

5.2 Pessoas envolvidas nesta prática e áreas de actuação

NocontextodaÁfricapós-colonial, tendemaverificar-sediferençasgritan-tesentreariquezaeapobreza.Sãofrequentesosrelatosdecomoosricosepoderososseapoderamdaforçavitaldeoutrosatravésdemeios“monstruo-soseaberrantes”demodoaaumentaroseuprópriovigorouparasatisfazer“paixões consumistas”. Na África do Sul, em particular, nos anos 1994-96, ha-viaumapreocupaçãogeneralizadasobreaproduçãoereproduçãodariqueza(ComaroffeComaroff1999:288).Aganânciapelopoderproduzdefactodis-paridadesvisíveisemtermosderiquezaedebem-estar,masosmecanismoseasdinâmicasexplícitasdopoderpermanecemocultas(West,2009).Noâmbi-

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

to do nosso estudo encontram-se similaridades com as experiências relatadas em outros contextos da África do Sul.

Ricos e vulneráveis “Os mandantes de extracção de órgãos humanos são indivíduos invisíveisporque sãopessoasqueestãoao ladodegovernantes e atédepolícias. Sesãocurandeirosqueusamórgãos,sãocurandeirosbemsofisticadosenãosãoestesnossosdaquideMoçambiqueporqueestenegócioédemuitodinheiro,eosnossoscurandeirosnãotêmmuitodinheiro,porisso,afinalidadeaindaéummistério,porqueéumprocessoparaqueosórgãoscheguemàsmãosdomandante,passampormuitasmãoseváriosestágiosquedesconhecemafinalidade”(Líderreligioso,Gaza,2015).

“Geralmentenãoseconhecequemencomendaosórgãos,nemosindivídu-osqueutilizamosórgãos.Pareceseremosmesmosqueosextraem,havendováriosintermediáriosnesteprocesso.Pensa-sequeosmédicostradicionaistambémparticipamnaencomendaatravésdepessoasqueexecutam,ouqueextraemosórgãos.Éumaredeemquegeralmentenãoseconheceoúltimobeneficiário.Aspessoasquetraficamórgãossãocontratadasporaltasindivi-dualidades,gentecomposse,quecometemestesactosemtrocadedinheiro.Oscriminosossãoindivíduosdeposse,capazesdeanularqualquertentativaderepressãojurídicaepolicialatravésdaofertadebenefíciosmateriais”.

De acordo comalguns informantes, aspessoas envolvidasno tráficodeórgãossãopessoasricasecommaiorfacilidadeepossibilidadesparaseen-volverem nestes actos.

Asmulherestambémsãoapontadascomosendoenvolvidasnotráficopor-quesetendeadesconfiarmenosdelasdoquedoshomens,numainteressanteassociaçãoaosestereótiposdegénerovigentes.Otráficodeórgãosestápordetrásdotráficodepessoas.Trata-sedeumnegóciomuitolucrativoecomuminvestimentomuitobaixoquesealimentadaspessoasvulneráveis.Émaislucrativotirarórgãosdeumindíviduodoque,porexemplo,explorá-loparaaprostituição.Fazpartedocrimeorganizadoenvolvendopessoasimportan-tes e com muita capacidade económica, dentro de uma rede regional (África doSul).(InformanteONG,Maputo,2015).Noentanto,enquantoalgumasdaspessoaspornósentrevistadas consideravamqueaspessoasenvolvidasnotráficotinham,geralmente,formaçãodenívelsuperior,outrostinhamopiniãocontrária, apontando exemplos concretos de pessoas com grande riqueza,suspeitasdeestaremassociadasaotráficoequenãosabiamlernemescrever,sendoapenascapazesdeassinaroseunome.

Noentanto,uminformantedoMinistériodaJustiçacaracterizaoperfildaspessoasenvolvidasnosassassinatosenegóciodotráficocomopessoaspoucoinformadas,declassesocialbaixaealtamenteinfluenciadaspeloscurandei-ros.Estaafirmaçãoaparentementecontraditória,defacto,evidenciaqueexis-

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temváriosactoresenvolvidoseumapossívele frequentemanipulaçãodascamadas mais vulneráveis como executoras.

Constatou-seque,talcomoverificadonocontextosulafricanopelosComa-roff(1999),haviaumapreocupaçãogeneralizadacomaproduçãodegranderiqueza,demodorápidoesemqueestaestivesseclaramenteedemodoper-ceptívelassociadaàproduçãoouaumesforçovisível.

Religião e magiaAlguns dos nossos informantes referenciaram casos de mortes para rituais satânicos,assimcomodeconservaçãodeórgãosparafinsobscuros,queen-volveriam várias confissões religiosas. No entanto, as investigações foraminconclusivas e sem provas. “Um dos jornais divulgou uma parte disso há 3 anos,masfoiabafado,porquemetemuitodinheiro”(InformanteONG,Mapu-to,2015).“Trata-sedecrimeorganizado,muitodifícildeinvestigar,aspesso-asnãofalamabertamente”(Activista,Maputo,2015).

“Sãováriososfactoresassociadosàorigemdofenómeno,comocorrentesreligiosas, “seitas”,porque seacreditaqueo sacrifíciohumano trazbonan-ça,alegriaefelicidade”(InformanteJurista,Maputo,2015).“Estamosavivernummomento emque há uma proliferação de igrejas (...) algumas dessasigrejas podem estar envolvidas nesse negócio ilícito e isso é mais preocupan-teporquehámuitosqueusamnomedeDeusparafazeressetipodeacções,háoutrosquetêmnomedeigrejas,massãoempresasdetráficodeórgãosedrogas”(Líderreligioso,Gaza,2015).

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

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Apráticadosacrifíciohumanonãoéumfenómenonovo,nemespecíficodocontextomoçambicanoeafricano.Osacrifíciohumanoédocumentadocomouma parte importante dos rituais em várias partes do mundo. Como demons-traahistóriabíblicadeAbrãoedoseufilhoIsac,apossibilidadedesacrifícioshumanoseraaindabempresenteentreosantigoshebreus.AbrãoacreditavaquetinhaouvidoDeusquelhepediaparamataroseufilho,oqualfoisalvonoúltimomomentoporumanjo(Harris,1977p.127).

Nãopoderíamosprocederaumaanálisedocontemporâneofenómenodetráficodeórgãosepartesdocorpohumanosemorecursoàmemóriahistó-rica. Acontecimentos ocorridos em tempos e lugares distantes, como as guer-rasdeconquistadeterritóriosedepessoasparaoenriquecimentodeumaminoria forte e poderosa, revelam-nos analogias e persistência das formas decrueldadeusadaspelopoderdeindivíduoseinstituiçõessobreoscorposvulneráveis.

O Antropólogo Marvin Harris (1977) oferece-nos elementos de leitu-raparaanalisaroscomportamentoseosvaloresatribuídosàvidahumana.“Treinadosacomportar-secomocarniceirosnocampodebatalha,Cortezeosseushomens,quandodesembarcaramnoMéxicoem1519,provenientesdopaísdainquisição,estavamhabituadosaassistiraespetáculosdecrueldadeebanhosdesangue.Nãodeveriamadmirar-semuitopelofactodeosAstecassacrificaremmetodicamentesereshumanos,quandoosespanhóiseoutros

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povoseuropeustambémpartiamossos,braços,pernasequeimavamasmu-lheresacusadasdefeitiçaria”(Harris,1977p.111).

Sobmuitosaspectos,aescravaturaconsistiutambémnotráficodepesso-as.Traficantesdeescravosvenderampessoasviolentamentearrancadasdassuasaldeiasefamíliascomomododeenriquecimento.Naactualidade,osra-pazes,raparigasemulherespobressãorecrutadosdospaísesmaispobresdaÁfrica,incluindoMoçambique,comomão-de-obrabaratae/ouforçadaeparatrabalhosexual.Emmodalidadesefinalidadesdiferentes,ocorpohumanofoiecontinuaaserobjectosacrificadoedeprocura.

O “El Dourado”O estudo recolheu informações de que o fenómeno temuma dimensão

transnacional,envolvendopaísesvizinhos,como,porexemplo,oZimbabweeaÁfricadoSul.Deacordocomuminformantechave,aextracçãodepartesdocorpohumanoéumapráticacomumemChicualacuala,masmaisfrequen-teaindanavizinhalocalidadedeChiredze.SegundoapolíciaZimbabweana,noespaçodemeioano,ocorreram12casosdeextracçãodepartesdocorpohumanonestaregião.Os traficantesdescemdoNortedeMoçambiquecompartesdocorpohumano,masnãoconseguemfacilmentepenetraremMapu-to,devidoaocontrolomaisrigorosodapolíciaemaiorpreparaçãonaáreadecontrolodotráfico.Assim,usamomatodoparquetransfronteiriçodeLimpo-po.EmChiredzeexistempessoasquerecebemestaspartesdocorpohumanoeas transportamatéàÁfricadoSul.UmaporçãodaspartesdocorpoqueentranaÁfricadoSul regressaaMoçambique jápreparadacomomuti. Os curandeirossulafricanossãoespecialistasnestamatéria.OSuldeMoçambi-quetambémestábemequipadocomcurandeirosqueafirmamsabermistu-rar muti com partes do corpo e sangue humano para dar sorte nos negócios ouemqualquercoisaqueapessoaqueira(Activista,Maputo,2015).

“Amaiorpartedasvítimassãopessoasvulneráveisemtermossociais.Quenãotêmumaestruturafamiliartãosólida...Sãocarentesemtermosdeservi-çosbásicos,dealimentação,educação.Eamaiorpartedelasdesloca-sesem-precomaimpressãodequeacoisalávaimelhorar,ouvaimudardooutrolado, seja em Maputo, seja na África do Sul. Portanto, de uma forma geral, as pessoasvãoatrásdemelhorescondições,podeseraeducaçãooutrabalho,sendoesteomaisprocurado.Querem trabalhar tantoas crianças comoosadultos.DizemquevãoparaÁfricadoSulparatrabalhar”(InformanteONG,Maputo,2015).Os jovens têmsidoosmais sacrificados,principalmenteosqueandamnaruaentreos12eos17anosavendergelinhosão,muitasvezes,os mais recrutados (Jurista, Inhambane, 2015).

No imaginário comum, a África do Sul é percebida como o “El Dourado”, lu-garondetodososproblemasdavidapodemsersolucionados,umsonhoquesetransformaemdoresofrimento(InformanteComunicaçãoSocial,Maputo,

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

2015). Muitos jovens preferem ir para a África do Sul, pois, mesmo imaginando quepodempassardificuldades,considerammelhorsofrerládoqueemMoçam-bique.Ostraficantestêmestratégiaseformasdealiciarosmaisvulneráveis.

“Éumaquestãodesobrevivência,emqueelesachamquenãotêmnadaaperder,podemsofrer lá,comopodemsofreraqui,massofrer láémelhorporqueláaindapodemconseguirmaisalgumacoisinhadoqueconseguiriamaquiemMoçambique”(InformanteComunicaçãoSocial,Maputo,2015).

Ograudevulnerabilidadequeexisteemmuitaspartesmaisisoladasdopaís,propiciaasacçõesdostraficantesnorecrutamentodascrianças.Algunsinformantesassociaramessavulnerabilidadeaotráfico,comofactode,emalgumascircunstâncias,serusualquecriançasfrequentemlugaresnocturnosdediversãoouconsumamálcool:

“Euestive,porexemplo,emMabote,evicriançasentreos10e16anosafrequentaremdiscotecas e a consumiremálcool, compolícias a circularemindiferentes,comosefosseumacoisanormal.Senóstemosumasituaçãodes-sasemqueànoiteascriançasestãoaconsumirálcool,senóstemosestetipodesituaçõesqueenvolvemcriançasdessaidade,entãocomeçaasernormalumacriançaser levadaouserutilizadapara fazersexomuitocedo”(Infor-manteComunicaçãoSocial,Maputo,2015).

Muitascriançassaemdecasa,algumaspordesavençasfamiliaresouatéviolênciadoméstica.Outrasporqueseconsideramadultas,nãoqueremsercontrariadaspelospaisepensamquesaindovãoencontrarmaisoportunida-desdevida,ficandomaissusceptíveisdeseremvítimasdotráfico.

“Então,quandoissoacontece,quandoaspessoassaem,algumastêmumpontodeescalaqueéRessanoGarcia,seforparaalivaiverquehámuitascriançasali,seolharparaaquelepostofronteiriçovaiverquehámuitascrian-çasali,umasavenderemovos,enfim,afazerempequenosnegóciosali.Aquiloéumaespéciede trampolim, chegam,quandoachamque já estãomaisoumenos familiarizados comaquelavida, eles saltamparaoutro lado, algunsdelesdesacompanhados,vãoparaooutrolado,eficamapensarquelávãoencontrarmelhoresoportunidades”(InformanteComunicaçãoSocial,Mapu-to 2015).

Vizinhoseparentesdasvítimassãomuitasvezesosenvolvidosnotráfico.NasuamaioriasãomulheresquelevamjovensraparigasparaÁfricadoSul.Otrá-ficoenvolvecontrabandistas,oschamadosmareyane,quefacilitamapassagemdas pessoas para a África do Sul. De acordo com os informantes, nas fronteiras háumagrandemovimentaçãodepessoasemercadorias,queenvolvenegocia-çãoedinheiroaserpagoaospolíciassulafricanosemoçambicanos.Ovalorpago aos polícias ilicitamente é entendido como uma forma de complementar osaláriobaixodosmesmos.Acorrupçãodosagentesdaleiestáportanto,tam-bémassociadaaoseubaixoníveldeingressoseaofactodenãoteremcondiçõesdevidacondignas,oquecontribuiparaqueingnoremoseudever.

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“Por exemplo, um pai na África do Sul pede a um transportador para lhe levarsuafilhadeumaprovínciadeMoçambiqueparaaquelepaísvizinho.Afilhaviajasemdocumentos.Paraesteserviçocombinamumvalorapagar.De-pois o transportador chantageia o pai, pedindo valores muito mais elevados paraentregaràfilha.Seeleforincapazdepagarnãolhedevolvemafilha,sen-doestavendidaparaexploraçãosexualouassassinadaparaextraírempartesdo seu corpo” (Activista, Maputo, 2015).

A ambivalência da medicina tradicional Deacordocomapercepçãogeneralizada“sãooscurandeirosqueencomen-damaspartesdocorpoparafinsdeenriquecimentoparacurarumadoençaqueomédiconão consegue curar”.Osmédicos tradicionais são apontadoscomoosmaioresincitadoresdaextracçãodepartesdocorpohumano.

No entanto, constatamos uma certa tendência de se atribuir a “curandeiros defora”ousodeórgãoshumanos,criandoumademarcaçãoentrenóseosou-tros,comoseilustracomosseguintestrechos:“...sãocurandeirosdeforaquenãosãoconhecidos,prometendoquesãocapazesdefazerenriquecerpesso-as,masnãosesabendoosmeiosqueutilizamparatal”ou“Doscurandeirosexistempessoasqueusamórgãoshumanosparadeterminadostratamentoseháaquelesqueserecusamporqueefectivamentenãousamisso,masapene-traçãodemuitoscurandeirosdaÁfricadoNorteéumarealidadeporquenóstemosaquihomensdemagiamuitoforte”(InformanteONG,Maputo,2015).

Comfrequênciaaspessoasassociamousodeórgãoshumanosàfeitiça-riaeosmédicostradicionaisesquivam-sedessasinsinuaçõeseacusaçõesdefeitiçaria,dizendoqueseinspirameseguemasinstruçõesdosespíritosparaintervençõesbenéficas.Apráticadamedicinatradicionalévistacomoalgonaturale individualizadoporqueengloba indivíduosdediferentesculturas,maneiras de agir e pensar, incluindo uma multiplicidade de espíritos. Os fei-ticeiros, ao contrário, para além de desenvolverem práticas destruidoras in-visíveis,querepresentamumriscoparaascomunidades,sãoelesprópriosconsideradosinvisíveis,razãopelaqualnãosãofacilmenteidentificados.

Numa investigação antropológica realizada emMoçambique de 1993 a2004entreapopulaçãodoplanaltodeMueda,HarryWestsustentaqueosdebatessobreafeitiçariasealastramparaalémdasorlasdoplanalto.Noen-tanto, a abordagem destes temas nos círculos governamentais, por exemplo, nacapitalmoçambicana,suscitamdiferentesquestionamentosereflexões.Osdebatescentram-seentreduasposiçõesdistintas.Uma,argumentaqueumamaiortolerânciaàs“crençasepráticas”poderiaaliviarastensõesentreoEs-tado e as comunidades rurais, onde as autoridades tradicionais servem para veicularaexpressãodavontadepopular.Aoutra,maisnaópticadosdireitoshumanos,questionasetais“crençasepráticas”nãoconstituiriamterrenofér-til paraooportunismoe charlatanismoquepoderiamminarodesenvolvi-

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

mentoeconómico,aoalimentaremomedodeforçasniveladorassobrenatu-rais (Meneses, 2008).

HarryWest,nalinhadopensamentodeAchilleMbembe,consideraqueodiscursodafeitiçariaéumadas“linguagensdepoder”porqueemergedavidadaspessoascomoexpressãopararesponderaosmedosepesadelosquotidia-nos.Estesautoressugeremque,aoinvésdeospaísesafricanosseorientarempormodelosocidentais,deveriamcultivaroutraslinguagensquesejammutu-amenteinteligíveis,entreodecisoreocidadão.

Distrito de Govuro, 2015

Questionado sobre o envolvimento da medicina tradicional, um dos nossos in-formantesmencionouaexistênciadecharlatãesefeiticeirosqueseintitulammédicostradicionais.Essessãotambémconsideradosbandidosquesurgiramdepoisdaguerracivil (1978 -1992)eoportunistasquequeremganhardi-nheiro fácil e se intitulam curandeiros para actos nefastos: “Na medicina tra-dicional se esconde muita coisa, mas na realidade o papel do médico tradicio-nal é curar, com recurso ao poder dos espíritos e ao uso de plantas e animais. Nenhumcurandeiroestáautorizadopelosseusespíritosafazerusodeórgãoshumanos, pois o contacto com partes do corpo humano sem vida interfere na relaçãocomosespíritoseaspráticasdecura”(Médicotradicional,Maputo,2015).Oscurandeirosconsiderados“puroseverdadeiros”sãoaquelesquesãochamadospelosespíritosparaexerceremfunçõesdecuraembenefíciodaspessoasequesãoreconhecidoselegitimadospelaAMETRAMO.

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Um médico tradicional (Maputo 2015) referiu o seguinte: “Os curandeiros sãousadoscomobodesexpiatórios,maspordetrásestãograndesnegocian-tes.Hámuitodinheironotráficodeórgãos!”

5.3 Entendimento sobre motivações e finalidades da prática

“Muitaspessoasperdemosseusentesqueridosporquequalquerhomemdenegócioqueraumentarasuafortuna”(Activista,Maputo,2015).

Um jurista colocou esta questão nos seguintes termos: “Estamos numaeconomiademercadoemquetudosevende.Aspessoasqueacreditam,queprocuramamagia,queprocuramodinheiro,fazemcomqueoproblemadotráficodeparteshumanas sejauma realidade ligada à condição sócio-eco-nómica.Numpaíspobre,emquetodos lutampelasobrevivência, tudoqueapareceserveparacomercializar,atéasprópriascrianças,osprópriosfilhossãovendidos.Pensoqueesteconjuntodefactorescontribuiparaoelevadonúmerodecasosdetráfico”(Jurista,Maputo,de2015).

Um exemplo concreto, recente, divulgado na Televisão deMoçambique(TVM), no mês de Setembro de 2015, é o caso de um pai, na localidade de Gondola, na província de Manica, encontrado na posse de uma catana dispos-toeventualmenteaesquartejaroseufilhodequatroanosparavenderpar-tesdoseucorpo.Amotivaçãoparaesteacto,segundoopaidacriança,eraosustento da sua família numerosa. Foi também relatado neste estudo um caso relacionadocomumpaiquematouoseuprópriofilhoeextraiu-lheosórgãosgenitais para obter em troca uma viatura minibus.

Simbolismo das partes do corpo Nasváriaspráticasdecuratradicional,sãoutilizadasdiferentespartesdeani-mais.Nostratamentosparaatrairasorte,usa-seamãodomacaco.Váriaspar-tesdocorpodeanimais,incluindoasmãosdomacaco,podemseradquiridasnomercadodeXipamanine,nacidadedeMaputo,noespaçodedicadoàvendade produtos usados na medicina tradicional.

SegundooestudodaLDH,osórgãoshumanosusualmenteextraídossãoosgenitais(testículos,lábiosvaginais),lábios,boca,nariz,orelhas,mãos,dedos,braços,cabeça,olhos,língua.Acredita-sequeasmãosservemnotratamentoparaenriquecimento.Osolhos,assimcomoasmãos,estãorelacionadoscomodinheiroea fortuna.Unhaseolhosdascriançassãousadosparaotrata-mentodasredesdepesca.Osórgãosgenitaisdosrapazessãousadosparaotratamentodaimpotênciasexualmasculina.Rótulasdejoelho,diz-se,parti-cularmente,emMagude,quedetêmumlíquidomuitovaliosoquedenominam“mercúrio”.

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

Osórgãosgenitaismasculinossãoosmaisprocurados: “Parecequeé láonde está o milagre” (Jurista, Inhambane, 2015).

Considera-sequealgumaspartesdocorposãomaispoderosasqueoutras.“Apartegenital,principalmentedemeninos,serveparareactivarasforçasse-xuais” (Líder religioso, Maputo, 2015). O poder do muti humano advém preci-samente do facto de ser feito a partir de tecido humano (White, 1997 p. 329). Labuschagne(2004)referequearazãoparausarpartesdocorpohumanoéqueelassãoconsideradasmaispoderosasdoqueoshabituaisingredientesoumétodosusadospelomédicotradicionalporqueelascontêma“essênciadavida”dapessoa.Tradicionalmente,avítimadeveriaestarvivaquandoaspartesdocorposãoremovidas,poisissoaumentariao"poder"domuti (La-buschagne, 2004 p. 193).

5.4 Estratégias usadas para lidar com o fenómenoAspessoas,nageneralidade,nãofalam,nemcomentam,comoseofenómenonãoexistisse.Osqueouviramfalardealgumcasooudealguém,nãocomen-tamporqueachamquenãodevem.Porisso,oproblemapermanecenosilên-cio.Contudo,nodecorrerdasentrevistas,àmedidaqueosinvestigadoresiamcriandoumarelaçãodeempatiaegarantiamasegurançaemrelaçãoaoano-nimato,osinformantessesentiammaisàvontadeparacontaroquesabiamsobreofenómeno.Observámosqueosjovenserammaisespontâneoseaber-tosemcomparaçãocomaspessoasligadasàsinstituiçõesoucomfunçõesdeliderançanas comunidades.Algumaspessoasque tiveramcontactodirectocomvítimas,talveznatentativadeencontrarrespostas,mostrarammaiordis-ponibilidade em colaborar, revelando experiências íntimas e sensíveis.

É uma coisa muito silenciadaAspessoasdizemquenãosabemnada,masnaverdadetêmémedodefalar.Ninguémquerfalarporcausadaspossíveisretaliações,medodeserperse-guido,elepróprioouseusfamiliares,ereceiodeservítimadefeitiçaria.Se-gundoalgunsinformantes,dáaimpressãodequeapolíciatambémtemmedode agir, por medo de eles próprios ou seus familiares serem prejudicados.

Porpartilhareminformação,aspessoaspodemserameaçadas.“Quandotulidascomestascoisastensmuitossegredos,porquequandofalascomcuran-deirosmaisnovosqueaceitamfalarecontaroquesepassa,nodiaseguinte,estaspessoassãoameaçadasejánãofalam.Tensquetentarfazersemqueeleseapercebaporqueistotemmuitostabus”(InformanteONG,Maputo,2015).

Nesteestudooprimeirorelatodecasodeextracçãodepartesdocorpofoiapresentadopelamãedeummenorde10anosdeidade,quefoiassas-sinadoem2006eaquemextrairampartesdocorpo.OmesmocasojáfoirelatadonoestudodaLigadoDireitosHumanos(2009).Ocorpodavítima

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foi encontrado namargemdo rio Tsatsimbe sem cabeça, coração, fígado,pénis e testículos.

Amãedavítimaapresentouocasoàpolíciaeaoutrasentidadescompe-tentes. Em conversa com ela, tivemos acesso ao relatório médico com detalhes damorteviolenta.Asenhoranosdissequedapolícianuncaobtevenenhumdocumento,neminformaçõesquantoàsinvestigações.Noanode2012,estasenhorafoiconfrontadanovamentecomumasituaçãodeviolênciaextremanafamília.Asuafilhade6anosfoivioladasexualmenteporumfamiliardamesma.Elatentouresolverocasonocontextofamiliarmasnãoencontrouoapoioe justiçaqueprocurava.Pelocontrário, foidesprezadaeprejudicada,tanto emocionalmente como materialmente.

“Semprequeháviolência,aspessoasencontramoelomaisfracoparajus-tificarosactos”(InformanteProfissionaldeSaúde,Maputo,2015).

Geralmente,aresoluçãodosproblemasé feitanoseiodasfamílias,compagamentos de “multas” em espécie (animal ou humana), emúltimo caso,comoenvolvimentodoslíderescomunitários.Orecursoàsinstituiçõesnãoaconteceporqueaspessoastêmmedodedenunciarporfaltadeconfiançaepela expectativa de ver solucionado o problema a nível familiar. Este facto está associadoàinformaçãofornecidapelasautoridadescompetentesdequehápoucasdenúnciasporpartedasvítimas.

Asvítimasentrevistadasnãoencontramapoiopsicossocialeprotecçãoporpartedasinstituições.Oproblemaficadiluído,maspermanece,aspessoasfi-camsemprecomumsentimentodedúvidapermanentepornãoencontraremumaresolução.Oapoiopsicossocialserveparadissolverestessentimentosde mal-estar.

Umapreocupaçãofrequentedaspessoascomquemconversámosfoiane-cessidadedehaverumaactuaçãomaiseficienteporpartedasinstituições,demodoagarantir-seasegurançaeprotecçãodosindivíduos.Hávárioscasosemqueos criminosos são libertosdepoisde se constatar a autoriadeumcrime:“imaginapessoaslibertasportráficodeórgãos,aosairvãoatrásdode-nuncianteporqueapolíciafacilitaasuasaídaerevelaoautordadenúncia.Seéamesmapolíciaquelibertaoscriminosos,aquemiremosqueixar?Então,apolíciadevefazeroseutrabalhoebem”(ParticipantedoGDF,Gaza).

“Nas cidades, os polícias estãomais consciencializados, mas se formosparaascomunidades,considerandoqueopaísévasto,sãonecessáriosmaispostospoliciaiseformaçãodospolícias”(InformanteONG,Maputo,2015).

Oenvolvimentoeacçãodosserviçosdesaúdesãodeextremaimportânciano tratamento das vítimas, bem como no encaminhamento jurídico ou legal dos casos.Aintervençãodamedicinalegalacontecesobsolicitaçãodapolíciaououtrainstituiçãocompetente.Nocasodeumamorteviolenta,ocorpodeveriaseranalisado.Oqueacontecefrequentementeéqueoenterroéfeitosemqueumaanálisetivessesidorealizadaporperitos(PGR,Inhambane,2015).

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

“Se fôssemos mesmo rigorosos poucos casos seriam condenados” (PGR, Gaza,2015).Émuitoimportantedeterminaracausadamortedasvítimas,massemautópsiaissonãoépossível.Paraefeitosdeatribuiçãodepenaétambémmuito importante verificar se os órgãos foram retirados antes oudepois damorte,poissetiveremsidoretiradosenquantoapessoaestavaviva,constituiumaagravante.Noentanto,algunsdistritosnãodispõemdemeiosparacondu-zirexamesmédicos,nemmédicoslegistascruciaisnaconstituiçãodeprovas.

Passos positivosApesar das fragilidades ainda existentes, tem-se registado progressos na for-ma como a procuradoria tem lidado como fenómeno do tráfico. Tendo-seconstatadoovaziolegaleanecessidadedereformaparaincluirassituaçõesdetráficodeórgãosepartesdocorpohumanocomoactoscriminais,recor-reu-seàpromoçãodosdebatesanuaisrealizadossobretráficosobainiciativadaProcuradoria-GeraldaRepúblicacomaAMETRAMO,líderesdascomuni-dades,líderesreligiosos,LigadosDireitosHumanos,eoutrosactoressociais,oquecontribuiuparaarecentereformadaleisobretráfico(InformantePGR,Maputo, 2015).

AparceriaexistenteentreMoçambiqueeÁfricadoSultemtambémcontri-buídoparaocombateaotráfico.Porexemplo,emMoçambiquenaprovínciadeGazaenaÁfricadoSulemMpumalanga,existemgruposanti-tráficodeno-minadosGruposdeCoordenaçãoTransfronteiriço,emqueestãoenvolvidosdesdeagentesdasegurançaatélíderescomunitários.

Outropassopositivo foiacriaçãodegruposdereferênciaactuantesemcada província do país. O grupo de referência de Ressano Garcia composto por instituições e associaçõesbaseadasnesta fronteira (migração, alfânde-ga,chefedeposto,políciadeguardafronteira,procuradoriaeacçãosocial)éconsideradomuitoforte.UmavezqueogruporealizaassuasactividadesemcolaboraçãocomaSave the Children,temcomofinalidadeprimáriagarantiraprotecçãodascriançasdemodoqueestasnãosejamtraficadasparaaÁfricado Sul (Jurista, Maputo, 2015).

OscriminososforçadosaencontraroutrasrotaspassaramaentrarpeloLimpopo,comvistaanãoseremdescobertosnasfronteirascommaiorcon-trolocomoadeRessanoGarcia.Assim,umadasfragilidadesdosserviçosdesegurançaéqueoscriminososestãosempreumpassoàfrentedasautorida-des, criandonovasestratégiasqueultrapassamascapacidadesdecontrolodasmesmas.Verifica-seactualmenteumanovatendênciadeactuaçãodoscri-minosos.Hágruposdetransportadores,oschamadosmuqueristas,quecircu-lamentreMoçambiqueeÁfricadoSul,quenãosótransportammercadorias,mas também pessoas (Activista, Maputo, 2015). Na perspectiva de se criar maiorcontrolodamovimentação irregulardepessoas,estendendo-separaoutrasfronteirasdeMoçambique,recentemente,foicriadoumgrupodecoor-

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denaçãocomoZimbabwe,nafronteiradeMachipanda,provínciadeManica(InformanteComunicaçãoSocial,Maputo,2015).

Noque concerneàs actividadesde intervençãodas instituiçõesnão-go-vernamentais,sãoreferenciadasaLigadosDireitosHumanoscomumpapeldedenúnciaeatédeapoioàsvítimasincontornável,assimcomoaONGSave the ChildreneacongregaçãoreligiosadasirmãsScalabrianascomodasmaisengajadas. De acordo com um jurista, faria mais sentido os assuntos religio-sosestaremligadosaoMinistériodaAcçãoSocialumavezqueasentidadesreligiosas(católicas)sãoasquetêmmaiscentrosdeacolhimentocomacçõesviradasparaoapoiopsicossocial eeducação.UmestudodaUNICEFapon-taas irmãsScalabrianascomosendoareferêncianaáreadeprotecçãodascriançasemRessanoGarcia.ACasa de Acolhida, primariamente para receber migrantesrepatriados,hojetemumpapelfundamentalnoapoioàscriançasmigrantes desacompanhadas (Verdasco, 2013).

Algumasacçõesdeeducaçãocomunitáriaparalidarcomofenómenoere-portaràsentidadescompetentestêmsidolevadasacabopelaONGSavetheChildren.Estaorganizaçãoconsideraquehámudançasporquejáaparecemcasosreportadosnatelevisão.“AténomêspassadohouveumjulgamentoqueocorreunaÁfricadoSul,nósajudámos,cobrimosepassounatelevisão.(...)Aspessoaspelomenosjáficamatentaseconscientessobreofenómenodotráfico.Ofactodesecomeçarafalardofenómenopublicamentejáéumbomsinal” (Informante ONG, Maputo, 2015).

Muito recentemente, em Novembro de 2015, foi criado o Grupo de Refe-rênciaNacionalparaprotecçãodacriançaecombateaotráficodepessoas,com o objectivo de assegurar o melhor funcionamento dos grupos de referên-ciaprovinciaisnaassistência(incluindojurídica)ereintegraçãodasvítimasdotráfico.

5.5 Políticas, Legislação e Acções InterventivasOgovernodeMoçambiqueestáarealizaresforçossignificativosparaeliminarotráficodepessoas,noqualotráficodeórgãospodeestarincluído,segundoorelatóriodoDepartamentodosEstadosUnidosdaAméricasobreo tráficodepessoasde2015.Contudo,permanecemalgumaslimitaçõesnarespostaaofenómeno.Comoanteriormentereferido,devidoàfaltaderecursosfinanceirosporpartedogoverno,asinstituiçõesquemaissedestacamnaprotecçãoeapoioàsvítimascontinuamaserasONGeasorganizaçõesdecarácterreligioso.

Até2009,asinstituiçõespúblicasnãotinhammuitosmeiosnemrecursoshumanoscapazesdeentendere lidarcomo fenómeno.A tendênciaeradenãoreconheceraexistênciadestaprática.Actualmente,háumnovocódigopenalemvigorapartirdeJulhode2015,que,pelaprimeiravez,puneaposse,transporteetráficodeórgãoshumanos,incluindopartesdocorpohumano.

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V. RESULTADOS E ANÁLISE

Noentanto,segundooinformantealeinecessitadeumamaiorinterpretaçãoparaevitarequívocossobreoqueincluipartesdocorpohumano.

Nalei6/2008estavaprevistootráficodeórgãos,masapenasassociadoaotráficodepessoas.Avítima,sesobrevivesse,tinhaquedenunciar.Estescasoseram punidos como ofensas corporais. Com a nova lei temos, por um lado, a lei detráficodepessoas(artigo198)paraváriosfins,e,poroutro,aleidetráficodeórgãoshumanos(artigo161).Comestanovalei, independentementedetermosavítima,umapessoaencontradanapossedeórgãoshumanospodeserpunida.A lei pune tambémaquele que instiga. Este até temumapenamaior.Destemodo,oenquadramentolegalparaestescrimesjáexiste.Antesdestalei,mesmohavendodenúnciasnãohaviacomocairnotráficodeórgãoscomotalporquesóagoraéqueficoutipificado.Portanto,nãotínhamosape-nasoproblemadafaltadedenúncias,mastambémnãoconstavadocódigopenal, daí a falta de registos destes casos (Informante PGR, Maputo, 2015).

Paraefeitosdeatribuiçãodepenaécrucialverificarseosórgãosforamretiradosantesoudepoisdamorte,poissetiveremsidoretiradosenquan-toapessoaestavaviva,constituiumaagravante.Todasas“fases”dotráficosãopunidas(extracção,transporteevenda).Ocódigopenal,noartigo161,criminalizaaposse,transporteetráficodeórgãoshumanos.Apenamáximaprevistaéde16a20anosdeprisãoeamínimaéde12a16anosdeprisão.Trata-sedeumcrimedenaturezapública.Bastaqueasautoridadestenhamconhecimentodasuaexistência,porqualquermeiodeinformação,paradeimediatohaverinstauraçãodoprocedimentocriminaldemodoainvestigaraautoria.Quandonestescasossãoenvolvidosos“curandeiros”,aspessoasnãodizemquemfoiocurandeiroqueconsultaram.Derealçarqueseficaprova-doqueocurandeiroinstigouapessoaaocometimentodocrimeprevistonoartigo161doCódigoPenal,aposse,transporteetráficodeórgãoshumanosincorreaumapenaquevaide16a20anosdeprisão.

ComoactualMinistériodaJustiçaeAssuntosReligiosos,quedeuumpassosignificativononovocódigopenalcontraotráficodeórgãospressupõe-sequeainstituiçãoestabeleçaumarelaçãodecolaboraçãocomamedicinatradicio-nal.Contudo,acomponentereligiosanãoincluiareligiãotradicionaldequefazemparteosmédicostradicionais.“Quandosefaladenegociaçõesedeques-tõesreligiosas,osreligiosossãovistoscomosendooscatólicos.Nãose faladareligiãotradicional,enquantonósatendemosmaisde70%depessoasquetambémvãoàsigrejas.NósestamosmaisligadoscomoMinistériodaSaúdedoquecomoMinistériodaJustiça”(Médicotradicional,Maputo,2015).

É de realçar que aAMETRAMOdesde2009 temumcódigode condutaparaseafastardaspráticasdealgumaspessoasquesedizem“curandeiros”.Estecódigoprevêainterdiçãodousodeórgãoshumanos,sangue,tecidohu-manonomomentodetratamentoecura.Oinstrumentoregulaetrazaéticasobre como tratar as pessoas.

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VI. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

6.1 ConclusõesNocontextodaÁfricapós-colonialtendemaverificar-sediferençasgritantesen-treariquezaeapobreza.OnossoestudoconfirmaatesedeComaroffeComaroff(1999:282-288)sobreoincrementode“economiasocultas”emqueserecorrede“modoimaginárioourealameiosmágicosparaobtençãodefinsmateriais”.

Encontrando-senumasituaçãovulnerável,deexclusão,aspessoastentamencontrar meios de vida além-fronteiras, sem pensar no risco, alguns até con-trabandeando corpos vivos ou mortos. Mesmo as fronteiras mais seguras, de controlorígidoeserrado,sãorompidas.Criançasabandonadasejovenscomsonhossãoosmaisvulneráveis.Estamos,então,peranteacomodificaçãodaprópriavida,noâmbitodeummercadodeorgãoshumanosqueimplicaasuaextracção,compraevenda.

O tráficodeórgãosepartesdocorpohumanoé tambémum fenómenotransnacional,emqueosactorescirculamemcomplexasredescomosedis-solvessemasfronteirasnacionais.Umaestratégiaeficazeeficienteparalidarcomofenómenodotráficopassanecessariamenteporassumiradimensãotransnacional do mesmo.

Mesmoqueaparentementeredundante,édesublinharopapelcrucialde-sempenhadopelosmeiosdecomunicaçãosocialnadisseminaçãodeconheci-mentosobreotráficodeórgãosepartesdocorpohumano.

Ofactodequeseincluemórgãossexuaismasculinosentreosórgãostrafi-cadosparatratamentosassociadosàvirilidade,suscitaumaanáliseaprofun-dadasobrerepresentaçõeseexperiênciasdamasculinidade,emparticular,daassociaçãoentreotráficodeórgãoshumanoseasconcepçõesdominantessobre identidades de género.

Otráficoestátambémfortementeassociadoàmedicinatradicionaleàfeiti-çaria.Noentanto,aoescreversobrefeitiçariacorre-seoriscodeproduzir,umavezmais,umdiscursoexóticosobreÁfrica.SeguindoosComaroffs,Geschiere(2006:220)afirmaqueafeitiçariatornou-separteintegraldavisãoqueaspes-soastêmdamodernidade,associadaasectorescomoserviçosdesaúde,novasformas de empreendedorismo, desporto, política, etc. Por conseguinte, mais do queresistênciaàmodernidade,trata-sedeumesforçoporinterpretarasmu-dançasassociadasàmodernidadeeganharacessoaessesrecursos.

Nos exemplos referidos neste documento, na análise de alguns casos de tráficodeórgãos,considera-sequeasacusaçõesnãofaçamsentidopelofactodeaspráticasdafeitiçarianãoseremconsideradasnodiscursojurídico.Esta

VI. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

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ideia está em linha com o argumento de Mbembe, sobre a crítica da raciona-lidadehegemónica,eanecessidadede“ampliarapesquisasobreopapelqueafeitiçariadesempenhanaspolíticaslocaisnoMoçambiquecontemporâneo”(Meneses, 2008 p. 182).

Analisarumtemacomplexoqueenvolveuaapropriaçãodelinguagensdi-ferentesentreindivíduosintervenientesnestacausaeoutrosquevivemestassituaçõescomovítimas,nãofoiumprocessofácil.Umaformadepoder-secom-preender o fenómeno pode ser a partir do uso de uma linguagem mais popular, maispróximada realidade.Asquestões sobre feitiçaria chamaram-nosmaisatençãoparaumproblemasocialeeconómicomaisprofundo.Consideraradi-mensãocosmológicaqueincluiosdiscursosdafeitiçariacomoforçaniveladoradastensõessociais,derivantesdasdisparidadesentrericosepobres,significaquearaizdoproblemaassentanapobrezaenadesigualdade.

Constatámostambémafaltadepreparaçãodasinstituiçõesenvolvidasnalutacontraotráfico,anecessidadetantoderecursoshumanoscapazeseco-nhecedoresdamatériacomoderecursosmateriaisefinanceiros.

Poroutrolado,aarticulaçãoentreasdiferentesinstituiçõesenvolvidaséaindafrágil.Porexemplo,oreconhecimentodopapelquetemamedicinatra-dicionalparecequenãoencontraenquadramentonosdiscursosjurídicose,consequentemente,naapropriaçãoeaplicaçãodasleispelaspessoas.

6.2 RecomendaçõesConceber,adoptareimplementarpolíticasdedesenvolvimentoinclusivo,quediminuamadesigualdadeereduzamapobreza.

Garantiroacessoàeducaçãosecundáriaeinvestirnaformaçãotécnico-pro-fissionaldosjovensparaevitarqueestesfiquemmaissusceptíveisaotráfico.

Introduzirnocurrículoescolarmatériasrelativasaosváriostiposdetráfi-co,incluindodeórgãosepartesdocorpohumano.

Criarcondiçõesentreas instituiçõesdoEstadoenvolvidas (polícia,pro-curadoria,serviçosdesaúde)paraqueoscasosdetráficosejamtratadosdeformaadequada.

Fazerumlevantamentodosprincipaisfactoresquedificultamacondena-çãodecasosdetráfico,tantoaníveldasinstituiçõesenvolvidas(polícia,saú-de, procuradoria) como dos próprios procedimentos.

Assegurarmaiorcoordenaçãoentreossectoresdajustiça,polícia,saúdeeacçãosocial.

Dotarasváriasinstituiçõesquelidamcomotráficodeinstrumentoseme-canismosparagarantiraprotecçãodastestemunhasedosdenunciantes.

Averiguarjuntodasautoridadessul-africanasodestinodaspessoastraficadasparaalémdafinalidadedeexploraçãolaboraleprostituição.AProcuradoriapo-deriaaproveitarosencontroscomasuacongéneresul-africanaparaestefim.

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Dotarapolícia(incluindoapolíciadetrânsito,guardasdefronteira,etc.)derecursosparaquetenhamaiorpresençaecontrolo.

Capacitarosagentesdapolíciasobreotráficodesereshumanosedeór-gãosepartesdocorpohumano.

Partilharentreasorganizaçõesqueactuamnamesmaáreaasexperiên-ciaseosresultadosdosestudosrealizados

Promovercampanhasdeeducaçãocívicaesensibilizaçãosobreotráfico,sobretudoemzonasrurais,commenoracessoàinformação.Usarmeiosaces-síveisàspessoas(rádio, cartazes, cinema,palestrasnasescolas, centrosdesaúde,igrejasemercados)sobreasmodalidadesdotráfico,emparticular,asformasderecrutamento,eodestinodaspessoastraficadas.

Envolvermédicostradicionaisnascampanhasdeprevençãoesensibiliza-çãosobreotráfico.Apesardeosmédicostradicionaisteremsidoapontadoscomoosprincipaisincitadoresdaspráticasdeextracçãodeórgãos,esteses-tãomuitopróximosdascomunidadesetêmumpapelmuitoimportantenaresoluçãoegestãodeconflitos.

Garantirqueosmédicostradicionaisadquiramconhecimentodasleisvi-gentessobreotráfico.

Envolverpolíticoseoutrasfiguraspúblicasemcampanhassobreotráficodeórgãosepartesdocorpohumano.Estesindivíduospodemdesempenharum papel importante ao falar aberta e publicamente sobre a existência do trá-ficodeórgãosepartesdocorpohumanoealertaraspessoasparaomesmo.Poderiam também assumir o compromisso de incluir nas campanhas e nos manifestoseleitoraisquestõessobreofenómeno.

Divulgarnoseiodascomunidadesmatériasrelativasàsleiseprocedimen-tos em casos de suspeitas de mortes violentas.

Interagir com as comunidades de modo a contrariar a “cultura do silêncio”, aumentandoaconsciênciasobreagravidadedo tráficoea importânciadedenunciar casos de suspeita.

Racionalizarosrecursosedesenvolversinergiasentreasváriasorganizações.Porexemplo,asactividadesdesenvolvidaspelaSANTACnasescolassobreotráfi-copodemsercomplementadaspelaCEMIRDEeoutrasinstituiçõesparceiras.

Criar mais centros de acolhimento das vítimas no país com competência paragarantiroapoiopsicossocialàsvítimas.

ColherexperiênciasnaÁfricadoSulsobrecomolidarcomotráficoporpartetantoasinstituiçõesdoestadocomodasociedadecivil.

Realizarpesquisasalém-fronteirassobreotráficoquea) sejamrealizadasnumespaçotemporalmaisamplo;c) envolvamequipasmultidisciplinaresnasáreasdajustiça,saúde,ciências

sociais e outras;d) dediquematençãoespecialàgarantiadoanonimatoeàprotecçãodospar-

ticipantes nos estudos.

VI. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

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