traduzindo lynn coady – dois contos canadenses … · foram utilizados os pressupostos do...

82
TRADUZINDO LYNN COADY – DOIS CONTOS CANADENSES CONTEMPORÂNEOS

Upload: lylien

Post on 02-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

TRADUZINDO LYNN COADY – DOIS CONTOS CANADENSES CONTEMPORÂNEOS

PAULA ANDREIA PETRY

TRADUZINDO LYNN COADY – DOIS CONTOS CANADENSES CONTEMPORÂNEOS

Monografia apresentada à disciplina de Orientação Monográfica em Inglês II como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Letras Português/Inglês com ênfase nos Estudos da Tradução, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Profª. Dra. Luci Collin Lavalle

CURITIBA 2007

Meus sinceros agradecimentos à minha orientadora Luci, por seus inestimáveis conselhos e incansável apoio; à minha

família pelo carinho, em especial à minha mãe pela força e motivação constantes.

ii

iii

Traduzir é conviver

J. Guimarães Rosa

iv

SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS ......................................................................................................v

RESUMO ...........................................................................................................................vi

1 INTRODUÇÃO ..............................................................................................................1

2 PANORAMA DA LITERATURA CANADENSE DE LÍNGUA INGLESA NO

SÉCULO XX ......................................................................................................................4

2.1 LYNN COADY .............................................................................................................8

3 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ...............................................................................10

4 TRADUÇÕES ...............................................................................................................15

4.1 O CARA DO SORVETE ............................................................................................15

4.2 OLHE E PASSE ADIANTE .......................................................................................31

5 COMENTÁRIOS DAS TRADUÇÕES ......................................................................44

5.1 COMENTÁRIOS DA TRADUÇÃO DE “O CARA DO SORVETE” ......................44

5.2 COMENTÁRIOS DA TRADUÇÃO DE “OLHE E PASSE ADIANTE” .................48

6 CONCLUSÃO ...............................................................................................................53

REFERÊNCIAS ...............................................................................................................54

ANEXOS ...........................................................................................................................56

ANEXO 1 – CONTOS ....................................................................................................56

ANEXO 2 – MAPAS ........................................................................................................72

ANEXO 3 – CANTO 3, INFERNO, DANTE ALIGHIERI .....................................................74

v

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – FATORES EXTRATEXTUAIS DA TEORIA FUNCIONALISTA DE

NORD .......................................................................................................12

QUADRO 2 – FATORES INTRATEXTUAIS DA TEORIA FUNCIONALISTA DE

NORD .......................................................................................................13

QUADRO 3 – OCORRÊNCIAS DE REPETIÇÕES NO CONTO “O CARA DO

SORVETE” ..............................................................................................44

QUADRO 4 – PRESENÇA DE DIÁLOGOS SEM MARCAÇÃO NO CONTO “O

CARA DO SORVETE..............................................................................46

QUADRO 5 – MARCAS DE ORALIDADE PRESENTES NOS DIÁLOGOS DO

CONTO “OLHE E PASSE ADIANTE” ..................................................48

QUADRO 6 – MARCAÇÃO DO PRIMEIRO DIÁLOGO NO CONTO “OLHE E PASSE

ADIANTE”..........................................................................................................49

QUADRO 7 – MARCAÇÃO DOS DIÁLOGOS DE BRIDGET E ALAN NO CONTO “OLHE

E PASSE ADIANTE” ........................................................................................50

QUADRO 8 – UTILIZAÇÃO DE ASPAS NAS FALAS DOS PROTAGONISTAS DE “OLHE

E PASSE ADIANTE” ........................................................................................50

vi

RESUMO

Esta pesquisa propõe a tradução de dois contos – “Ice-Cream Man” e “Look, and Pass On” – da escritora canadense contemporânea, Lynn Coady. Além de contarem com notas explicativas, as traduções contam ainda com comentários acerca do processo tradutório, apontando os problemas e as dificuldades enfrentadas. Como base teórica para a tradução foram utilizados os pressupostos do funcionalismo alemão, representado, principalmente, por Christiane Nord. Palavras-chave: tradução, literatura canadense, Lynn Coady.

1

1 INTRODUÇÃO

A ação tradutória abrange diversas formas de texto e, conseqüentemente, diversas

formas de tradução. Teóricos da área da tradução já estabeleceram definições quanto ao

tipo de texto e de traduções possíveis, mas este é um campo que ainda demanda mais e

melhores definições – contudo, vale lembrar que os estudos de tradução têm alcançado

cada vez mais expressão e que, hoje, muitas escolas de tradução vigoram, com grande

intensidade, em diversos centros de estudo do mundo.

A tradução literária, na maioria das vezes discutida enquanto oposta ao que se

chama de “tradução técnica” pelas polêmicas que suscita, sempre foi considerada um dos

pontos de maior discussão da área da tradução. As divergências surgem tanto em relação

às características do chamado texto literário quanto em relação aos critérios que o

tradutor deve utilizar para traduzir o texto literário. Por um lado há os defensores de que

o texto de partida é o detentor de toda a informação e que sua tradução deve ser

exatamente igual a ele, tanto em forma como em conteúdo. Outros admitem que as

línguas estão inseridas em uma cultura, assim, línguas diferentes fazem parte de culturas

diferentes, não sendo possível atingir-se uma semelhança total entre os textos.

Tendo em vista a dificuldade da tradução literária, a teórica alemã Christiane

Nord1 apresenta algumas sugestões:

Desistimos da tradução literária, pois ela é impossível (...) poderíamos continuar traduzindo

como temos feito até agora, seguindo nossa intuição e chamando o resultado de texto equivalente

(...) poderíamos tentar estabelecer uma base teórica para a tradução literária que permita aos

tradutores justificarem suas decisões a fim de fazer com que os outros (tradutores, leitores,

editores) entendam o que foi feito e porque.2(NORD, 1997:91 – grifo meu)

É essa “base teórica” que C. Nord procura estabelecer com seu modelo de

tradução para todos os tipos de texto, o qual será retomado no item 3 do presente

1 A partir daqui, chamada de C. Nord. 2 “We give up translations because it is impossible (...) we could carry on translating as we have done up to now, following our intuition and calling the result an equivalent text (…) we could try to set in place a theoretical foundation for literary translation that allows translators to justify their decisions in order to make others (translators, readers, publishers) understand what was done and why.” Todas as citações em língua estrangeira serão traduzidas por mim, sendo que o texto original aparecerá em nota de rodapé.

2

trabalho. Existem pesquisas que procuraram testar a real aplicabilidade do “modelo

Nord” para a tradução literária3, mas tal modelo não se apresentou amplo ou

desenvolvido o suficiente para abranger também a tradução de textos literários.

Apesar de não ser considerada uma tarefa fácil, e mesmo não havendo um

“modelo” que dê conta de todas as suas especificidades, a tradução literária é

extensamente praticada e lida no Brasil – principalmente porque aqui há um grande

interesse mercadológico pela publicação de literatura de autores estrangeiros,

notadamente de autores de literaturas de língua inglesa. E é nesse contexto que o

presente trabalho está inserido. Tendo-se em vista que o contato do leitor brasileiro com

a cultura e literatura canadense não é muito grande, buscou-se apresentar uma escritora

contemporânea e reconhecida naquele país e inédita no Brasil.

O primeiro contato que tive com Lynn Coady se deu em uma disciplina da área de

tradução, com a tradução de um de seus contos. Um dos aspectos que considerei mais

instigante na obra da autora foi a ferocidade na linguagem utilizada. De modo bastante

coloquial, beirando o vulgar, a linguagem nos convida a investigar os fatores culturais

escondidos atrás desse aparente descuido no tratamento da linguagem. A partir desse

contato inicial surgiu o interesse pela tradução da obra da escritora que culminou no

presente projeto, o qual busca verificar a viabilidade da tradução dos contos de Coady –

“Ice-Cream Man” e “Look, and Pass On” – para o português brasileiro, apresentando os

problemas e dificuldades enfrentados na tradução. Para tal, lançamos mão de um aparato

teórico representado, principalmente, pelo funcionalismo alemão.

O primeiro capítulo (2) apresenta um breve histórico da literatura canadense de

língua inglesa do século XX, dando maior ênfase ao conto, com a finalidade de situar o

leitor no contexto em que Lynn Coady está inserida. Também é apresentada uma

pequena biografia da escritora, assim como um apanhado de suas obras.

No capítulo seguinte (3) são feitas considerações sobre as teorias da tradução

atuais. É dada maior ênfase ao funcionalismo alemão devido a sua maior difusão no

meio acadêmico brasileiro.

Em seguida, no capítulo 4 são apresentadas as traduções dos contos “Ice-Cream

Man” e “Look, and Pass On”, retirados do livro Play the Monster Blind. Em ambas as

3 Cf. LEAL (2005).

3

traduções foram incluídas notas explicativas em relação a determinados elementos

lingüísticos ou culturais que pudessem gerar um estranhamento muito grande ao leitor

brasileiro.

Comentários das traduções dos dois contos são apresentados no capítulo 5. Nesta

parte são descritos os problemas, as dificuldades e as peculiaridades enfrentadas para se

traduzir uma escritora de um país tão distante. Finalmente, concluímos a pesquisa

discorrendo sobre o processo tradutório enfrentado e apresentando nossas impressões a

respeito da tradução dos contos canadenses para o público brasileiro.

Os contos foram colocados na parte dos anexos, para uma possível confrontação

com as traduções. Nesta parte se encontram ainda os mapas de algumas regiões do

Canadá mencionadas nos contos.

4

2 PANORAMA DA LITERATURA CANADENSE DE LÍNGUA INGLESA NO

SÉCULO XX

Apesar do estereótipo de uniformidade que de imediato nos remete às paisagens

com neve em todas as regiões e às imensas áreas selvagens, o Canadá, na verdade,

possui uma cultura marcada por uma grande diversidade. As influências desta

diversidade - políticas, religiosas, lingüísticas e geográficas4 - estão claramente presentes

na cultura canadense e, em conseqüência disto, a literatura produzida no Canadá faz com

que essas características não só se definam e se evidenciem, mas, sobretudo, com que

sejam constantemente questionadas. Em se tratando de diversidade, há que se considerar

aqui, de modo especial, a presença maciça de estrangeiros que imigraram para o Canadá

como um fator de grande importância, que também se reflete sensivelmente na literatura

do país.

Influenciada, naturalmente, pela colonização inglesa e francesa do Canadá no

século XVII, a literatura canadense começou como uma reprodução dos modelos

literários dos colonizadores. No século XVIII, vale destacar que a sátira política era

comum nas comunidades britânicas situadas no leste canadense. Antes de 1867, quando

foi proclamada a independência do Canadá, não havia uma nação verdadeiramente

canadense, assim, os primeiros textos em língua inglesa produzidos no país eram cartas,

descrições de caráter geográfico, diários de viagem e relatórios ao reino britânico

escritos por estrangeiros. Dois dos mais antigos relatos de viagem descrevendo o Canadá

são A Journey from Prince of Wale’s Fort in Hudson’s Bay, to the Northern Ocean

(1795), do explorador Samuel Hearne, e Voyages from Montreal... Through the

Continent of North America, to the Frozen and Pacific Oceans (1801), do também

explorador e comerciante Sir Alexander Mackenzie.

Somente por volta do século XIX, a literatura com características

verdadeiramente canadenses começou a se desenvolver. O primeiro livro escrito por um

autor nascido no Canadá foi o livro de poemas The rising village (1825), de Oliver

Goldsmith. Apesar de bastante popular na época, Goldsmith não deixou seguidores, e

sua influência na literatura canadense é praticamente nula. Assim como Goldsmith, o

4 NEW, 2003: 3.

5

primeiro dramaturgo canadense, Charles Heavysege, também não se tornou expressivo

para a literatura canadense, autor de Saul (1859), e Jeptha's daughter (1865), Heavysege,

que escreveu ainda outras obras em verso e prosa, buscava inspiração em temas bíblicos

e no estilo de Shakespeare para seus livros (PIERCE, 1948: 89-106).

A partir do século XIX, vemos que entre os gêneros literários a ficção e, mais

precisamente, o conto, passa a ganhar mais visibilidade no cenário das letras canadenses;

seus primeiros registros apresentam um tipo de escrita humorística e satírica, ainda com

traços da influência da colonização inglesa. Estavam entre os temas mais correntes “a

história naturalista dos animais e a história de cor local”(GADPAILLE, 1988: 4)5. Dentre

os nomes que se destacavam no final do século XIX encontram-se os poetas e contistas

Charles G.D. Roberts e Duncan Campbell Scott que, juntamente com os poetas

Archibald Lampman e Bliss Carman, formava o Grupo da Confederação, cuja

contribuição foi extrema, chegando a transformar a literatura canadense:

Influenciados pelos poetas românticos ingleses e pelos transcendentalistas6 americanos,

escaparam da ornamentação da linguagem, rejeitaram a noção de “sublimidade”7, buscaram

maneiras mais simples de retratar a beleza e a realidade da paisagem canadense, e usaram a

imagística natural como linguagem para a busca espiritual (NEW, 2006)8.

Ernest Thompson Seton, assim como Roberts, foi um observador atento da

natureza, escrevendo histórias que exploram como tema o mundo animal.

A Primeira Guerra Mundial obviamente causou um impacto cultural e político

muito grande no Canadá. A partir de então, os habitantes passaram a refletir mais sobre

sua identidade cultural em termos políticos, deixando de lado as definições moldadas

pela religião em relação à cultura. O Canadá também passou a ser tema da literatura.

Revistas e jornais americanos passaram a dedicar edições exclusivas sobre o país.

5 “the naturalistic animal story and the local-colour story”. 6 O transcendentalismo surgiu por volta de 1836 e teve como maiores expoentes Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoreau (1817-1862). A filosofia transcendentalista enfatiza a consciência individual do homem e dá grande importância ao contato com a natureza. Para os transcendentalistas, a moral não é estabelecida por dogmas religiosos ou por leis da sociedade, mas pela consciência de cada um. 7 A“qualidade do que se aproxima do divino, do celestial”, ou ainda a “qualidade do que é perfeito, excelente”. (HOUAISS, 2001). 8 “Influenced by the later English Romantic poets and the American Transcendentalists, they shunned Sangster's verbal ornamentation, rejected the notion of "sublimity," sought plainer ways to record the beauty and reality of the Canadian landscape, and used natural imagery as a language of spiritual inquiry.”

6

A década de 1920, embora marcada por grandes mudanças tecnológicas, pelo

progresso, viu que com o crescimento das cidades, os problemas sociais também

aumentaram. Muitos escritores passaram a visar como tema, com um tom

acentuadamente crítico, os problemas que apareciam nas cidades. Temas como adultério,

bigamia e direito feminino de voto tornavam-se freqüentes. Duncan Campbell Scott

chamou a atenção dos poetas para que expressassem seus valores de maneira crítica; tal

apelo atingiu também a ficção. Nessa época os autores estrangeiros também começaram

se revelar, como é o caso do alemão Frederick Philip Grove, que representava a vida dos

imigrantes e analisava a estrutura social do Canadá, e da norueguesa Martha Ostenso9,

cujo romance Wild Geese (1923) é considerado pela crítica como um marco do realismo

canadense.

Nas décadas de 1940 e 1950 o pesado e doloroso tema da guerra passou a ser

menos abordado pelos escritores, dando lugar a temas próximos ao individualismo e

acentuando o caráter psicológico da narrativa. O alcoolismo e a limitação da mulher na

sociedade são retratados por Malcom Lowry em Under the Volcano (1947) e Ethel

Wilson em Swamp Angel (1954). O romancista Mordecai Richler, com sua escrita

mordaz, também influenciou as técnicas e o estilo da época.

Em relação ao conto, como já mencionado, vemos que se exacerba o interesse por

esta forma ficcional desde o início do século XX. Para a presente pesquisa, interessa-nos

salientar que em meados desse século, mais precisamente na década de 1960, houve uma

revolução nas idéias e temas explorados pelos escritores. A influência do Modernismo,

já absorvido em grande parte, e do Pós-modernismo ainda em formação foi refletida nos

contos da época que se tornaram muito mais realísticos e experimentais. Antes

considerada uma mera extensão da produção literária inglesa e norte-americana, a

literatura canadense passou definitivamente a demonstrar características próprias.

A partir da década de 1960, os principais nomes do conto canadense são Mavis

Gallant, Margaret Laurence, Audrey Thomas, Jane Rule, Marian Engel, Alice Munro e

9 A escritora norueguesa, nascida no ano de 1900, mudou-se para o Canadá com seus pais, ainda quando criança, para Brandon, Manitoba, onde cursou o colégio e a faculdade. Ela casou-se com o também escritor Douglas Durkin em 1945. Seu livro Wild Geese ganhou o prêmio Dodd, Mead and Co. de melhor romance do ano de 1925 (CALDER, 2001).

7

Margaret Atwood. Coincidente e enigmaticamente esse gênero é, de modo brilhante,

representado por mulheres. Nas palavras da própria Atwood:

O número relativamente grande de escritoras [...], apesar das condições sociais adversas – por

exemplo, as mulheres não eram ‘pessoas’ legalmente falando no Canadá até 1929 - têm dado

grandiosas contribuições à tradição (ATWOOD, 2001, p.xv)10.

É bastante claro que as mulheres escritoras ajudaram a literatura canadense a se

tornar mundialmente conhecida.

Dentre essas grandes escritoras, uma das mais conhecidas mundialmente é

Margaret Eleanor Atwood. Nascida em 1939 em Ottawa, Ontário, é contista, romancista,

poeta e crítica literária, considerada uma escritora feminista devido à questão do gênero

estar freqüentemente presente em seus livros. Dentre seus livros de contos publicados,

apenas um foi traduzido para o português: Dançarinas (Dancing Girls and Other

Stories, 1977), Murder in the Dark (1983), Bluebeard’s Egg (1983), Wilderness Tips

(1991), Good Bones (1992) e Moral Disorder (2006). Seus romances mais conhecidos

no Brasil são Olho de Gato (Cat’s Eye, 1990), Vulgo Grace (Alias Grace, 1996) e O

Assassino Cego (The Blind Assassin, 2000). Atwood recebeu prêmios importantes tanto

no Canadá – como o Booker Prize e o Griller Prize – quanto em outros países. Em 2004

veio ao Brasil para participar da Feira Internacional do Livro de Paraty, no Rio de

Janeiro.

Além de Atwood, Alice Ann Munro também possui grande expressividade

internacional. Munro nasceu em 1931 na pequena Wingham, no sudoeste de Ontário, e é

considerada uma das mais brilhantes contistas da atualidade. Os temas regionais e o

narrador onisciente são características presentes em seus contos. A autora publicou

apenas um romance e dez coletâneas de contos. Somente dois de seus livros foram

traduzidos para o português: Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento (Hateship,

Friendship, Courtship, Loveship, Marriage, 2001) e o recém lançado Fugitiva

(Runaway, 2005). Ela recebeu por três vezes o Governor Gennerall’s Award e também o

Giller Prize por Fugitiva.

10 “The relatively large number of woman writers […] have, despite of adverse social conditions – women were not legally ‘persons’ in Canada until 1929, for instance – made contributions of a high order to the tradition”

8

Mais recentemente, a partir da década de 1990, a literatura menos hermética

começou a atingir o mercado canadense. Os romances de Joy Fielding, as comédias de

Douglas Coupland, as histórias experimentais e sociopolíticas de Steve Weiner, Douglas

Cooper, Eric McCormack, Brian Fawcett and Susan Swan também ganharam espaço em

meio aos autores já consagrados. Em 1996, Michael Ondaatje recebeu grande

notabilidade do público devido à versão cinematográfica de seu livro O Paciente Inglês.

De certa forma os contistas foram os mais reconhecidos nessa época. Mavis Gallant e

Alice Munro continuaram a dominar o gênero e a receber reconhecimento internacional.

Mas novos nomes surgiram e também se destacaram, como é o caso de Linda Svendsen,

Keath Fraser, Steven Heighton, Caroline Adderson e aquela que é objeto de nossa

pesquisa, Lynn Coady.

2.1 LYNN COADY

É no contexto da literatura canadense feminina acima descrito que Lynn

Coady11 está inserida. Nascida em 24 de janeiro de 1970, na cidade de Port Hawkesburry

na ilha de Cape Breton, Nova Scotia, na costa leste do Canadá, L. Coady cresceu em

uma família numerosa e vive atualmente em Edmonton, no oeste do país. Cursou

jornalismo, mas graduou-se em Inglês e Filosofia pela Universidade Carleton, em

Ottawa. Fez mestrado em Escrita Criativa pela Universidade de British Columbia, em

Vancouver, e lecionou em diversas universidades. Além de contos a autora escreveu três

romances, quatro peças de teatro, roteiros para cinema e televisão, ensaios e artigos para

diversas revistas e jornais canadenses.

Seu primeiro romance, Strange Heaven (1998) – rendeu-lhe a nomeação para um

conceituado prêmio de literatura no Canadá, o Governor Genneral’s Award – conta a

passagem de uma jovem de 18 anos por uma clínica psiquiátrica após ter dado seu filho

para adoção, e sua volta para casa. A história apresenta um grande tom autobiográfico, já

que Coady, além de ter sido uma criança adotada, aos dezoito anos também deu seu filho

recém-nascido para adoção. O romance Saints of Big Harbour (2002), ambientado na

11 Daqui em diante referida como L. Coady.

9

década de 1980, retrata a vida em uma pequena comunidade de Nova Scotia, na costa

leste do Canadá, e o poder dos boatos e da violência lá existentes sob a ótica de um

adolescente. Segundo a própria autora trata-se de um romance denso e com um humor

particular. Em 2003, L. Coady editou uma antologia de autores contemporâneos

chamada Victory Meat: New Fiction from Atlantic Canada. Seu mais recente romance,

Mean Boy (2006), já vem recebendo muito boas críticas. Nele a autora narra a história de

um jovem poeta, nos anos 70, que inspira-se em seu professor de poesia, um renomado e

excêntrico poeta, para tentar descobrir suas qualidades, sempre com uma boa dose

humor. Sobre seu último romance, Coady afirma que buscou deliberadamente escrever

algo humorístico e satírico, mas que não foi uma tarefa fácil12.

Dentre suas peças estão: Make Me (2005) encenada em Vancouver no

Playwright’s Theatre Centre; Monster (1998), peça em um ato, apresentada nos festivais

de teatro de Kelowna e Revelstoke; Cold in the Morning(1996), em três atos, a qual foi

lida na Theatre BC International Play Writing Competition, em Vancouver; Cowboy

Names (1995), encenada em três atos no teatro Black Box, em Fredericton.

L. Coady já recebeu diversos prêmios no Canadá, incluindo o Canadian Author’s

Association/Air Canada Award como melhor escritora com menos de trinta anos. Dois

de seus livros foram considerados como melhor do ano segundo o jornal Globe and

Mail: Play the Monster Blind, em 2000, e Saints of Big Harbour, em 2002.

Em relação aos temas e ao estilo de L. Coady podemos afirmar que sua percepção

apurada do comportamento humano é transmitida através de histórias inteligentes,

sensíveis, repletas de um humor contido e contadas, geralmente, sob a perspectiva

feminina. A linguagem coloquial utilizada estabelece uma linha tênue entre o artístico e

o vulgar que, entretanto, não chega a ser rompida devido ao talento da autora e seu

domínio da linguagem. De acordo com Hoefle, em sua resenha de Play the Monster

Blind, o senso de humor é uma das características mais expressivas da autora: “[sua]

bagagem de percepções é maior do que a de qualquer um e, ainda, seu humor lhe fará

doer a barriga e rir alto” 13. Isto tudo é refletido através de sua dicção “atenta,

12 “I'd never written something that was deliberately humorous and satirical, and I found out that it's a lot harder than I thought.” (HORTON, 2006). 13 “[her] bag of insights as big as any one else’s, yet her humour will make you clutch your stomach and laugh aloud”. (HOEFLE, 20-)

10

escatológica, lírica e brincalhona”14. Play the Monster Blind foi considerado um

bestseller nacional no Canadá no ano de 2000.

3 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Para a realização das traduções dos contos de L. Coady fez-se necessário um

suporte teórico. Dessa forma, no presente capítulo serão apresentadas algumas vertentes

da teoria da tradução.

Os estudos da tradução sempre estiveram inseridos em duas grandes áreas do

conhecimento: a Lingüística e a Literatura. Porém, nas últimas décadas do século XX

começou a surgir uma preocupação maior com estes estudos, buscando-se, inclusive,

criar uma área independente daquelas citadas anteriormente15. Tal fato coincide com a

tentativa de fazer com que os estudos da tradução fossem levados para dentro das

instituições de ensino superior.

Uma das principais tendências atuais da teoria de tradução é representada pelo

funcionalismo alemão. O ponto de partida dos estudos funcionalistas de tradução se deu

na Alemanha, na década de 1970, com a publicação do livro Möglichkeiten und Grenzen

der Übersetzungskritik (Possibilidades e Limites da Crítica de Tradução), em 1971, por

Katharina Reiss. A teórica formula um modelo de crítica de tradução baseada no

princípio de que os textos de partida e de chegada devem possuir equivalência em

relação à forma e à função comunicativa: “o objetivo na língua de chegada é a

equivalência em relação ao conteúdo conceitual, a forma lingüística e a função

comunicativa de um texto na língua de partida”16 (apud. NORD, 1997:9). Reiss

estabelece uma tipologia textual17 a fim de auxiliar o tradutor na realização de seu

14 “watchful, scatological, lyric and playful.” (idem). 15 Em sua tese de doutorado, o Prof. Dr. Mauricio Cardozo expõe, em suas considerações iniciais, as atuais tendências dos estudos da tradução, apontando essa busca por uma “autonomização da área dos estudos da tradução” (CARDOZO, 2004: 4). 16 “the aim in the TL [target language] is equivalence as regards the conceptual content, linguistic form and communicative function of a SL [source-language] text”. 17 Uma abordagem mais detalhada da tipologia textual proposta por Reiss encontra-se em LEAL(2007: 19).

11

encargo tradutório18. Entretanto, Reiss tem consciência de que uma equivalência total

entre os textos nem sempre era viável. Essa percepção permitiu uma mudança de rumo

nos estudos da tradução. Se, no início, almejava-se produzir textos equivalentes19 tanto

quanto a forma como no conteúdo, passou-se, então, a considerar a função que um texto

exerce em sua cultura de partida como aspecto fundamental para a realização de um

encargo de tradução. Tal conceito foi desenvolvido posteriormente por um aluno de

Reiss, Hans J. Vermeer20, por meio de sua teoria chamada de Skopostheorie (teoria do

escopo).

A teoria do escopo, de Vermeer, desenvolvida no final da década de 1970,

considera a tradução como uma ação humana e como tal está carregada de propósitos:

“A palavra skopos (...) é um termo técnico para o objetivo ou propósito da tradução”21

(VERMEER, 2002: 221 – grifo no original). Para Vermeer, a tradução vai muito além da

mera transcodificação, visto que a língua não se dissocia da cultura. Assim, dependendo

do escopo, do propósito, a tradução pode divergir do texto de partida:

os textos de partida e de chegada podem divergir um do outro consideravelmente, não apenas na

formulação e distribuição do conteúdo, mas também em relação às metas estabelecidas para cada

um e à disposição do conteúdo de fato determinado. (VERMEER, 2002: 223)

A teórica contemporânea Mary Snell-Hornby sintetiza a teoria do escopo afirmando que:

[a] língua não é um “sistema” autônomo, mas parte de uma cultura. Portanto, o tradutor não

deveria ser apenas bilíngüe, mas também bicultural. De modo similar, o texto não é um

fragmento lingüístico estático e isolado, mas dependente de sua recepção pelo leitor, e isso

invariavelmente acarreta uma relação com a situação extra-lingüística na qual está inserido (...)

18 O termo encargo tradutório é utilizado pelo funcionalismo alemão referindo-se “ao contexto no qual a tradução ocorrerá” (idem: 13), devendo ser consideradas as informações relacionadas ao público e à cultura para qual se traduz. 19 O conceito de equivalência foi utilizado por Eugene Nida em sua teoria de equivalência formal, a qual estabelece como objetivo principal da tradução uma “fidelidade” com a forma do texto “original”. 20 Deste ponto em diante, referido como Vermeer. 21 “The word skopos (...) is a technical term for the aim or purpose of a translation” (traduzido por Andrew Chesterman).

12

Essa abordagem relativiza ambos texto e tradução: uma tradução única e perfeita não existe,

qualquer tradução é dependente de seu escopo e sua situação (...)22 (apud. LEAL, 2007: 26)

Um dos expoentes dos estudos da tradução atualmente é a acadêmica e tradutora

alemã Christiane Nord. Baseando-se nos pressupostos do funcionalismo alemão e da

teoria do escopo Nord elaborou um modelo de tradução. De maneira geral, o “modelo

Nord” estabelece parâmetros de análise textual para todo tipo de tradução, seja ela

literária ou técnica, escrita ou oral. Nord divide os fatores da análise textual em dois

grandes grupos: extratextuais e intratextuais, ou seja, fatores externos ao texto, como em

qual cultura o texto está iserido, e fatores inerentes ao texto, como sobre o que se trata o

texto. Nord enumera os fatores propondo perguntas que o tradutor deve fazer ao analisar

o texto. A fim de ilustrar esse conceito dos fatores inerentes ao texto, propomos os

seguintes quadros:

QUADRO 1 – FATORES EXTRATEXTUAIS DA TEORIA FUNCIONALISTA DE NORD

Fatores Extratextuais

Autor ou emissor do texto

Quem escreveu o texto?

Intenção do autor ou emissor

Para quê?

Público do texto

Para quem?

Meio ou canal que o texto é transmitido

Por qual meio?

Lugar

Onde?

Data da produção e recepção do texto

Quando?

Motivo

Por quê?

Função que o texto pode atingir

Com qual função?

22 “language is not an autonomous ‘system’, but part of a culture. Hence the translator should not be only bilingual, but also bicultural. Similarly, the text is not a static and isolated linguistic fragment, but is dependent on its reception by the reader, and it invariably bears a relation to the extra-linguistic situation in which it is embedded (…) This approach relativizes both text and translation: the one and only perfect translation does not exist, any translation is dependent on its skopos and its situation (…)” SNELL-HORNBY, M. The turns of translation studies: New paradigms or shifting viewpoints. Amsterdã: John Benjamins Publishing Company, 2006.

13

QUADRO 2 – FATORES INTRATEXTUAIS DA TEORIA FUNCIONALISTA DE NORD

Fatores Intratextuais

Assunto

Sobre o que se trata o texto?

Informação ou conteúdo apresentados no texto

O quê é apresentado?

Pressuposições do autor

O que não é dito?

Composição ou construção do texto

Em que ordem?

Elementos não-lingüísticos ou paralingüísticos

Quais elementos não-verbais são

usados?

Características lexicais

Com quais palavras?

Estrutura sintática

Que tipos de frases?

Características supra-segmentais de entonação e prosódia

Qual é o tom?

Em relação à tradução literária – considerada problemática por muitos teóricos e

tradutores – Nord descreve certos aspectos a serem considerados pelo tradutor ao

analisar o texto de partida: emissor ou autor, intenção, receptores, meio, local, tempo,

motivo, mensagem e efeito ou função23. Entretanto, devido às limitações do modelo,

nem todos esses fatores são encontrados simultaneamente em todos os textos. Por outro

lado, os fatores extra e intratextuais inerentes ao texto de partida são de fundamental

importância nas decisões do tradutor.

Naturalmente, além de Nord, outros teóricos debruçam-se sobre esse mesmo

aspecto tradutório. Dentre eles, Rosemary Arrojo, que em seu livro Oficina de tradução

discute “A questão do texto literário”, afirmando que a tradução literária é um ponto que

os teóricos evitam abordar na teoria da tradução: “O ponto nevrálgico de toda teoria de

tradução parece ser a tradução dos textos que chamamos de ‘literários’, questão

geralmente adiada ou excluída tanto dos estudos sobre tradução quanto dos estudos

literários. A grande maioria dos escritores e poetas que abordam a questão da tradução 23 LEAL (2005, 2007)

14

de textos literários considera que traduzir é destruir, é descaracterizar, é trivializar”

(ARROJO, 1992: 25). A autora cita ainda diversos teóricos e escritores que vêem a

tradução literária como uma atividade inferior em relação ao texto “original”. Assim

com Arrojo, o teórico e tradutor Paulo Ronái também expõe suas idéias acerca da

possibilidade (ou não) de se traduzir um texto literário. Para ele, “num texto literário não

é apenas a idéia que escolhe as palavras, mas são muitas vezes as palavras que fazem

brotar idéias” (RONÁI, 1987:13), dessa forma, “há certas idéias que só podem nascer na

consciência de pessoas que falam determinada língua, ou mesmo que nascem

unicamente por certa pessoa falar determinada língua” (idem: 15). Portanto, os

problemas presentes em uma tradução são arduamente mensurados, mas nem sempre

totalmente resolvidos.

Aplicando, portanto, uma intenção funcionalista aos contos, um dos fatores

extratextuais mais levados em conta na tradução dos contos de L. Coady foi o aspecto

cultural. Devido à localização espacial dos contos ser bastante pontual – a qual se dá na

costa oeste do Canadá – as referências em relação a locais, hábitos etc. são um desafio na

tradução para leitores brasileiros. Mas, de qualquer forma, buscou-se manter os nomes

de personagens e lugares. Os casos específicos serão tratados nos comentários sobre

cada conto. Na seqüência serão apresentadas as traduções dos contos.

15

4 TRADUÇÕES

4.1 O CARA DO SORVETE24

VOCÊ ACHA QUE NÃO DEVE DEMONSTRAR como se sente. As pessoas da sua

altura ainda colocam as mãos nos joelhos às vezes e inclinam o rosto para você e

perguntam: - E quantos anos você tem? Você deve de alguma forma ainda parecer

miúda, uma criança. Ser uma criança não é necessariamente bom, porque significa

receber mais atenção que alguém mais crescido e já independente. As crianças são as

únicas pessoas que as outras pessoas simplesmente encaram sem se preocupar. Não se

espera que as crianças notem, ou se importem.

Mas você sempre se importou, lembre, porque nunca gostou de ser o centro das

atenções, nesse sentido você era bem como ele. Os clientes costumavam entrar na loja e

cumprimentá-lo pelo ótimo trabalho que fizera com os sapatos, e ele diria apenas: – Não,

não, nem tanto – confundindo-as porque era óbvio que ele tinha feito um bom trabalho.

Mas logo elas percebiam que era o que ele automaticamente dizia se você fosse gentil

com ele. Belos saltos que você pôs aqui, Danny – Ora, nem tanto. Seu casaco é bonito –

Ora, ora, nem tanto. Era como: Por favor, por favor não reparem em mim. As pessoas

aprendem a não fazer isso. Quando gostam de alguém, alguém quieto que faz um bom

trabalho com as coisas, toleram o que parece ser estranho a elas. Você percebe isso. Era

o oposto com ela, quando estava viva. Ninguém gostava dela, ela não fazia nada,

nenhum tipo de trabalho, então eles não tolerariam o que era estranho.

Trancando você para fora do banheiro por horas e ficando lá em sua grande

banheira cheia de espuma e óleos. Um forte perfume emanava pelo buraco da fechadura.

Me deixa entrar, Mãe. Xixi, xixi.

Vá pro outro banheiro. Não tem outro banheiro! Ela sabe. Vocês todos moram

aqui há anos. Ela finge.

La-ra-rá, ela canta. Você a espia pelo buraco da fechadura. Ela enche toda a

maldita banheira.

24 Ver original em Anexos.

16

É por isso que ninguém se importava com ela. Deixavam-na ir. Usando aquelas

roupas chamativas na Cooperativa quando deveria estar se escondendo. Você costumava

ouvir as senhoras na loja. Você sabia que estavam falando dela, porque sempre a

chamavam de “A Própria”.

Ai, olhe, se não é A Própria.

Em que A Própria está metida hoje?

Deus nos livre e perdoe se ela não está de maquiagem!

Ai meu bom Deus!

Era engraçado, porque ela era tão enorme. Para eles era como encharcar uma

banana split com coca diet.

Mas o bom era que com ela por perto ninguém jamais notava você. Você era

como ele, escondido na sapataria, agachado sobre as solas. Todo mundo gosta dele,

escondido lá embaixo. Agora que você está crescida e ela está morta e as pessoas vêem

você, elas não se importam muito com você também.

É mesmo importante manter desse jeito. Você nunca costumava ter que se preocupar

com tudo isso. Quando era criança, você podia ser tão estranha e tola quanto quisesse,

mas na verdade nunca quis. Estava treinando para ser como ele, para quando ficasse

grande. Porque podia ver quem eles toleravam ou não. Pode ver isso agora, também.

Você costumava brincar com a Paula Morin o tempo todo, porque ela morava ao

lado e sua mãe a chamava e a convidava, pois você era “teimosa demais” para encontrar

alguém sozinha. Então ela vinha no inverno e te ignorava e brincava com todos os seus

brinquedos. Parecia perfeitamente natural, porque ela era três anos mais velha que você e

não tinha mesmo nenhum brinquedo bom. Assim, vocês duas sentavam em lados

diferentes da sala de estar, você construindo coisas com Lego e ela no meio de um

círculo de todos aqueles brinquedos que você tinha esquecido há muitos anos que ela

tirou do quartinho. Você sentava assim em silêncio por horas. Você a achava ótima.

Implorava para ela vir de vez em quando. Quando o tempo ficava mais quente vocês iam

17

lá fora e ela te envolvia em seus jogos imaginários. Você era o bebê, o cachorro, ou um

arquiinimigo demoníaco que não era tão poderoso quanto ela.

Ela se mudou para a área de trailers no outro lado da cidade para morar com o

pai. Quando morava na casa ao lado, ficava com a avó. A mãe estava, por alguma razão,

em Sydney25. Não fez muito sentido na época. Desse modo, ela era uma daquelas

pessoas que você simplesmente esqueceu por um bom tempo e depois, no fim do ensino

fundamental, você a vê novamente e vocês se olham e dizem oi, sabendo de algum modo

que era como se vocês tivessem reencarnado como pessoas diferentes, e seria de mau

gosto agir como se vocês tivessem se conhecido no passado.

Ela com aqueles peitos e permanente nos cabelos usava tops que mostravam o

estômago. A única diferença em relação a você era que você era alta. Ela saía com

garotos que colocavam o pé para você tropeçar se estivesse passando dentro ou fora do

corredor. Eles eram o pior tipo de garotos, porque não importava se você fosse alguém

como a sua mãe ou alguém como você ou alguém como qualquer um, eles te faziam

tropeçar e se matavam de rir não importando quem você fosse. Um dos garotos era

Bernie Heany. Você costumava brincar de pular corda com ele quando vocês tinham oito

anos. Ele era o único menino que já brincou de pular corda. Ele adorava.

A questão é que agora Paula Morin não pode sair de casa, porque ela participava

de orgias e todo mundo sabe. Eles a chamavam de “Paula Mais e Mais” e às vezes “Pau-

lá”, e riam dela o tempo todo, mas ela ainda era capaz de ficar nos corredores e na área

de fumantes com o Bernie e todo mundo, esticando o pé com eles e se divertindo muito,

mas agora ela não pode sair de casa. Ela costumava ir à escola, mas não pode mais. As

pessoas andavam comentando que iriam matá-la. Deixavam avisos em seu armário e em

sua carteira. Um dia, quando ela ainda estava na escola, todos sabiam do plano de matá-

la. Estavam passando bilhetes por todo lado, porque queriam que todos participassem.

Algumas garotas iriam enganá-la para que ela fosse para fora, atrás do rinque e assim os

garotos iriam pegá-la. Você sentava lá lendo os bilhetes, pensando: Por que ela não

chama a polícia? É contra a lei ameaçar alguém de morte. Estava escrito por todos os

25 Trata-se da cidade situada na província de Nova Scotia, não confundir com a cidade australiana. Ver Mapa 1 em Anexos.

18

livros e no armário dela. Havia provas. Eu chamaria a polícia. Tudo que ela tem que

fazer é chamar a polícia.

Mas nada jamais aconteceu. Muitas pessoas foram ao rinque, mas não havia nada

acontecendo, as garotas não conseguiram encontrá-la. Ela apenas parou de ir à escola

depois disso.

Ele lhe dá sopa toda noite no jantar e não se preocupa muito com nada. Você tem que

ficar lembrando que ele disse que lhe levaria ao jogo de hóquei depois que você

comesse. Ele diz que fará as coisas e depois esquece. Puxa, mal posso esperar para sentar

e assistir às notícias em seguida. Você disse que me levaria ao jogo de hóquei. Ah é...

Bem, agora, acho que vou tentar consertar aquele zíper da bolsa da Mary MacEachern

depois do jantar. Você disse que me levaria ao jogo de hóquei. Ah é.

É porque ele nunca teve que te levar. Ela sempre levava, se não estivesse na

banheira. Ela amava. Às vezes quando você não tinha nenhum lugar para ir ela inventava

coisas para você. Ela te inscreveu no sapateado porque as aulas eram em Antigonish26 e

ela gostava de dirigir. Ela fazia hora no shopping enquanto você estava dançando. Você

nunca se livraria. Você odiava aquilo. Ponta-salto, ponta-salto. As pessoas diziam que

você parecia estar matando cobras. Mas ela não se importava nem um pouco.

Ela levava você aos jogos e você sentava com a Peggy Laundy e o Gus MacPhail

e ela ficava em pé em volta conversando com o guarda da polícia montada que pegou os

ingressos ou com Rory McKay que dirigia o zamboni27, sem se importar se eles estavam

tentando ver quem estava com o disco de hóquei. Você desejava que ela fosse embora

para que você pudesse se concentrar e não ver quem estava olhando para ela, ou que tipo

de cara o guarda da polícia montada fazia enquanto ela estava falando. Mas era melhor

que ela levasse você lá e esperasse e levasse você para casa de novo do que ele tirando

os sapatos e pegando o jornal quando você estava lá parada com o casaco.

26 Antigonish é uma comunidade rural da província de Nova Scotia. A localidade, situada em uma área litorânea, é repleta de belas paisagens. Ver Mapa 1 em Anexos. 27 Zamboni é a marca de uma máquina que alisa a superfície do gelo nos rinques.

19

Já no carro, ela antecipava o próximo banho, estremecendo, Hummm... meu

banho quente me chama, ela resmungava. Hummm, o prazer de um banho quente depois

de ficar de pé naquele rinque gelado por horas (como se você não tivesse que ficar

também.) Ai, mas quanto mais eu fico, melhor é. Hummm, mal posso esperar. Os

prazeres simples. Prazer é a falta de dor, Sócrates dizia. Todas as pequenas coisas que

você pode se dar ao luxo para diminuir as dores da vida. Aahhhhh sim sim sim, minha

querida, se isso não é tudo, não sei o que é.

E todo corredor saturado como o cheiro de lavanda e mel e Jim Beam28, ainda

pairando no ar quando você estava levantando para ir à escola. Migalhas de biscoito

embaixo de seus pés enquanto você escova os dentes na pia.

Gus MacPhail não senta mais com você. Agora ele está no gelo. Mas, de qualquer forma,

ele provavelmente não sentaria. É exatamente como era com Pau-lá Mais e Mais. Você

costumava ir até a casa dele e ouvir os discos dos Bay City Rollers29 na vitrola do irmão

dele e ele tinha pôsteres dos Bay City Rollers por todo quarto. Depois você perdeu o

contato e o viu novamente quando começou a sétima série e a única coisa que você

poderia pensar para dizer era “Então, ainda gosta dos Bay City Rollers?” E Gus disse

“Os Gay City Flores?” E isso foi o fim. Agora ele é um goleiro.

Você ainda senta com a Peggy, mas tem todas essas outras garotas que querem

sentar com ela também. Você e a Peggy olham tristes uma para outra de vez em quando,

porque ultimamente têm cada vez menos coisas para falar. Vocês passavam dias inteiros

juntas, felizes por estarem na companhia uma da outra. Costumavam ser quase a mesma

pessoa. Agora os jogos são basicamente a única coisa que têm em comum e ambas

sabem disso.

Uma das garotas está falando da Paula, que ela a viu ou algo assim no MacIssac’s

Variety comprando um picolé e o senhor MacIsaac fechou uma revista pornográfica no

balcão à sua frente e perguntou se ela também gostava. Todas as garotas disseram “Ai

28 Tradicional marca de uísque originária do estado de Kentucky, EUA e, hoje em dia, comercializada mundialmente. 29 Banda escocesa de música pop/rock, famosa na década de 1970.

20

meu Deus, ai meu Deus” por um instante, e depois conversaram sobre outras coisas.

Quando você pensa nas pessoas fofocando, você pensa nelas sentadas conversando e

falando sobre os outros até que isso deixe todos enjoados, mas não é assim que funciona

na verdade. Só dura uma frase a cada dois dias, um breve comentário ou piada. E assim

aquela pessoa e tudo que está errado com ela fica gravado em seu crânio e se alguém

alguma vez disser o nome dela perto de você, faz com que todos os comentários e as

piadas venham numa enxurrada – é isso o que você pensa de quando você pensa nela. É

assim que funciona.

Está ficando difícil para as garotas conversarem, porque o jogo está ficando

animado e os homens a sua volta rugem. Alan Petrie é mandado para o banco de

penalidades30, e todos querem matar o árbitro. Ele é o árbitro mais sensato e justo que já

existiu e a maior parte do tempo eles o elogiam, mas quando ele vai contra o time todos

querem matá-lo de qualquer jeito. Ele é o professor de matemática do ensino

fundamental e o único negro na cidade. Você realmente se preocupa com esse tipo de

coisa. A mãe do Gus MacPhail está gritando que eles vão acabar com ele e fazer discos

de hóquei com ele.

E está um a zero para eles e os rapazes tentam cada vez mais fazer um gol antes

do fim do primeiro tempo, mas eles não conseguem sem o Alan. Quando a campainha

soa, todos gritam com raiva e frustração e depois há uma multidão para chegar na

cantina para pipoca e batatas fritas.

Desde que você tem vindo ao rinque, o cara da cantina sempre achava engraçado fingir

que recusava lhe dar o que você pedisse. Ele nunca se importa com quantas pessoas

estão esperando na fila atrás de você, ele tem que fazer sua piada. Ele fica lá fumando e

com um largo sorriso, o cigarro balançando para cima e para baixo enquanto fala.

– Batata frita.

– Batata frita? Não, você não quer batata.

– Chocolate quente.

30 Área designada ao jogador que comete falta no jogo de hóquei.

21

– Ah, acho que não.

– Batata frita e chocolate quente!

– Nunca vi uma combinação mais repugnante.

– Apenas dê a maldita batata frita e o chocolate quente a ela, Hughie, e pare de

paquerar as meninas! – grita um senhor da multidão atrás de você. Todos os velhos

bêbados se matando de rir.

– Você não preferiria um agradável… gelado… sanduíche de sorvete?

A mesma piada desde que você tinha sete anos de idade.

– É muito frio!

– Do que você está falando, está uma sauna aqui!

– Pelo amor de Deus, dê a batata a ela, seu pervertido! Vai vai vai.

Ele pestaneja e entrega o pedido a ela. Você tem que sorrir para esse rapaz porque é

agradável conversar com alguém que diz e faz exatamente a mesma coisa desde que

você o conhece, sem exceção. O cara da cantina é a única pessoa daquele jeito que você

conhece. Isto é uma revelação. Você gostaria de rastejar para trás do balcão com ele e

que se dane o resto do jogo.

O sentimento agradável fica com você pelos próximos dois tempos do jogo. Alan

Petrie está de volta ao jogo. Eles marcam um, dois, três gols, e o outro time não

consegue marcar nenhum. Toca a campainha do fim e a multidão ao redor estremece e

urra de entusiasmo, enchendo seus ouvidos e seu cérebro com nada a não ser isso. Você

está de tão bom humor que acena para o cara da cantina do meio da debandada para sair.

Ele está se enrolando na porta da cozinha com um cigarro atrás da orelha e um na boca.

Ele lhe chama com os dedos e existe um olhar em seu rosto como se ele finalmente fosse

lhe dar o sanduíche de sorvete que ele tem mencionado por todos esses anos.

Ele não estava lá. Já fazia tempo que a multidão tinha entrado em seus carros e ido cada

um para sua própria casa. O estacionamento estava vazio, ele não estava esperando. Ele

estava em casa examinando os buracos em seus chinelos. Confuso, provavelmente. Que

22

diabos alguém faz quando seus chinelos têm buracos? Completamente absorto com o

problema.

Você ainda está parada lá, furiosa demais para andar quando ele aparece por trás

de você. Você não leva um susto, pois o ouviu bater e trancar as portas do ginásio de

esportes, e você pode sentir seu cheiro de duMaurier.

– Ainda aqui?

– Ele não veio.

– Seu namorado?

Você na realidade dá uma risadinha e se sente meio imbecil. – Não, não. Ele, ele...

é meu pai.

– Ele lhe deixou aqui para congelar!

– Sim.

– Que sacanagem, hein!

– Eu sei – você diz, sentindo-se agradecida.

– Posso levar você pra casa, ele diz.

– Que bom!

– É o mínimo que posso fazer, né? – você não sabe o que ele quer dizer com isso. –

Tem que estar lá imediatamente?

Você o imagina na cadeira de balanço com seus chinelos na mão. De boca aberta.

– Não. E lá vão vocês.

Às dez para meia-noite, ele estava adormecido na frente das últimas notícias, a bolsa da

sra. MacEachern em seu colo. Sorte sua que ele não trancou a casa e foi para cama. Após

alguns segundos parada no corredor observando-o, você volta para a porta, abre-a e bate

mais forte do que da primeira vez que você entrou. Quando volta ao corredor, a bolsa

está no chão e os olhos dele estão abertos, parecendo ter seis anos de idade.

– Sacanagem, hein! – você diz.

– Ora, ora... – ele pega a bolsa e automaticamente começa testar o zíper de novo.

– Me deixou lá congelando.

23

– Achei que você pegaria uma carona – ele diz, puxando furiosamente o zíper para

frente e para trás.

– Não achou nada nem coisa nenhuma.

Ele pára de puxar o zíper e olha em volta, ainda manuseando a bolsa de couro

macio. – Você tem que entender. Essa nunca foi minha função.

– É só uma puta gentileza comum. Você não consegue pensar nisso somente como

uma puta gentileza comum?

– Nunca tive que pensar nisso.

Você decide ir para cama agora.

Ocorre a ele mencionar: – Como é que você veio pra casa? – quando você está no

alto da escada.

– Peguei carona – você responde. – Vou pegar carona toda vez daqui por diante.

Você pode ouvi-lo fazer sons de satisfação para si mesmo lá em baixo.

Você senta no vaso em frente à enorme banheira com pezinhos que A Própria instalou

antes de você nascer. Seria bom jogar um monte de troços fedidos ali dentro e sentar na

água corrente. Seus ossos estão frios de sentar no caminhão dele, seus músculos estão

duros – mas você quer muito dormir. É perigoso pegar no sono dentro da banheira,

alguém lhe disse que quando você tinha seis anos e você pensou instantaneamente Na

Própria e nunca esqueceu disso. Você se agachou do lado de fora da porta trancada noite

após noite, espiando no buraco da fechadura de vez em quando para vigiá-la.

– Não durma aí dentro! – você gritaria se ela aparentasse pender a cabeça. A água

espirraria por todo lado assim que ela se mexesse.

– Deus do céu! Vá brincar com algo e me dê um pouco de paz.

– Bem, você se trancou como se estivesse indo dormir.

– Sua besta! Saia daqui! – você a veria afundar novamente para trás e para baixo da

espuma.

Você não sentava naquela banheira desde que era tão pequena que precisava ser

banhada. Você sempre toma banho lá embaixo, rápido, sem ao menos pensar bem nesse

24

processo. Ele também, toda noite após voltar da loja cheirando a tinta e couro e graxa e

cola. Não passaria pela cabeça de nenhum de vocês dois sentar na banheira Da Própria

nem colocar suas roupas e sair andando com elas por aí. Por que isso?

A primeira coisa a mudar são os jogos de hóquei. Agora você se sente uma boba

levantando e indo buscar suas batatas e o chocolate quente, e você estava com medo,

porque não sabia se ele diria algo novo, algo que ele nunca dissera antes, na frente do

bando de torcedores enlouquecidos. Então, pela primeira vez você pediu para outras

pessoas pegarem as coisas para você se elas estivessem indo, e depois iria vê-lo mais

tarde, enquanto todos estivessem olhando para o gelo.

– Onde você estava? Eu estava aqui esperando com suas batatas.

– Não sei.

– Bem, aqui, pegue agora, coma as batatas comigo.

– Tá bom.

Você abre o pacote e vocês dois vão passando pra lá e pra cá. Ele nem liga pro jogo.

Ele é a única pessoa assim no mundo. Ele lhe dá chocolate quente e pega um café para si

e coloca um pouco de rum nos dois. O que deixa um gosto extremamente bom. Você

experimenta o dele e ele o seu, e o seu é melhor. Você está olhando para os dentes dele.

Eles são bem grandes, e cada um está claramente delineado, quase emoldurado pelas

manchas marrons de nicotina entre cada um. O cigarro parece ter dado a ele todos os

atributos de seu rosto. É uma cor amarelada e as rugas mais evidentes que ele tem são as

que aparecem em volta da boca quando ele dá uma longa tragada.

– Há quanto tempo você fuma?

– Desde os dez anos.

– Quantos anos você tem hoje?

– Trinta... e dois.

– Velhinho.

– É. E você, hein? Tô brincando.

25

Então isso é que você espera mais do que os próprios jogos. Você nunca imaginou

algo assim. Sentada atrás da cantina com o som do café pingando na jarra mais alto que

os lamentos e gemidos da cidade inteira toda vez que um gol é marcado ou perdido.

A certa hora do jantar, em casa, no meio da sopa, ele levanta os olhos de repente. – E

suas batatas fritas?

– Quê?

– E suas batatas? Ainda come as suas porções no jogo?

– É, como sim. – Você pega meio pacote de bolachas salgadas e, segurando sobre a

sopa, as esmigalha em pedacinhos salgados.

– Você não precisa de dinheiro? – ele pergunta.

– De onde vem isso assim de repente? – você diz, porque faz dois meses desde que

você teve que pagar por suas batatas e seu chocolate quente. – Você deveria estar feliz.

– É um namorado ou coisa assim – ele diz para si mesmo. – Dando caronas para

casa também, suponho.

Dois meses inteiros, você acha.

– Não é legal? – ele diz após um tempo. – É o seu primeiro, se não estou enganado.

Ele olha diretamente para você e levanta as sobrancelhas. Está impressionado consigo

mesmo por ter um conhecimento tão íntimo de suas idas e vindas.

Na escola também é diferente. Já que você raramente vê a Peggy nos jogos, quase não há

mais laços entre vocês. Isso costumava lhe incomodar, mas agora não mais. Às vezes

parece que ela está magoada por você não se dar ao trabalho de ir falar com ela depois

do francês, e todas as garotas do ai-meu-Deus que tentam tanto estar com ela o máximo

possível devem pensar que você é louca.

Bernie Heany estica o pé e você salta sobre ele como uma bailarina. Eles riem de

você, mas riem de você de qualquer maneira, e é melhor que cair de cara no chão.

26

Parece tão natural quando chega a primavera e o hóquei está por todo canto, começo da

temporada, passar no Kentucky Fried Chicken31 depois da escola e visitá-lo em seu

apartamento. Você não tem mais nenhum lugar em especial para ir. Às vezes você

apenas empurra as caixas de cerveja e as louças para o lado e senta à mesa da cozinha

com uma xícara de chá e faz a lição de casa e o espera acordar.

Ele diz: – Por que você nunca traz um pouco de frango, você passa em frente.

– Nem pensei nisso – você diz.

– Não acha que seria um gesto simpático?

– Acho que sim.

Ele está fumando no sofá, assistindo TV, vestindo um suéter, mas sem calças. – Toda

mulher que conheci – ele diz – sempre tentou fazer coisas legais para mim.

Você larga o lápis e pára por um segundo.

– Não é assim comigo – você diz depois de um tempo.

– Bem, é óbvio, né?

– É ruim?

– Não, não é ruim. Só acho que é interessante, só isso.

Um garoto gordo da escola tem grudado bilhetes em seu armário. Gosto de você você

é muito bonita. Esse é o tipo de coisa que ele se refere. Todo esse tipo de bobagem.

A avó costumava vir e assisti-la rodopiar pela cozinha, seus cabelos indo e vindo como

uma maré negra. Meu Jesus, você não vai cortar esse cabelo, ela dizia. Deixando passar

por tudo na cozinha. Na comida da menina.

Era verdade. Toda refeição de sua vida você tirava longos fios de cabelo de seu prato.

– Só tenho que dar uma olhada no passarinho, e depois eu prendo de novo – ela

dizia. Está caindo dentro da panela!

A avó ficava boquiaberta. A Própria costumava dizer que a avó passou a vida inteira

se sentindo mal, preocupada com os germes que a deixariam doente. Quando você era

31 Famosa rede de fast food, presente no Canadá e Estados Unidos, incluindo diversos países da Europa e Ásia, cujo principal atrativo é o frango frito.

27

bebê, a avó vinha visitar e A Própria tinha passado uma semana preparando, enchendo

baldes e baldes com água quente e alvejante, desinfetando a casa inteira. Então a avó

chegava e algum tipo de radar tocava e ela ia direto para baixo da pia e puxava o pano

que fora usado para limpeza. Meu Senhor, o que isso está fazendo aqui? Jogue na

máquina! Você sabe quantos germes têm aqui?

Está cheio de alvejante. Não tem nenhum germe.

Bem, estava imundo. A menina colocaria aquilo na boca a qualquer momento.

Em seguida, sem nenhum motivo em particular, a avó levantava a cabeça e

examinava a instalação da luz. A Própria seguia o olhar fixo de sua mãe, e ambas

ficavam em pé observando as moscas mortas em volta da lâmpada. Parecia que elas

estavam ali prostradas como em sacrifícios.

Minha querida, a avó dizia. Xô. Ela desviaria para encontrar um balde e luvas de

borracha.

Mas a pior coisa, a mais suja para a avó era sempre o cabelo, e a casa estava sempre

cheia deles. A cozinha, a banheira, a lavanderia. A comida. Ainda há um pouco por aqui.

Você teve que desemaranhar um do botão do seu suéter outro dia mesmo. Você ainda

usa uma das escovas dela, e não há como tirar todos os fios. Você poderia se hipnotizar

se pensar por muito tempo no ralo da banheira, de quanto Da Própria permanece socado

lá em baixo.

Então mais tarde a senhora diria: – Você não está meio velha para esse tipo de

cabelo, querida? Você não poderia fazer algo um pouquinho mais conservador com ele?

Ela estava sempre dizendo um pouco, um pouquinho: Oh, só bem pouquinho, se você

não se importar. Acho que vou dormir um pouco. Acho que peguei um pouquinho de

resfriado. Você não poderia dar um jeito de perder um pouquinho de peso?

Nos primeiros meses após o funeral, ela costumava vir em casa o tempo todo,

pensando que você e ele deixariam tudo uma desordem, incapazes de tomar conta de

vocês mesmos. Mas bem para a surpresa dela estava tudo em perfeita ordem.

Permaneceu assim. Era como se vocês nem morassem lá. A avó estava tão

28

impressionada que decidiu que não precisavam mais dela e foi morar em British

Columbia32.

É tarde quando você deixa o apartamento dele, as mãos engorduradas de frango, e você

vê Pau-lá Mais e Mais parada no corredor. Em volta dela há um cheiro de fumaça de

cigarro e sabão barato, que vem da lavanderia lá em baixo. Você não sabe o que dizer

para ela, nesse caso apenas continua seguindo em direção ao final da escada, fechando o

casaco. Ela chama: – Olá, olá – sarcasticamente para você, e você se vira e nem a

reconhece. É algo razoável para se dizer, você acha. A última vez que conversaram você

tinha sete anos e ela estava fazendo você galopar com as mãos e os joelhos e trazendo

gravetos e pedras na boca.

Ela diz: – Moro ali do outro lado do corredor, mas ela está de botas e jaqueta, e

seguindo você escada abaixo.

– Não sabia disso. Onde você está indo agora?

– Saindo para pegar cigarros. Quer dar uma volta?

– Tenho que ir para casa.

– Tudo bem, então. – ela está estranhamente ofendida. – Na verdade, vi você entrar

há algumas horas. Eu estava andando logo atrás de você.

– Ah é. – Você não diz: achei que você não pudesse mais sair. Mas talvez as

pessoas estejam finalmente começando a esquecer da Pau-lá e quanto eles queriam matá-

la.

– Eu conheço o cara que mora aqui, ela diz.

– É, eu também. Ele é bacana.

– Como você o conhece?

– Oh, eu o conheço do rinque. Apenas lhe trouxe uns pedaços de galinha. – Pau-lá

bufa, mas não é como se você estivesse mentindo.

– Você não é boazinha? – ela diz.

32 Província localizada a oeste do Canadá, possui 947 800 km² de área e uma paisagem diversificada. Uma das maiores atrações naturais da província são as Montanhas Rochosas. Ver Mapa 2 em Anexos.

29

– É, não é que sou mesmo.

– Isso é o que os bons fazem, suponho – ela diz. – Os bons trazem galinha uns aos

outros. – Há tanto ódio em sua voz que seu instinto é correr. Mas abruptamente ela ri e

corre pelo campo em direção à lojinha de presentes, suas botas fazendo buracos na neve.

Você pode ouvi-la lançando palavras sobre seus ombros, e no começo parece apenas um

eco – Galinha! Galinha! – mas depois você percebe que ela está te xingando.

Exatamente como quando vocês eram pequenas, e você não queria tocar num gato que

fora atropelado no meio da rua.

Agora, de repente, ele decide que quer que você volte às aulas de religião. Você não foi

desde que A Própria parou de te levar. Você dá aquele olhar como se ele fosse louco e

tolo. Você acabou de entrar e ele está lá parado à mesa em frente a duas tigelas de sopa,

uma vazia e outra cheia.

– Olha – ele começa – lembrei.

– Não é ótimo?

– Mas você não.

– Não lembrei da sopa? É isso que você está falando?

– Bem, onde você estava?

– Comendo frango.

– Com ele, eu imagino. Isso era como ele tinha apelidado o novo “namorado”. – Ele

construiu todo um mito em torno dessa pessoa e você nunca falou uma palavra sobre ele.

Ele se vira de repente. Você o assiste fazer um círculo completo em volta da cozinha.

– Que raios você está fazendo?

– Você vai ficar mal falada – ele diz, apertando as mãos juntas. – Você está

comendo frango. Você tem que voltar para a religião.

Então é isso que você faz. Você não gosta de vê-lo andando em círculos, olhando

para um lado e para o outro, assim você apenas vai. É nas quartas à noite, e é assim que é

agora.

30

Você chega atrasada, e todas as piores crianças estão lá. As crianças cujos pais são os

mais severos quanto à oração e castidade – eles automaticamente se tornam aqueles que

fumam e bebem e blasfemam. Você achava que as pessoas viam essa ligação. Bernie

Heany está sentado atrás de você com os pés atrás de sua cadeira.

A freira fala sobre Abraão e Isaac. Deus disse para Abraão levar seu filho para o topo

da pira e sacrifica-lo como um cordeiro, só para ver o que Abraão faria. Abraão disse: O

que o senhor disser, Deus, e arrastou-o lá para cima. Então Deus enviou um anjo para

anunciar: Pelo amor de Pedro, Abraão, não era mesmo para você fazer isso. Mas Abraão

estava pronto e o anjo tem que segurá-lo. Louvado seja, diz a freira, e nos mostra uma

foto de uma pintura famosa. Abraão está com uma faca no ar, preparado para cravá-la, o

anjo tentando contê-lo. Bernie Heany está tirando sarro pois Isaac está nu e parece uma

menina, todo amarrado lá em cima.

Você lhe diz que não voltará para a religião, nem virá para casa para a sopa.

– Mas está pronta – ele continua dizendo. – Você nem estava aqui, e eu já estava

com ela pronta. Eu peguei as tigelas e as esquentei. Estava pensando em você.

– Não quero tomar sopa toda maldita noite.

Ele tem que pensar nisso um momento.

– Nós podemos comer outra coisa! – Ele tem uma luz: – Podemos pedir pizza. –

Você já está pisando forte escada acima, arrancando o suéter.

– Posso comer isso quando estou fora.

– Mas você deveria mesmo é comer comigo – ele diz. Você pode dizer pelo jeito

que ele fala que ele nem mesmo sabe o porquê daquilo. Ele apenas sabe que você

deveria.

Depois de alguns momentos em frente ao espelho do banheiro, você grita: – Vou

tomar banho agora! E ele também espera alguns momentos.

– O que?

– Vou tomar banho.

31

– Gostaria que você não tomasse – ele fala imediatamente. Em seguida você liga as

duas torneiras de uma vez e a água ressoa pelos canos vazios, gerando um

estremecimento na casa inteira.

E pelo amor de Deus, é ótimo, uma vez que você entra lá.

4.2 OLHE E PASSE ADIANTE33

Inferno, CANTO 3,1.51

A CRIATURA TINHA DEZOITO anos e usava as calcinhas de sua falecida avó.

– Gosto delas – ela anunciou várias vezes, já que ele não parava de comentar. –

São confortáveis.

Elas não fazem bolinha?

– Fazem bolinha onde?

Lá no rabo?

– Nem reparei.

Ele sempre se inclinava para trás e olhava para o céu numa súplica teatral a ela.

Ele dirigia um carro com teto solar que dava para ver as nuvens passarem, caso houvesse

nuvens. Ele disse que iria comprar umas diferentes para ela.

– Não preciso de nenhuma.

Mas ele gostaria de lhe comprar algumas. Os pés descalços dela estavam sobre o

painel do carro da mãe dele, sujos. Ela olhou de soslaio, pensando sobre desconforto.

– Não daquelas... não daquelas sem fundilho... com o pedacinho de tecido que entra

lá no seu traseiro....

Fios-dentais, Criatura. Muitas mulheres usam.

– Não gosto desse tipo.

Ela acabaria gostando.

– Não, não. Acho que não vou gostar.

33 Ver original em Anexos

32

Ele viu sua calcinha à noite no hotel. Ele vaiou e a arrancou como uma fralda. O cós

de elástico subiu quase abaixo dos seios dela, toda parte de baixo de seu torso foi

encoberta pelo algodão branco. Uma vez quando ela se virou para ir ao banheiro, ele

agarrou uma almofada da cadeira e enfiou lá dentro, e havia muito espaço sobrando. Ela

alcançou as costas e a retirou e a colocou de volta na cadeira. Outras cinqüenta mulheres

teriam atirado de volta nele. Com dezoito anos, entretanto, ela não tinha espírito

esportivo.

Mas ele queria comprar algumas para ela. Tinha um bom dinheiro. Isso não era

problema. Ele poderia comprar para ela todo tipo de coisa. Sempre que eles paravam em

um Irving34 para colocar gasolina, ela, sem falar nada, tentaria lhe dar vinte dólares,

como seu pai havia lhe ensinado, e ele diria, com o sotaque carregado de Cape Breton35

que usava para debochar dela, para pegar aquela coisa e enfiar no rabo. Tudo isso a faria

rir. Tirar sarro era o máximo no lugar de onde ela vinha. Ela não insistiu em relação ao

dinheiro porque, ele sabia, era jovem demais para saber que deveria insistir.

Era fim de agosto e estava abafado em New Brunswick36. Eles dirigiram ao longo

do rio Saint John37, onde havia barcos, e ela disse que ver água a deixava triste, pois

sempre queria estar lá dentro. Ele disse que eles poderiam parar em algum lugar e nadar,

mas não deveriam se acostumar com aquilo se quisessem chegar depressa em Guelph38.

De qualquer forma, iriam nadar na Georgian Bay39 assim que chegassem. Ele teria um

longo fim de semana para lhe mostrar as atrações antes que ela tivesse que estar na

universidade, para seu primeiro ano. Alan estava animado com isso. Ele a levaria ao

chalé de seus pais na baía, mostraria como era bonito aquele lugar. Levaria aos bares

34 Rede de postos de gasolina presente na região leste do Canadá, na província de Ontário e em estados do nordeste dos Estados Unidos. 35 A pequena ilha de Cape Breton está situada na província de Nova Scotia, no leste canadense. O sotaque típico da região recebeu influência dos descendentes de escoceses, irlandeses e franceses que habitam a região. 36 New Brunswick faz parte das chamdas provícias Marítimas do Canadá, situadas ao leste do país e banhadas pelo oceano Atlântico. Trata-se da única província canadense bilíngüe, sendo o inglês e o francês as duas línguas oficiais. Ver Mapa 3 em Anexos. 37 O rio Saint John tem aproximadamente 673 km de extensão. Nasce ao norte do estado do Maine, nos Estados Unidos, e atravessa a província de New Brunswick, no Canadá. Ver Mapa 4 em Anexos. 38 Guelph localiza-se ao sul da província de Ontário, a menos de uma hora de Toronto. É conhecida como a “cidade da música” devido aos vários festivais que acontecem durante o ano. 39 A Georgian bay localiza-se no sudeste da província de Ontário. Possui aproximadamente 320 km de extensão e 80 km de largura. Ver Mapa 5 em Anexos.

33

onde a banda de seu melhor amigo, Trent, estaria tocando nas comemorações do dia do

trabalho40. Seus amigos a veriam e ela os veria também.

Ela queria parar em tudo que era grandioso. Eles tiveram que parar na grande fruta

silvestre e na grande batata. Ela insistiu. A fruta silvestre era simpática, mas a batata

parecia uma coisa diabólica. Ela tirou uma foto dele envergonhado na frente daquilo.

Isso era o tipo de coisa que ela gostava.

Ela gostava dos quartos de hotel por razões diferentes das dele. O pai dela não

concordava com os quartos de hotel, com a forma alegre que ela planejava sobre eles no

itinerário da viagem. O pai olhou nos olhos de Alan e deixou claro que não via nenhum

motivo para os quartos de hotel. Eles poderiam ir direto sem parar se começassem cedo,

não teriam descansos demais. Alan estava quase concordando com ele, mas ela os

proibiu sem tirar os olhos do mapa espalhado pela mesa da cozinha da família, com a

inocente toalha de galinhas. – Eu quero ficar em alguns hotéis – ela disse. Seu pai calou-

se devido ao despudor da garota, com as palmas das mãos viradas para baixo sobre as

galinhas, como se fosse para evitar cair sobre elas. Estava claro que ela quase não o

respeitava mais. Para começar, muito provavelmente ele não havia concordado com

nenhum de seus planos de viagem. Pegar este amigo, seis anos mais velho, para levá-la à

faculdade.

O que ele disse quando ela lhe contou isso? Alan queria saber.

– O que ele poderia dizer?

O que ela havia dito?

– Disse que tenho dezoito anos. – Sorrindo para seus pés sujos. Não sorrindo muito.

– Ele não pode dizer muito agora. Completamente paralisado.

Ela insistiu nos hotéis assim como insistiu nas calcinhas da avó. Era o que ela

gostava. Na verdade acabou sendo culpa do pai, essa propensão própria na criatura. Ele

costumava levá-los para passear o tempo todo. Isso a lembrava das férias com sua

família, ela disse. Mãe, pai, irmã, irmão. Pela primeira vez em um motel, ela o chocou

indo direto para cama e pulando furiosamente pra cima e pra baixo. – É assim que

sempre costumávamos batizar o quarto – ela disse, soluçando por causa dos pulos. Ela de

40 O dia do trabalho é comemorado no dia 2 de setembro nos países da América do Norte.

34

fato não sorriu ou pareceu estar se divertindo. Mas fazia isso todas as vezes, não importa,

ele iria entender, firme, olhando sempre para frente.

Eles já tinham passado um tempo juntos antes, mas não como esse. Um tempo no

carro. Ele poderia conversar com ela sobre o que lhe viesse à cabeça. Livros que ele leu.

Músicas que ela deveria ouvir. Idéias interessantes que às vezes ele tinha das coisas – o

que ele gostava de chamar de suas “pequenas filosofias”. Ela gostava de ouvir. Eles

pararam na praia e ele a viu em um maiô rosa choque. Era uma peça só, mas ele podia

ver a instável saliência de seu pequeno estômago, de um ano atrás. E ainda havia estrias

atrás das coxas, as deixando estranhamente com sulcos. Havia uma agradável camada de

gordura – discreta – nela toda e ele pensou consigo, como gordura de bebê, e então riu

forçado quando percebeu que literalmente era. Ele leu em algum lugar, certa vez, que

estrias nunca desaparecem. O estômago lembrava quadros e imagens de Nossa Senhora,

com seu abdome sempre saliente, os mantos flutuantes moldados em seu redor, dando

ênfase. Ele viu por que eram feitos daquele jeito – os quadros, as imagens. Ele contou a

ela em certo momento que achava que uma barriguinha saliente era sensual.

– Ah, legal. – disse séria. – E quanto às estrias?

Eles atravessaram depressa a neblina. Era o Lexus da mãe dele. Ela lhe emprestou

para o verão, para sua grande viagem pelo Canadá marítimo41. Ele não tinha planejado

voltar para a cidade de Bridget, onde trabalhou por quase um ano antes de ter que

escapar do cheiro sulfuroso de ovo vindo da celulose e seus violentos colegas de trabalho

com olhos inchados, vindo trabalhar toda segunda-feira de ressaca e com a cara

quebrada, sempre perguntando por que ele nunca “saía na cidade” com eles nos fins de

semana, ele se achava bom demais? Mas no final ele fez uma ligação a Smooth Herman

em Sydney42 depois de três cervejas e disse que talvez pudesse aparecer por lá na volta

ao passadiço. E ela disse sem nenhuma pressa, por que ele não a levou junto. Ela possuía

uma passagem de trem, mas não era tarde demais para cancelá-la.

Então ela estava partindo? ele continuaria repetindo. Ela estava partindo

finalmente?

– Já tava na hora, né? – ela disse.

41 Região situada à leste do Canadá e formada pelas províncias de Nova Scotia, New Brunswick, e Prince Edward. 42 Cidade da província de Nova Scotia. Ver Mapa 1 em Anexos.

35

Ele concordou que estava. Parecia que ela ia ficando mais ignorante a cada

segundo. Ela respondeu algo sobre seu rabo, para beijá-lo ou tocá-lo como um pífaro ou

algo assim. Ele desligou o telefone, surpreso por estar eufórico.

Lembrou dela então. Uma criatura com os olhos escuros em um vestido Woolco43,

sentada numa cadeira com uma mesa em frente montada do lado de fora do auditório da

escola, despreocupadamente recebendo o ingresso dele para ver os violinistas suecos.

Ele disse: – Não acredito que estou pagando para ver violinistas suecos. Fico surpreso

com o que está acontecendo comigo – e ela olhou para cima como se ele tivesse se

apresentado como um anjo do divino. Mais tarde ela veio a ele para dizer que tinha

aprendido a palavra sueca para queijo e era oosht44 e que lembrava bosta.

Grávida então, mas ninguém sabia. Tudo que ele pensava era que corpo para uma

criança. Aquelas mudanças acabaram ocorrendo apenas alguns meses antes e ela estava

irritada com elas. Ele foi a primeira pessoa a quem ela contou. Ficou lisonjeado, mas não

muito surpreso. As pessoas na cidade eram como vespas na época mais quente do verão,

voando bêbadas, esmagando seus corpos espinhentos uns nos outros, zunindo

enfurecidas. Ele perguntou a ela sobre os programas, apoios, e ela disse, Programas?

Apoios? Ele quis, numa parte exagerada de sua mente, afastá-la, mas nada na situação o

permitiu isso. Ela com dezessete na época. Ele tinha uma pessoa com quem estava

namorado há três anos, que estava terminando a graduação em cinema em Toronto.

Antes de tudo aquilo, entretanto, ele sabia que precisava de mais do que ar para escapar

do sulfuroso do ninho de vespas em que ela passou toda sua vida. Assim, ela foi sozinha

para Halifax45 no sexto ou sétimo mês e, aparentemente, voltou sozinha, também, mas

àquela altura ele já tinha partido.

Eles chegaram a um morangão pouco antes da fronteira do Quebec, nas Famosas

Frutas do George. Ele correu os olhos e encostou na beira da estrada sem dizer uma

43 Loja de departamentos fundada em 1962, com lojas nos Estados Unidos e Canadá. 44 Em inglês tem-se o trocadilho da palavra em sueco oosht com a expressão “oh shit!”. Mas perde-se isso em português. 45 Halifax, a capital da província de Nova Scotia, possui uma área de aproximadamente 5.500 km² e cerca de 385 mil habitantes. Ver Mapa 1 em Anexos.

36

palavra. Saindo do carro com ar condicionado, o calor lançou-se sobre ele como uma

coberta. Ela disse: – Fuuu – e colocou o cabelo para trás. Ele podia ver nos dois lados da

linha do cabelo dela que uma boa quantidade havia caído e só agora estava voltando,

persistentemente. Você não percebeu aquilo quando estava caído nos dois lados do rosto

dela. Ele queria dizer Meu Deu, quantas outras coisas isso faz com você?, mas não disse.

Ela andou rápido para o morango, atipicamente de propósito. Quando chegou lá ela não

fez nada, apenas se demorou na presença daquele troço, examinando a parte de cima,

pegando sol nos olhos. Após alguns minutos ela disse que poderiam ir.

Não havia nenhum lugar no Quebec para comprar uma calcinha fio-dental, não ao

longo destas infinitas estradas rurais. Teriam que passar por Montreal e poderiam parar

lá, mas, uma vez que parassem, levaria uma eternidade para voltarem para a estrada

novamente. Ele não conhecia muito bem a cidade. Mas estava interessado na idéia de

uma calcinha, em Montreal.

Não há razão para comprar um fio-dental, ela havia dito no hotel. Posso só puxar

minha calcinha até o meu queixo e ela vai direto no meu rabo assim. Ela demonstrou.

Ela estava fazendo a voz bem caipira agora, pois ela fazia isso sempre que eles discutiam

sobre seu corpo.

Oh – ela lhe disse. Ele estava contando que ficaria preocupado com ela lá na

universidade sozinha – dirigindo depois do primeiro hotel, quando a calcinha apareceu e

ele quase morreu – e tudo que ela disse em resposta foi “Oh”.

Outra coisa da sua avó que ela deve ter ficado. Ele não lembrava de ter ouvido isso

no ano passado, exceto quando Bridget a imitou, mas agora ela fazia o tempo todo, agora

que a senhora estava morta. Ano passado, Bridget costumava vir ao apartamento dele e

deitar no chão, apanhava uma taça de vinho e lhe contava tudo sobre a limpeza da

defecação de sua avó.

Ele achou uma palavra maravilhosa. A ânsia dela somada a puro desdém. Completa

despedida.

37

– Ooooohhhhh – ele repetiu, apreciando a sensação de ronronar no fundo de sua

garganta. – O que você quer dizer com “oh”?

– É só uma escola. E você estará por perto.

– Posso vir pra ver você nos fins de semana.

– Claro.

– Certifique-se que aqueles garotos da universidade não saiam da linha.

– Oh – ela disse, sorrindo.

Eles foram em silêncio por alguns minutos, tempo em que Alan estava pensando:

Do que estou falando?

– Somos amigos – ela disse. – Sempre fomos amigos. – Ela disse isso depois de

meia hora na rodovia Trans-Canadá46.

– Ah, tá – ele disse, tentando parecer um pouco irônico. Mas eu conheci

pessoalmente as suas calcinhas e aí?

Um instante depois ele propôs que pegassem um quarto em Montreal. Era

completamente desnecessário. Eles poderiam chegar a Guelph num horário razoável se

mantivessem um ritmo constante. A criaturinha abriu a boca na probabilidade de um

quarto de hotel sem propósito.

Assim, ele falou o resto do caminho, de bom humor. O primeiro hotel não havia

sido perfeito – os dois tinham bebido cerveja demais e estavam cansados da estrada, mas

Montreal seria melhor. Seria Montreal. Ele falou sobre a rádio CBC e quais eram seus

programas favoritos, que era o que ele sempre fazia quando estava de bom humor. Eles

ouviram alguns deles, Alan cumprimentando todos os locutores pelo nome. Ela estava

lendo um livro que seu professor de inglês havia lhe emprestado, mas que ela nunca

devolvera, e ele já tinha lido antes, então ele lhe contou o que achou dele. Ocorreu-lhe

que ela poderia gostar de saber sobre alguns outros livros que ele gostou e ficou

lisonjeado quando ela tirou uma caneta do porta-luvas e começou a fazer uma lista na

folha de trás do livro do professor de inglês. Ela iria cursar arte no primeiro ano, é claro.

Ele disse a ela que o segredo para a universidade era apenas ler todos os livros e ir a

todas as aulas. Não havia jeito de ser reprovado. Ela riu, mas ele disse que não era tão

46 Rodovia que atravessa as províncias canadenses de leste a oeste.

38

fácil como parecia: Escute o que eu digo, sei do que estou falando. Ele contou que em

poucos anos ela ficaria furiosa se gastasse todo aquele dinheiro só para acabar em nada.

– Oh – ela disse. – É dinheiro do governo mesmo.

– Você terá que pagar de volta, Bridget.

Ele percebia que ela não acreditava.

Ele não sabia em qual mundo ela vivia. Às vezes as palavras que ela dizia poderiam

ser pérolas do mais puro senso comum. Mas na maioria das vezes ela olhava fixamente

em torno de si mesma, nunca encontrando os olhos de ninguém e refugiando-se em seu

sotaque e monossílabos. O observador eventual poderia rejeitá-la por parecer retardada –

irritantemente quieta e impenetravelmente teimosa. Ela era a única moça que ele

conhecia que não insistia para que as pessoas pensassem que ela era inteligente.

– Nunca me preocupo em ir pro inferno – disse Alan certa hora. Ele tem falado de

livros pela última meia hora. – Desde ler o Inferno.

– Hã? Por quê? Não parece tão ruim? – como se ela tivesse sido acordada do sono.

– Não, é ruim. Mas ele conta como escapar.

– Ele conta como escapar?

– Ah sim, é um puta mapa da estrada.

– Isso não parece certo – ela disse. – Não acho que eles simplesmente deixariam

você sair.

Ele não disse nada pelos próximos dez minutos porque ela estava certa. Alan

pensou sobre os demônios alados cutucando as almas de volta para baixo no buraco

borbulhante; e os mentirosos afundados até a boca no meio da bosta, e ela estava certa.

Dante esteve apenas visitando. Eles foram forçados por Você-Sabe-Quem a deixá-lo

passar. Aquilo de não estar com medo de ir para o inferno foi um comentário que ele

freqüentemente fazia na companhia de amigos versados. Agora ele sabia que não poderia

fazer mais isso, e estava envergonhado de já ter dito tantas vezes. Por causa dela e de seu

bom senso católico. Ele imaginou a mente dela trabalhando, tentando reconstruir a

imagem de Alan fazendo um vagaroso passeio pelo inferno – Dante sob seu braço para

ser consultado de vez em quando para dar direções – com o que estava cristalizado no

cérebro dela desde a infância. Que inferno não é para turistas.

39

Na rua secundária eles sentaram para assistir ao calor subir do asfalto, das capotas

dos carros. Ele estava contando a ela que eles não iriam ficar em nenhum lugar chique.

Não iria ser o Ritz, ou algo assim. Ela não se importava. Ele estava de óculos de sol, mas

ela não e a claridade a cegava. Ela falava com ele por trás de seus dedos.

O tráfego se arrastava, e ele via outros motoristas ofegantes para fora das janelas,

com braços de fim de verão parecendo lingüiças defumadas. Praguejando e de fato

pingando em seus carros. Alan manteve as janelas bem fechadas, com o ar condicionado

no máximo. – Não vai ser chique – ele repetia para si, em voz alta. – Mas tem que ter ar

condicionado. Eu vou pagar por um ar condicionado – ele disse.

– E cerveja – a voz dela veio fraca por trás dos dedos. Ele achou que ela tivesse

pegado no sono.

– E fios-dentais! – Ele tentou gritar isso, entusiasmado, mas algo no calor sufocante

não deixava. – Montanhas de fios-dentais – ele murmurou asperamente. O riso cansado

dela abafado por seus dedos. Ele estava pensando no último hotel e como ele poderia

melhorar este. Talvez não tanta cerveja – se ele a deixasse fazer o que quisesse, ela

beberia o mundo. E o ar condicionado no máximo dessa vez. Ele desligou o ar

condicionado finalmente, porque era um daqueles aparelhos cujo som abafava todos os

outros. Mas agora ele sabia que seria melhor deixá-lo ligado, assim o calor não seria uma

desculpa e ele não ouviria os ruídos que de qualquer forma ela nunca fazia. Alan era um

estrategista. Ele sempre foi um estrategista. Quando escaparam da prisão de calor da rua

secundária estava anoitecendo, a cidade estava esfriando, e ele sabia exatamente como

seria a noite dos dois.

Eles iriam ao Peel Pub porque era o bar que ele foi a última vez que ele veio, com a

idade dela, com o time de rugby Varsity. Ele e o resto deles jogaram dados, vomitaram e

soltaram pum na rua. Ele perdeu contato com todos até hoje, mas lembrava deles

carinhosamente. Alan sabia que era uma raridade porque sempre gostou deste tipo de

estupidez com homens, mas nunca entendeu a alternância de medo e indiferença de

alguns deles em relação às mulheres. Alan cresceu correndo para a farmácia para

comprar absorventes para suas tantas irmãs, pegando a pílula de outra enquanto ele

40

estava lá. Certos conhecidos ficavam horrorizados pelo fato de que Alan também já tinha

soltado pum com mais de uma namorada. Nada era um mistério para ele.

Eles encontraram um hotel Quality Inn, lotado, e foram embora. Havia prostitutas e

pornografia por toda a rua, que Alan nem lembrava da última vez. Ele colocou seu braço

em volta dela enquanto caminhavam. Eles encontraram um lugar, pediram asas de

galinha e salada Caesar e um jarro de cerveja. Alan disse que eles teriam que voltar para

o quarto se fossem mesmo beber, porque ele provavelmente deveria começar a se

preocupar um pouco mais com seu dinheiro.

– Guarde para os fios-dentais – ela disse.

–Droga, esqueci de perguntar para alguém onde é a loja de calcinhas.

– Você vai mesmo comprar uma?

Ele em volta, pensando nos sex shops por toda rua. – Eu poderia escapar e comprar

um agora mesmo. Não seria nenhum Victoria’s Secret. Poderia comprar umas outras

coisinhas, enquanto vou lá.

– Como o quê?

– Coleiras. Prendedores para mamilos. Pênis de borracha de 60 centímetros!

– As pessoas não têm essas coisas.

– Têm sim, Bridget. – Ele adorava contestá-la nesse tipo de coisa.

– Não.

– Lembra daquela moça com quem eu saía que te contei?

– Sim, mas só dela.

– Você sabe que você não é a pessoa mais vivida daqui?

– Não me importo.

– Eu poderia lhe mostrar.

– Não.

– Podemos sair e eu posso lhe mostrar agora mesmo.

– Não.

– Se você não sabe o que tem lá for a, nunca vai saber do que gosta.

– Não quero gostar de nada – ela disse.

41

O outro dia na estrada estava mais quente. Às 7:00 da manhã eles sentaram em

uma mesa de piquenique do lado de fora de um posto Shell (as lojas de conveniências

dos Irving ficaram para trás com todo o enorme produto) e brigaram para terminar seus

cafés antes que o calor se tornasse insuportável. Bridget quase não podia abrir os olhos,

mas ele insistiu maliciosamente que começassem cedo. De repente algo rápido e alto

zuniu perto deles e Bridget deu um pulo, espalhando café por tudo.

– Jesus Cristo, Bridget!

– O que foi isso? – Ela olhou em volta apavorada. Se fosse um inseto, então era

um inseto quase do tamanho de uma bola de golfe. Uma mancha de uma bola de golfe

preta, estalante e zumbindo. Ela assumiu uma postura de prontidão, esperando que

aquilo voltasse. Voltou, e parou diretamente em frente a eles, zumbindo e embaçado.

Alan percebeu que veio de algum tipo de recipiente d’água, pendurado do telhado da

garagem.

– É um beija-flor – ela disse.

– O que? O que?

– É um beija-flor. Viu?

Eles assistiram por um momento como se uma minúscula divindade zumbido

tivesse aparecido. Os movimentos cuidadosos e flutuantes conforme ele se lançava

faziam parecer que ele também os estava assistindo, monitorando seus movimentos.

– Meu Deus do céu, acho que agora estou acordada – ela disse, voltando para o

carro.

A manhã estava silenciosa a não ser pela rádio CBC. Ele estava pensando nas

diferentes coisas que poderia dizer a ela. Ele se sentiu como seu professor de matemática

da quarta série deveria ter se sentido, incutindo o simples conceito de frações dentro de

seu cérebro, repetidas vezes, e Alan encarando com completa incompreensão. No fim ele

acabou dominando matemática, mas nunca esqueceria as lentas voltas que seu estômago

começava a fazer uma vez que o mundo iniciasse a separar os números e colocá-los uns

sobre os outros. Isso parecia totalmente perverso para Alan. Era engraçado, ele pensou,

como coisas como aquelas te afetam quando você é pequeno. Seu médico e sua mãe

temiam as úlceras. O interior de seu pequeno estômago de menino todo ferido.

42

Ele começou fazendo calmas e sutis perguntas a ela sobre o que ela achava, e

sobre ele mesmo. Gentil, como o paciente professor de matemática costumava explicar

as coisas. Como Alan naquela época, algo dentro da criatura não estava disposto a

cooperar. Ela estava irritada pela necessidade de responder. Ela empurrou os pés no

painel, querendo mais espaço conforme as perguntas tornavam-se mais insistentes. Ele

decidiu em algum lugar pelo caminho que não iria parar, ele não a deixaria escapar como

ela sempre fazia. A noite foi uma farsa, ele andando pra lá e pra cá, sem saber o que

fazer, o que era bom e o que era ruim, Bridget não oferecendo nada. Ele não achava

justo. Não havia jeito dele continuar dessa forma, andando pra lá e pra cá, em dúvida.

Mas em vez de escapar, ela se calou. Suas respostas tornaram-se tão sem sentido quanto

ela pôde torná-las, e ele sentiu que estava ficando com raiva. Deliberadamente. Ela era

assim de propósito. Não era preguiça emocional, como ele havia achado. A mente dela

estava constantemente em ação, por trás das pálpebras pesadas, formando estratégias e

fuga. Era como tentar agarrar um peixe-dourado. Finalmente ele disse: – Seus pés estão

sujos pra cacete – e ela os pôs para baixo.

– Não quis dizer para você abaixá-los.

– Tudo bem.

– Tudo o que eu quero saber é – ele queria matá-la só por abaixá-los daquele jeito

– digo, sempre tento ajudar...

– Mas você não precisa.

Meu Deus – Bem, achei que fôssemos amigos.

– É, somos.

– É, parece que sou o único que está cedendo aqui. Não me leve a mal, não estou

dizendo que estou apaixonado por você, mas só parece que...

– Tenho dezoito anos – ela disse asperamente. Todo o treino do pensamento dele

cessou de uma vez.

– Certo – ele disse, ouvindo. Ele meditou na estrada.

– Só quero chegar à faculdade – ela disse.

43

Ela não combinava com ninguém no bar, mas eles a adoraram de qualquer

maneira porque eram pessoas receptivas e amigáveis como ele, e por causa de sua

juventude e suposta timidez. Trent, o amigo de Alan, gentilmente a trouxe um chocolate

Monkey como uma enfermeira trazendo copinho de remédios ao paciente. Era um bar

polinésio, o tipo de lugar bucólico em que uma banda como a do Trent sentia-se

perfeitamente em casa, lotado de novatos partidários do Dia do Trabalho. Ela sentou lá,

nunca tendo bebido em nenhum lugar que não fosse um boteco, olhando para os guarda-

sóis ao redor e dançarinas havaianas de plástico. Ele sabia que ela achava aquilo tudo um

monte de besteiras, se ela estivesse pensando em qualquer coisa. Aquilo era algo que ele

não saberia sobre ela há uma semana atrás. Ela sentou ao lado da namorada do Trent

delicadamente tatuada que usava uma camiseta escrita Jack Daniel’s, certa vez

propriedade do caipira que a engravidou, ele imaginou.

Todos o cumprimentaram pela Bridget sempre que o achavam sozinho, porque ela

era tão adorável. Nenhum sabendo da maldade da criatura, ou suspeitando o que as oito

horas anteriores tinham feito a ele.

– Sensual naquele jeito sadio – disse a namorada de olhos verdes do Trent,

Quentin, que tirava fotos artísticas e escrevia haicais e era conhecida por gostar de

garotas às vezes, de acordo com Trent pelo menos. Alan entendeu bem por que ela disse

aquilo e queria lhe contar que não era verdade, que ela não era sadia mesmo. Ele estava

se sentindo cínico, como se nos últimos dias tivesse aprendido o suficiente sobre o

mundo para fazê-lo não querer saber mais nada. Ele costumava se sentir impenetrável ao

conhecimento, “existencialmente à vontade”, ele costumava contar aos seus amigos –

quando não estava sendo pretensioso em relação a Dante e aderindo sua indiferença em

direção ao inferno. Ele sabia que eles o invejavam, usando seus traumas fabricados para

adicionar substância em suas vidas, recorrendo a ele pelo conselho de alguém capaz de

aceitar o mundo pelo que era. Agora ele se sentia uma fraude. Mas ele não se sentia uma

fraude. Ele se sentia ingênuo. Ele se sentiu de um jeito que não havia sentido desde

quando foi apresentado às frações.

Ele a viu assistindo à banda e pensou que tudo que ela já fez foi esperar por tudo

acabar. Era grotesco. Era grotesco pensar no carro e fazer coisas com pessoas que não se

importavam se você fazia ou não. Eles que praticamente disseram Oh quando você

44

formulou suas perguntas amáveis, bem pensadas e cuidadosamente enunciadas. Como, O

que você precisa de mim? O que você quer que eu faça? O oh agradável no ar, neles

todos como suor. Impenetrável. Contagioso. Perigoso ter este tipo de percepção numa

rodovia no meio do Canadá. Ele queria ter se jogado contra um caminhão que vinha na

outra direção, e a criatura, ele sabia, não teria falado nada.

5 COMENTÁRIOS DAS TRADUÇÕES

5.1 COMENTÁRIOS SOBRE A TRADUÇÃO DE “O CARA DO SORVETE”

O conto apresenta linguagem coloquial, um dos traços característicos do estilo da

autora. Ele expõe a maneira como se dá a relação entre os sexos, tanto entre pai e filha,

como entre homem e mulher. A protagonista que perdeu a mãe e mora com seu sério e

resguardado pai, começa e se interessar pelo sexo oposto, representado pela figura de um

atendente da cantina do rinque de hóquei, cuja presença e importância são sutilmente

marcadas no título do conto.

Um dos recursos utilizados pela autora é o de repetições. Tal recurso, percebido

com certa freqüência em texto de língua inglesa, é utilizado em determinadas falas das

personagens. Logo nos primeiros parágrafos já se percebem repetições. No primeiro

parágrafo do conto, por exemplo, ao descrever o comportamento infantil e no segundo

parágrafo, quando é descrita a característica de comportamento do pai de rejeitar elogios.

Em outro momento do texto, também ocorre a utilização de repetições na fala da avó,

representando um recurso da oralidade, porém, preferimos não manter as repetições visto

que tal forma não é usual em português. Descrevemos tais passagens no quadro abaixo:

QUADRO 3 – OCORRÊNCIAS DE REPETIÇÕES NO CONTO “O CARA DO SORVETE” Texto de partida Tradução p. 56 Children are the only people that other people just stare at without worrying about it.

p. 15 As crianças são as únicas pessoas que as outras pessoas simplesmente encaram sem se preocupar.

No, no, it’s not true Não, não, nem tanto

45

No, no they’re not Ora, nem tanto No, no it isn’t Ora, ora, nem tanto Please, please, don’t remark upon me Por favor, por favor não reparem em

mim When they like someone, someone quiet who does a good job at things, they put up with what’s strange about them. (…) they wouldn’t put up with what was strange

Quando elas gostam de alguém, alguém quieto que faz um bom trabalho com as coisas, toleram o que parece ser estranho a elas. (...)então eles não tolerariam o que era estranho.

p. 57 now Paula Morin can’t leave her house (…)now she can’t leave her house.

p. 17 agora Paula Morin não pode sair de casa (...) agora ela não pode sair de casa.

p. 57 Why doesn’t she call the police?(…) I would just call the police. All she has to do is call the police.

p. 17 Por que ela não chama a polícia? (...) Eu chamaria a polícia. Tudo que ela tem que fazer é chamar a polícia.

p. 59 Haw haw haw

p. 21 Vai vai vai

p. 62 They laugh at you, but they laugh at you no matter what

p. 25 Eles riem de você, mas riem de você de qualquer maneira

p. 62 That’s the sort of thing he means. All that sort of foolishness.

p. 26 Esse é o tipo de coisa que ele se refere. Todo esse tipo de bobagem

p. 62 Dear, dear, dear, the grandmother would say

p. 27 Minha querida, a avó dizia

Outra característica da autora é a presença de diálogos sem marcação. Com isso, a

autora dá voz às personagens em meios aos comentários do narrador. Tal marca está

presente por todo o conto, como por exemplo, na primeira parte do texto, em que a filha

lembra do comportamento de sua mãe e reproduz um diálogo que tivera com ela, o qual

não apresenta nenhuma marcação indicativa de fala da personagem. Nesse trecho

percebe-se a oscilação entre a fala das personagens e a voz da narradora. Em outro

momento, por exemplo, a narradora lista elementos que descrevem o ambiente na época

da primavera. Em um primeiro momento, tal construção gera dúvida quanto à estrutura

textual, mas após várias leituras percebemos que se trata de um recurso estilístico da

autora.

O quadro a seguir representa alguns diálogos sem marcação presentes no conto:

46

QUADRO 4 – PRESENÇA DE DIÁLOGOS SEM MARCAÇÃO NO CONTO “O CARA DO SORVETE”

Texto de partida Tradução p. 56 Let me in, Mother. Pee, pee, pee. Go to the other bathroom. There is no other bathroom! She knows. You’ve all lived here for years. She pretends.

p. 15 Me deixa entrar, Mãe. Xixi, xixi. Vá pro outro banheiro. Não tem outro banheiro! Ela sabe. Vocês todos moram aqui há anos. Ela finge.

p. 56 Oh, look, if it isn’t Herself. What's Herself into today? Lord bless us and save us if she isn’t into make-up! Oh my dear God!

p. 16 Ai, olhe, se não é A Própria. Em que A Própria está metida hoje? Deus nos livre e perdoe se ela não está de maquiagem! Ai meu bom Deus!

p. 57 Oh my, I can't wait to sit and watch the news right after this. You said you’d drive me to the hockey game. Oh yess… Well, now, I think I’ll take another shot at fixing that zipper on Mary MacEachern’s bag after dinner. You said you’d drive me to the hockey game. Oh yes.

p. 18 Puxa, mal posso esperar para sentar e assistir às notícias em seguida. Você disse que me levaria ao jogo de hóquei. Ah é... Bem, agora, acho que vou tentar consertar aquele zíper da bolsa da Mary MacEachern depois do jantar. Você disse que me levaria ao jogo de hóquei. Ah é.

p. 58 She’d antecipate the next bath in the car, shivering. Mmmm…my warm bath cals, she growl. Mmmm, the pleasure of a hot bath after having to stand in that cold rink for hours. (You didn’t have to stay.) Oh, but the longer I stay, the better it is. (…)

p. 19 Já no carro, ela antecipava o próximo banho, estremecendo, Hummm... meu banho quente me chama, ela resmungava. Hummm, o prazer de um banho quente depois de ficar de pé naquele rinque gelado por horas. (Você não teve que ficar.) Ai, mas quanto mais eu fico, melhor é. (...)

p. 62 It just seems natural when it’s spring and the hockey’s all over for the season to traipse past the Kentucky Fried Chicken after school and visit him at the apartment.

p. 26 Parece tão natural quando chega a primavera e o hóquei está por todo canto para começar a temporada passar no Kentucky Fried Chicken depois da escola e visitá-lo em seu apartamento.

p. 62 My good Lord, dear, what's this doing just sitting here? Throw it in the wash! Do you know how many germs could live in here? It’s full of bleach. There’s no germs. Well, it’s filthy. The girl would have that in her mouth in no time.

p. 27 Meu Senhor, o que isso está fazendo aqui? Jogue na máquina! Você sabe quantos germes poderiam viver aqui?

Está cheio de alvejante. Não tem nenhum germe. Bem, estava imundo. A menina colocaria aquilo na boca a qualquer momento.

Em relação à distância cultural entre o texto de partida e a tradução, o conto

apresenta elementos bastante específicos de sua cultura de origem. Assim, na tradução,

buscou-se esclarecer alguns termos que pudessem vir a gerar estranhamento ao leitor

47

brasileiro através de notas explicativas. Os elementos que possivelmente mais afastam o

texto dos leitores são as referências de lugar. As cidades citadas no texto são: Antigonish

e Sydney, além da província de British Columbia. Dessa forma, decidiu-se manter os

nomes dos lugares em inglês, complementando-os com notas de rodapé e incluindo

mapas na parte de anexos, a fim de situar o leitor quanto à região do Canadá da qual se

fala.

Além de elementos geográficos, percebe-se também nesse conto um fator cultural

não muito conhecido pelo leitor brasileiro, que é o da falta de identidade religiosa de

grande parte dos canadenses. Uma grande quantidade de canadenses não seguem

nenhuma religião e tal característica se faz presente no conto “O Cara do Sorvete”. A

família do conto parece não ter o costume de freqüentar uma igreja, mas quando o pai

percebe um afastamento de sua filha ele a obriga a freqüentar aulas de catequese na

tentativa de fazer com que ela volte ao “caminho certo”.

Outros elementos estranhos ao leitor brasileiro são certas nomenclaturas

específicas, como as relativas ao jogo de hóquei, já que o esporte não é popular no

Brasil. No conto aparecem elementos como: zamboni, puck, rink, penalty Box. Para

zamboni e penalty box incluímos notas de rodapé por serem elementos bastante

específicos. Entretanto, os demais elementos foram incorporados ao texto, podendo ser

compreendidos a partir do contexto.

Além dos aspectos culturais, algumas questões lingüísticas também geraram um

desafio à tradução. Uma das expressões mais problemáticas presentes nesse conto foi a

palavra frigger e sua variação friggin’. Elas estão presentes nos diálogos da protagonista

com o cara da cantina e com seu pai47. Nos dicionários de gírias, tal expressão está

relacionada a pessoas negras, mas nada é dito em relação a seu uso como expressão

idiomática. Assim, a partir do contexto do conto, chegamos à conclusão de que o termo

expressa indignação. Assim, buscamos em português uma expressão que mais se

aproximasse em relação ao sentido e à adequação.

Certos jogos de palavras também aparecem no texto, tais como um trocadilho com

o nome da personagem Paula Morin: em inglês temos “Paula More ’n’ More” e “Ball-a”

para representar o comportamento da personagem e rimando com seu sobrenome. No

47 Cf. páginas 59, 60 e 64.

48

primeiro caso, optou-se manter o sentido, mesmo perdendo-se a sonoridade ao

traduzirmos por “Paula Mais e Mais. Entretanto, no segundo caso, acreditamos que ao

traduzirmos “Ball-a” por “Pau-lá” conseguimos nos aproximar do sentido e da

sonoridade do texto de partida.

Um outro jogo de palavras presente nesse conto é em relação ao nome da banda que

a protagonista e seu amigo Gus MacPhail costumavam ouvir. Para desdenhar a banda

Bay City Rollers, Gus a chama de Gay City Blowers. Para manter esse jogo de palavras

optamos por manter a palavra gay, por ser conhecida e utilizada em português e

traduzimos blowers por “flores” a fim de nos aproximarmos da forma do texto de

partida.

Essa maneira direta que a autora tem de se expressar pode refletir aspectos sociais

praticamente desconhecidos da maioria dos leitores brasileiros. A visão do senso comum

em relação ao Canadá é a de um país desenvolvido e que proporciona uma excelente

qualidade de vida a seus habitantes, o que não deixa de ser verdade, entretanto, a maioria

das pessoas desconhece os problemas sociais existentes naquele país. Dentre eles está a

marginalização dos adolescentes. Ao terminarem o Ensino Médio, os adolescentes

canadenses, assim como os norte-americanos, sentem-se obrigados a sair da casa de seus

pais para cursarem uma universidade. Muitos são bem sucedidos mas outros tantos

adolescentes não conseguem se manter sem o auxílio dos pais e acabam às margens da

sociedade. Esse pode ser um dos aspectos refletidos na linguagem coloquial utilizada

pela autora.

5.2 COMENTÁRIOS SOBRE A TRADUÇÃO DE “OLHE E PASSE ADIANTE”

O conto “Olhe e Passe Adiante”, cujo título original é “Look, and Pass On”, narra

a viagem da protagonista e um amigo da cidade onde ela mora com o pai, até a cidade

onde ela cursará a universidade. A autora trata da relação – nada fácil – entre os sexos,

demonstrada pelas figuras do pai e da filha, e do homem e da mulher. Bridget, a

protagonista, tem dezoito anos e vai estudar em outra cidade. Quem a leva para a

universidade é Alan, um rapaz de vinte e quatro anos, com o qual Bridget tem um

relacionamento há um certo tempo. No decorrer da viagem ambos vão conhecendo um

49

pouco mais do outro, mas para Alan em especial a viagem o faz refletir sobre si mesmo,

conforme ele vai questionando o comportamento apático de Bridget.

A linguagem coloquial, uma das características do estilo da autora, apresenta-se

nesse conto conferindo leveza e agilidade à leitura, mas ao mesmo tempo expressa uma

certa ferocidade no modo de expressão da autora. Os diálogos das personagens

expressam formas típicas da oralidade, as quais não seguem necessariamente as regras

gramaticais da língua inglesa. Alguns dos momentos em que esse traço pode ser

percebido são apresentados no quadro a seguir:

QUADRO 5 – MARCAS DE ORALIDADE PRESENTES NOS DIÁLOGOS DO CONTO “OLHE E PASSE ADIANTE”

Texto de partida Tradução p. 65 They didn’t bunch?

p. 31 Elas não fazem bolinha?

p. 66 So she was leaving? he'd kept repeating. She was finally leaving? “Bout time, wha?” she said.

p. 34 Então ela estava partindo? ele continuaria repetindo. Ela estava partindo finalmente? – Já tava na hora, né? – ela disse.

p. 68 “It tells you how to get out?”

p. 38 – Ele conta como escapar?

Percebe-se com os excertos acima que tanto nas falas do narrador como na das

personagens a linguagem é bem característica da oralidade.

Outro traço estilístico da autora é em relação à marcação dos diálogos, como já foi

visto no conto anterior, feita de diferentes maneiras. Como é usual na língua inglesa,

certos diálogos são marcados com aspas, ao contrário do português, no qual costuma-se

utilizar travessões. Porém, em alguns diálogos a autora oscila entre marcá-los com ou

sem aspas. Como se pode perceber logo no início do texto, no primeiro diálogo entre

Bridget e Alan, apresentado no quadro abaixo:

QUADRO 6 – MARCAÇÃO DO PRIMEIRO DIÁLOGO NO CONTO “OLHE E PASSE ADIANTE”

Texto de partida p.65 Tradução p. 31 “I like them”, she enunciated [...]

“They are comfortable.” They didn’t bunch? “Bunch where?”

– Gosto delas, ela anunciou [...] –São confortáveis.

Elas não fazem bolinha? – Fazem bolinha onde?

50

Up her ass? “I didn’t notice.”

Lá no rabo? – Nem reparei.

Nesse diálogo, percebe-se que, no texto de partida, a fala de Bridget é representada por

aspas, enquanto a fala de Alan não apresenta marcação de diálogo. Na tradução, optou-se

então por representar a fala dela com travessão e a dele continuar sem marcação.

Entretanto, não se trata de um padrão na representação dos diálogos. Em outros

momentos a autora expõe os diálogos de maneiras diversas. Como, por exemplo, quando

Alan se lembra de como conheceu Bridget e reproduz uma frase que havia dito. Nesse

caso, a fala dele é representada por aspas no texto de partida, ao contrário do que foi

visto no primeiro diálogo apresentado. Logo no parágrafo seguinte, ocorre uma inversão

em relação ao“padrão” de diálogo visto até o momento. A fala de Bridget não é marcada

por aspas. O quadro abaixo ilustra a marcação dos diálogos com trechos das falas de

Bridget e Alan:

QUADRO 7 – MARCAÇÃO DOS DIÁLOGOS DE BRIDGET E ALAN NO CONTO “OLHE E PASSE ADIANTE”

Texto de partida Tradução p. 67 He had said, “I can’t believe I am paying money to see Swedish fiddlers. I wonder what is happening to me,” [...] she’d Said, Programs? Supports?

p. 35 Ele disse: – Não acredito que estou pagando para ver violinistas suecos. Fico surpreso com o que está acontecendo comigo – […] ela disse, Programas? Apoios?

p. 67 There is no reason to buy a thong, she had said[…] I can just pull me underwear up to me chin and it’ll go straight up me arse like so.

p. 36 Não há razão para comprar um fio-dental, ela havia dito[...] Posso só puxar minha calcinha até o meu queixo e ela vai direto no meu rabo assim.

Percebe-se em ambos os excertos, entretanto, que não se trata de um diálogo, mas sim de

momentos em que o narrador está mostrando ao leitor fatos que os personagens estão

lembrando. Na primeira citação trata-se de um momento em que Alan está se lembrando

do que Bridget havia dito nessa época em que ela estava grávida. Já na segunda, Bridget

está discutindo com Alan sobre os fios-dentais em Montreal.

Em outro momento, a fala dos dois é representada por aspas no mesmo diálogo:

51

QUADRO 8 – UTILIZAÇÃO DE ASPAS NAS FALAS DOS PROTAGONISTAS DE “OLHE E PASSE ADIANTE”

Texto de partida Tradução p. 67 “Acccchhhhh,” he repeated, [...]

“What do you mean, “‘ach’?” “It’s just school. And you’ll be close

by.” “I can come see you on the

weekends.” “Sure.” “Make sure those university boys

don’t step out of the line.” “Ach,” she said, smiling.

p. 37 – Ooooohhhhh – ele repetiu, [...] – O

que você quer dizer com “oh”? – É só uma escola. E você estará por

perto. – Posso vir pra ver você nos fins de

semana. – Claro. – Certifique-se que aqueles garotos da

universidade não saiam da linha. – Oh – ela disse, sorrindo.

p. 67 “I never worry about going to hell,”

said Alan […] “Ever since reading Inferno.”

“Uh? Why? It doesn’t sound so bad?” Like she’d been shaken out of sleep.

“No, it’s bad. But it tells you how to get out.”

“It tells you how to get out?” “Oh yeah, it’s a fucking road map.” “That doesn’t sound right,” she said.

“I wouldn’t think they’d just let you walk out.”

p. 38 – Nunca me preocupo em ir pro

inferno – disse Alan [...] – Desde ler o Inferno.

– Hã? Por quê? Não parece tão ruim? – omo se ela tivesse sido acordada do sono.

– Não, é ruim. Mas ele conta como escapar.

– Ele conta como escapar? – Ah sim, é um puta mapa da estrada. – Isso não parece certo – ela disse. –

Não acho que eles simplesmente deixariam você sair.

p. 69 “It wont be fancy,” he repeated to

himself, out loud. “But there will have to be air-conditioning. I will spring for an air-conditioner,” he said.

“And beer,” her voice came faint from behind the fingers. […]

“And thongs!” He tried to shout this […] “Mountains of thongs,” he croaked.

p. 39 – Não vai ser chique – ele repetia para

si, em voz alta. – Mas tem que ter ar condicionado. Eu vou pagar por um ar condicionado – ele disse.

– E cerveja – a voz dela veio fraca por trás dos dedos. [...]

– E fios-dentais! – Ele tentou gritar isso, [...] – Montanhas de fios-dentais – ele murmurou asperamente.

p. 69 “Save it for the thongs,” she said. “Goddamnit, I forgot to ask someone

where the thong warehouse is!” “Are you really going to get one?” […] “I could pop out and get one

right now. It wouldn’t necessarily be Victoria’s Secret. I could get a few other things, while I’m at it.”

“Like what?” “Dog collars. Nipple-clamps. Two foot

pronged dildos!” “People don’t have those.”

p. 40 – Guarde para os fios-dentais – ela

disse. –Droga, esqueci de perguntar para

alguém onde é a loja de calcinhas. – Você vai mesmo comprar uma? [...]– Eu poderia escapar e comprar

um agora mesmo. Não seria nenhum Victoria’s Secret. Poderia comprar umas outras coisinhas, enquanto vou lá.

– Como o quê? – Coleiras. Prendedores para mamilos.

Pênis de borracha de 60 centímetros!

52

“They do, Bridget.” He delighted in contradicting her about this sort of thing.

“No.” […]

– As pessoas não têm essas coisas. – Têm sim, Bridget. – Ele adorava

contesta-la nesse tipo de coisa. – Não. […]

p. 70 Finally he said, “Your feet are fucking

filthy,” […] “I didn’t mean you had to put them

down.” “That’s okay.” “All I want to know is” […] “I mean, I

always try to help…” “But you don’t have to.” […] “Well, I thought we were

friends.” “Well, we are.” […]

p. 42 Finalmente ele disse: – Seus pés

estão puta sujos [...] – Não quis dizer para você abaixa-los. – Tudo bem. – Tudo o que eu quero saber é [...]–

digo, sempre tento ajudar... – Mas você não precisa. [...] – Bem, achei que fossemos

amigos. – É, somos. [...]

Com os exemplos apresentados neste último quadro nota-se que conforme o conto vai se

encaminhando para o fim, os dois personagens vão se equiparando. Se no início havia

uma grande distância entre os dois, não só em relação à idade, mas intelectual e de

experiência de vida, de acordo com Alan, no final essa diferença praticamente

desaparece. Assim, a marcação similar nas falas dos personagens é uma das formas de

representar essa aproximação.

Assim como em “O Cara do Sorvete”, o conto “Olhe e Passe Adiante” também faz

referência às cidades canadenses, neste até com mais intensidade do no outro, visto que

o enredo se trata de uma viagem. No conto são mencionadas as cidades de Cape Breton,

New Brunswick, Guelph, Sydney, Halifax e Montreal, as províncias de Nova Scotia,

British Columbia e Quebec, além de outros elementos regionais como o rio Saint John, a

Georgian Bay, a região do Canadá Marítimo e a rodovia Trans-Canadá. Optamos por

manter os nomes das cidades e províncias como no original por não haver um padrão

para a tradução dos nomes para o português. A representação dessa quantidade de cidade

proporciona uma breve noção de quão vasto é aquele país, mesmo para os próprios

canadenses, representados neste conto por Bridget e Alan, que enfrentam uma longa e

exaustiva viagem para chegar à universidade. Além das longas distâncias, durante essa

viagem é narrada uma situação de extremo calor enfrentada pelas personagens. Tal fato é

bastante estranho aos leitores brasileiros, cuja primeira impressão em relação ao Canadá

53

é a de vastas áreas cobertas de neve. Porém, altas temperaturas também se fazem

presentes naquele país.

Outro aspecto que chama a atenção neste conto é a indicação, no início do texto, de

um dos cantos presentes no volume intitulado “Inferno” da “Divina Comédia”, de Dante

Alighieri. Na obra do poeta italiano, constituída também pelos volumes do “Paraíso” e

do “Purgatório”, o Canto 348, citado no texto de L. Coady, apresenta o personagem do

poeta italiano Dante, acompanhado por seu colega latino Virgílio, na entrada do inferno.

Dante se assusta com o que vê e ouve, mas Virgílio, seu mestre, o acalma e lhe guia pela

jornada. Da mesma, forma no conto canadense temos a figura da jovem Bridget,

assustada por enfrentar uma nova etapa em sua vida – a faculdade – e seu “guia” Alan,

quem a conduz para esta nova fase.

6 CONCLUSÃO

Na presente pesquisa foram traduzidos dois contos da escritora canadense Lynn

Coady – “Ice-Cream Man” e “Look, and Pass On”. Para tanto, primeiramente, situamos

a escritora no contexto da literatura canadense no qual ela se encontra, para então

expormos o aparato teórico utilizado para nos dar suporte às escolhas feitas. Em seguida

foram apresentadas as traduções, que contaram com notas de rodapé, visando um

esclarecimento ao leitor acerca de elementos do texto que lhe pudessem ser estranhos.

Além das notas, foram tecidos comentários quanto ao processo tradutório, dificuldades e

problemas enfrentados.

Como se pôde observar na parte dos comentários, as diferenças lingüísticas e

culturais existem, mas não se tornam um empecilho à tradução. A escritora aborda temas

universais e situações comuns à maioria as pessoas, permitindo que onde quer que elas

estejam possam se identificar com as personagens. É neste ponto que reside a

responsabilidade do tradutor em transmitir aquilo que ele captou da obra do escritor.

Sendo o tradutor acima de tudo um leitor, ele irá repassar ao seu leitor aquilo que ele

próprio percebeu do texto de partida. Dessa forma, as traduções aqui apresentadas são

48 A tradução para o português dos versos 1 a 51 da obra italiana, encontram-se em Anexos.

54

apenas uma única percepção em meio a inúmeras visões possíveis, não pretendendo ser,

portanto, uma única possibilidade para a tradução de Lynn Coady. Com isso, esta

pesquisa pretende representar apenas uma modesta contribuição tanto aos estudos

literários quanto aos estudos da tradução.

REFERÊNCIAS

ARROJO, R. Oficina de tradução. São Paulo: Ática, 1992. ATWOOD, M; WEAVER, R.(sel.) The Oxford book of Canadian short stories in English. Toronto: OUP, 1998. CALDER, A. Martha Ostenso. In: THE LITERARY Encyclopedia. 8 jan. 2001. Disponível em: http://www.litencyc.com/php/speople.php?rec=true&UID=3438. Acesso em: 8 jun. 2007. CARDOZO, M. M. Solidão e encontro: prática e espaço da crítica de tradução literária. São Paulo, 2004. 174 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. COADY, L. Play the Monster Blind. [s.l]: Vintage Canada, 2001. GADPAILLE, M. The Canadian short story. Toronto: OUP, 1988. p.4. HOEFLE, H. Review – Play the Monster Blind by Lynn Coady. Montreal, [s.d]. Disponível em: <http://epe.lac-bac.gc.ca/100/201/300/danforth/2001/01-04/reviews/fiction/coady2.html>. Acesso em: 9 ago. 2005. HORTON, M. Humour not as easy as it looks, author discovers. Edmonton, 05 mar. 2006. Disponível em: <http://www.canada.com/edmontonjournal/news/culture/story.html?id=61554c1a-b8d5-4fce-a48d-2ea97fdd0c85&p=1>. Acesso em: 12 out. 2006. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. [s.l]: Objetiva, 2001 LEAL, A.B. Funcionalismo e tradução literária: o modelo de Christiane Nord em três contos ingleses contemporâneos. Curitiba, 2005. 110 f. Monografia (Bacharelado em Letras Inglês-Português com ênfase nos estudos da tradução) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

55

_____. Funcionalismo alemão e tradução literária: quatro projetos para a tradução de The Years, de Virgínia Woolf. Florianópolis, 2007. 134 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina. NEW, W. H. History of Canadian Literature. 2.ed. [s.l]: McGill-Queen’s Press, 2003. p. 3. _____. History 1867-1914. In: The Canadian Encyclopedia Online. [s.l]: Historica Foundation of Canada, 2006. Disponível em: <http://www.thecanadianencyclopedia.com/index.cfm?PgNm=TCE&Params=A1SEC823473>. Acesso em: 12 out. 2006 NORD, C. Text analysis in translation: theory, methodology, and didactic application of a model of translation-oriented text analysis. Trad. Christiane Nord e Penelope Sparrow. Amsterdã: Rodopi, 2005. _____. Translating as a purposeful activity. Manchester: St Jerome, 1997. PIERCE, L. English Canadian Literature. In: WALLACE, W. S. The Encyclopedia of Canada, Vol. 4. Toronto: University Associates of Canada, 1948. 400p., pp. 89-106. Disponível em: <http://www2.marianopolis.edu/quebechistory/encyclopedia/Canlite.htm>. Acesso em: 12 out. 2006. RONÁI, P. Escola de tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. VERMEER, H.J. Skopos and commission in translational action. Trad. Andrew Chesterman. In: VENUTI, L. The translation studies reader. Londres: Routledge, 2002.

56

ANEXOS

ANEXO 1 – CONTOS Ice-Cream Man

YOU THINK YOU MUST NOT LOOK the way you feel. People the same height as you are still sometimes place their hands on their knees and lean their faces into yours and ask: “And how old are you?” You must somehow still look like you’re small, a child. To be a child is not necessarily good, because it means getting more attention than someone more grown and established. Children are the only people that other people just stare at without worrying about it. Children aren’t supposed to notice, or care.

But you always cared, remember, because you never liked being the centre of attention, you were just like him that way. People used to come into the shop and compliment him on what fine job he had done on their shoes, and he would just say, “No, no, it’s not true,” confusing them because it was obvious that he had. But pretty soon they realized that was just what he said if you were nice to him. Great heels you put on these, Danny – No, no they’re not. That’s a nice coat you’re wearing – No, no it isn’t. It was like: Please, please, don’t remark upon me. People learn not to. When they like someone, someone quiet who does a good job at things, they put up with what’s strange about them. You notice that. It was the opposite with her, when she was alive. Nobody liked her, she didn’t do anything, any kind of work, so they wouldn’t put up with what was strange.

Locking you out of the bathroom for hours in her big tub full of suds and oils. Thick perfume smells wafting through the keyhole. Let me in, Mother. Pee, pee, pee.

Go to the other bathroom. There is no other bathroom! She knows. You’ve all lived there for years. She pretends.

Tooralooraloora she sings. You peek at her through the keyhole. She fills up that whole damn tub.

That’s why no one cared for her. Let herself go. Wearing the bright clothes to the Co-op when she was supposed to be hiding herself. You used to hear ladies in the store. You knew they were talking about her, because they always called her “Herself.”

Oh, look, if it isn’t Herself. What's Herself into today? Lord bless us and save us if she isn’t into make-up! Oh my dear God! It was funny, because she was so enormous. To them it was like washing down a banana

split with a diet cola. But the good thing was that nobody ever noticed you with her around. You were like him,

hidden away in the shop, hunched over soles. Everyone likes him, hidden down there. Now that you're tall and she’s dead and people see you, they don’t mind you too much either.

It is probably important to keep it that way. You never used to have to worry about all this. When you were a child, you could be as weird and stupid as you wanted, but you never actually wanted to. You were practicing to be like him, for when you got tall. Because you could see who they put up with and who they didn’t. you can see it now, too.

You used to play with Paula Morin all the time because she lived next door and your mother called up and asked her to because you were “too stubborn” to go find anyone yourself. So she’d come over in the winter and ignore you and play with all your toys. It seemed perfectly natural.

57

Because she was three years older than you and didn’t have any really good toys of her own. So the two of you would just sit on different sides of the living room, you building stuff with Lego and her in the middle of a circle of all these toys you’d forgotten about long ago that she pulled out of the cubbyhole. You’d sit like that in silence for hours. You thought she was great. You begged to have her come over after a while. When the weather got warmer you’d go outside and she’d involve you in all her imaginary games. You would be her baby, or her dog, or an evil arch rival who was not quite as powerful as she was.

She moved to the trailer park on the other side of the town to live with her dad. When she was next door to you, she was with her grandmother. Her mother was, for some reason, in Sydney. It didn’t make much sense at the time. So she was one of those people you just forget about for a long time and then in junior high you see them again and you look at each other and say hi and just know somehow that it’s as if you have been reincarnated as different people, and it would be in bad taste to act as if you’ve known each other in the past.

She had these boobs and a perm and wore tops that showed her stomach. The only difference with you was that you were tall. She hung out with de guys that stuck out their feet to trip you if you were passing them outside or in the hall. They were someone like your mother or someone like you or someone like anyone, they’d trip you and laugh their holes out no matter who you were. One of the guys was Bernie Heany. You used to play skipping with him when you were around eight. He was the only boy who ever played skipping. He used to love it.

The point is that now Paula Morin can’t leave her house, because she gang-banged and everybody knows. They used to call her “Paula More ’n’ More” and sometimes “Ball-a,” and laugh about her all the time, but she still was able to linger in the halls and the smoking area with Bernie and everybody, sticking out her foot right along with them and having a great time, but now she can’t leave her house. She used to go to school but she can’t even go to school any more. People were saying they were going to kill her. They left stuff in her locker and in her desk. One day when she was still in school, everybody knew about the plan to kill her. People were passing notes all over the place, because they wanted everyone to be in on it. Some girls were going to trick her into going outside behind the rink and then the guys were going to get her. You sat there reading the notes thinking: Why doesn’t she call the police? It’s against the law to threaten to kill someone. It’s written all over her books and her locker. She’s got proof. I would just call the police. All she has to do is call the police.

But nothing ever happened. A lot of people went to the rink, but there was nothing going on, the girls couldn’t find her. She just stopped coming to school after that.

He feeds you soup every night for dinner and doesn’t worry too much about anything. You have to keep reminding him he said he would drive you to the hockey game after you eat. He says he’ll do things and then forgets. Oh my, I can't wait to sit and watch the news right after this. You said you’d drive me to the hockey game. Oh yess… Well, now, I think I’ll take another shot at fixing that zipper on Mary MacEachern’s bag after dinner. You said you’d drive me to the hockey game. Oh yes.

It’s because he never had to do it. She would always do it, if she wasn’t in the tub. She loved doing it. Sometimes when you had nowhere to go she would invent stuff for you. She signed you up for step dancing because the lessons were in Antigonish and she enjoyed the drive. She’d get to fart around in the mall while you were dancing. You could never get the hang of it. You hated it. Toe-heel, toe-heel. People said you looked as if you were killing snakes. But she didn’t mind one bit.

She’d drive you to the games and you’d sit with Peggy Landry and Gus MacPhail and she’d be standing around talking to the Mountie who took tickets or to Rory McKay who drove the

58

zamboni, not even caring that they were trying to see who had the puck. You used to wish she would go so that you could concentrate and not see which people were looking at her, or what kind of face the Mountie had on him while she was talking. But it was better that she would drive you there and wait and drive you home again than having him taking off his shoes and picking up the newspaper when you're standing there with your coat on.

She’d anticipate the next bath in the car, shivering. Mmmm … my warm bath calls, she’d growl. Mmmm, the pleasure of a hot bath after having to stand in that cold rink for hours. (You didn’t have to stay.) Oh, but the longer I stay, the better it is. Mmmm, I can't wait. The simple pleasures. Pleasure is the absence of pain, Socrates says. All the little things you can indulge in to decrease the pains of living. Oohhhhh yes yes yes, my dear, if that isn’t what it’s all about, I don’t know what it is.

And the whole hallway saturated with the smell of lavender and honey and Jim Beam, still hanging in the air when you’re getting up for school. Cookie crumbs under your feet as you stand brushing your teeth at the sink.

Gus MacPhail doesn’t sit with you any more. Now he’s on the ice. But he probably wouldn’t anyway. It’s just like it was with Ball-a More ’n’ More. You used to go over to his house and listen to Bay City Rollers albums on his brother’s turntable and he had posters of the Bay City Rollers all over his bedroom. Then you lost track of him and saw him again when you started junior high and the only thing you could think to say was, So, ya still like the Bay City Rollers? And Gus had said, The Gay City Blowers? And that had been the end of that. Now he’s a goalie.

You still sit with Peggy, but there’s all these other girls there who want to sit with Peggy too. You and Peggy glance at each other sorrowfully every once in a while, because you have less and less to talk about these days. You used to spend days on end together, completely content to be in one another’s company. You used to be like the same person. Now the games are pretty much the only thing you have in common and both of you know it.

One of the girls is talking about Paula, that she saw her or something at MacIssac’s Variety buying an ice-cream bar and Mr. MacIsaac shot a porno mag down of the counter in front of her and asked if she’d like that too. All the girls go, Oh my God, oh my God for a while, and then talk of other things. When you think about people gossiping, you think of them sitting around talking and talking about people until it makes everyone sick, but that’s not really how it works at all. All it takes is one sentence every couple of days, a passing remark or joke. And then that person and all that is wrong with them is riveted inside your skull and if anyone ever says their name around you, it triggers all the remarks and the jokes in a flood – that’s what you think of when you think of them. That’s how it works.

It’s getting hard for the girls to talk, because the game is getting exciting and the men all around you roar. Alan Petrie gets sent into the penalty box, and everyone wants to kill the referee. He’s the most judicious and fair referee there’s ever been, and most of the time they go around singing his praises, but when he calls against the team they all want to kill him anyway. He is the elementary school math teacher, and the only black man in town. You really hear about it with this sort of thing. Gus MacPhail’s mother is hollering that they’re going to melt him down and make hockey pucks out of him.

And it’s one-nothing for them and the guys try and try to get a goal before the end of the first period, but they can't do it without Alan. When the buzzer goes off, everyone howls with rage and frustration, and then there’s a crush to get at the canteen for the pop and chips.

59

For as long as you’ve been coming to the rink, the guy at the canteen has always thought it was funny to pretend to refuse to give you whatever it is you come asking for. He never care how many people are waiting in line behind you, he has to get his joke in. He stands there smoking and grinning, the cigarette bobbing up and down as he talks.

“Chips.” “Chips? Nah, you don’t want chips.” “Hot chocolate.” “Oh, no, I don’t think so.” “Chips and hot chocolate!” “I’ve never heard a more disgustin’ combination.”

“Just give her her goddamn chips and hot chocolate, Hughie, and stop flirting with the young girls!” some old guy hollers from the throng behind you. all the old drunks retching laughter.

“Wouldn’t you rather have a nice … cold … ice-cream sandwich?” This same joke since you were seven years old.

“It’s too cold!” “What are talking about, it’s a sauna in here!” “Give her the Jesus chips, ya pervert! Haw haw haw.”

He winks and hands them over. You have to smile at this guy because it’s nice to talk to someone who says and does exactly the same thing he’s been doing and saying ever since you’ve known him, without exception. The canteen guy is the only person you know like that. This is a revelation. You’d like to crawl back there behind the counter with him and to hell with the rest of the game.

The nice feeling stays with you for the next two periods. Alan Petrie’s back in the game. They score, one, two, three goals, and the other team can't score any. The final buzzer goes off and the surrounding crowd writhes and roars in ecstasy, filling up your ears and brain with nothing but them. You’re in such a good mood you wave to the canteen guy from the middle of the stampede to get outside. He’s lingering in the kitchen door with a smoke behind his ear and one in his mouth. He tells you to come here with his finger and there’s a look on his face like he’s finally going to give you the ice-cream sandwich he’s been talking about all these years.

He’s not there. The throngs have long since broken up into their cars and gone to their separate homes, the parking lot’s empty, he’s not waiting. He’s at home examining the holes in his slippers. Baffled, probably. What on earth doe one do when there’s holes in one’s slippers? Completely engrossed with the problem.

You're still standing there, too angry to walk when he comes up behind you. You're not surprised, because you listened to him slam and lock the arena doors, and you can smell his duMaurier.

“Still here?” “He didn’t come.” “Boyfriend?” You actually giggle at this and instantly feel stupid. “No, no. Him, him – my father.” “Just left you here to freeze!” “Yes.” “Well that’s a frigger right there, now.” “I know,” you say, feeling grateful. “I can take you home,” he says.

60

“Oh, good.” “Least I can do, isn’t it?” You don’t know what he means by that. “Have to be there right

away?” You picture him in the recliner with his slippers in his hands. Open mouth. “Nope.” And off you go.

At ten to twelve, he’s asleep in front of the late news, Mrs. MacEacherns’s bag on his lap. You’re lucky he didn’t lock the house and go to bed. After a couple of seconds of standing in the hallway regarding him, you walk back to the door, open it, and slam it harder and louder than when you first came in. When you get back to the hall, the bag is on the floor and his eyes are open and he looks about six years old.

“Frigger,” you say. “Now, now…” He picks up the bag and automatically starts experimenting with the zipper

again. “Left me up there to freeze.” “I thought you’d get a ride,” he says, furiously yanking the zipper back and forth. “You didn’t think that at all, that or anything.” He stops yanking on the zipper and looks around, still fingering the bag’s soft leather. “You

have to understand. It never used to be my job.” “It’s just common friggin’ courtesy. Can't you think of it as just common friggin’ courtesy?” “I’ve never had to think of it.” You decide to go to bed now. It occurs to him to call, “How did you get home?” when you're at the top of the stairs. “Got a ride,” you call back. “I’ll get a ride all the time from now on.” You can hear him making pleased noises to himself down there.

You sit on the toilet across from the enormous claw-foot bathtub Herself had installed before you were born. It would be nice to dump a ton of smelly crap in there and sit in the steaming water, your bones are cold from sitting in his truck, your muscles stiff – but you want too much to go to sleep. It’s dangerous to fall asleep in the tub, somebody told you that when you were six and you thought instantly of Herself and never forgot it. You crouched outside the locked door night after night, peeking in the keyhole occasionally to check on her.

“You better not fall asleep in there!” you’d holler, if she appeared ready to nod off. Water would splash everywhere as she jerked up.

“Jesus Murphy! Go play with something and give me some peace.” “Well, you looked as if you were going to sleep.” “Git! Go with you!” You’d watch her sink back down beneath the froth. You haven’t sat in that tub since you were so little you had to be bathed. You always take

showers downstairs, quick, without even giving the process a second thought. Him too, every evening after coming up from the shop smelling like dye and leather and polish and glue. It would no more occur to the two of you to sit in Herself’s tub than it would to put on her clothes and walk around in them. Why was that?

61

The first thing to change is the hockey games. You feel foolish just going up and getting your chips and hot chocolate now, and you were afraid, because you didn’t know if he might say something new, something that he had never said before, in front of the bundled, hockey-maddened throngs. So for the first little while you had other people get things for you if they were going, and then you’d go and see him afterwards, while everyone else was watching the ice.

“Where were you? I had your chips waitin’ right here.” “I don’t know.” “Well, here, have them now, eat them with me.” “Good, then.” You rip open the bag and the two of you pass it back and forth. He doesn’t even care about

the game. He is the only such person in the world. He gives you a hot chocolate and gives himself a coffee and he pours a bit of rum into both. Which tastes awfully good. You try his and you try yours, and yours is better. You're looking at his teeth. They’re very long, and each of them is clearly outlined, almost framed by the brown nicotine stains between every one. Cigarettes seem to have given him all the character that is in his face. It’s a yellowish colour and the most prominent wrinkles he has are the ones that show up around his mouth when he takes a long drag.

“How long have you been smoking?” “Since I was ten.” “How old are you now?” “Thirty … two.” “Pretty old.” “Ya got that right. How ‘bout yerself? Just kiddin’.” So this is what you look forward to more than the games themselves. You never would have

imagined such a thing. Sitting in back of the canteen with the sound of coffee dripping into the pot louder than the wails and moans of the entire town every time a goal is scored or missed.

One dinnertime at the house in the middle of the soup, he suddenly looks up. “What about your chips?”

“Wha?” “What about your chips? Don’t you still get your treats up at the game?”

“Yah, I get em.” You take a half-package of crackers and, holding them above your soup, demolish them into dust and salty fragments.

“Don’t you need any money?” he asks. “Where’s this come from all of a sudden?” you say, because it’s been two months since you

had to pay for your chips and hot chocolate. “You should be happy.” “It’s a boyfriend or something,” he says to himself. “Giving you the drives home as well, I

suppose.” Two whole months, you think. “Isn’t that nice,” he says after a little while. “That’d be your first, if I’m not mistaken.” He

looks directly at you and bobs his eyebrows. He’s impressed with himself for possessing such intimate knowledge of your comings and goings.

It’s different at school as well. Since you scarcely see Peggy at the games any more, there are almost no ties between you at all. It used to bother you, but it now doesn’t so much. Sometimes she looks like her feelings are hurt when you don’t bother going up to her after French, and all the oh-my-God girls who try so hard to be with her as often as possible must think you're crazy.

62

Bernie Heany sticks out his foot and you leap over it like a ballerina. They laugh at you, but they laugh at you no matter what, and it’s better than falling on your face.

It just seems natural when it’s spring and the hockey’s all over for the season to traipse past the Kentucky Fried Chicken after school and visit him at the apartment. You have nowhere else to go in particular. Sometimes you just shoe the beer boxes and dishes aside and sit at his kitchen table with a cup of tea and do homework and wait for him to wake up.

He says, “Why don’t you ever bring me some chicken, you go right past.” “I didn’t think of it,” you say. “Don’t you think it would be a nice gesture?” “I suppose.” He’s smoking on the couch, watching TV, wearing a sweater, but no pants. “Every woman

I’ve known,” he says, “has always tried to do nice things for me.” You put your pencil down and sit there for a second. “It’s not like that with me,” you say after a while. “Well, obviously, eh?” “It’s bad?” “No, it’s not bad. I just think it’s interesting, that’s all.” A fat boy at school has been sticking notes in your locker. I like you you are very prety.

That’s the sort of thing he means. All that sort of foolishness.

The grandmother used to come over and watch her swirling around the kitchen, her hair coming and going like a black tide. My Jesus, won’t you cut that hair, she’d say. Letting it get all over the kitchen. Into the girl’s food.

It was true. Every mealtime of your life spent pulling two-foot hairs from the plate. “I just have to check the bird, and them I’ll pin it back,” she’d say. It’s hanging into the pot! Grandmother would gag. Herself used to say that the grandmother spent her whole life

making herself sick worrying about germs that would make her sick. When you were a baby, the grandmother would come to visit, and Herself would have spent a week preparing it, filling bucket after bucket with hot water and bleach, sanitizing the whole house. And then the grandmother would arrive and some sort of radar would kick in and she would head straight for underneath the sink and pull out the rag that had been used for cleaning. My good Lord, dear, what's this doing just sitting here? Throw it in the wash! Do you know how many germs could live in here?

It’s full of bleach. There’s no germs. Well, it’s filthy. The girl would have that in her mouth in no time. Then, for no reason in particular, the grandmother would raise her head and peer at the light

fixture. Herself would follow her mother’s gaze, and the two of them would stand regarding the bodies of dead flies all around the bulb. Like they’d been laid there as sacrifices.

Dear, dear, dear, the grandmother would say. Tch. She’d wander off to find a bucket and rubber gloves.

But the worst thing, the dirtiest thing for the grandmother was always hair, and the house was always full of it. The kitchen, the bathtub, the laundry. The food. There is still quite a bit of it around. You had to untangle one from the button of your sweater just the other day. You still use one of her brushes, and there’s no getting all of it out. You could hypnotize yourself if you

63

think too long about the drain of the bathtub, of how much of Herself remains clogged down there.

Then later the old woman would say, Aren’t you a little old for that sort of hair, dear? Couldn’t you do something a bit more conservative with it? She was always saying a little, a bit: Oh, just a little wee drop, if you don’t mind. I think I’ll take a little nap. I think I’ve got a bit of a cold. Couldn’t you stand to lose a bit of weight?

For the first few months after the funeral, she used to come over to the house all the time, thinking that you and he would have it in a shambles, unable to care for yourselves. But much to her surprise, it was in very good order. It remained so. It was like you didn’t even live there at all. The grandmother was so impressed that she decided she was no longer needed and went away to live in British Columbia.

It’s late when you leave his apartment, hands greasy with the chicken, and see Ball-a More ’n’ More standing there in the hall. All around her is the smell of cigarette smoke and cheap clothes detergent, which wafts up from the laundry room downstairs. You don’t know what to say to her so you just keep heading towards the stairwell, zipping up your coat. She calls, “Hello, hello,” sarcastically at you, and you turn around and say that you didn’t even recognize her. It is a reasonable thing to say, you think. The last time the two of you had a conversation, you were seven years old and she was making you scamper around on your hands and knees fetching sticks and rocks in your mouth.

She says, “I live just across the hall,” but she is in her boots and jacket, and following you down the stairs.

“I didn’t know that. Where are you off to now? “Out to get smokes. Wanna come for the walk? “I’ve got to get home.” “Fine, then.” She’s insulted, oddly. “Actually, I saw you coming in a couple of hours ago. I

was walkin’ right behind you.” “Oh, yah,” You don’t say: I thought you couldn’t go outside any more. But maybe people

are finally starting to forget about Ball-a and how much they want to kill her. “I know the guy that lives in there,” she says. “Yah, me too. He’s nice.” “How do you know him?” “Oh, I know him from the rink. I just brought him some chicken.” Ball-a snorts, but it’s not

as if you're lying. “Aren’t you good,” she says. “Aren’t I though.” “That’s what the good people do, I suppose,” she says. “The good people bring each other

chicken.” There’s so much hate in her voice that your instinct is to run. But abruptly she laughs and dashes across the field to the variety store, her boots crunching holes through the crust of the snow. You can hear tossing words over her shoulder, and at first it just seems like an echo – Chicken! Chicken! – but then you realize she’s calling your names. Just like when you both were little, and you wouldn’t touch a cat that had been laying split open on the street.

Now all of a sudden he decides he wants you to go back to religion classes. You haven’t gone since Herself stopped being around to take you. You give him a look as if he’s crazy and stupid.

64

You’ve just walked in the door and he’s standing there at the table in front of two bowls of soup, one empty, one full.

“Look,” he goes, “I remembered.” “Isn’t that dandy.” “But you didn’t.” “I didn’t remember the soup? Is that what you're on about?” “Well, where were you?” “Eating chicken.” “With himself, I suppose.” That’s what he has dubbed the new “boyfriend.” He has built up

a whole mythology surrounding this person and you have at no time spoken one word about it to him. He turns around suddenly. You watch him execute one full circle around the kitchen.

“What in God’s name are you doing?” “You're getting a mouth,” he says, squeezing his hand together. “You're eating chicken. You

have to go back to religion.” So that’s what you do. You don’t like seeing him walking in circles, looking this way and

that, so you just go. They hold it on Wednesday nights, and that’s what it is now. You come in late, and all the worst kids are there. The kids whose parents are the most strict

about prayer and chastity – they automatically become the ones who smoke and drink and curse. You’d think people would see this connection. Bernie Heany is seated behind you with his feet on the back of your chair.

The nun is going about Abraham and Isaac. God told Abraham to make his son up to the pyre and sacrifice him like a goat, just to see what Abraham would do. Abraham said, Anything you say, God, and hauled him on up there. Then God sent an angel to say, For Pete’s sake, Abraham, we didn’t really mean for you to do it. But Abraham’s all set to go and the angel has to hold him back. Praise be, says the nun, and shows us a picture of a famous painting. There’s Abraham with his knife in the air, all set to tear in, the angel trying to wrestle him away. Bernie Heany is snickeing because Isaac isn’t wearing any clothes and he looks like a girl, all tied up there.

You tell him you're not going back to religion, and you're not coming home for the soup, all the time, either.

“But I got it ready,” he keeps saying. “You weren’t even here, and I got it ready. I got the bowls and I heated it up. I was thinking about you.”

“I don’t want to have soup every friggin’ night.” He has to think about that for a moment. “We can have something else!” It dawns on him: “We can order pizza.” You're already

stomping up the stairs, pulling off your sweater. “I can get that when I’m out.” “But you should really have it with me,” he says. You can tell by the way he says it that he

doesn’t even quite know why that is. He just knows that you should. After a moment or so in front of the bathroom mirror, you holler, “Taking a bath now!” And

he lets a couple of moments go by as well. “What?” “I’m going to have a bath.” “I wish you wouldn’t,” he calls immediately. So you turn on both taps at once and water

thunders through the empty pipes, causing the entire house to shudder. And for God’s sake, it’s great, once you get in there.

65

Look, and Pass On Inferno, CANTO 3, 1.51 THE THING WAS EIGHTEEN and she wore her dead grandmother’s underpants.

“I like them,” she enunciated to him over and over, because he would not let up about it. “They are comfortable.”

They didn’t bunch? “Bunch where?” Up her ass? “I don’t notice.” He was always leaning back and looking at the sky in a theatrical prayer for her. He drove

the car with a window for a roof, could see the clouds fly past, if there had been any clouds. He said he was going to buy her some different ones.

“I don’t need any.” But he would like to buy her some different ones. Her bare feet were up on the dashboard of

his mother’s car, dirty. She squinted, thinking about discomfort. “Not those ones … not the ones with no arse …with the little bit of material that goes up

your arse….” Thongs, Thing. Lots of women wear them. “I don’t like them.” She would like them. “No, no. I don’t think I would.” He saw her underwear at night at the hotel. He hooted and yanked at them, like diapers. The

elastic waistband came up almost underneath her breasts, her whole lower torso obscured by the white cotton. One time when she turned to go to the bathroom, he grabbed a cushion from the chair and shoved it in there, and there was plenty of room left. She had reached behind herself and removed it and put it back down on the chair. Fifty other women would have thrown it at him. She was eighteen, however, and she did not have a playful bone in her body.

But he wanted to buy her some. He had all sorts of money. It was no problem. He could buy her all sorts of things. Whenever they pulled into an Irving for gas, she would wordlessly try to hand him twenty dollars like her father had told her to do, and he would say, in the phlegmy Cape Breton accent he used to mock her with, to take that thing and shove it up her hole. At this she would laugh. Hole-humour was big where she was from. She did not insist about the money because, he was aware, she was too young to know that she should insist.

It was late August and stifling in New Brunswick. They drove past the long Saint John River with boats on it and she said that the sight of water made her sad, because she always wanted to be in it. He said they could stop somewhere and swim but they shouldn’t make a habit of it, if they wanted to make it to Guelph in good time. Anyway, they would go for good swims in the Georgian Bay once they arrived. He would have a long weekend to show her the sights before she had to be at the university, to start her first year of school. Alan was excited about this. He would take her to his parent’s cottage on the bay, show her the beauty. He would take her to bars where his best friend Trent’s band was playing for the Labour Day celebrations. His friends would see her and she would see them.

She wanted to stop at everything that was big. They had to stop at the big blueberry and the big potato. She insisted. The blueberry was friendly, but the potato was an evil-looking thing. She took a picture of him cringing before it. This was the kind of thing she enjoyed.

She enjoyed the hotel rooms for different reasons than him. The father had not agreed with the hotel rooms, with her blithely factoring into the travel itinerary. The father had looked Alan in the eye and made it clear that he did not see any reason for the hotel rooms. They could make

66

it straight through without stopping if they got an early start, didn’t take too many breaks. Alan was agreeing with him, but she vetoed them both without looking up from the map, spread out across her family’s kitchen table with the innocent bechickened tablecloth. “I want to stay in a couple of hotels,” she had said. Her father silenced by her lack of shame, hands placed palms-down atop the chickens, as if to keep him from falling into them. It was clear she scarcely noticed him any more. In all likelihood he hadn’t agreed with any of her travel plans to begin with. To get this friend, six years her senior, to drive her out to school.

What had he said when she told him this? Alan wanted to know. “What could he say?” What had she said? “I said I’m eighteen.” Smiling at her dirty feet. Not really smiling at all. “He can't say too

much these days. Right numb.” She insisted on the hotels the way she insisted on her grandmother’s underwear. It was what

she liked. It turned out that it was actually the old man’s own fault, this particular penchant in the thing. He used to take them on vacation all the time. it reminded her of being on vacations with her family, she said. Mother, father, sister, brother. At their first motor inn, she had shocked him by making a beeline to the bed and jumping furiously up and down on it. “This is how we always used to christen the room.” She said, voice hiccupping from the bounces. She didn’t really smile or look as if she were enjoying herself. But she did it every time, no matte what, he would come to know, bouncing, looking straight ahead.

They’d spent time together before, but not time like this. Car time. He could talk to her about whatever came to mind. Books he’d read. Music she should listen to. Interesting ideas he sometimes had about things – what he liked to call his “little philosophies.” She enjoyed listening. They stopped at a beach and he got to see her in a shiny pink bathing suit. It was a one-piece, but he could see the unstable protusion of her little stomach, from a year ago. And there were still stretch marks on the backs of her thighs, making them strangely dimpled. There was a pleasant layer of fat – although diminishing – all over her he thought to himself, like baby fat, and then he tittered when he realized it literally was. He read somewhere, later, that stretch marks never went away. The stomach reminded him of pictures and statues of the Catholic Madonna, her abdomen always prominent, the flowing robes moulded around it, emphasizing. He saw why they made them like that now – the pictures, the statues. He told her at one point that he thought a prominent good was sexy.

“Oh, good.” she said, serious. “How about stretch marks?” They sped on through the haze. It was his mother’s Lexus. She gave it to him for the

summer, for his great trek through Maritime Canada. He had not planned on going back to Bridget’s town, where he worked for not quite a year before having to flee the sulphurous egg smell of the pulp mill and his sodden-eyed, violent co-workers, coming to work hungover and beaten every Monday, always asking why he never went “out on the town” with them on the weekends, did he think the was too good? But in the end he placed a call from Smooth Herman’s in Sydney after three pints and said perhaps he could drop in on his way back to the causeway. And she’d said without any ado, why didn’t he take her with him. She had a train ticket but it wasn’t too late to cancel.

So she was leaving? he'd kept repeating. She was finally leaving? “’Bout time, wha’?” she said. He agreed that it was. It sounded as if she were becoming more illiterate by the second. She

replied something about her hole, to kiss it of play it like a fife or something. He hung up the phone, surprised to be euphoric.

He remembered her then. Tar-eyed thing in a Woolco dress, sitting at a chair and table set up outside the high school auditorium, vacantly accepting his admission to see the Swedish fiddlers. He had said, “I can't believe I am paying money to see the Swedish fiddlers. I wonder

67

what is happening to me,” and she’d looked up as if he had introduced himself as an angel of the Lord. Later she came up to him to say that she had learned the Swedish word for cheese and it was oosht.

Pregnant then but nobody new it. All he had thought was what a body for a kid. It turned out those changes had occurred only a couple of months before she was exasperated with them. He was the first person she told about it. He had been flattered, but not really surprised. The people in the town were like hornets in the hottest part of the summer, flying drunk, bashing their prickly bodies into one another, buzzing enraged. He’d asked about programs, supports, and she’d said, Programs? Supports? He had wanted, in a fanciful part of his mind, to take her away, but nothing about the situation allowed for it. She was seventeen then. He had someone who had been his girlfriend for three years, finishing up her BA in film in Toronto. Before all of that, however, he knew he needed more than air to get away from the sulphurous hornets’nest where she’d spent her whole life. So she went to Halifax alone in her sixth or seventh month, and, apparently, came back alone, too, but by that time he had gone.

They hit a strawberry just before the Quebec border, at George’s Famous Fruits. He rolled his eyes and pulled over without a word. Stepping out of the air-conditioned car, the heat threw itself over him like a quilt. She said, “Foo,” and pushed her hair back. He could see on either side of her hairline that a good quantity of it had fallen out and was only now returning, tentatively. You didn’t notice that when it hung down on either side of her face. He wanted to say, My Christ, how many other things does it do to you? but he didn’t. She strode up to the strawberry, uncharacteristically purposeful. When she got there she did nothing but loiter in its presence, peering upwards, getting sun in her eyes. After a couple of minutes she said they could go.

There was nowhere to buy a thong in Quebec, not along these endless rural roads. They would have to go through Montreal, and they could stop there, but it could take forever, once they got in, to get back out again. He did not know the city well. But he was interested in the idea of a thong, in Montreal.

There is no reason to buy a thong, she said in the hotel. I can just pull me underwear up to me chin and it’ll go straight up me arse like so. She demonstrated. She was doing the big hick-voice now because she did it whenever they discussed her body.

Ach, she said at him. He was telling her that he would be worried about her, up in University all by herself – driving after the first hotel, when the underwear had made its appearance and he’d almost died – and all she said in reply was “Ach.”

Something else she must’ve gotten from her grandmother. He didn’t remember hearing it last year, except for when Bridget imitated her, but now she used it all the time, now that the old woman was dead. Bridget used to come to his apartment and lie on his floor last year, clutching a glass of wine, and she would tell him all about cleaning up her grandmother’s defecate.

He thought it a wonderful word. The retch of it embodying pure disdain. Complete dismissal.

“Acccchhhhh,” he repeated, relishing the cat-hiss feel in the back of his throat. “What do you mean, “ach’?”

“It’s just school. And you’ll be close by.” “I can come see you on the weekends.” “Sure.”

68

“Make sure those university boys don’t step out of the line.” “Ach,” she said, smiling. They drove in silence for a couple of minutes, during which time Alan was thinking, What

am I talking about? “We’re friends,” she said. “We’ve always been friends.” She said that about a half-hour of

Trans-Canada later. “Oh, yes,” he said, trying a bit to sound ironic. But I have been acquainted with your

underwear and what about that? A while later he proposed they get a room in Montreal. It was completely gatuitous. They

could be in Guelph at reasonable hour if they kept on at a steady click. The little thing opened her mouth at the prospect of a just-for-the-hell-of-it hotel room.

So he talked the rest of the way, in good spirits. The first hotel hadn’t been perfect – they had both drunk too much beer and were road-tired, but Montreal would be better. It would be Montreal. He talked about CBC Radio and what his favourite programs were, which was what he always did when he was in a good mood. They listened to some of them, Alan greeting every announcer by name. She was reading a book that her English teacher had loaned her but she never gave back, and he had read it before, so he told her what he thought about it. It occurred to him that she might like to know about some other books he liked and it flattered him when she dug a pen out of the glove compartment and began compiling a list on the back page of the English teacher’s book. She was going to take general arts for her first year, of course. He told her the key to university was to just read all the books and go to all classes. There was no way you could fail. She laughed, but he said it wasn’t as easy as it sounded: Listen to me, I know what I’m talking about. He told her that she would be kicking herself in a few years if she spent all that money only to have it come to naught.

“Ach,” she said. “Government’s money anyways.” “You're going to have to pay it all back, Bridget.” He could tell she didn’t believe it. He didn’t know what world she lived in. sometimes the words out of her mouth could be

diamonds of the purest common sense. But most of the time she gazed around herself, never meeting anyone’s eye and retreating into her accent and monosyllables. The casual observer might dismiss her as retarded – exasperatingly quiet and unfathomably stubborn. She was the only girl he knew who didn’t insist people think she was smart.

“I never worry about going to hell,” said Alan at some point. He had been talking books at her for the last half-hour. “Ever since reading Inferno.

“Uh? Why? It doesn’t sound so bad?” Like she’d been shaken out of sleep. “No, it’s bad. But it tells you how to get out.” “It tells you how to get out?” “Oh yeah, it’s a fucking road map.” “That doesn’t sound right,” she said. “I wouldn’t think they’d just let you walk out.” He said nothing for the next ten minutes because she was right. Alan thought about the

winged demons poking the souls back beneath bubbling pitch; and liars sunken up to their mouths in shit, and she was right. Dante had only been visiting. They were compelled by You-Know-Who to let him pass. The remark about not being afraid to go to hell was one he had often made in the company of well-read friends. Now he knew he couldn’t make it any more, and was embarrassed at having said it so many times already. Because of her and her common-sense Catholicism. He pictured her mind at work, tying to reconcile the image of Alan taking a leisurely stroll through the pit – Dante under his arm to be consulted every now and again for directions – with what had been seared into her brain since childhood. That hell is not for tourists.

69

On the bypass they sat watching heat rise from the pavement, from the hoods of cars. He was telling her they weren’t going to be staying anywhere fancy. It wasn’t going to be the Ritz, or anything. She didn’t care. He had sunglasses on, but she didn’t and the glare made her blind. She talked to him from behind her fingers.

Traffic crawled, and he saw other drivers panting out their windows, end-of-the-summer arms like cured sausages. Cursing and practically weeping at their lot. Alan kept the windows shut tight, air-conditioning at full blast. “It won’t be fancy,” he repeated to himself, out loud. “But there will have to be air-conditioning. I will spring for an air-conditioner,” he said.

“And beer,” her voice came faint from behind the fingers. He thought she had fallen asleep. “And thongs!” He tried to shout this, lustily, but something about the permeating swelter

would not allow it. “Mountains of thongs,” he croaked. Her sleepy titters muffled by the fingers. He was thinking about the last hotel and how he could make this one better. Maybe not so much beer – if he let her have he way, she would drink the world. And the air-conditioning at full blast this time. He had turned the air-conditioning off at the last one, because it was one of those air-conditioners where the sound drowned out everything else. But now he knew it would be just as well to have it on, so heat would be no excuse and he couldn’t hear the noises she never made anyway. Alan was a planner. He had always been a planner. By the time they escaped the bypass heat prison it was dusk, the city was cooling, and he knew exactly how their evening was going to go.

They would go to the Peel Pub because it was the one bar he went to the last time he was here, her age, with the Varsity rugby ream. He and the rest of them had done shooters, thrown up and lit farts on the street. He kept in touch with none of them now, but remembered them fondly. Alan knew he was a rarity because he had always enjoyed this kind of idiocy with men, but never understood the alternating fear and indifference towards women of some of them. Alan grew up running to the drugstore to buy tampons for his many sisters, picking up another’s birth control while he was there. Certain male acquaintances were horrified at the fact that Alan had also lit farts with more than one girlfriend. Nothing was a mystery to him.

They found a Quality Inn, showered, and went out. There were prostitutes and pornography all over the street, which Alan didn’t even remember from the last time. He put his arm around her as they walked. They found a place, ordered chicken wings and Caesar salads and a pitcher. Alan told her they would have to go back to the room if they were really going to drink, because he probably should start being a little more careful with his money.

“Save it for the thongs,” she said. “Goddamnit, I forgot to ask someone where the thong warehouse is!” “Are you really going to get one?” He looked around him, thinking of the sex shops all up and down the street. “I could pop out

and get one right now. It wouldn’t necessarily be Victoria’s Secret. I could get a few other things, while I’m at it.”

“Like what?” “Dog collars. Nipple-clamps. Two-foot pronged dildos!” “People don’t have those.” “They do, Bridget.” He delighted in contradicting her about this sort of thing. “No.” “Remember that girl I told you I went out with?” “Yeah, but, just her.” “You are aware that you're not the most worldly person out there?” “I don’t care.” “I could show you.”

70

“No.” “We can go outside and I can show you right now.” “Don’t.” “If you don’t know what's out there, you’ll never know that you like.” “I don’t want to like anything,” she said.

The next day on the road was hotter. At 7:00 A.M. they sat at a picnic table outside of a Shell station (Irving Bigstops left behind with all the oversized produce) and struggled to get their coffees down before the heat made it unthinkable. Bridget could scarcely open her eyes, but he had maliciously insisted they get and early start. All of a sudden something fast and loud buzzed near their heads and Bridget leapt away from it, splashing coffee everywhere.

“Jesus Christ, Bridget!” “What was it?” She looked around her in horror. If it was a bug, then it was a bug

approximately the size of a golf ball. A black, clicking, whirring golf ball blur. She assumed a stance of readiness, waiting for it to come back. It did, and stopped directly in front of them, whirring and blurry. Alan realized that it had come up alongside some sort of water container, hanging from the roof of the garage.

“It’s a hummingbird,” he said. “What? What?” “It’s a hummingbird. See?” They watched it for a while as if a tiny whirring deity had appeared. The cautious, hovering

motions as it jerked away made it seem as if it were watching them also, monitoring them for movement.

“Jesus H. Christ, I guess I’m awake now,” she said, heading back to the car. The morning was silence but for CBC Radio. He was thinking of the different things he

could say to her. He felt like his fourth grade math teacher must’ve felt, drilling the simple concept of fractions into his brain, over and over again, Alan staring with complete incomprehension. He had eventually mastered math, but he would never forget the slow forward rolls his stomach had begun to perform once the world started breaking the numbers up and putting them on top of each other. This had seemed like sheer perversity to Alan. It was funny, he thought, how things like that affect you when you're small. His doctor and mother feared ulcers. The inside of his little boy’s stomach all raw.

He began by asking her slow, gentle questions about what she thought, and about himself. Tender, like how the patient math teacher used to explain things. Like Alan back then, something within the thing wasn’t willing to cooperate. She was irritated by the necessity to answer. She pushed her feet into the dashboard, wanting more room as the questions became more insistent. He had decided somewhere along the way that he wasn’t going to let up, he wasn’t going to let her drift away like she always did. The night had been a farce, him hovering above, not knowing what to do, what was good and what was bad, Bridget offering nothing. He didn’t think it was fair. There was no way he could let himself continue like this, hovering, in doubt. But instead of drifting away, she shut down. Her answers became as meaningless as she could possibly make them, and he felt himself getting angry. Deliberately. She was like this on purpose. It was not emotional laziness, as he had once supposed. Her mind was constantly in action, behind the heavy eyelids, forming strategies of avoidance. It was like trying to grab hold of a goldfish. Finally he said, “Your feet are fucking filthy,” and she put them down.

“I didn’t mean you had to put them down.” “That’s okay.”

71

“All I want to know is” – he wanted to kill her for just putting them down like that – “I mean, I always try to help….”

“But you don’t have to.” God. God. God. “Well, I thought we were friends.” “Well, we are.” “Well, it seems like I’m the one who’s doing all the giving here. Don’t get me wrong, I’m

not saying I’m in love with you, but it just seems like –“ “I’m eighteen,” she said abruptly. His entire train of thought halted at once. “Right,” he said. He meditated on the road. “I just wanna get to school,” she said.

She did not fit in with anybody at the bar, but they loved her anyway because they were accepting, friendly people like himself, and because of her youth and supposed shyness. Alan’s friend Trent tenderly brought her a Chocolate Monkey like a nurse bringing a patient a wee cupful of pills. It was a Polynesian bar, the kind of campy place a band like Trent’s was perfectly at home in, stuffed full of youngish Labour Day partiers. There she sat, never having drank anywhere that wasn’t called a tavern, looking around at the umbrellas and plastic hula dancers. He knew that she thought it was a bunch of foolishness, if she was thinking anything at all. That was something he would not have known about her a week ago. She sat alongside of Trent’s delicately tattooed girlfriend wearing a Jack Daniel’s T-shirt, once the property of the shit-kicker who had impregnated her, he imagined.

Everyone paid him compliments on Bridget whenever they caught him alone, because she was so adorable. No one knowing about the nastiness of the thing, or suspecting what the previous eight hours might have done to him.

“Sexy in that wholesome kind of way,” said Trent’s green-eyed girlfriend Quentin, who took art photos and wrote haiku and had been known to like girls sometimes, according to Trent anyway. Alan understood entirely why she said that and wanted to tell her that it wasn’t true, that she wasn’t wholesome at all. He was feeling cynical, as though in the last few days he had learned enough about the world to make him not want to know any more. He had used to feel impervious with knowledge, “existentially at ease,” he used to tell his friends – when he wasn’t being pretentious about Dante and espousing his indifference towards hell. He knew they envied him, using their fabricated traumas to add substance to their lives, turning to him for the advice of someone capable of accepting the world for what it was. Now he felt like a fraud. But he did not feel like a fraud. He felt like a dupe. He felt a way he had not felt since being introduced to fractions.

He saw her watching the band and thought that all she ever did was wait for everything to be over. It was grotesque. It was grotesque to think about the car and doing things with people who didn’t care if you did them or not. They who practically said Ach when you asked your gentle well-thought-out and carefully worded questions. Like, What do you need from me? What do you need me to do? The ach palatable in the air, all over them like sweat. Impervious. Contagious. Dangerous to have this kind of realization on a highway in the middle of Canada. He had wanted to drive into an oncoming truck, and the thing, he knew, would not have spoken as he did.

72

SAINT JOHN

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/b/bb/St_John_River_M

ANEXO 2 - MAPAS

MAPA 1 – MAPA DAS CIDADES DE ANTIGONISH, HALIFAX E SYDNEY NA PROVÍNCIA DE NOVA SCOTIA

MAPA 2 – MAPA DA PROVÍNCIA DE BRITISH COLUMBIA

FONTE: http://www.townofantigonish.ca

FONTE: http://library.educationworld.net/canadafacts/maps/bc_map_eng.gif

MAPA 3 – MAPA DA PROVÍNCIA DE NEW BRUNSWICK

MAPA 4 – MAPA DA EXTENSÃO DO RIO

FONTE:

NEW BRUNSWICK

ap.png FONTE: http://library.educationworld.net/canadafacts/maps/nb_map_eng.gif

73

MAPA 5 - MAPA DOS GRANDES LAGOS COM GEORGIAN BAY DESTACADA

FONTE:http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0c/Great_Lakes_Lake_Huron_Georgian_Bay.png

74

ANEXO 3 – CANTO 3, INFERNO, DANTE ALIGHIERI Inferno, Canto 3, 1.51

Chegam os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos.

Tradução: José Pedro Xavier Pinheiro

“POR mim se vai das dores à morada, Por mim se vai ao padecer eterno, 3 Por mim se vai à gente condenada. “Moveu Justiça o Autor meu sempiterno, Formado fui por divinal possança, 6 Sabedoria suma e amor supremo. No existir, ser nenhum a mim se avança, Não sendo eterno, e eu eternal perduro: 9 Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!” Estas palavras, em letreiro escuro, Eu vi, por cima de uma porta escrito. 12 “Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro” Tornou Virgílio, no lugar perito: — “Aqui deixar convém toda suspeita; 15 Todo ignóbil sentir seja proscrito. “Eis a estância, que eu disse, às dores feita, Onde hás de ver atormentada gente, 18 Que da razão à perda está sujeita”. Pela mão me travando diligente, Com ledo gesto e coração me erguia, 21 E aos mistérios guiou-me incontinênti. Por esse ar sem estrelas irrompia Soar de pranto, de ais, de altos gemidos: 24 Também meu pranto, de os ouvir, corria. Línguas várias, discursos insofridos, Lamentos, vozes roucas, de ira os brados, 27 Rumor de mãos, de punhos estorcidos,

75

Nesses ares, pra sempre enevoados, Retumbavam girando e semilhando 30 Areais por tufão atormentados. A mente aquele horror me perturbando, Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora? 33 “Quem são esses, que a dor está prostrando?” — “Deste mísero modo” — tornou — “chora Quem viveu sem jamais ter merecido 36 Nem louvor, nem censura infamadora. “De anjos mesquinhos coro é-lhes unido, Que rebeldes a Deus não se mostraram, 39 Nem fiéis, por si sós havendo sido”. “Desdouro aos céus, os céus os desterraram; Nem o profundo inferno os recebera, 42 De os ter consigo os maus se gloriaram”. — “Que dor tão viva deles se apodera, Que aos carpidos motivo dá tão forte?” — 45 “Serei breve em dizer-to” — me assevera. — “Não lhes é dado nunca esperar morte; É tão vil seu viver nessa desgraça, 48 Que invejam de outros toda e qualquer sorte. “No mundo o nome seu não deixou traça; A Clemência, a Justiça os desdenharam. 51 Mais deles não falemos: olha e passa”.

Fonte: eBooksBrasil.com