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Tradução Edmo Suassuna 1ª edição Rio de Janeiro | 2017

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TraduçãoEdmo Suassuna

1ª edição

Rio de Janeiro | 2017

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Prólogo

Duas horas antes da alvorada, sentei-me na cozinha e fumei um dos cigarros de Sarah, escutando o redemoinho e esperando. Porto Fabril já tinha se deitado para dormir havia muito, mas lá no Extremo as correntezas ainda se emaranhavam nos baixios, e o som vinha percorrer as ruas vazias em terra firme. Havia uma névoa fina emanando do redemoinho e caindo sobre a cidade como mantos de seda, embaçando as janelas das cozinhas.

Quimicamente alerta, fiz meu inventário naquela mesa de madeira arranhada pela quinta vez na noite. A pistola de dardos Heckler & Koch de Sarah tinha um reluzir fosco na penumbra, com a abertura da coronha escancarada para um carregador. Era uma arma de assassinos profissionais, compacta e totalmente silenciosa. Os carregadores jaziam logo ao lado. Ela tinha enrolado cada um deles em fita isolante colorida para distinguir a munição: verde para sonífera; preto para a carga de peçonha de aranha. A maioria estava embrulhada com fita preta. Sarah tinha usado boa parte da verde nos seguranças da Gemini Biosys na noite anterior.

Minha contribuição individual era menos sutil: a grande Smith & Wesson prateada e as quatro granadas alucinógenas restantes. As finas linhas rubras que contornavam cada cilindro pareciam faiscar de leve, como se prestes a se desafixar dos recipientes de metal e flutuar para o alto, juntando-se aos caracóis de fumaça que subiam do meu cigarro. Des-locamento e deslizamento de significantes alterados, o efeito colateral da tetrameta que eu tinha descolado naquela tarde lá no porto. Geralmente não fumo quando estou careta, mas, por algum motivo, a tetra sempre me deixa com esse anseio.

Sob o rugido distante do turbilhão, eu ouvi. O matraquear urgente de rotores de helicóptero no tecido da noite.

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Apaguei o cigarro, um pouco desapontado comigo mesmo, e fui até o quarto. Sarah dormia, um conjunto de curvas senoidais de baixa frequência sob o lençol solitário. Uma cascata negra de cabelos lhe cobria o rosto, e a mão de dedos longos pendia ao lado da cama. Enquanto eu a observava, a noite lá fora explodiu. Era um dos guardiões orbitais do Mundo de Harlan fazendo um disparo de teste contra o Extremo. Um trovão do céu abalado chacoalhou as janelas. A mulher na cama se moveu e tirou o cabelo do rosto. O olhar de cristal líquido me encontrou e entrou em foco.

— O que é que você está olhando? — Voz rouca com o resquício de sono.Respondi com um sorrisinho.— Não fode — disse ela. — Me diz o que é que você estava olhando.— Estava só olhando. Hora de ir.Ela ergueu a cabeça e captou o som do helicóptero. O sono se esvaiu de

seu rosto, e ela se sentou na cama.— Cadê o material?Aquela era uma piada do Corpo. Sorri como quem vê um velho amigo

e apontei para o caixote no canto do quarto.— Vá pegar minha arma.— Sim, senhora. Preto ou verde?— Preto. Confio tanto nesses vermes quanto confio numa camisinha.Na cozinha, inseri o carregador na pistola de dardos, lancei um olhar

para minha própria arma e a deixei ali. Em vez de pegá-la, passei a mão em uma das granadas A e a apanhei de volta com a outra. Parei à entrada do quarto e senti o peso das duas peças de equipamento, como se tentasse decidir qual era a mais pesada.

— Vai um pequeno extra com seu substituto fálico, senhora?Sarah me espiou por baixo do crescente de cabelos negros que escorria

sobre a testa. Ela estava puxando um par de longas meias de lã sobre as coxas lustrosas.

— É você que tem a cano longo, Tak.— Tamanho não é...Nós dois ouvimos ao mesmo tempo. Um claque metálico duplo no cor-

redor. Nossos olhares se cruzaram, e, por um quarto de segundo, vi meu próprio choque espelhado nela. Então eu estava jogando a pistola de dardos carregada para Sarah, que ergueu a mão e a pegou no ar bem no momento em que a parede inteira do quarto desmoronou num estrondo. A explosão me atirou para um canto no chão.

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Deviam ter nos localizado dentro do apartamento usando sensores de calor corporal e então instalado minas-cracas na parede inteira. Não que-riam correr risco nenhum daquela vez. O comando que entrou pela parede arruinada era atarracado, tinha os olhos de inseto do traje de ataque de gás e segurava nas mãos enluvadas uma Kalashnikov cano curto.

Com os ouvidos apitando, ainda no chão, eu lancei a granada A contra ele. Não estava ativada, e de qualquer forma ela seria inútil contra a máscara de gás, mas o sujeito não teve tempo de identificar o dispositivo que girava em sua direção. Rebateu a granada com a coronha da Kalashnikov e cam-baleou para trás, olhos arregalados atrás dos painéis de vidro da máscara.

— Granada!Sarah estava no chão ao lado da cama, braços envolvendo a cabeça e

protegida da explosão. Ela ouviu o grito e, nos segundos que ganhamos com o blefe, se levantou de novo, com a arma de dardos estendida. Avistei vultos encolhidos atrás da parede, protegendo-se da detonação que esperavam da granada. Ouvi o zumbido de mosquito dos dardos monomoleculares do outro lado do quarto quando ela meteu três tiros no líder. Os dardos rasgaram invisivelmente o traje de ataque e a carne por baixo. O comando fez um barulho como alguém tentando erguer um objeto pesado enquanto a peçonha de aranha cravava as garras em seu sistema nervoso. Sorri e comecei a me levantar.

Sarah já estava voltando a mira para os vultos além da parede quando o segundo comando noturno apareceu escorado na porta da cozinha e a metralhou com o fuzil de assalto.

Ainda de joelhos, eu a vi morrer com claridade química. Tudo correu tão lentamente que era como um vídeo avançando quadro a quadro. O co-mando manteve a mira baixa, segurando a Kalashnikov de forma a evitar o coice do fogo hiper-rápido pelo qual a arma era tão famosa. A cama se foi primeiro, irrompendo em erupções de plumas brancas de ganso e pano rasgado, e Sarah foi logo atrás, pega na tempestade enquanto se virava. Vi uma perna ser destroçada abaixo do joelho, depois os tiros atingiram o torso, arrancando punhados ensanguentados de carne do flanco pálido enquanto ela caía em meio à cortina de fogo.

Eu me levantei às pressas quando o fuzil engasgou e parou. Sarah tinha rolado com o rosto para baixo, como se para esconder o estrago que os projéteis tinham feito, mas pude ver tudo através de véus vermelhos, de

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qualquer forma. Saí do canto no automático, e o comando demorou demais para virar a Kalashnikov. Choquei-me contra ele na altura da cintura, bloqueei a arma e o joguei de volta à cozinha. O cano bateu no batente da porta, e a arma escapuliu de suas mãos. Ouvi o estardalhaço dela caindo no chão atrás de mim ao atingirmos o piso. Com a velocidade e a força da tetrameta, eu me sentei em cima dele, afastei um braço agitado com um tapa e segurei a cabeça com as duas mãos. Depois a esmaguei contra os azulejos como um coco.

Sob a máscara, os olhos dele perderam o foco de repente. Ergui a cabe-ça de novo e a bati de novo, sentindo o crânio ceder frouxamente com o impacto. Esmaguei a cabeça no chão, ergui e esmaguei mais uma vez. Um rugido soava em meus ouvidos como o do redemoinho e, em algum lugar, eu ouvia minha própria voz gritando obscenidades. Estava preparando a quarta ou quinta pancada quando alguma coisa me chutou entre as omoplatas, e estilhaços saltaram magicamente da perna de mesa à minha frente. Senti ardor quando dois deles encontraram um novo lar na minha cara.

Por algum motivo, a raiva de repente se esvaiu. Soltei a cabeça do co-mando quase gentilmente, já erguendo uma mão confusa em direção à dor dos estilhaços no meu rosto quando percebi que tinha levado um tiro e que a bala provavelmente tinha chegado a atravessar o meu peito antes de acertar a perna da mesa. Olhei para baixo, estupefato, e vi a mancha vermelho-escura se espalhando pela minha camisa. Não havia dúvida: era um buraco de saída onde caberia uma bola de golfe.

Com a percepção veio a dor. Parecia que alguém tinha passado uma escova de cachimbo com cerdas de aço brutalmente por dentro do meu corpo. Quase pensativo, ergui a mão, encontrei o buraco e o fechei com meus dois dedos do meio. As pontas desses dedos rasparam a aspereza do osso estraçalhado no ferimento, e senti alguma coisa membranosa latejar contra elas. A bala não me atingira o coração. Grunhi e tentei me levantar, mas o grunhido se tornou tosse, e senti gosto de sangue na língua.

— Parado aí, filho da puta.O grito veio de uma garganta jovem, muito distorcido pelo choque.

Inclinei-me para frente sobre o ferimento e olhei para trás. À porta, atrás de mim, um rapaz com uniforme de polícia segurava com as duas mãos a pistola que tinha usado para atirar em mim. Ele tremia visivelmente. Tossi de novo e me virei de volta para a mesa.

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A Smith & Wesson estava à altura dos olhos, reluzindo prateada ainda onde eu a deixara menos de dois minutos antes. Talvez fossem eles, os exíguos fragmentos de tempo cinzelados desde que Sarah estivera viva e tudo estivera bem, que me impulsionavam. Menos de dois minutos antes eu poderia ter pegado a arma, tinha até pensado nisso, então por que não agora? Cerrei os dentes, pressionei mais forte os dedos no buraco em meu peito e me levantei, instável. O sangue espirrava morno no fundo da minha garganta. Eu me apoiei na borda da mesa com a mão livre e olhei para o policial. Sentia meus lábios se abrindo sobre dentes cerrados, formando mais um sorriso que uma careta.

— Não me obrigue a atirar, Kovacs.Cheguei um passo mais perto da mesa e me escorei nela com as coxas,

minha respiração sibilando entre dentes e borbulhando na garganta. A Smith & Wesson cintilava como ouro de tolo na madeira arranhada. Lá no Extremo, a energia mergulhou de um orbital e iluminou a cozinha em tons de azul. Eu ouvia o chamado do turbilhão.

— Eu falei pra não...Fechei os olhos e agarrei a arma na mesa.

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