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2017 Tradução Alice Mello 1ª edição

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2017

Tradução

Alice Mello

1ª edição

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Ca pí t u lo 1

Quando abro meus olhos, vejo apenas a escuridão.Não consigo me mexer... não consigo falar... não consigo pensar

por causa dessa dor de cabeça lancinante. Fico imóvel, tentando ter alguma ideia de onde estou ou de quanto tempo fiquei apagado, mas nada acontece. Uma coisa eu sei com certeza: estou amarrado a uma cadeira, amordaçado e a minha cabeça está coberta com uma espécie de capuz que fede a suor e vômito.

Não é o que eu esperava de um resgate.Meu pescoço range como uma corrente enferrujada quando me endireito,

a escuridão piora, e a minha cabeça começa a girar. Tudo gira sem parar e o meu estômago desiste de lutar contra o enjoo. Uma saliva quente sobe à minha boca. Eu sei o que acontecerá em seguida, então respiro fundo, ins-piro e expiro até a vontade passar, e fico bem novamente. Permaneço aqui, apenas sentado nessa cadeira, suando loucamente.

Não posso acreditar nisso. Eles me drogaram. Me deram um tipo de sedativo, porque estou calmo demais no momento. É provável que também tenham me dado analgésicos. Não consigo sentir meu ombro, mas o corte que vejo nele é profundo. O deltoide parece carne crua. Até mesmo eu de-veria estar sentindo um ferimento desse tipo.

Ótimo. Muito bom trabalho, hein, governo norte-americano? Basica-mente o mundo inteiro está se acabando. Eu sou uma das poucas pessoas que podem ajudar — e é assim que eles me tratam?

Tento me concentrar para escutar algo. De vez em quando consigo ouvir passos ou um pigarro. Presto atenção aos sons, tentando descobrir quantos homens estão na minha guarda. Dois é o meu palpite.

Atrás de mim, um aquecedor estala sem parar, como se alguém estivesse batendo com uma chave inglesa no metal. O calor aumenta nas minhas costas,

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como a luz do sol. Algo estranho em meio a toda essa escuridão. Após alguns minutos, o aquecedor desliga e o silêncio se aprofunda. Minhas costas estão começando a perder calor quando uma porta se abre bruscamente. Ouço passos que vêm em minha direção e então param. Em seguida uma cadeira é arrastada pelo chão.

É a hora do show. Hora das respostas.— Tire o capuz dele — ordena uma voz feminina.Sinto um puxão, uma onda de ar fresco atinge meu rosto, então fecho

os olhos por causa da claridade. Eu não estava preparado para arrancarem também a mordaça, então alguns pedaços da minha língua são extraídos no processo.

— Leve o tempo que precisar — diz a mulher.Como se eu tivesse escolha. Por alguns segundos, tudo o que posso fazer

é tentar recuperar um pouco de saliva na boca. Faço força contra as amar-ras nos meus braços, seguindo o instinto de coçar meus olhos, que ardem. Demoro um século para conseguir visualizar a figura diante de mim.

Uma mulher — na casa dos 40 anos, acho — está sentada atrás de uma pequena mesa de madeira. Ela ostenta um tom de pele moreno-claro, tem cabelo preto e seus olhos são escuros e brilhantes como garrafas de vinho. O terno azul-marinho parece caro, e a vibe dela é de alguém que tem um doutorado, como se soubesse tudo sobre algum assunto. A ponto de escrever um livro sobre isso. Ela é civil. Posso apostar.

— Olá, Gideon. Meu nome é Natalie Cordero — apresenta-se ela. — Vou fazer algumas perguntas.

Ela cruza as mãos à sua frente e faz uma pausa para que eu saiba que está no controle, que fala com caras iguais a mim todos os dias, mas tenho certeza de que isso é impossível. Não existe ninguém no mundo como eu. Ninguém.

O rastro do perfume dela me atinge — um combo de cítrico floral e al-míscar forte, uma bomba de fragrância, mas é melhor que o fedor do capuz.

Dois homens estão parados atrás dela. O cara de boné dos Texas Rangers é imenso, do tamanho da porta que ele está vigiando. O outro cara é mais compacto, moreno com orelhas de lutador. Ele encosta a mão na pistola Beretta em seu coldre e me lança um olhar que diz, Preciso de uma única desculpinha para usar isto aqui.

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Ambos têm barba, o rosto vermelho de frio e vestem calça jeans, botas de trilha e casacos Patagônia, mas são de algum grupo de operações especiais. Exército ou Fuzileiros Navais. Ninguém consegue exibir essa postura calma, relaxada e totalmente alerta sem ter condições de sustentá-la.

Eu reconheço os caras. Estavam na equipe que me resgatou hoje na No-ruega. Ou ontem... ou seja lá quando foi que isso aconteceu.

Natalie Cordero examina minha camisa e calça cargo, o sangue seco, as partes queimadas, a crosta de lama, a fina camada de cinzas. Admiro que já estive em condição melhor. Em seguida, acompanho os olhos dela até meu ombro. Pelo rasgo da camisa posso ver que meus raptores — que deveriam ser meus aliados — botaram uma bandagem sobre o corte. Legal da parte deles.

— Água? — pergunta Cordero.Tento algumas vezes até conseguir responder alguma coisa.— Sim. Sim, por favor.O guarda maior dos Rangers traz uma garrafa de plástico com um canudo

dobrável. O rosto dele é rosado e quadrado como um tijolo. A barba está ficando branca, os olhos são azuis. É o cara que me apagou em Jotunheimen. Não que eu tenha dado muita opção a ele. Surtei quando Daryn ficou para trás. Eu não esperava que ela fizesse isso. Fui pego de surpresa e perdi to-talmente o controle. Mas isso não pode acontecer novamente. Não posso perder as rédeas da situação, então me concentro nisso enquanto bebo a água, reabastecendo meu corpo desidratado.

Estou em um cômodo pequeno com paredes e chão revestidos por tá-buas de madeira. Até os adornos são de madeira. Se não fui engolido por uma árvore, estou em uma cabana. À minha esquerda há uma janela com cortina xadrez azul. Nem som nem luz passam por ela, então ou é noite ou o vidro tem alguma película. Vou chutar que as duas opções são verdadeiras. A única fonte de luz no cômodo vem do canto, de uma luminária de ferro sem cúpula, apenas com a lâmpada, que deve ter um trilhão de watts ou meus olhos estão sensíveis demais por causa dos remédios.

Uma brisa gelada entra pela fresta de 5 centímetros sob a porta. Não é fácil sentir qualquer odor acima do perfume da Cordero, mas consigo captar carpete velho e lenha queimada. Para uma cela de prisão, até que o lugar é bem aconchegante.

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— Eu deveria ter perguntado mais cedo — desculpa-se Cordero, quan-do minha pausa para beber água acaba. — Prefere que eu chame você de Gideon ou Sr. Blake?

Eu estava certo. Ela não é militar, senão teria me chamado de “Soldado Blake”.

Tento engolir novamente, e a minha garganta começa a melhorar.— Senhora, prefiro que me solte e me diga onde estou.Imediatamente sinto vontade de dar um soco em mim mesmo por causa

do senhora. Ela está me mantendo prisioneiro. Que se danem os bons modos.Ela não responde, então tento outra pergunta.— Ainda estamos na Noruega? — Nada. Olho para os caras na porta.

— Voltamos para os Estados Unidos?— Não posso fornecer essa informação no momento, Gideon — responde

Cordero, decidindo por conta própria como deve me chamar. Eu tenho 18 anos, provavelmente metade da idade dela, então posso entender porque ela não escolheu me chamar de Sr. Blake.

— Por que não posso saber onde estou? Por que tudo isso? — Sinalizo com a cabeça para mim mesmo. — Não vou fugir. Fui eu que chamei vocês, lembra? Eu que pedi ajuda? Então que tal me soltarem?

— Vou liberar você assim que terminar o interrogatório.— Me liberar? — É tão absurdo que preciso rir. — Eu não fiz nada de

errado.— Não? — Ela se inclina para a frente e semicerra os olhos. — Você

causou um dano de milhões de dólares ao Parque Nacional de Jotunheimen. Não acha que isso é errado? O dinheiro para consertar esse estrago vai sair do bolso dos contribuintes norte-americanos. O mesmo povo que pagou para que você e seus amigos se livrassem daquela confusão. Você tem sorte da imprensa ainda não ter se dado conta. Você quase causou uma crise internacional. Tem noção disso? Até eu descobrir o que você estava fazen-do na Noruega e por que decidiu destruir muitos hectares de um campo impecável, você não vai deixar este cômodo. Estou falando sério, Gideon. É melhor se acomodar.

— Você acha que isso aqui tem a ver com o estrago a um pedaço de terra? Com dinheiro?

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— Se eu achasse que era só isso, você não estaria aqui.Não vou ficar nesse joguinho.— Você quer realmente saber o motivo disso tudo? Eu digo para você.

O mal em pessoa está à solta. Corremos perigo... e não estou falando dos cidadãos norte-americanos. Estou falando da humanidade. Estou falando de todo mundo. E você prende uma das poucas pessoas que pode fazer algo a respeito. Então, que tal me desamarrar?

— Desista, Gideon — aconselha ela, ignorando tudo o que acabei de falar. — E antes que fique hostil de novo, eu vou dizer algo a você. Perder a calma não vai ajudar.

Que desperdício enorme de tempo. Preciso sair daqui. Encontrar os outros. Recuperar a chave.

— Onde está o coronel Nellis?Confio no meu comandante. Quero falar com ele, não com uma estranha.— Esse incidente ultrapassa a jurisdição do exército norte-americano

— argumenta ela.— Quem você representa? O Departamento de Defesa? A CIA?— Vou soletrar para você. Eu faço as perguntas, você responde. É assim

que a coisa aqui funciona.Ela não soletrou nada, mas ok. Minha paciência acabou. Hora de trazer

minha fúria à tona.Tento entrar em contato com a minha raiva, com minha espada, com Riot.Mas nada acontece. Meus poderes sumiram. Os remédios neutralizaram

tudo. Estou completamente zerado.Não faz sentido algum, então começo a gritar. Ela está cometendo um

grave erro. Sou do time do bem. Essa mulher não faz ideia de com quem está falando. Tudo que estou dizendo parece mentira e maluquice, mas é a verdade. É a verdade.

Cordero olha para seu relógio.— Parece que está na hora de novo. — Ela via para o cara com a Beretta.

— Controle-o.Beretta tira um saquinho de um dos bolsos da calça, em seguida, veste um

par de luvas de látex e retira uma seringa com agulha hipodérmica enquanto grito e luto contra as amarras, obtendo absolutamente nenhum resultado.

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O cara maior, Texas, se posiciona atrás da minha cadeira e me dá um mata-leão.

— Relaxa — diz ele. — Relaxa.Relaxar é a última coisa que pretendo fazer, mas então estrelas piscam

nas paredes de madeira e a sala se apaga. Eu também. Não estou mais gri-tando porque desmaiei.

Beretta enfia a agulha no meu antebraço e empurra o êmbolo. Uma queimação lenta se espalha pelo meu corpo. Meu rosto fica dormente. Meus músculos relaxam. Eu relaxo.

Não quero relaxar, mas relaxo mesmo assim.Texas me solta, e eu puxo o ar. Com força. Oxigênio é a melhor coisa

que já inventaram.Beretta aponta uma lanterna de bolso para meus olhos.Luz forte.Não é bom.Fechar olhos.Tenho a vaga sensação de que reagi muito lentamente. Reações não

devem acontecer em etapas. A não ser que seja uma só etapa. Uma única etapa controlada.

É... acho que é isso.— O garoto está dopado — diz Beretta ao tirar as luvas. Ele e Texas dão

um passo para trás, voltando à posição de guarda da porta.Manter a cabeça erguida se torna minha nova meta. Não é fácil. Parece

algo como equilibrar uma bola de basquete na ponta do dedo enquanto tento processar um monte de informação ao mesmo tempo. Só que, embora se pareça muito com uma, minha cabeça não é uma bola de basquete.

É. Tô chapado.Cordero descruza as mãos. Ela tamborila os dedos na mesa e me observa.— Agora está pronto para falar?— Você não tem ideia do tamanho disso... que está acontecendo. Não

tem ideia de quem eu sou.Demoro um segundo para perceber que aquelas palavras foram ditas

por mim.Mau sinal.

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Cordero para de tamborilar os dedos.— Então por que você não me conta?Cheguei tão perto de soltar a verdade, toda a verdade, que quase me sinto

como se tivesse feito isso. Há alguma coisa errada aqui. Está rolando um motim dentro da minha cabeça. Todos os meus pensamentos querem sair. A minha história quer sair. Imagens das últimas semanas giram na minha mente, exigindo para serem liberadas. Contê-las exige todo o meu corpo. Estou preso a uma cadeira, mas meu coração está fazendo um triátlon. Meu rosto fica quente, e o fundo da minha garganta começa a coçar. Que porcaria é essa que eles injetaram em mim?

Cordero me dá um tempo.— Ok, Gideon. Vamos tentar novamente em meia hora. — Ela para na

porta. — Posso fazer isso o dia todo. E você?Depois que ela sai, deixo minha cabeça pender para a frente segundo

sua própria vontade.Respire, Blake. Respire.Eu podia ter lidado melhor com a situação. Mas dizer para uma estranha

o que estava acontecendo? Quem eu sou? O que eu sou?De jeito nenhum. Cordero teria entrado em pânico. Teria perdido a cabe-

ça. Mas as palavras continuam na ponta da minha língua. Bem na pontinha.Eu sou a Guerra, quero dizer.Eu sou a Guerra.

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