trabalho sobre treviso e nova veneza

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU – ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA CULTURAL LENIR MATEUS CESCONETTO SANTO ALEXANDRIM – O SAGRADO E O PROFANO NO IMAGINÁRIO ITALIANO DE NOVA TREVISO NO INÍCIO DO SÉCULO XX. CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2005.

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Page 1: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU – ESPECIALIZAÇÃO EM

HISTÓRIA SOCIAL E HISTÓRIA CULTURAL

LENIR MATEUS CESCONETTO

SANTO ALEXANDRIM – O SAGRADO E O PROFANO NO IMAGINÁRIO

ITALIANO DE NOVA TREVISO NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2005.

Page 2: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

LENIR MATEUS CESCONETTO

SANTO ALEXANDRIM – O SAGRADO E O PROFANO NO IMAGINÁRIO

ITALIANO DE NOVA TREVISO NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

Monografia apresentada à Diretoria de Pós-graduação da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, para a obtenção do título de especialista em História Social e História Cultural. Orientador: Prof.(MSc). Lucy Cristina Ostetto

CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2005.

Page 3: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

Aos meus queridos pais, Ignácio e Adelina,

ao nonno Fenili, aos meus tios Salute e

Fidélis, que de outra esfera acompanham

meus passos e crescimento, minha imensa

gratidão.

Page 4: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza
Page 5: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

AGRADECIMENTO

À minha orientadora, professora Lucy Cristina Ostetto, pela sua

compreensão, competência e harmoniosa dedicação e amizade; ao Carola, Nivaldo,

João Bittencourt, Miranda, João Zanelatto, Ancelmo, Paulo Pinheiro, Dorval, Carlos,

Falcão a seu Alexandrino, Garzoni, Bruno, padre Silvestre, Ignes, Norma e Maria

Avelina, pela paciente demonstração de amizade e carinho; à minha filha

Emmanuelle, pelas xícaras de café e inúmeras vezes que teve de salvar a mim e

aos textos, desastrada que sou na lida com o computador; ao meu filho Lorenzo,

abandonado diante da TV, com dezenas de filmes infantis; ao Marcos que,

entendendo a busca pelo objetivo a alcançar, garantiu o ânimo para a construção

deste; aos meus alunos e alunas da Escola de Educação Básica José do Patrocínio,

pela ruidosa companhia e pelas inúmeras fotografias de família que trouxeram para

mostrar como forma de contribuição; aos colegas da pós, especialmente à Nadja,

Pedro Paulo, Marlene e Jajá, pelo privilégio de tão grandiosas companhias; aos

amigos que, de forma insuportável, de uma forma ou de outra, foram relegados a

segundo plano;

A todos, enfim, meus mais sinceros agradecimentos.

Page 6: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

POÉTICA

De manhã escureço De dia tardo De tarde anoiteço De noite ardo. A oeste a morte Contra quem vivo Do sul cativo O este é meu norte. Outros que contem Passo por passo: Eu morro ontem.

Page 7: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

Nasço amanhã Ando onde há espaço - meu tempo é quando.

Vinícius de Moraes.

RESUMO

O presente trabalho versa sobre a formação de Nova Treviso, hoje município que Treviso, surgido do plano de colonização da Colônia Nova Veneza que, ao trazer imigrantes italianos para povoar suas terras. No cotidiano desta colônia, entre o final do século XIX e a quarta década do século XX, surge uma festa anual de aspecto profano caracterizada pela alegria. No espaço social da festa circulam homens e mulheres para quem a sociedade construiu identidades e atribuições que tomou como mais adequadas ou mais apropriadas a cada gênero, a partir da criação de uma relação cultural – e não biológica. Os relatos apresentados são de moradores de Treviso, que viveram tais acontecimentos e o apoio teórico foi possível graças aos estudos de autores brasileiros e estrangeiros que versaram sobre imigração, memória, religião e gênero. Trata-se, pois, no momento deste trabalho, de questionar “verdades” difundidas e, por outro lado, fazer emergir a memória desta festa, um aspecto cultural da cidade que se julgava perdido. Palavras-chave: Festa. Cotidiano. Memória.

Page 8: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 – Foto do imigrante Giovanni Fenili....................................................... 17

Ilustração 2 – Imigrantes de Nova Belluno................................................................ 34

Ilustração 3 – Santo Alexandre de Bérgamo............................................................. 49

Ilustração 4 – Coroação de Nossa Senhora das Graças.......................................... 52

Ilustração 5 – Interior da igreja velha........................................................................ 59

Ilustração 6 – Padre Pedro Pellanda ....................................................................... 60

Ilustração 7 – Procissão 1........................................................................................ 63

Ilustração 8 – Procissão 2......................................................................................... 64

Ilustração 9 – Santas missões de 1955..................................................................... 64

Ilustração 10 – Festa na Praça de Treviso.............................................................. 66

Ilustração 11 – Prédio de Pedro Doneda.................................................................. 66

Ilustração 12 – Crianças............................................................................................ 66

Ilustração 13 – Ponte Nicolau Pederneiras 1............................................................ 71

Ilustração 14 – Ponte Nicolau Pederneiras 2............................................................ 71

Ilustração 15 – Moças............................................................................................... 73

Ilustração 16 – Rapazes............................................................................................ 73

Ilustração 17 – Namoro............................................................................................. 78

Ilustração 18 – Casamentos 1................................................................................... 83

Ilustração 19 – Casamentos 2................................................................................... 83

Page 9: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Imigração no Brasil de 1820 a 1908............................................... 30

Tabela 2 - Lotes e seções da Colônia Nova Veneza........................................ 31

Page 10: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11

2 UM TOQUE DE ILUSÃO........................................................................................14

2.1 “Mas estes esfomeados, que coisa não comem?” ..............................................19

2.2 Viagem penosa.................................................................................................... 22

2.3 O mito encaixotado e vendido..............................................................................25

2.4 Mão-de-obra no Brasil: da escravidão à imigração..............................................26

2.5 "Brasil da Cocanha": o mito que se dsvenda.......................................................29

2.6 A Colõnia Nova Veneza ......................................................................................31

3 A MEMÓRIA RECONSTRUINDO O PASSADO......................... .......................... 35

3.1 Cadeia de pertencimento.................................................................................... 36

3.2 Verdades transitórias........................................................................................... 41

3.3 Uma festa extra .................................................................................................. 44

3.4 Um soldado romano da Colônia Nova Veneza................................................... 49

4 PÚBLICO E PRIVADO ...........................................................................................55

4.1 Elaboração e reelaboração de imagens..............................................................56

4.2 Festa sagrada .....................................................................................................59

4.3 Festa Profana......................................................................................................66

4.4 Jogo de múltiplos interesses............................................................................... 70

4.5 Um acidente e o desaparecimento da festa profana........................................... 85

5 CONCLUSÃO.........................................................................................................89

REFERÊNCIAS.........................................................................................................93

Referências Orais ..................................................................................................... 93

Referências Iconográficas......................................................................................... 94

Referência Manuscrita.............................................................................................. 97

Referências Bibliográficas......................................................................................... 98

APÊNDICE.............................................................................................................. 104

ANEXOS.................................................................................................................. 105

Page 11: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

11

1 INTRODUÇÃO

Faltava menos de uma década para o século XX quando grandes grupos

de italianos saíram de sua pátria em direção à América, especialmente o Brasil, para

o trabalho na indústria cafeeira do Sudeste ou para povoar a Região Sul do país,

num movimento que seria responsável pela origem de diversas cidades e

municípios, entre eles Treviso, no ano de 1891. A maioria fugia das precárias

condições de vida existentes em seu país, que levava a graves quadros de fome em

toda a Itália, obrigando-os às migrações no entorno ou à emigração. A caminhada

até o porto, a trajetória do Atlântico, a viagem de trem até próximo de Urussanga e o

final do trajeto, à pé, até seu destino final mostraram que a propaganda feita pelos

agentes recrutadores não tinha sido exatamente honesta. Milhares de quilômetros e

a falta de recursos os separavam do arrependimento e da possibilidade de retorno,

restando apenas uma alternativa: a de ficar e garantir condições de sustentabilidade

aqui, no Brasil. Com a garantia inicial dos responsáveis pela Colônia Nova Veneza,

fundaram aqui uma sociedade agrária, tendo como elemento aglutinador a

religiosidade e a vida que circulava em torno da capela, com suas missas e festas

religiosas.

Para padroeiro de Treviso foi escolhido Santo Alexandre, um soldado

romano que serviu ao exército no Egito, cristão convicto que foi supliciado e

transformado em santo e profundamente reverenciado em Bérgamo, na Itália. Sua

festa, no Brasil assim como na Itália, era celebrada anualmente em 26 de agosto,

mesmo em dias de semana e no dia subseqüente, aqui, fizeram surgir a festa

profana de Santo Alexandrim, marcada por corridas de cavalos e bailes.

Page 12: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

12

Resgatar a memória cultural social através de uma das suas mais

expressivas formas de resistência e transgressão, tornou-se um dos objetivos do

projeto que gerou este trabalho, assim como registrar a História Cultural e Oral do

município, presente nas lembranças de seus habitantes mais antigos, analisando os

possíveis motivos que levaram a realização da festa profana e as diferentes

atividades do dia, assim como o comportamento da população durante os dias em

que esta se realizava. Era necessário também analisar a função social da festa e os

aspectos relacionados ao seu final.

Para que o trabalho começasse a ganhar estrutura, foram selecionadas as

pessoas que haviam participado da festa e assim, da memória social de dona

Norma, seu Alexandrino, seu Garzoni, dona Maria Avelina, seu Bruno e dona Ignes

surgem as vozes necessárias ao retorno da história desta festa singular. Para dar

uma estrutura acadêmica, autores brasileiros e estrangeiros relacionados às

questões de imigração, memória, História Cultural, gênero e estudos femininos

foram lidos, catalogados e citados.

As questões que levaram à emigração foram amplamente estudadas no

Primeiro Capítulo, denominado “Um toque de ilusão”, iniciando pelo contato da

autora com o avô imigrante – que aqui chegou com tenra idade, contato este

acontecido entre o final da década de 60 e início da década de 80, quando este veio

a falecer – tendo como apoio de estudos autores brasileiros e italianos. O trabalho

privilegia características macro-estruturais como a economia italiana e brasileira no

século XIX, assim como as condições de clima e relevo do norte da Itália e as

dificuldades relativas à viagem, até sua chegada ao novo destino, sua instalação na

terra e o processo de desenvolvimento econômico. Destaca-se nesta parte da

pesquisa o trabalho dos brasileiros Roselys Isabel Correa dos Santos e Zulmar

Bortolotto e do italiano Renzo Grosselli, entre outros.

Page 13: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

13

O contato, no passado, com Salute, uma especialíssima contadora de

histórias, levou ao início do Segundo Capítulo, “A memória reconstruindo o

passado”, onde se discutem as questões de memória, o que ela guarda e o que

esquece e a forma com que a História Cultural se apropria dela para existir. Entre

outros autores, Ecléa Bosi, Maurice Halbwachs e Célia de Toledo Lucena dão o

suporte teórico necessário para a escrita da História-memória. Também aqui se

encontra a apresentação da festa profana de Santo Alexandrim.

Ao reconstruir e tornar visíveis os papéis de homens e mulheres de Nova

Treviso, este trabalho ganha estrutura e se ergue, permitindo que no Terceiro

Capítulo, intitulado “Público e privado” – iniciado pela lembrança da festa sagrada,

décadas depois do desaparecimento da festa profana – sejam estudadas, com o

auxílio da memória de quem dela participou, a Festa Sagrada, a Festa Profana, o

cotidiano permeando as relações de gênero, este trabalho se apresenta,

humildemente, como uma tentativa de confronto entre temporalidades, conteúdos e

sujeitos diferenciados, fugindo da “história dominante”, repensando os parâmetros

que formam a interpretação que se faz da História. O texto baseia-se nas entrevistas

com homens e mulheres que, jovens ainda, participaram desta festa e contribuíram

com seu relato do cotidiano de uma época e também nos textos teóricos de autores

relacionados aos estudos de gênero e estudos femininos.

Page 14: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

14

2 UM TOQUE DE ILUSÃO

Os olhos eram de um azul profundo, coroados por espessas sobrancelhas

brancas. Com cerca de um metro e noventa de altura, ele possuía o encantamento

próprio das pessoas mais velhas que sabem o que querem e o que fazem e que já

viveu o suficiente para tomar decisões sábias. No início da década de 70, assim era

meu avô, o “Nonno Fenili” para a família e o “Seu João” para a comunidade de

Treviso. Quando alguém perguntava sobre sua juventude, ele quase não falava.

Baixava a cabeça em silêncio, seu rosto expressava dor e saudade e então se

retirava para seu quarto. Ali, havia apenas uma cama de cedro, semelhante a uma

moderna cama tubular (e sob ela, um penico), uma cômoda, também de cedro –

com três gavetas grandes em baixo, duas menores em seguida e por cima três

gavetas, sendo a do meio com chave, bem pequena, onde se guardava documentos

– uma mesa pequena com gaveta, toda ela curiosamente pintada de laranja e uma

cadeira com assento de palha. Sobre a cômoda, havia uma bacia de alumínio, um

copo com ramos bentos, uma garrafa com água benta, um rosário preto, uma toalha

de crochê feita pela primeira esposa, Amábile – minha avó – e um quadro de Santo

Antônio de Pádova. Tudo espartanamente asseado.

Ao elaborar esse trabalho, me perseguia uma preocupação: como eu poderia

interpretar e transcrever a história, nuançar diferenças, circular por seus meandros e

veredas, submergir em suas subjetividades, suas múltiplas visões do real? Como

encontrar um caminho que me levasse a uma história diferente da chamada

“história-batalha”, aquela dos heróis, da elite, da classe dominante, encontrando o

caminho para uma história transversal, que tivesse como base a cultura enquanto

um conjunto de significados construídos e partilhados pelo homem para explicar o

Page 15: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

15

mundo? A obra de Sandra Jatahy Pesavento1, acerca da História Cultural ofereceu-

me um dos suportes necessários à obra, como também o trabalho de Roger

Chartier2 sobre o mesmo tema, que afirma ser esta uma história em que delimitava-

se um novo campo, distinto tanto da antiga história intelectual literária como da

hegemônica história econômica e social.3

Agora relembro minha infância, um avô não dado a carinhos, na realidade

meio duro e quase sempre sério, mas cujos olhos relampejavam de azul profundo,

um carinho que eu sabia real. Nos dias frios de inverno ou no tórrido calor de

dezembro, ele sempre achava um tempinho para uma conversa com as netas. O

semblante, sério, afastava muitas pessoas, que se referiam a ele como mal-

humorado. Bem, acho até que era mesmo. Mas como esquecer as tardes no banco

da praça em que ele resolvia fazer suas rendas maravilhosas? Logo aparecia uma

folha de papel de embrulhar pão, bem branquinha, e uma tesoura, que ele mesmo

cuidava de manter o gume impecável. Com cuidadoso capricho a folha começava

então a ser dobrada.

- “Nina, tem que ser assim. Se dobrar de outro jeito, na hora de cortar,

estraga tudo. Tem que jogar o papel fora e papel é caro!”, ele dizia. Depois, fazia

recortes. Um maior no centro. Depois, com esmero, toda a folha ia recebendo

pequenos cortes e o desenho de um pássaro, de uma flor, de uma casa, ia surgindo

no papel dobrado. E quando era aberta – Oh! Maravilha! –, surgia na folha, diante de

olhos extasiados, a mais bela renda que meus olhos de menina já tinham

contemplado. Nem mesmo os lençóis brancos novos, com “gregas” e bordado

inglês, que tinham sido feitos para aquele Natal, tinham desenhos mais belos. Nem

1 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2.ª ed Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 132 p 2 CHARTIER, Roger . A história cultural – entre práticas e representações. Lisboa: Difel / Bertrand Brasil. S.d. p. 13 a 28. 3 Idem. p. 15

Page 16: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

16

eram, tão delicados, carinhosos e frágeis como aquele papel branco. Nem como

minha memória.

Lembrar, mais do que deslocar para hoje as imagens do passado, é

interpretar os fatos já vividos a partir das experiências do presente4. Logo, a

memória se instala entre o espaço e o tempo sendo relativa ao que acontece em

torno. Por espaço entendemos o situar-se em um contexto, quando a memória

delimita um local onde um fato se desenrolou, enquanto o tempo é formado por

momentos particulares da vida de cada um. Então, ao lembrar de algo, nos

remetemos a um determinado local do passado em determinado momento. A

memória, porém, é seletiva: certos elementos do passado deixam em nós vestígios

menos duradouros que outros, retendo apenas o que é excepcional e os fatos que

nos fazem sofrer por vezes são expurgados ou pelo menos tornados menos

amargos.

Quem de nós não sofreu com a perda de um ente querido e temos a

sensação de que a dor não vai passar nunca, até que um belo dia, os fatos se

tornam menos fortes e as feridas já não estão abertas? Ou após uma decepção em

relação a alguém importante, vemos o tempo desbotando os motivos que levaram à

dor? Ou até os momentos alegres em que temos a sensação que já não causam

tanto prazer? Então o cotidiano é eliminado através do implacável esquecimento.

Conversando com meus alunos e alunas, perguntei a eles se sabiam

quem eram seus bisavós ou se sabiam quem havia estudado naquela sala há quinze

anos atrás. Eles não sabiam – e nem eu tampouco – e, no entanto, meninos e

meninas tinham estado naquele ambiente, ocupando aquelas carteiras e assim

como eles, se achado imortais. No entanto a memória individual, da família, da

escola, da sociedade é seletiva e descarta irremediavelmente aquilo que

Page 17: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

17

consideramos “normal”, o que é considerado cotidiano, o fato vulgar. Segundo

Michel de Certeau, “longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória

vive de crer nos possíveis e de esperá-los, vigilante, à espreita.” 5 Célia Toledo

Lucena, ao analisar a memória de migrantes afirma que os

Símbolos e os emblemas dos migrantes [...] podem ser reconhecidos nos ritos, manifestações, festejos, valores, costumes, religiosidade. Através desses símbolos, é possível reconhecer o processo de construção de uma comunidade [...] este imaginário coletivo é condição de sobrevivência [..] no lugar de destino e de definição de identidade social.6

A memória seria, portanto, uma forma de manter a própria identidade

enquanto grupo, no caso, aquele de imigrantes italianos, ao qual pertencia meu avô.

Ao ensinar seus trabalhos artísticos, aprendidos na infância, possivelmente com seu

pai ou sua mãe, ele demonstrava esse sentimento de pertença a um grupo e sua

necessidade de continuidade do que houvera aprendido.

Ilustração 1 - Imigrante Giovanni Fenili, década de 70.

4 LUCENA, Célia Toledo. Arte de lembrar e de inventar – (re) lembranças de migrantes. São Paulo: Arte e Ciência, 1999. P. 81 5 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. P. 163 6 LUCENA, Op. Cit. p. 80

Page 18: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

18

O emigrante Giovanni Fenili nasceu em Levati, na província de Bérgamo,

Itália, em 26 de maio de 1880 – dia de Nossa Senhora do Caravaggio – filho de Luigi

e Francesca Fenili. No final do ano seguinte, quando a situação os levou à fome em

seu país, seus pais emigraram para o Brasil e com eles vieram Francesco, Battista e

Federico, irmãos de Luigi, dando entrada na Colônia Nova Veneza, em 24 de

fevereiro de 1882. 7.

Quando as primeiras famílias de imigrantes chegaram era Natal e as

crianças sabiam que naquele ano não haveria presentes debaixo da árvore

enfeitada. Bem, na verdade também não haveria uma árvore enfeitada. Para o grupo

que se amontoava diante da casa de troncos roliços, com cheiro de madeira cortada

a pouco, parecendo náufragos, aquele seria um final de ano incomum. O ano era

1891. O local era Nova Treviso, um dos núcleos da Colônia Nova Veneza, no sul do

estado de Santa Catarina. O grupo, estupefato, era formado por imigrantes italianos

que deveriam estar chegando ao paraíso, ao “paese di Cuccagna”.

O responsável direto por tal estado de coisas era um siciliano de nome

Miguel Napoli8, diretor da Companhia Metropolitana de Imigração, empresa

proprietária daquelas terras. Mas ali eles estavam fugindo da fome que assolava os

campos agrícolas do norte da Itália. E porque o Brasil precisava deles aqui.

Haveria alguém a se perguntar o porquê ? A produção historiográfica

relacionada à imigração italiana é alvo de muitos estudos na Itália9 e no Brasil10, no

sentido de explicar as razões sociais, políticas e econômicas que levaram um grande

contingente de italianos a emigrarem para o Brasil

7 BORTOLOTTO, Zulmar H. História de Nova Veneza. Nova Veneza, Prefeitura Municipal, 1992. p. 313 8 Idem. p. 69. 9 Com destaque nesta obra para o trabalho do italiano GROSSELI, Renzo Maria. Vincere o morire. Contadini trentini (veneti e lombardini) nelle foreste brasiliane. Trento: Edizione a cura della Província Autonoma di Trento, 1986.

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2.1 “Mas estes esfomeados, que coisa não comem?”

Do norte da Itália afluíram os maiores contingentes de imigrantes para o

Brasil. A área compreendia cidades das regiões do Vêneto, formado por sete

Províncias: Veneza, Vicenza, Pádua, Rovigo, Belluno, Treviso, Rovigo e Údine (hoje,

Údine pertence ao Friul, mas à época, pertencia ao Vêneto); Lombardia, formada por

nove Províncias: Milão, Bréscia, Bérgamo, Varese, Como, Pavia, Cremona, Sôndrio

e Mântua); e o Trentino Alto-Adige, formado por duas áreas distintas: a parte

meridional, que tem em Trento sua capital e a parte setentrional, conhecido como

Alto-Adige, com capital em Bolzano. A área também é conhecida como Tirol Italiano

ou Tirol do Sul, que pertencia à Áustria, sendo, porém, etnicamente italiano11.

Segundo Grosseli, o decorrer da “[...] vida política trentina por todo o curso do século

XIX, girou inteiramente em torno do problema de identidade nacional dos trentinos e

tais problemas se prolongaram até 1918, data em que a região passou a fazer parte

do Reino da Itália”. (tradução livre)12

Segundo Luís A. de Boni e Rovílio Costa, o problema da emigração

passa pela Unificação dos Reinos da Itália, efetivado em 1870, que,

economicamente significou a vitória definitiva do Capitalismo sob as antigas

instituições. Assim, o norte, onde se desenvolveu a produção industrial, tornara-se

economicamente mais forte, que o sul agrário. Porém, não houve muito além de uma

remanejo de forças, quando

o clero perdeu sua autoridade decisória, e a burguesia industrial assumiu o papel de componente principal do novo sistema, no qual, contudo, a oligarquia rural continuou sendo representada e vendo respeitados seus interesses. Sintomático o fato de que se tenha substituído o papa por um rei. A unificação, pois, ao abrir as portas para o capitalismo, aconteceu sem uma revolução. Por isso, os custos foram pagos por aqueles que dela deveriam esperar proveito. 13

Na Itália, um dos motivos apontados para a forte corrente emigratória foi a

introdução do modo capitalista de produção na agricultura14, que levou à falência

10 Com destaque para SANTOS, Roselys Izabel Correa dos. A terra prometida: emigração italiana: mito e realidade. 2. ª ed. Itajaí: ed. da Univali, 1999, e BORTOLOTTO, op. Cit., entre outros. 11 SANTOS. Op. Cit. p. 66 – 79. 12 “La vita politica trentina per tutto il corso del secolo XIXº girò interamente attorno al problema dell’identità nazionale dei trentini e tale problema prolungò la sua portata fino al 1918, data in cui la regione entrò a far parte del Regno d”Italia”. GROSSELI. p. 22. 13 BONI, Luís A. de. COSTA. Rovílio. Os italianos do Rio Grande do Sul. 3.ª ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia. Correio Riograndense. Universidade de Caxias do Sul. p. 50. 14 BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 8

Page 20: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

20

dos pequenos proprietários que não conseguiram concorrer com a concentração

fundiária, provocando o endividamento dos camponeses, que acabavam alienando

seus bens em pagamento da dívida ou asfixiados pelos pesados impostos cobrados

pelo recém-unificado Estado italiano.

A região onde se revelaram os maiores índices de emigração foi o

Trentino, que segundo Grosseli, apresentava uma superfície de 6.212,66 km2, sendo

apta à agricultura apenas 15%. Cerca de 70% deste território está situado a altitudes

superiores a 1.000 metros, com temperaturas que, no inverno, são inferiores a -15º

C. Associados a um pequeno índice de ocupação territorial - 60 habitantes por

quilômetro quadrado e, portanto inferior a outras áreas do país, os índices acima

citados favorecem o aparecimento de uma agricultura de subsistência, dificultando a

criação de uma forte estrutura agrícola. 15 Pela ausência de modernas técnicas, os

solos, já raros, se esgotavam, produzindo apenas o estritamente necessário.

Nestas condições de difícil sobrevivência, o Estado unificado italiano

deixa de receber em espécie os seus impostos, passando a realizar a cobrança em

valores monetários. Inadimplentes no pagamento dos impostos e taxas, camponeses

são obrigados a entregar suas terras, levando o leilão milhares de pequenas

propriedades e à miséria ao norte da Itália. 16 Os meeiros, lavradores que alugam

um terreno dando em forma de pagamento uma parte de sua produção, deixam de

ter condições de pagar sua dívida, uma vez que a produção mal é suficiente para

cobrir as necessidades do seu núcleo familiar. Na incipiente indústria italiana, a

maioria daqueles que procuravam emprego esbarrava na ausência de mão-de-obra

especializada para oferecer e o desemprego torna a situação ainda mais difícil.

No século XIX, nas Províncias italianas de Treviso e Belluno, episódios

bizarros, marcados pela fome, foram publicados em artigos na Europa:

Cada vez que morre em um estábulo do Polesine (região do baixo Pó, atual Província de Rovigo, na região do Vêneto), de qualquer doença, um boi ou uma vaca, o veterinário do lugar ordena o sepultamento. E isto é executado por três ou quatro camponeses, na presença do oficial de Justiça do Município. Mas apenas estes se afastam poucos passos, sucede uma cena macabra.Vinte ou trinta camponeses armados de pás, machados, foices e de facas se aproximam rapidamente, desenterram o animal e o fazem em pedaços, procurando cada um as partes melhores.Para disputar uma meia coxa, as tripas e o fígado, estes improvisados carniceiros, todos

15 GROSSELI. Op. Cit. p. 46 – 48. 16 BONI e COSTA. Op. Cit. p. 60. “Entre 1873 e 1881, nada menos de 61.831 pequenas propriedades foram tomadas pelo fisco por falta de pagamento de impostos, que muitas vezes não iam além de umas poucas liras; entre 1884 e 1901, o número de propriedades perdidas pelos contadini por impossibilidade de pagar impostos se elevou para 215.759; as vendidas judicialmente por dívidas a particulares somaram 70.774 entre 1886 e 1900”

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ensangüentados, com os olhos alucinados pela avidez e fome, ameaçam-se gritando sempre e agredindo-se.[...] Apenas os camponeses apanham a sua parte do butim, correm para casa e colocam a carne para ferver na panela onde fazem a polenta. Geralmente é carne insípida, nauseabunda, de animais que sofreram uma longa doença e tomaram toda a sorte de medicamentos, mas estes esfomeados que coisa não comem? Estes fazem empanturramentos solenes nestas ocasiões; faz algum tempo, um habitante de Villanova morreu de indigestão depois de uma dessas comilanças. Quando morre um animal de carbúnculo ou de uma doença contagiosa, o veterinário, conhecendo os usos do lugar, ordena que nas carnes do cadáver se façam grandes cortes e se coloque petróleo. E muitas vezes, nem estas preocupações servem para que o lugar do enterramento se mantenha inviolado: há quem tenha estômago para comer também carnes infectadas. 17

A carne desapareceu completamente da mesa da população pobre,

exceto por alguns passarinhos que capturavam – polenta e osei – era um dos pratos

preferidos da região, levando à escassez de aves silvestres – e a base de

alimentação passou a ser o milho. Segundo Santos18, quando o milho apareceu no

meio rural do norte da Itália, tornou-se o alimento das classes menos favorecidas e a

polenta passou a ser consumida em todas as refeições do dia, sendo, por vezes, o

único alimento da família. Como conseqüência dessa alimentação deficiente, surgiu

doenças como a malária e a pelagra, terrível doença causada pela avitaminose, que

leva à loucura e consequentemente à morte. Esta população, em termos gerais,

muito já havia perdido em qualidade de vida, no decorrer do século XIX. Segundo

Boni e Costa,

Comparados com a população rural de outros países da Europa Ocidental, os colonos italianos apresentavam um quadro lúgubre: eram dos mais atrasados, com índices de analfabetismo elevados, enquanto outros países há séculos, por vezes, já haviam erradicado este mal. 19

Na Província de Belluno, na Região de Trento e na Lombardia, segundo

Grosseli20, os fenômenos migratórios não eram incomuns. A ausência de uma

indústria que garantisse um salário obrigava camponeses à migração sazonal,

geralmente em época de colheitas, trabalhando no sul da Itália ou em países

vizinhos, na tentativa de fugir do fantasma da fome. A emigração permanente,

17 SANTOS. Op. Cit. p. 115 – 117. 18 Idem. ibidem. p. 130. 19 BONI e COSTA. Op. Cit. p. 52. “Em 1871 o Vêneto contava 65% de analfabetos na população acima de 6 anos de idade, o Piemonte 42% e a Lombardia 45%, taxas que em 1911 haviam baixado respectivamente a 26%, 11% e 13%, enquanto para o país era de 37 %. A instrução era muito prejudicada pela falta de professores e pela participação das crianças nos trabalhos agrícolas e nas manufaturas, apesar da proibição legal da ocupação de menores de 12 anos nas indústrias”. p. 61. 20 GROSSELI, apud SANTOS. Op. Cit. p. 93

Page 22: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

22

porém, ainda não era comum, apesar de já haverem alguns registros anteriores a

1870.21 A fuga do quadro de miséria que assolava os italianos aparece na forma de

emigração para a América, naquele momento a única saída para não morrer de

fome.

2.2 Viagem penosa

A emigração italiana para a América, segundo Santos, ocorre em três

momentos distintos:

a) Na metade do século XIX, quando grandes contingentes populacionais saíram

principalmente do norte da Itália, atormentados pela miséria;

b) Do final do século XIX até 1914, fugindo dos problemas que originariam a

Primeira Guerra Mundial, que ocorreria entre 1914 e 1918;

c) No período entre guerras, fugindo dos horrores do conflito. 22

Quando as empresas colonizadoras enviavam os propagandistas para o

recrutamento de famílias que poderiam emigrar para países americanos, entre eles o

Brasil, normalmente eram escolhidas famílias com cinco ou seis membros, entre 16

e 50 anos, que apresentassem boas condições de trabalho e alguma profissão.

Segundo Grosseli, os passaportes dos imigrantes não indicavam “uma América”,

mas apenas “para América”, 23 ou seja, não indicava a qual país americano estavam

destinados, mas somente à “América”, um outro mundo, em que seus sonhos

recheavam de inúmeras oportunidades. Um grande passo a ser dado. Grandioso,

porém, sem retorno.

O Ministero degli Interni, em 1876, se referindo à “febre americana” de

imigração afirmava que o fenômeno apresentava os “sintomas característicos de

uma epidemia, com a força irresistível da superstição e com um entusiasmo quase

religioso, se expandindo pelos nossos vales o espírito da emigração para terras

21 BONI e COSTA. Op. Cit. p. 53 22 SANTOS. Op. Cit. p. 42-43. 23 GROSSELI. Op. Cit. p. 79

Page 23: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

23

distantes e desconhecidas.” 24 Ao alimentarem o mito do “País da Cocanha”, os

agenciadores levavam a ilusão para quem não tinha mais sonhos e a fome era uma

realidade que grassava entre a população. Assistir a morte de um filho ou de mais

membros da família não era um quadro incomum. Edmondo De Amicis 25, citado por

Roselys Santos, registra, no embarque de emigrante, alguns desses casos de

morte:

Da entrada maior escancarada vi uma mulher que soluçava alto, com o olhar no beliche: entendi dizer que poucas horas antes de embarcar morreu, repentinamente, uma menina sua, e que seu marido teve que deixar o cadáver no escritório da Segurança Pública do porto para que a levassem ao hospital. 26

Ao se decidirem pela emigração, eles vendem tudo o que não pode ser

carregado, levantando uma pequena quantia em dinheiro. Até que em um dia

qualquer, reúnem a família, se despedem daqueles que não quiseram ou não

puderam partir e seguem pelas estradas, levando seus poucos pertences em malas,

mochilas, baús, caixas ou ainda em trouxas que carregam sobre as cabeças,

dormindo ao relento quando a estação ferroviária era distante da sua cidade ou vila.

Ali, nas estradas do norte da Itália, estão pais, mães, cunhados e cunhadas,

crianças, bebês de colo, além de avós ou tias que não tinham com quem ficar, que

carregam nas mãos, além das malas, a esperança de fugir da miséria. Então, um

espetáculo desolador poderia ser presenciado nas estações ferroviárias cheias de

pessoas que não sabiam se retornariam num assustador fenômeno migratório. O

periódico italiano L’Eco di Bérgamo, de 24/05/1888 publicava na primeira página:

No ano passado anunciamos que a crescente emigração despovoou uma localidade na Província de Treviso e que o reverendo pároco, já velho, com os últimos paroquianos que partiam para a América, partiu também ele, não tendo coração para abandonar seus diletos filhos sem os socorros do ministro de Deus. 27

A religião para o imigrante parece transformar-se em um fator de

integração cultural, de identificação cultural em um momento em que o abalo sofrido

tende a fazer desmoronar a vontade e, por conseguinte, a perda da identidade e o

possível “acaboclamento”. 28 Provenientes de um mundo agrário, a religião toma a

24 Idem. ibidem. p. 96 25 DE AMICIS, Edmondo. Sull’Oceano. Milano: Treves, 1889. Apud. SANTOS. Op. Cit. Ver referência 26 SANTOS. Op. Cit. p. 55 27 Idem. p. 94. 28 BONI e COSTA. Op. Cit. p. 110.

Page 24: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

24

forma de elemento aglutinador e que possibilitou a manutenção de seu mundo

cultural. A preocupação com o apoio religioso aparece no texto de Abati29:

O alvoroço, então, aumentava todos os dias e muitas famílias resolveram aproveitar a emigração decretada pelo rei e vir morar no Brasil. [...] No entanto eu completava 3 anos de idade, e meus pais que já tinham resolvido também de emigrar, me levaram a cidade de Bérgamo e procuraram o Bispo da catedral de Santo Alexandre, Dom Caetano Camilo Ghindani que administrou-me o Sacramento do Crisma...30

Os trens os levarão ao porto italiano de Gênova ou ao porto francês de La

Havre31, onde tomarão os navios que os conduzirão à América, com destaque para

o navio italiano “Andrea Doria” e os franceses “Bretagne” 32 e “Cashemere”33.

Mas para alguns, o sonho terminava no porto, quando o médico da

agência de imigração, após minucioso exame, impedia a muitos de entrar no navio,

principalmente aqueles fracos ou doentes, por isso:

Num determinado momento, ouviram-se gritos furiosos no escritório dos passaportes e se viu acorrer gente. Soube-se depois que era um camponês, com a mulher e quatro filhinhos, que o médico reconheceu efeitos da pelagra. Às primeiras interrogações, o pai revelou-se louco, e sendo-lhe negado o embarque, havia tido uma crise. 34

Ali, viajarão entre 16 a 40 dias, dependendo das condições do tempo, em

compartimentos que separavam homens em um andar e mulheres e crianças no

outro. Ali, seus sonhos encontrarão muitas provações. Mas o firme propósito destes

homens, mulheres e crianças venceram adversidades, para testar outras...

29 ABATI, José. Manuscrito da fundação de Treviso. 1963. Giuseppe Abati, filho de Camilo e Maria Abati, entrou, com seu irmão Luigi, como imigrante no Brasil em 18 de dezembro de 1891, com 3 anos de idade e registrado no livro de Zulmar Bortolotto, História de Nova Veneza (ver Referências). Em 1908, trabalhou por dois meses, na construção da rede que abasteceria de água a cidade de Florianópolis. Em novembro do mesmo ano, caminhou por 12 dias até chegar ao Rio do Peixe, onde trabalhou na construção da estrada. Depois de trabalhar em Itajaí, São Francisco do Sul, Paranaguá, Lages, Curitibanos, Campos Novos e mais tarde em Curitiba, volta a Treviso, onde se casa com Maria Casaletti, segundo ele “esposa exemplar e mãe dedicada” (p. 46). Em 1918 assumiu o cargo de primeiro professor de Treviso, lecionando em italiano. Em 1920, por ordem do governo, foi afastado por não falar português, mas após 4 anos trabalhando em outras atividades e estudando a língua, foi admitido pelo governo de SC como professor efetivo. Ainda em Treviso, depois de se aposentar, foi carpinteiro, capelão e coveiro, vindo a falecer em 27 de maio de 1979. Este manuscrito hoje é propriedade de sua filha Avelina Abati, residente em Treviso. 30 ABATI. p. 46 31 BORTOLOTTO. p. 11 32 Idem. p. 12 33 ABATI. p. 2. No texto original, grafado “Caquemir” 34 SANTOS. Op. Cit. p. 55

Page 25: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

25

2.3 O mito encaixotado e vendido

Uma vez definida qual a população alvo para a emigração, as empresas

de emigração passaram a contratar pessoas que pudessem arregimentar para seu

intento. Torna-se evidente que os propagandistas atingiram o imaginário da

população italiana miserável, cuja luta pela sobrevivência que já haviam levado à

movimentações de populações inteiras.

No universo judaico-cristão, aparece na Bíblia Sagrada a saga de Moisés,

que faz com que seu povo fuja da opressão egípcia, seguindo pelo deserto, em

busca da “terra onde corre leite e mel”. 35 Era, portanto uma emigração em direção

ao paraíso, acessível ao homem ainda em vida, onde poderia viver sem percalços,

feliz, o seu dia a dia. Um desejo de mudar o status quo.

Carlo Ginsburg, em seu livro O queijo e os vermes, ao examinar os autos

do processo do moleiro Menocchio, penetra nas concepções e crenças de um

indivíduo que viveu na Idade Média, que idealizava um “mundo novo”, que ele

acreditava ser real a partir de suas leituras da literatura medieval e que o remetia a

esse mundo utópico. Talvez alheio à miséria que o circulava, talvez querendo fugir

dela, Menocchio vive uma realidade forjada em suas próprias crenças, abundante e

de muitas oportunidades:

Uma montanha de queijo ralado / se vê sozinha no meio da planície, / e um caldeirão puseram-lhe no cimo... / Um rio de leite nasce de uma gruta / E corre pelo meio do país, / Suas margens são de ricota... / [...] Todos têm o que querem facilmente / e quem pensasse em trabalhar / pra forca iria e o céu não salva... / Lá não há camponês nem citadino, / Todos são ricos, têm o que desejam...” 36

O país da Cocanha! Este local, na concepção do imaginário europeu, era

um local ao revés do cotidiano, livre das alternâncias e oscilações da realidade,

distante da miséria, da fome, das regras sociais e principalmente do trabalho.

Conforme coloca Ginsburg, o país da Cocanha é múltiplo, “provavelmente exagero

da imagem já mítica, que os primeiros viajantes forneceram das terras descobertas

além do Oceano e de seus habitantes.” 37 Documentos de Pero Magalhães

Gandavo, de 1576, intitulados Tratado da Terra do Brasil e Histórias da Província de

35 ÊXODO. Bíblia Sagrada. Cap. 33. Ver. 3 36 GINSBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 165 e 166.

Page 26: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

26

Santa Cruz, registrados na obra de Flávio de Campos também relata este “mundo

melhor”, associando-o ao Brasil:

Esta província é à vista mui deliciosa e fresca em grande maneira: toda está vestida de mui alto e espesso arvoredo, regada com águas de muitas e mui preciosas ribeiras de que abundantemente participa toda a terra, onde permanece sempre a verdura com aquela temperança da primavera que cá nos oferece abril e maio. E isto causa não haver lá frios, nem ruínas de inverno que ofendiam as plantas, com cá ofendem as nossas. 38

Tanto no Brasil quanto na Itália, o ano de 1875 pode ser considerado

como um marco para a emigração em massa. No Brasil, havia pequenas entradas

de imigrantes em vários pontos isolados do território nacional, enquanto na Itália, era

comum um pequeno índice de movimentação de população entre os países

vizinhos. Porém, a partir desta data, imensos contingentes populacionais passaram

a sair do continente europeu em direção ao Brasil.

2.4 Mão de obra no Brasil: da escravidão à imigração

Após a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500, os

portugueses passaram os primeiros anos efetivando a simples posse e ocupação

jurídica do território, com sucessivas viagens de reconhecimento e expedições

guarda-costas. Isso porque, segundo Bóris Fausto, se comparado à descoberta das

Índias, comemorado com grande entusiasmo pela elite burguesa e nobreza da

época, a descoberta do Brasil não representava um grande lucro, não merecendo,

portanto um investimento de grande monta que justificasse a travessia do Atlântico.

Somente em 1534, com a criação das Capitanias Hereditárias, inicia-se o

processo de povoamento da terra, quando nobres portugueses ou militares notáveis

foram nomeados para governar o Brasil. Este povoamento se fará de forma intensiva

com a chegada de “exploradores de madeira, aventureiros, estrangeiros de diversas

37 Idem. p. 166

Page 27: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

27

categorias e diversos países, o que não deu a Portugal a tranqüilidade sobre os

bens que possuía.” 39

O país será construído a partir da exploração de mão-de-obra escrava,

trazida da África negra, encarregada da manutenção do trabalho nas fazendas de

cana-de-açúcar, primeiro e posteriormente, em fazendas de café.

No Brasil, em 1888, a Lei Áurea40 encerrava a escravidão que vitimava

negros desde o início do século XVI, provocando na elite brasileira – latifundiária,

monocultora e escravocrata41 – uma reação conservadora e repleta de ameaças42.

O medo diante da possibilidade do colapso na economia refletia a dependência em

relação ao trabalho escravo. Acostumados a mandar e a ser obedecidos, os

senhores de engenho tinham atitudes arbitrárias diante das condições de existência

de seus cativos, o que pode ser demonstrado do romance de Machado de Assis,

Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Por exemplo, um dia, quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza no tacho, e, não satisfeito da travessura fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’ [...] Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um lado e outro lado, e ele obedecia [...] sem dizer uma palavra, ou quando muito, um “ai, nhonhô!”, ao que eu retorquia: _ Cala a boca besta!43

O ato de torturar física e psicologicamente o escravo era uma forma de

garantir a destruição dos valores do homem negro, obrigando-o a aceitar a

superioridade do europeu e ao ser adjetivado de vadio, preguiçoso, traiçoeiro,

38 CAMPOS, Flávio de. Oficina de História: História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1999. p. 50. 39 FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 4.ª ed. São Paulo: Editora da USP; FDE, 1996. p. 37. 40 Idem Ibidem p. 220. 41. O modelo produtor brasileiro era baseado na grande propriedade, que produzia apenas um único gênero – primeiro a cana-de-açúcar e depois o café – usando como mão-de-obra o trabalho escravo, importado da África. FAUSTO, Op. Cit. p. 80 – 81 42 Idem ibidem. p. 220 43 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas; Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1982. P. 31

Page 28: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

28

malicioso e outros, o negro perdia partes importantes de sua identidade e era

submetido à estrutura racista.

Logo, o homem que a Lei Áurea supostamente libertou, não era um

homem com condições de auto-sustento, com possibilidade de se instruir

profissional e intelectualmente, uma vez que ainda não tinha condições de concorrer

com o branco no mercado de trabalho, e que, vítima da competição desigual,

submerge no universo da mão-de-obra não-qualificada, marginalizado por forças

verticais. 44 Perpetua-se o status quo.

Na década de 1880 o alto preço dos escravos levou à importação de

mão-de-obra da Europa, principalmente do norte da Itália, onde a introdução do

Capitalismo industrial criara enormes excedentes de trabalhadores. 45 Os primeiros

imigrantes teriam chegado ainda no Primeiro Reinado:

Em 1819, cerca de 1 500 famílias suíças fundaram Nova Friburgo, no Rio de Janeiro; e, em 1824, colonos alemães receberam glebas em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Antes disso, em 1808, o Governo colonial fizera vir para o Brasil 1 500 famílias açorianas. [...] a partir da extinção do tráfico de escravos que grandes correntes migratórias desaguarão no Brasil. 46

O novo sistema econômico que se instalava em todo o mundo, inclusive

no Brasil, não permitia a escravidão devido à necessidade de um mercado

consumidor, em que o trabalhador vende sua força de trabalho em troca de um

salário e com ele sustenta a si e sua família. A preocupação em transformar o país,

agora uma República, em um país desenvolvido, partia da idéia de que era

necessário substituir a mão-de-obra africana por mão-de-obra branca e européia.

Por fim, para garantir a manutenção do sistema latifundiário, monocultor e

escravocrata dos grandes proprietários que formavam a elite burocrática, era

perigosa a formação de pequenas propriedades produtoras que poderiam entrar em

conflito com seus interesses.

44 FAUSTO. p. 221. 45 BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 7 46 Idem. Ibidem. p. 105

Page 29: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

29

2.5 “Brasil da Cocanha”: o mito que se desvenda

A vinda de italianos, alemães e russos para o sul do Brasil causa algum

estranhamento, uma vez que em tempos anteriores foram imigrantes açorianos que

aqui vieram se instalar, quando Domingos Peixoto de Brito funda o povoado de

Santo Antônio dos Anjos da Laguna, em 1654. A cidade de Tubarão foi fundada em

1836 e Campinas do Sul, hoje Araranguá, em 1848. 47

Em 17 de junho de 1874, o governo Imperial Brasileiro firmava um

contrato com o senhor Joaquim Caetano Pinto Júnior, o Decreto n. 5.663,

objetivando a entrada de imigrantes europeus, para a substituição do trabalho

escravo, nas fazendas de café. As cláusulas do contrato determinam que estes

imigrantes deveriam ser

Alemães, Austríacos, Suíços, Italianos do Norte, Bascos, Belgas, Suecos, Dinamarqueses e Franceses, agricultores, sadios, laboriosos e moralizados, nunca menores de dois anos, nem maiores de 45, salvo se forem chefes de família. Desses imigrantes 20 por centro poderão pertencer a outras profissões. 48

Segundo Piazza, o movimento de colonização do sul do Estado inicia-se

em 1876, quando pela “[...] portaria de 21 de novembro de 1876, o Ministro da

Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império Brasileiro, Conselheiro Tomás

José Coelho de Almeida, designou uma comissão para discriminação e medição das

terras públicas existentes no Sul de Santa Catarina, [...]” 49 . Nos anos seguintes,

segundo Bortolotto, surge Azambuja (1877); em 28 de maio de 1878 funda-se

Urussanga; a vila de São José de Cresciúma (hoje Criciúma) foi fundada em 1880 e

em 1885 foi fundado Acioli de Vasconcelos – hoje Cocal do Sul. 50 A colonização

desses municípios se efetiva ainda sob o decreto Caetano Pinto.

A tabela apresentada por Santos51, demonstra a entrada de imigrantes

nos portos do Rio de Janeiro e Santos, entre 1820 e 1908:

47 BOITEUX, José Artur. Dicionário histórico e geográfico do Estado de Santa Catarina. Vol. 2. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado, 1940. p. 126. 48 PIAZZA, Walter Fernando. A colonização de Santa Catarina. Florianópolis: BNDE, 1982. p. 159. 49 PIAZZA, Op. Cit. p. 176 50 BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 51 SANTOS. Op. Cit. p. 64

Page 30: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

30

IMIGRAÇÃO NO BRASIL DE 1820 A 1908. Italianos 1.277.040

Portugueses 672.213

Espanhóis 303.508

Alemães 96.006

Austríacos 62.209

Russos 60.374.

Franceses 20.261

Turcos e Árabes 14.961

Ingleses 12.177

Suíços 9.528

Belgas 3.803

Suecos 3.799

Outras nacionalidades 170.298

Total 2.656.177

Tabela 01

Com o fim do governo Imperial no Brasil, a recém empossada República

determina que a posse das terras devolutas passe a ser propriedades dos estados,

inclusive terras de Santa Catarina. O decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, do

Ministro da República, Francisco Glicério, possibilitava que empresas particulares

introduzissem estrangeiros no país. Garantia também o financiamento para a sua

entrada, permitindo que uma empresa italiana com sede no Rio de Janeiro, a Ângelo

Fiorita & Companhia firmasse um acordo com o governo brasileiro, em 22 de outubro

de 1890, se responsabilizando em instalar um milhão de imigrantes em vários

estados, onde fosse necessária mão-de-obra. Entre estes estados estava o de

Santa Catarina e as terras devolutas encontradas entre Tubarão e Araranguá

serviam a estes propósitos. Em dezembro do mesmo ano, Miguel Napoli52,

52 Miguel Napoli nasceu na cidade italiana de Palermo (Sicília), em 13 de abril de 1854, filho de Filipo Napoli e Luigia Pirandello. Serviu ao Exército italiano e foi arquiteto e agrimensor. Em 1890, estava no Brasil trabalhando pela imigração, primeiro pela Angelo Fiorita & Cia. e depois pela Companhia Metropolitana, onde trabalhou na fundação e administração da Colônia Nova Veneza. Casou-se em Nova Veneza com a descendente de alemães, Ottília Sauer, com quem teve cinco filhos e uma filha. Foi figura fundamental para a criação da Colônia de Nova Veneza e profundamente admirado pelos imigrantes. Como jornalista e escritor, deixou inúmeros artigos publicados em diversos jornais do país. Foi amigo dos governadores Hercílio Luz (que chegou a visitar os núcleos da Colônia por duas vezes) e Lauro Müller. Em 1899, foi substituído no cargo de representante da Cia. pelo senhor Nicolau Paranhos Pederneiras, assumindo o cargo de diretor da mesma, sendo dispensado da empresa alguns meses depois. Sua candidatura à Assembléia Legislativa não deu certo e ele passa

Page 31: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

31

funcionário da empresa vem fazer uma avaliação e a compra de um terreno de 30

mil hectares onde seria instalada a Colônia Nova Veneza.

2. 6 – A Colônia Nova Veneza

A Colônia Nova Veneza começa a existir de fato em janeiro de 1891,

quando se iniciam os trabalhos de medição dos lotes e mapeamento das terras, que

correspondem, hoje, a totalidade do município de Siderópolis e Treviso, e partes dos

municípios de Nova Veneza, Urussanga (a área do Belvedere) e Criciúma (onde

hoje está o distrito de Rio Maina). Após a morte de Miguel Napoli, foi anexada às

propriedades da Companhia Metropolitana53 *, mais quinze hectares de terras

pertencentes à Colônia Trinácria54, com o nome de núcleo de Rio Bonito, que tinha

como sede o núcleo de Palermo. Estas terras hoje pertencem ao município de Lauro

Muller.

Sobre a estrutura e formação da Colônia Nova Veneza, Bortolotto, nos dá

algumas informações: era formada a princípio pelos núcleos de Nova Veneza, Nova

Treviso e Nova Belluno, Rio Jordão e Belvedere. Todos os nomes foram escolhidos

pelos funcionários da Companhia Metropolitana55. Os três primeiros, em alusão às

mais importantes cidades do norte da Itália e também pólos de emigração. O nome

“Rio Jordão” era em homenagem a Carlos Augusto de Miranda Jordão, presidente

da Companhia e “Belvedere” ou seja, “Boa Vista”, era e ainda o é, o nome dado a

a conclamar os italianos do sul a se unirem para eleger um representante no governo, demonstrando o seu interesse em ser tal líder. Desiludido após a perda da Colônia Trinácria, ele retorna ao Rio de Janeiro, onde falece em setembro de 1926. BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 68 – 81. * Em 16 de junho de 1891, a empresa de Ângelo Fiorita cede os direitos sobre a Colônia Nova Veneza à Companhia Metropolitana de Imigração, também do Rio de Janeiro, que passa a administrar seus interesses. PIAZZA. Op. Cit. p. 209. O diretor da Companhia era o senhor Carlos Augusto de Miranda Jordão. A Companhia Metropolitana de Imigração, hoje Companhia Carbonífera Metropolitana, faz parte das empresas Guglielmi, com sede em Criciúma. 53 BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 1 - 25. 54 A Colônia Trinácria se localizava ao norte da Colônia Nova Veneza. Miguel Napoli comprou as terras do governo do estado, porém uma rixa com o governador Felippe Schmidt fez com que a mesma não fosse efetivada e Napoli não foi indenizado, conseguindo apenas o dinheiro equivalente à venda de 200 dos 700 lotes. Quando da rescisão do contrato entre a Cia. Metropolitana e o Governo, a Cia recebeu além de uma indenização em dinheiro, 105.000 hectares de terra, incluindo aquelas que Napoli havia comprado do governo. O governador e a Companhia acreditavam que as terras eram adicionais da Colônia Nova Veneza e, portanto, pertenciam à Companhia Metropolitana. Miguel Napoli lutou durante anos pelo ressarcimento dos danos, sem consegui-los, até se mudar para o Rio de Janeiro. Após sua morte, em 1908, os herdeiros abandonaram a causa. BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 81 –87. 55 O livro dos Irmãos Orionitas, Siderópolis (Nova Belluno) – uma grande aventura, publicado em 1963, por Edições Paulinas, afirma que o nome do núcleo de Nova Belluno foi dado pela imigrante Marta Rossa Savaris, logo que o grupo de imigrantes chegou, sendo história corrente no atual município de Siderópolis. Porém, os relatos de BORTOLUZZI (Op. Cit.) são categóricos em afirmar que todos os nomes foram dados pelos

Page 32: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

32

todo lugar alto que permite, à longa distância, a visão de um belo panorama. Após o

mapeamento, a colônia também foi subdividida em lotes, que juntos formavam

seções, a saber:

Seção Nome N.º de lotes

01 Pio (Rio Pio) 105

02 Rio Manin 82

03 Jordão (Rio Jordão) 208

04 Estrada Lages 26

05 Rio Selva 45

06 Rio Mãe Luzia (Margem Direita) 105

07 Rio Mãe Luzia (Margem Esquerda) 77

08 Rio Serraria 25

09 Rio Maina 36

10 Rio São Bento 54

11 Rio Bortoluzzi 31

12 Ex Patrimônio 73

13 Estrada Urussanga 70

14 Rio Fiorita 131

15 Rio Morosini 35

16 Rio Ferrero (Belvedere) 111

Total 1. 214 lotes

Tabela 02

A Colônia Nova Veneza já tinha condições de receber os primeiros

imigrantes, em junho de 1891, o que se oficializa em julho do mesmo ano. Bortolotto

faz citação do JORNAL DO COMMERCIO, do dia 5 de julho de 1891:

IMIGRANTES – Chegou ontem ao ancoradouro de Santa Cruz, procedente de Gênova, o paquete italiano “Áquila”, conduzindo imigrantes para o Colônia de Nova Veneza recentemente fundada ao sul deste Estado pela empresa de colonização dos srs. Ângelo Fiorita & Cia. 56

Os imigrantes do núcleo de Nova Treviso chegaram no dia 24 de

dezembro de 1891, portanto, na véspera do Natal.

funcionários da Companhia Metropolitana de Imigração, ainda no processo de medição dos lotes da colônia e, portanto, quase seis meses antes da chegada dos primeiros imigrantes. 56 JORNAL DO COMMERCIO. Desterro, 22/05/1891. In BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 20.

Page 33: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

33

O imigrante Giuseppe Foresti Abati, o “seu” José Abati, em manuscrito

relatando sua vida e consequentemente a daqueles que aqui com ele chegaram, a

partir dos relatos de seus pais, explica todos os dissabores enfrentados pelos

compatriotas, relativos principalmente aos problemas de desemprego que o rei

Umberto I não conseguiu solucionar, até a saída, à contragosto, das famílias que

emigraram para o Brasil, convencidos pelos propagandistas:

[...] eu completara três anos de idade, e meus pais que já tinham resolvido também de emigrar, me levaram a cidade de Bérgamo e procuraram o Bispo da Catedral de Santo Alexandre, Dom Caitano Camilo Guindani, que administrou-me o Sacramento do Crisma e, em seguida, o dia 28 de outubro de 1891, despedimo-nos dos parentes e amigos que choravam, levantamos a mocilha e seguimos em direção ao porto de Gênova onde nos esperava o vapor ou navio francês “Cashemere” no qual embarcamos, deixando atrás de nós a Pátria querida na qual deixei uma vaga recordação da terra natal que sempre me lembrarei. 57

Sobre a travessia, Abati narra ainda que a viagem “durou 15 ou 16 dias,

que felizmente, graças a Deus, tivemos que lamentar uma noite de forte tempestade,

mas no dia seguinte a bonança voltou.”. A viagem de transatlântico poderia durar de

15 a 30 dias, dependendo das condições do mar e do próprio navio. A penosa

viagem na terceira classe dos grandes navios, porém, teve muitas vítimas, que

tiveram o mar por sepultura. Segundo José Abati, ao todo, a viagem tinha uma

duração de quase um mês: a pé, das suas vilas e cidades italianas, até as estações;

de trem até os portos; de vapor até o Rio de Janeiro; com um navio menor até

Desterro; de trem até Pedras Grandes; de carro de bois até Urussanga; a pé até

Nova Treviso, núcleo da Colônia Nova Veneza. O imigrante chegava a sua “terra

prometida”.

No sul do Brasil a necessidade de povoamento fez com que os colonos

fossem enviados a áreas de mata virgem e instalados em grandes lotes rurais, com

cerca de dez hectares cada, que formavam as seções da colônia. Cada lote era

distante um do outro e, portanto não era fácil a convivência diária e o contato social.

Segundo Boni e Costa,

Na Itália setentrional, o sistema de habitação e ocupação do solo era bem diferente daquele a que os colonos foram submetidos, quando de sua chegada ao Brasil. Lá a grande maioria habitava no paese (vilarejo), indo ao trabalho pela

57 ABATI, José Foresti. Op. Cit. p. 2

Page 34: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

34

manhã e voltando à noitinha. E mesmo os que residiam no “campo”, estavam tão próximos entre si e tão vizinhos de um paese que dificilmente poderiam ter tidos como isolados da vida comunitária local. A região toda era dividida e subdividida dos modos mais diversos, com terrenos de poucos hectares, quando não com área inferior a 1 hectare. Havia proximidade física entre as diversas famílias.

Uma vez instalados em seus lotes, os emigrados iniciaram o processo de

povoamento de seus núcleos, desenvolvendo formas de contato social, de

religiosidade, de afetividade, de lazer especialmente adaptadas a realidade em que

foram inseridos.

Ilustração 2 – Imigrantes do núcleo de Nova Belluno, hoje Siderópolis. Data indefinida.

Vê-se ao fundo a primeira igreja.

As festas religiosas sintetizavam os momentos de lazer da comunidade,

permeada de momentos sagrados, representados pelas missas e procissões, e de

momentos profanos, representados principalmente às bebidas alcoólicas e aos

bailes. A festa de maior expressão no núcleo de Nova Treviso era a festa que

comemorava o dia do santo padroeiro, Santo Alexandre, dia 26 de agosto. No dia 27

de agosto, ocorria a festa de Santo Alexandrim, dia em a população ia até a praça

da matriz para assistir às corridas de cavalos, ver os animais – principal divertimento

das crianças – beber cerveja e vinho, enfim, era um dia em que abandonavam seus

serviços diários para dedicarem-se ao divertimento.

Page 35: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

35

3 A MEMÓRIA RECONSTRUINDO O PASSADO

Uma lembrança gerou esse trabalho. Não uma lembrança minha. Mas a

lembrança de uma lembrança, ou seja, uma lembrança minha de histórias contadas

por tia Salute. Pequena e macia como uma fada ela tinha um dom especial para

contar histórias. No final da década de oitenta ela veio com a família do Paraná para

morar em Siderópolis, numa casa de madeira perto da escola José do Patrocínio.

“Esta tua tia é o máximo!”, disse encantada Sandra Mara Batista Silveira,

minha amiga do colégio, logo que saímos da casa de Salute Trento Fenili, naquela

tarde. Uma pontada de ciúme me atingiu, afinal a tia era minha, mas não teve jeito e

a partir daquela data “dona Salute” tinha mais uma devotada sobrinha. Assim, toda a

tarde, lá pelas cinco horas, nos esperava um café com leite em grandes xícaras

amarelas e pães fresquinhos, trazidos pelo tio Fidélis, que devorávamos avidamente.

Mas o que esperávamos eram as histórias. E ela falava da infância no campo, da

juventude, das missas e festas na igreja, das domingueiras, do namorado que a

levava até em casa, mas ia um de cada lado da estrada, conversando, para a moça

“não ficar falada”, do enxoval bordado à luz de velas, do casamento, do trabalho na

padaria do “nonno Fenili” e depois, da ida para o Paraná, dos filhos, do retorno... E

ali sentadas, bebíamos fartos goles de vida, café e histórias.

Marcel Proust, em seu livro Caminhos de Swann, já nos explica que não

há ruptura entre o passado e presente porque a memória só retém o passado e se

nos apresenta como uma fonte inesgotável de possibilidades de lembranças.

Devido à solidariedade que guardam entre si as diferentes partes de uma recordação e que a nossa memória mantém um equilíbrio num conjunto a que não é permitido tirar nem recusar coisa alguma, eu desejaria ir terminar o dia em casa de uma daquelas mulheres, diante de uma taça de chá, num apartamento de paredes de cor sombria, como ainda era o da sra. Swann [...] , e onde brilharia o fogo alaranjado, a rubra combustão, a flama rósea e branca dos crisântemos no crepúsculo de novembro, um instante iguais àqueles em que eu não soubera descobrir os prazeres que desejava. [...] A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a Avenida fosse outra. Os lugares que conhecemos não pertencem ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não aram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os

Page 36: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.58

Hoje, sou fã de café. E diante da bebida quente ainda é possível sentir o perfume

que minha tia sempre usava, os aromas daquela casa, ouvir suas palavras e até o repicar dos

sinos ao longe, avisando que eram seis horas, hora de retornar.

3.1 Cadeia de pertencimento

Salute Fenili era uma exímia contadora de histórias. Mais que isso, era

uma narradora de fatos que já haviam passado há muito tempo e através de suas

palavras gente que há muito havia partido retomava voz. Essas vozes que

sussurravam através de suas palavras contavam de um tempo difícil, de lutas por

vezes inglórias, da lida com os trabalhos no campo, com o gado, as aves, os dias

em que matavam o porco e se fazia o torresmo, o salame, a “murcilha” 59; os dias

em que faziam o vinho ou o queijo. Essas vozes surgem porque alguém lhes dá

espaço em meio aos dias atribulados em que vivemos e nos falam de seus

trabalhos, de seu cotidiano e de suas festas.

Ecléa Bosi60 se utiliza dos estudos de alguns autores, como Henri

Bergson. Questionando-se acerca do que acontece quando vemos algo ou nos

lembramos de algo do passado, afirma que o conhecimento passa pelas percepções

do nosso corpo para os níveis da consciência, pela forma como transformamos

imagens em representações. Não precisamos, portanto, do objeto diante dos olhos

para identificá-lo, uma vez que o cérebro já se apropriou dele na forma de

lembrança.

Chartier afirma, nesse sentido, que “[...] a representação é instrumento de

um conhecimento mediato que faz ver um objecto ausente [...].” 61 Por exemplo, se

alguém nos fala de um cão, não precisamos ter um cão diante de nós para

sabermos como ele é. Podemos sim, perguntar qual a raça, a cor do pêlo, o

58 PROUST, Marcel. Os caminhos de Swann. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 247. 59 A murcilha ou morcela é um tipo de salame feito com sangue suíno, gordura, temperos verdes, cebola e alho, cozido em água e sal e embutido com a própria tripa do animal. É um prato feito ainda hoje no município de Treviso quando do abatimento do porco, assim como o torresmo. O dia de “matar o porco” é data de confraternização, uma vez que não é incomum que os vizinhos auxiliem na tarefa. 60 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 5.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. p.43–53. 61 CHARTIER, Roger. A história cultural – entre práticas e representações. São Paulo: Bertrand Brasil. P. 19-20.

Page 37: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

37

tamanho, a idade, o sexo do animal. Se alguém fala de um determinado cão que

conhecemos em determinada situação, nosso cérebro refaz o momento citado no

que chamamos de “memória”, no esquema estímulo-cérebro-representação-

lembrança. Segundo Bergson, é por isso que as

[...] situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se efetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao que pertence, pois só se fez parte de um grupo no passado se continua afetivamente a fazer parte dele no presente. Se, no presente, alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo – ainda que pertencesse fisicamente -, já que é o afetivo que indica o pertencimento. A partir daí, é possível supor que é tecida uma espécie de cadeia de pertencimento afetivo que mantém a vida e/ou o vivido na memória. 62

Entre nossos mais preciosos bens estão nossas lembranças, guardadas

carinhosamente como se fossem velhas cartas, embrulhadas em fitas de cetim azul,

cuidadosamente ajeitadas em gavetas de uma cômoda imaginária. Para a emoção

do reencontro com um parente, com amigos, um amor do passado, basta abrirmos

cuidadosamente as gavetas dessa cômoda imaginária e vasculhar entre tantas

lembranças, aquela que buscamos. Por vezes temos a sensação de que todas as

gavetas se abrem ao mesmo tempo e nossas lembranças saltam como pássaros

engaiolados, numa revoada de imagens.

Ali está o pai, a mãe, a tia que um dia amamos e julgávamos imortal, os

irmãos, os vizinhos, as pessoas que povoavam nosso cotidiano e, principalmente, ali

se encontra a nossa juventude; ali está a casa paterna, os seus segredos, os

recantos secretos, o quintal, o pé de laranjeira, o balanço, os pés de mamão e de

chuchu, as flores do jardim, principalmente o jasmim que ao entardecer exalava seu

cheiro doce pelas redondezas; por este jardim e quintal que povoam nossa cabeça,

voltam a circular os amigos, o gato ou cachorro de estimação, as brincadeiras de

meninice, os irmãos voltam a reunir-se em torno da mesa da cozinha para o café da

tarde, os trabalhos junto aos pais voltam a ser feitos, assim como as bonecas de

Page 38: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

38

pano e carrinhos de madeira, as latas amarradas sendo puxadas na calçada e os

gritos da mãe dizendo: “Pare com esse barulho!”. Neste sentido,

As lembranças pessoais são dotadas de preceitos de comportamento, de apresentação de imagens que não podem ser tratadas como o “verdadeiro” testemunho do privado. “O ato de rememorar encontra um conjunto de intenções conscientes e inconscientes que selecionam e elegem – escolha que é derivada de incontáveis experiências objetivas e subjetivas do sujeito que lembra”. Assim, o tempo e o espaço estão na memória e apresentam-se sob a forma de imagens. 63

Todas as nossas lembranças fazem com que o passado sobreviva,

aflorando na nossa mente consciente como imagens-lembranças e segundo o

sociólogo francês Maurice Halbwachs a memória não pertence apenas ao sujeito,

ela é coletiva uma vez que pertencemos a um grupo social e somos o resultado do

relacionamento resultante desde o núcleo familiar até a escola, a igreja, o grupo de

trabalho, de lazer, a classe social a que nos inserimos. Para ilustrar a forma como o

olhar do outro modifica nosso próprio olhar sobre os acontecimentos e lugares,

compara:

Chego pela primeira vez a Londres, e passeio com várias pessoas, ora com um ora com outro companheiro. Tanto pode ser um arquiteto que atrai minha atenção para os edifícios, suas proporções, sua disposição, como pode ser um historiador: aprendo que tal rua foi traçada em tal época, que aquela casa viu nascer um homem conhecido, que ocorreram, aqui ou lá, incidentes notáveis. Com um pintor, sou sensível à tonalidade dos parques, à linha dos palácios, das igrejas, aos jogos de luz e sombras nas paredes e fachadas de Westminster, do templo, sobre o Tâmisa. Um comerciante, um homem de negócios, me arrasta pelos caminhos populosos da cidade; detenho-me diante das lojas, das livrarias, dos grandes estabelecimentos comerciais. Mas mesmo que eu não estivesse caminhando ao lado de alguém, bastaria que tivesse lido descrições da cidade, composta de todos esses diversos pontos de vista; que me tivessem aconselhado a examinar tais e tais aspectos ou, simplesmente, que dela tenha estudado a planta. Suponhamos que eu passeie só. Diremos que desse passeio eu não possa guardar senão lembranças individuais, que não sejam senão minhas? Não obstante passeei só somente na aparência. Outros homens tiveram essas lembranças em comum comigo. Muito mais: eles me ajudaram a lembrá-lo. 64

62 D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero. N. 25/26. Setembro 92/agosto 93. p. 98-99. 63 LUCENA, Célia Toledo. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de migrantes. São Paulo: Arte & Ciência, 1999. p. 82. 64 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990. p. 26

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Percebemos então que nossas lembranças são permeadas pela presença

do grupo social a que estamos inseridas, pelas leituras feitas, pelo convívio com o

grupo através de formas de linguagem, que nos permitem receber, reter e transmitir

o conhecimento. Ao construir e tornar visíveis os papéis desempenhados por

homens e mulheres de Nova Treviso, imigrantes italianos ligados à economia

agrícola, no início do século XX, no que se refere a sua vida social, mais

especificamente em uma festa não convencional, voltada para o lazer, a diversão, o

jogo, o baile, as corridas de cavalo, em uma comunidade predominantemente

católica, a História se utiliza da memória para existir.

Ao perguntar a Norma Dal Bó Perucchi se ela sabia por que havia duas

festas, ela responde que não sabe e que até acredita “que alguém tenha falado,

mas a gente as vezes não dava muita importância para o que a mãe falava. Hoje é

que as pessoas se ligam mais com as coisas que aconteciam”65. Dona Norma então

percebe que essa construção é importante para que cada cidadão se perceba na

fisionomia da cidade, e que sua história de vida, suas lutas e experiências cotidianas

são imprescindíveis para esclarecer a sucessão de gerações e o tempo histórico que

as acompanha.

A perda dessas balizas faz com que percamos nossas referências em

relação à cidade, porque o dinheiro faz surgir novas obras e a memória é sacrificada

em razão do progresso. Pior ainda é quando na luta dialética entre a memória e o

esquecimento, o esquecimento acaba ganhando. Perdidos os referenciais, a

memória se torna um agente de manipulação dos setores dominantes, elitista e

excludente e a história segue pelo viés da História oficial que reverencia a memória

do poder. Diante dessa situação, as palavras de Ecléa Bosi, são muito elucidativas:

65 PERUCCHI, Norma Dal Bó. 70 anos. Professora aposentada. Moradora de Treviso e neta de imigrantes. Entrevistada de 03/09/2005.

Page 40: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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Podem arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? /.../ À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo. 66

O espaço trevisano do final do século XIX e início do século XX era,

portanto, caracterizado pelo campo como o centro da vida e o tempo era marcado de

uma forma muito particular. Se na grande cidade o tempo é disciplinado e o sujeito é

um anônimo, no campo o tempo é formado por instantes, por uma pluralidade do

tempo marcada pelo momento da missa, pelas conversas, pelos momentos de

trabalho, pelas festas, pela família. As reminiscências fazem brotar o passado e os

locais de memória.

A cultura social é repleta de micro histórias, individualizadas em seus

sujeitos, sua memória, seus dias “comuns” e dias especiais, uma vez que

normalmente não nos apercebemos daquilo que nos cerca, que somos parte das

esferas que formam o cotidiano. Neste girar, a memória nos remete ao passado e ao

presente, numa viagem sem fios e quase que sem roteiros. Sem fios porque não

estamos presos a uma realidade, não temos envolvimento direto com as

lembranças, elas vão e vêm despertadas por um gesto, por um objeto qualquer, por

um odor; sem roteiros, porque não é linear, não é pré-definida e nos remete, por

vezes, a um redemoinho de emoções e lembranças.

Ao entrevistar seu Alexandrino, ele deixava sua memória aflorar sem um

comprometimento de responder apenas o que lhe perguntava e, ao invés disso, as

lembranças pareciam jorrar numa imensa fonte transbordante. Sentado na varanda,

em sua confortável cadeira de vime e analisando o bem cuidado jardim ele fechava

ligeiramente os olhos, como se o passado, com seus dissabores e delícias estivesse

66 BOSI. Op. Cit. P. 452.

Page 41: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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presente, mas não o pudesse ferir nem alegrar. Suas pálpebras semicerradas

celebravam a memória.

3.2 Verdades transitórias

Ao optarmos por escrever História sob as lentes da História Cultural ou

Nova História Cultural, optamos por fazê-lo através de um processo de construção

do conhecimento e, portanto, livres de paradigmas preditos pela História Tradicional,

sempre linear e factual.

Enveredamos-nos, portanto, por um caminho de estudos em que se deve

“pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos

homens para explicar o mundo.” 67

A cultura se apresenta como uma manifestação simbólica da expressão e

tradução da realidade, se admitirmos que a palavra é uma expressão dos sentidos

(não o sentido), e essa expressão é estendida às coisas, ações e aos atores sociais

que, de forma cifrada, se apresentam. Esbarramos então, numa teatralidade, numa

construção de imagens em que, segundo Michel Maffesoli

[...] é preciso ser bastante ingênuo para crer que a vida social funciona apoiada na autenticidade, ela é, de fato, uma perpétua encenação que os pensadores mais lúcidos não deixaram de sublinhar. 68

Esse mecanismo de aparências cristaliza o fato de que a vida social é uma

cerimônia imensa, por vezes faustosa, em que a sua complexidade determinará o

grau de “civilização” de uma sociedade e o tempo agirá sobre ela no sentido de

garantir a sua condição de continuidade, mutação e transformação. Se a vida social

67 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. P. 15. 68 MAFFESOLI, Michel. A Conquista do Presente: por uma sociologia da vida cotidiana. São Paulo: Argos. P. 166.

Page 42: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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se baseia na teatralidade, ao escrever a história se interfere na “realidade”, criando

uma nova dimensão do real que, por si só, se fixa na encenação.

Logo, a intervenção do historiador, com sua própria teatralidade, sua

forma de escrever, o tema-objeto escolhido para estudo, seu público leitor, sua

manifestação acerca do real, recria uma realidade que também é reconstrução. O

campo de pesquisa do Historiador não é um lugar seguro, de verdades perfeitas,

uma vez que ele se fundamentará nessa sociedade teatralizada, cuja realidade é

extremamente complexa e mutante.

Ao trabalhar com a cultura e com as mudanças operadas pelo tempo, há

a confrontação com a transformação em sua forma mais pura e com a estrutura

social estanque em que a mesma se firma. 69 Esta realidade de verdades múltiplas e

transitórias será o campo de pesquisa da História Cultural.

O sucesso atingido pela História Cultural na mídia e na academia não

significará a ausência da crítica, da análise dos problemas e nem tampouco dos

desafios por ela enfrentados por aqueles que tomam seus caminhos. A dúvida surge

então, tanto para o historiador quanto para seu leitor, como um princípio de

conhecimento em que as verdades podem ser admitidas como provisórias e o

resultado da pesquisa é sempre uma versão possível, plausível. 70 A postura pós

moderna critica a História Cultural como uma História literária, sem

comprometimento com questões sociais ou políticas – para eles dignas de maior

respeito por sua “sinceridade” e verdade absoluta – que teria como objetivo principal

agradar e divertir o público.

O que o historiador da cultura deve ter em mente hoje é que o

conhecimento e as respostas por ele apresentadas são transitórias e, mesmo na

69 BRAUDEL, Fernand. El Mediterráneo il espacio y la historia. México: Fondo de Cultura Económica. 1992. P. 142 – 171. 70 Idem p. 115.

Page 43: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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academia, há resistência à mudança e ao novo, mas que a mudança que se

apresenta é pertinente à própria sociedade e à cultura enquanto organismos. O

tempo, que é a matéria de que se faz a História, só poderá ser observado com um

olhar oblíquo71 , indireto. As representações sociais de cada época, cifradas pelo

tempo e pelo espaço, tornam-se redes de intrigas onde o pesquisador deverá

penetrar e refletir, estabelecendo sua rede de correspondências através de uma

bagagem de conhecimento elaborada com suas leituras.

Estabelece-se e delimita-se desta forma um objeto de estudos e isso só é

possível através da consciência e subjetividade do historiador, sua sensibilidade e

inserção, e também pela forma como o mesmo quer ser visto pelos seus iguais.

Quando ele faz emergir do passado o indivíduo (normalmente pertencente às

camadas populares) recompõe partes de uma história de vida e toda a sensibilidade

de que se utiliza traduzem emoções, sensações e experiências próprias que recria

nesse indivíduo, recriando-o e recriando-se.

Essa História, por vezes mesquinha, exige leituras excepcionalmente

cuidadosas, finas, de diários, cartas e depoimentos de forma que seu olhar se torne

aguçado para perceber nas entrelinhas as emoções, sensações e experiências do

objeto, desvendando suas representações sociais, encontrando por fim o homem,

teatralizado pela cultura, por detrás do documento. E ao captar e capturar tais

sensibilidades e subjetividades estará captando e capturando a essência da História

Cultural e encarando o seu olhar desafiador.

Mas a História Cultural apresenta riscos e exigências, exige método e

trabalho meticuloso, leituras e bagagem capazes de permitir o maior número

possível de relações que oportunizem as verdades provisórias e suas versões. E

essa é a grande aventura de ser historiadora da Nova História Cultural.

71 Idem 117.

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3. 3 – Uma festa extra

O manuscrito de José Abati explica que nos primeiros anos a praça de

Nova Treviso era formada por uma abertura de mato, de cento e cinqüenta metros

de largura por trezentos de comprimento, cortada pelo Rio Mãe Luzia e pelo Rio

Ferreira, seu afluente. Aqui instalados, os colonos tiveram por seis meses o sustento

garantido pela Companhia Colonizadora, na forma de um armazém, comandado por

Isaque Freitas, que cedia os mantimentos, ferramentas e sementes necessárias,

tendo como forma de pagamento a colheita que se daria no ano seguinte. Havia

também uma serraria, para ajudar na fabricação das casas.

Giácomo Piatti era o “capo núcleo”, ou seja, o responsável pelo lugar.

Passados esses meses iniciais, porém, cada imigrante deveria sobreviver às

próprias custas. Por necessitar de estradas, a companhia garantirá emprego na

abertura de estradas, quando os imigrantes recebiam por semana trabalhada e

assim, muitos conseguiram garantir seu sustento.

Nos anos seguintes algumas casas de comércio foram surgindo no

núcleo, destacando-se “duas bodegas respectivamente propriedade de Ângelo Dal

Bó [...] e de Antônio Bresciani, [...], (havendo também) um ferreiro, Ângelo Beccari,

ferrarese e o senhor Ângelo Dal Bó mantinha também uma pequena padaria”.72

Ainda segundo Abati, nas semanas seguintes muitos outros italianos

continuaram chegando. Logo iniciaram os trabalhos de plantio de milho, arroz, feijão,

batata-doce, fumo e frutas, além da criação de galinhas, porcos, cabras, cavalos e

bois. O trabalho era extenuante e muitos dos imigrantes desistiram, migrando alguns

para São Paulo e outros retornaram à Europa. 73 No ano seguinte, 1892, já havia

uma serraria funcionando no núcleo, assim como uma atafona.

A pequena igreja erigida em um canto mais alto da clareira que servia de

praça abrigou a imagem de Santo Alexandre, padroeiro de Bérgamo (Itália), de onde

veio a maioria dos imigrantes. O padroeiro era – e ainda o é – celebrado no dia 26

de agosto e sua festa realizada na data, mesmo que ocorresse em dias de semana.

No dia da festa, de manhã, era celebrada a “Santa Missa” e procissão (o aspecto

sagrado do evento) e a tarde havia bailes, bebedeiras e jogos (o seu aspecto

profano), que, não de forma incomum, terminava em pancadaria.

72 ABATI. Op. Cit. p. 5 73 Idem. p. 8

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Para além do contexto religioso, o povo faz surgir, no dia 27, o dia

seguinte ao padroeiro, uma festa profana denominada “Santo Alexandrim”, assim

descrita por Ignês Carminatti de Lorenzi:

Eram duas festas diferentes. Santo Alexandre era o padroeiro e tinha missa. [...] no dia seguinte, dia 27, eles inventaram de fazer Santo Alexandrim. Meu pai dizia (que era) uma homenagem, que era um louvor a Santo Alexandre. Naquela época tinha a cavalaria na guerra. Tinha os soldado que ia a cavalo e os soldado que ia no chão, a pé. Então a cavalaria que chegava era uma homenagem pro santo. 74

Santo Alexandrim era marcado pela chegada dos cavalos de corrida, nas

primeiras horas do dia, instalados onde hoje é o jardim, mais ou menos na frente da

atual igreja. Logo se formava no local um aglomerado de crianças para ver os

cavalos correndo em círculo na ponta da corda do treinador. Durante o dia, o

movimento de pessoas ia aumentando, quando chegava gente do centro, das

comunidades e até mesmo de outras cidades, como Nova Veneza e Siderópolis (na

época, Nova Belluno). A praça ficava cheia.

Bruno Scussel75 conta que não ia à festa quando era menino. Sua

primeira lembrança da festa era de quando passava pela praça, na ida para a

escola:

A festa de Santo Alexandre era feita no dia 26 de agosto, mesmo que fosse dia de semana e no dia seguinte, até dois dias depois, o pessoal ia para a praça, se juntavam, soltavam fogos, tomavam vinho, enfim, comemoravam. Faziam uma festa extra, diferente daquela do dia do padroeiro. [...] normalmente iam os chefes de família. Praticamente não lembro de ter havido, das mulheres, participação. Era mais masculina.

Para o menino Bruno, o dia da festa era diferente não porque ele

participasse, mas porque era uma “festa extra, diferente daquela do dia do

padroeiro”, ou seja, era diferente da festa religiosa marcada pela missa. Ela contava

com a presença de pessoas que se divertiam, soltavam fogos e bebiam nos bares.

74 Ignes Carminatti de Lorenzi, 83 anos, é moradora de Treviso e filha de imigrantes italianos. Entrevistada dia 22/06/2005.

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Para ele, era uma festa em que iam apenas os homens mais velhos, os “chefes de

família”, que ele caracteriza como uma festa masculina.

Era uma festa esperada, em que as moças ostentavam suas melhores

roupas, os moços iam ver as meninas e a praça se enchia de gente, que vinha de

fora, inclusive, para ver as corridas de cavalo, principalmente.

Gotardino Conti, Ângelo Dal Moro e João Madalena traziam os cavalos de

corrida, que aconteciam em horários diferentes durante o dia. Haviam algumas de

manhã e outras à tarde, não sendo portanto, reunidas num momento único. E os

donos vinham ver se seus cavalos eram vencedores. Ele nos conta que:

Vinha muita gente. Vinha gente da (Nova) Veneza e do Jordão. [...] (vinha) o Gotardino Conti, Ângelo Dal Moro e o João Madalena. O Gotardino era do Jordão e o Dal Moro da Veneza. O Madalena eu não sei de onde era, mas ele era casado com a Dona Cecília que era professora. [...] e tinha mais gente que na festa de Santo Alexandre. Tinha povo dos dois lados da rua, da praça até no prédio do Pedro Doneda, que era onde se faziam as corridas. [...] e o povo gritava [...] e quando terminavam as corridas, começavam os bailes. Sempre tinha baile. Acho que só a Dona Maria Pessi (vendia comida), que tinha pensão. Não tenho certeza. Acho que ela vendia sim. [...] Muitos traziam comida de casa. Tinha a padaria do seu João Fenili também. 76

Nestas ocasiões, a praça central era palco de uma festa popular marcada

pela alegria. As pessoas faziam lanches pelas ruas. Muitos traziam comida de casa,

outros encomendavam um almoço na “venda” ou ali comiam um pão com sardinha.

Os homens bebiam vinho ou cerveja e as mulheres, “gasosa” de groselha,

precursora do refrigerante. Havia também a pensão de Maria Pessi, onde eram

servidos almoços a quem tivesse condições de pagar. Eram também dias de

confraternização, em que as famílias recebiam os parentes que moravam longe,

75 Bruno Scussel, 66 anos, agricultor aposentado, é morador de Treviso e filho de imigrantes italianos. Sua entrevista foi realizada em 16/08/2005. 76 Ignes Carminatti de Lorenzi. Entrevista citada.

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47

tanto na festa de Santo Alexandre como nas comemorações de Santo Alexandrim.

Ao ser indagada sobre isso, dona Norma Dal Bó Perucchi77 responde:

Aqui na casa da minha mãe sempre (vinham). Lauro Muller descia em peso. Os Righetto, que eram casados com os Dal Bó, as irmãs do meu pai, vinham de caminhão. Eles enchiam o caminhão e vinham todos. Uma semana antes, a minha mãe coitada, ficava matando galinhas. Ela ocupava as camas, cobertas com lençóis brancos, para botar o macarrão pronto. E ela ficava o tempo todo em cima do bendito fogão. Todo mundo que chegava comia. Vinha muita gente. Matar três galinhas, nem pensar. Tinha que ter mais. Eram quatro ou cinco. Depois, com o tempo foram perdendo a mania.

Não foi possível determinar exatamente quando os fogos de artifício

chegaram a Treviso, mas nos primeiros anos, as explosões dos morteiros causavam

um interessante quadro de euforia, lembradas por todos os entrevistados. Em uma

peça cilíndrica de ferro, com um pequeno furo no fundo, colocava-se um estopim.

Em seguida, pólvora, pedaços de metal – que poderiam ser pregos – e, em seguida,

com um pedaço de madeira, socavam terra, pedras e cacos de tijolos até encher

todo o compartimento. Ao atear fogo na engenhoca, um disparo fortíssimo ecoava

em toda a praça. Alexandrino Possoli78 assim descreve a peça:

Esses tiros eram a alegria da festa. [...] era alto assim (faz um gesto representando aproximadamente 40 centímetros), com um furo em cima e tinha do lado, em baixo, um furinho onde botava o estopim, onde acendia o fogo. Colocava pólvora e depois socava pedra e tijolo. O tiro era forte, mais forte que foguetão.

No cruzamento de múltiplas memórias emerge essa festa única no agora

município de Treviso e cujo desaparecimento foi lamentado pelos entrevistados,

porque era um momento de ligação entre o sobrenatural e o natural. A prática

devocional de homens e mulheres ao santo padroeiro, as procissões e festas

caracterizam a interpenetração entre o sagrado e o profano em cerimônias tão

distintas quanto a missa e as corridas de cavalo. Para Dona Ignes, era uma

77 Norma Dal Bó Perucchi. Entrevista citada. 78 Alexandrino Possoli, de 87 anos, é filho de imigrantes. Recebeu este nome em homenagem ao padroeiro, por ter nascido dia 23/08/1918. Foi entrevistado em 07/09/2005.

Page 48: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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“homenagem ao santo”, que se realizava no dia 27, uma homenagem marcada pela

alegria de ver os cavalos desfilando pela cidade, o grande número de participantes e

os bailes que aconteciam à tarde.

3.4 – Um soldado romano na Colônia Nova Veneza

Nascido possivelmente no século III da era Cristã, em Tebas, Alexandre,

quando ingressou no exército romano como integrante da Terceira Legião Tebana,

já era um Cristão convicto, vivendo um período de tréguas às perseguições aos

cristãos, por volta de 275 e reiniciando sob o governo de Diocleciano, que, a partir

de 298.

Entre estes perseguidos estavam Alexandre e alguns companheiros que,

presos e levados aos tribunais, recusaram-se a renegar a própria fé e a adorar

deuses romanos e ao imperador. Ao fugir, Alexandre teria ressuscitado um morto,

sendo novamente preso. Reconduzido ao imperador, Alexandre reafirma sua fé

cristã e por isso foi condenado a morte, porém, no momento da execução da pena, o

carrasco teria ficado imobilizado. Alexandre, 79 mais uma vez, conseguiu fugir, desta

vez para a cidade de Bérgamo, na Itália, uma cidade pagã que tinha na arena uma

das suas principais atrações. Preso por soldados da cidade, Alexandre foi preso e

decapitado, em 26 de agosto de 303 e, mais tarde, no local de sua morte foi erigida

uma igreja, em sua homenagem.

Quando a cidade foi invadida, em 1514, por alemães, franceses e

espanhóis, o povo teria sido salvo do ataque, graças às orações realizadas durante

a noite e o próprio general inimigo teria ido prestar homenagens ao santo.

79 DE LORENZI. Zeide. Op. Cit. p.45

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49

Ilustração 3 - Santo Alexandre de Bérgamo.

Era, portanto, natural que os bergamascos que emigraram para o Brasil

trouxessem sua devoção. Segundo Ignes Carminatti de Lorenzi, Pedro Pagani,

chefe do núcleo o escolheu para padroeiro e todos aceitaram. Dotados de profundo

sentimento religioso, logo tomaram a decisão de construiu a primeira igreja. A

primeira providência foi a de montar uma olaria rudimentar, próximo à gruta Nossa

Senhora de Lourdes, distante cerca de um quilômetro da praça e uma vez

determinado o local da construção do templo, a preocupação seguinte era a forma

como os tijolos chegassem ao pátio de obras. O problema foi resolvido quando

alguém deu a idéia de formarem uma fila, com todos que pudessem ajudar, homens,

mulheres e crianças, da olaria até a praça e assim, de mão em mão, os tijolos foram

sendo passados até estarem todos empilhados no local da construção.

Pio Carizzi, engenheiro da Companhia Metropolitana, fez a planta,

enquanto a Companhia forneceu todo o material restante, como armações, cimento,

Page 50: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

50

cal, janelas, portas, bancos e altares. 80 Pedro Pagani chefiava a construção. Os

trabalhos de carpintaria foram realizados por João Pagani, Rômulo Daminelli e

Camilo Abati, enquanto as pedras cortadas por Ângelo Périco, João Tasca e

Baldessar Bada iam sendo assentadas por Pedro Fusini, João Ghisloni, José Viscovi

e João Macarini. 81 A igreja começava a tomar forma. Segundo Zeide Carminatti de

Lorenzi, “os nomes dos construtores foram guardados em duas garrafas e colocados

no interior das colunas frontais”. 82

Quando chegaram as telhas, que haviam haviam sido encomendadas em

Rio Carvão (Urussanga), o trabalho foi retomado, uma vez que a igreja passara

algum tempo coberta com palhas. Porém, por motivo desconhecido, antes de estar

totalmente coberta, as paredes laterais cedera, e todo o telhado veio ao chão. Um

operário, Baldessar Bada, feriu-se gravemente, mas sobreviveu. 83

A obra de Zeide Carminatti de Lorenzi descreve a igreja:

Na memória dos mais idosos e observadores há fortes lembranças da primeira igreja, de reboco exagerado e grosseiras telhas crespas, pedras enormes, muito cerne e argila. No interior, as colunas com arabescos dourados, linhas curvas e desenhos de frutas, ramos e flores coloridas. Na entrada, à direita, uma escada com corrimão avermelhado terminava em coro, onde havia um órgão tocado a pedais. Do alto a visão era bonita: os bancos brilhantes, os quadros da via-sacra, a pia batismal, altares laterais, confessionário, imagens de Santos. No altar-mor Santo Alexandre, o sacrário com entalhes verdes e dourados e uma delicada cortina branca, protegendo o cálice e o ostensório. Tons claros nas paredes se confundiam com o azul e o dourado dos desenhos. [...] ao lado, num campanário de madeira, o velho sininho recolhido na estrada de ferro.”84

De Boni afirma que os imigrantes foram atingidos por um forte abalo

sofrido pela mudança ocorrida na sua passagem do mundo europeu, onde viviam

em pequenos povoados para o ambiente criado pelo governo brasileiro, onde viviam

80 ABATI, José. Op. Cit. p. 9 81 Idem. p. 10 82 DE LORENZI, Zeide. Op. Cit. p. 54. 83 ABATI. Op. Cit. p. 10. 84 DE LORENZI, Zeide. Op. Cit. p. 54-55

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em lotes rurais, distantes uns dos outros e que cada uma das colônias contava com

um ou mais vilarejos, que deveriam ser transformados em centro sócio-econômico.

Na Colônia Nova Veneza, esses centros eram Nova Veneza, Nova Treviso, Nova

Belluno, Rio Jordão e Belvedere. Os centros se desenvolveriam e a vida giraria em

torno de uma capela. 85

O amparo religioso era dado por padres vindos de Tubarão, Nova

Veneza, Urussanga ou Siderópolis 86 e que, de forma esporádica, visitavam o

pequeno núcleo de Nova Treviso, onde além das missas, realizavam uma série de

outras cerimônias religiosas:

A festa de Santo Alexandre, para muitos casais mais velhos, é a data do casamento deles. Eles aproveitavam a presença do padre na festa e casavam. E havia batizados também. 87

O dia da visita do padre era também o dia das confissões, missas e

procissões e, dependendo da época do ano – normalmente maio ou novembro – era

realizada a Coroação de Nossa Senhora.

Esta homenagem consistia em uma cerimônia normalmente realizada aos

domingos à noite em que crianças menores de 13 anos, vestidas de anjos, com

túnicas de cetim rosa e lilás para as meninas e branco e amarelo bem claro para os

meninos, ostentando uma coroa de papel prateado na testa, levando pétalas de

rosas e entoando cânticos religiosos específicos, fazem a entrega do rosário, da flor

e da coroa à homenageada.

85 DE BONI. Op. Cit. P. 110-111. 86 BORTOLOTTO. Op. Cit. p. 89. 87 SCUSSEL, Bruno.

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Ilustração 4 - Coroação de Nossa Senhora das Graças, década de 60.

Um número aproximado de trinta a quarenta e cinco crianças participavam

da festa, incentivados pelos pais, para quem era uma honra o/a filho/a participar.

Para o sucesso desta homenagem bastante freqüentada pela comunidade era

montada uma espécie de palco, bastante alto em frente ao altar principal da igreja e

no meio dele ela instalada a imagem da santa homenageada, tendo aos pés nuvens

feitas de cetim azul claro e tule branco. Toda a estrutura então era coberta com

Page 53: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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tecidos de cetim de cores suaves e enfeitada com flores de papel ou flores naturais

da época.

As crianças entravam em fila e ocupavam lugares pré-determinados, nos

longos ensaios promovidos por Zulma Freccia e mais tarde, por Salete de Lorenzi

Bernardini. Um terço permeava os cantos em homenagem à Maria. Por toda a igreja,

densas nuvens de incenso subiam, espalhando seu odor “quente”, misturados ao

fresco odor das pétalas lançadas para o alto pelas crianças a intervalos mais ou

menos regulares.

Eis aí um exemplo de representação e de teatralidade que as sociedades

constroem que dão a ver e pensar o real, um “processo por intermédio do qual é

historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma

significação” 88 Difícil seria para um não-católico, não se emocionar com tal

representação. Ela então, cumpriu seu papel.

Page 54: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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4. PÚBLICO E PRIVADO

A festa de Santo Alexandre, na minha infância, era um dia aguardado

com uma ansiedade semelhante à dos dias que antecedem o Natal. Lembro que

durante a semana o tema de discussão das meninas no intervalo do recreio, na

escola, era qual a roupa que seria estreada, o sapato, como se arrumaria o cabelo, o

que seria comprado nas barracas repletas de bugigangas do Paraguai, que

começaram a aparecer naquela época.

Mais ou menos às seis e meia da manhã do dia da festa, já então no

Domingo próximo ao dia 26 de agosto, os fabriqueiros da igreja atiravam os

primeiros foguetes, dos muitos que seriam detonados naquele dia. Cerca de sete e

meia chegava a banda de música de Lauro Muller, os integrantes uniformizados de

azul e branco, com dragonas douradas, chapéus enfeitados e reluzentes

instrumentos. Na frente, ia a baliza, a moça que fazia demonstrações de destreza

com o bastão ou contorcionismos no chão. Todas nós sonhávamos em ser balizas e

realizávamos tal desejo nos desfiles de sete de setembro, quando íamos à frente do

pelotão, de preferência o dos meninos, para que pudéssemos mostrar aos nossos

preferidos que éramos especiais.

Bonito era às nove horas quando os sinos começavam a tocar. Era uma

soberba sinfonia, regida pelo Vilson Cimolim e pelo Emerson Pagani, que se repetia

as oito e meia e depois as nove. Na última chamada do sino, eles tocavam o sino

pequeno, junto com os grandes. Na verdade, os sinos tocavam todos os dias, na

missa matinal e nas missas dominicais, mas não tinham a solenidade, nem o

encantamento dos sinos da manhã da festa de Santo Alexandre. Esses sons

88 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Bertrand Brasil, s/d.

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especiais só se repetiam no Natal. Depois da missa, íamos para casa, com os

parentes vindos de Lauro Muller, Urussanga, Orleans e Siderópolis, os municípios

vizinhos. Naquele dia o almoço seria servido para muitos convidados.

De tarde, íamos para o salão da igreja, ouvir a banda e dançar. No final

do dia, até mesmo quando já éramos mocinhos e mocinhas, fazíamos brincadeiras

de criança na praça: de passar o anel, de bom barqueiro, de prender, apostávamos

corridas, amarelinha, elásticos para, enfim exaustos, irmos para casa.

4.1 – ELABORAÇÃO E REELABORAÇÃO DE IMAGENS

A partir da Revolução Industrial surge uma “nova” cultura – que se forma

com a (re) estruturação da economia, das cidades e o declínio da vida rural – passa

a ser espartilhada pela aristocracia e pela burguesia. O tempo – que já não passa,

mas é gasto89 – é um exemplo do rigor com que a sociedade é controlada e dos

“costumes” de criação recente. Se Fernand Braudel 90 defende a estrutura e a longa

duração como elementos de formação da cultura, Thompson afirma que a cultura é o

resultado da polarização de interesses antagônicos numa sociedade e da dialética

que essa polarização produz. Ao esmiuçar certas características da cultura e

costumes do século XVIII, afirma:

Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes. Essa é uma razão pela qual precisamos ter cuidado quanto a generalizações como “cultura popular”. Esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos historiadores sociais, uma perspectiva ultra consensual dessa cultura, entendida como “sistema de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas simbólicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados”. Mas uma cultura é também um conjunto de

p.24 89 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 271-273. 90 BRAUDEL, Fernand. El Mediterráneo. El espacio y la história. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. P. 144-146.

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diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o ora, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um “sistema”. E na verdade pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto. 91

As relações históricas são formadas por homens e mulheres em um

movimento constante de lutas, resistências, acomodações, solidariedades, seu

modo de ver, pensar e agir, sendo essas práticas cotidianas os elementos capazes

de caracterizar toda a sociedade em suas diversas esferas. Cada geração vai

elaborando e reelaborando as imagens vistas que guarda como memória, vai

formando grupos com o mesmo sentimento de pertencimento a uma sociedade, uma

sociedade afetiva. 92

Ignes, Norma, Avelina, Bruno, Garzoni e Alexandrino são partes da

comunidade e têm lembranças em comum, a memória de cada um deles se auxilia

com a dos outros, se constituem em um fundamento comum que não seria possível

se cada um deles vivesse um ambiente não mais comum. Mas, segundo Ecléa Bosi,

“[...] a memória rema contra a maré; o meio urbano afasta as pessoas que já não se

visitam [...] e daí a importância da coletividade no suporte da memória.” 93 E que

por isso:

Segurar traços e vestígios é a forma de contrapor-se ao efeito desintegrador da rapidez contemporânea. As palavras memória e história evocam o mesmo tempo: o passado. Daí a identificação entre os dois termos. Mas, apesar da matéria-prima comum, é a compreensão oposta a mais difundida entre especialistas, ou seja, memória e história não se confundem. 94

91 THOMPSON. Op. Cit. p. 16-17. 92 HALBWACHS . Op. Cit. P. 30-33. 93 BOSI, Ecléa. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p. 145. 94 D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In. Memória, história, historiografia – dossiê ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, Vol. 13, n. 25/26, setembro 92/ Agosto/93. p.98-99.

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No espaço social da festa desfilava uma sociedade que havia se tornado

híbrida: descendentes de italianos procurando adequar-se a uma nova realidade

aprendiam uma nova língua e nova cultura, numa situação ímpar:

Nos Estados sulinos (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), [...] seus habitantes buscam na atualidade estabelecer laços com hábitos e tradições atribuídos aos seus antepassados. Além disso, em toda essa região existe um esforço recorrente para estabelecer um perfil identitário para cada cidade (onde instituições públicas e privadas investem fortemente na indústria do turismo promovendo festas, apresentações musicais, comidas ou indumentárias típicas ou folclóricas), ou para cada grupo social que nelas reside (cujos componentes procuram se definir como “açorianos”, “alemães”, “italianos”, ainda que “nascidos no Brasil”). Claro está que seria um despropósito colocar em dúvida a autenticidade dos sentimentos de pertença a uma determinada filiação cultural que estas manifestações exibem, tanto quanto consistiria uma extrema arrogância despreza-las enquanto meros particularismos exóticos postos em circulação como regressismos ou reações às pressões uniformizadoras exercidas pelos centros mais dinâmicos como Rio de Janeiro ou São Paulo. Ao inverso, seja pelo vulto que tais manifestações assumem ao mobilizarem um grande número de indivíduos , seja pela complexidade das tensões que articulam ao esboçarem preconceitos e sentimentos de superioridade, isto constitui um tema instigante de pesquisa e de reflexão.95

Crianças, curiosas por verem os cavalos e possivelmente haviam mães

aflitas com medo que seus rebentos levassem um coice de um animal mais afoito.

Ali se reuniam os jovens e as jovens, que longe do rigoroso controle paterno e

materno, mantinham uma rede de olhares que poderiam ser transformados em

namoros. Estavam também as mulheres, que não falavam sobre sua vida particular,

usavam véus para assistirem à missa e mantinham um discreto controle sobre os

maridos. Ali estavam os homens, maridos e pais, com seus chapéus, ternos e

gravatas, acompanhando a festa.

95 FALCÃO, Luís Felipe. Encontros Transversos: a questão de identidade cultural italiana em Santa Catarina no final do século XX. In. Fronteiras: Revista Catarinense de História: Universidade Federal de Santa

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4.2 – Festa Sagrada

Não é difícil imaginar Dona Ignes e sua amiga na igreja, separando as

vassouras e panos, enchendo um balde com água e iniciando a limpeza: primeiro

varrem as teias de aranhas presas nas paredes, limpam os belos altares,

cuidadosamente, cada canto dos entalhes, suas jovens mãos percorrendo com o

paninho a face do santo, ajeitarem a bandeira, colocarem os panos de cetim,

provavelmente vermelhos, em torno do andor de madeira que seria transportado na

procissão, as flores de copos-de-leite sendo depositadas nos vasos, toda a igreja

sendo varrida, suas vozes ecoando pelas paredes decoradas, seus planos para o

dia seguinte.

Os paroquianos chegavam de madrugada para se confessar. É o relato

de seu Alexandrino que exemplifica o início do dia, quando iam à igreja,

[...] aproveitando o padre que vinha de propósito para fazer a festa ou na véspera da Páscoa. A gente vinha para se confessar e naquela época era rigoroso, não podia botar nem água na boca para pegar a comunhão. Nós saia (sic) lá do costão de lanterninha, às três horas da madrugada, para se confessar que o padre estava na igreja comungando logo cedo. Comungando e confessando. [...] Quando era para se confessar, ele (padre Luigi) sentava assim como eu (se ajeita, com as costas eretas, sentado na cadeira) e o “cliente” ficava ajoelhado na frente, atrás dessa coisa ali (representa com as mão o confessionário). Tem pecado? Tem. Não tem. Umas bestema sempre tem. Trabalha em dia de domingo? - Em italiano – às vezes trabalha. Aí ele dizia: “só trabalha se for fazer comida para uma vaca de leite ou uma criação que está passando fome. Mas não deve (ir) para a roça trabalha, domingo é sagrado”, ele dizia.

Às dez horas da manhã iniciava-se a missa, pois o dia do Santo Padroeiro

era guardado para as orações. O padre, extremamente paramentado, rezava a

missa, de costas, em latim. Padre Silvestre Koepp96, pároco de Treviso, conta que

quando se ordenou padre ainda usavam as roupas anteriores ao Concílio Vaticano

Catarina. Departamento de História. Programa de Pós Graduação em História da UFSC e ANPUH- SC. N. 12. p. 76. Jul. 2004.

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II, quando, entre outras determinações, as vestes sacerdotais foram simplificadas e

as missas passaram a ser celebradas na língua de cada país.

Ilustração 5 – Interior da igreja velha. Inauguração da Escola Estadual Udo Deeke. 1955. À esquerda, o então governador de SC, Irineu Bornhausen (X).

Diferentes tipos de missas eram celebradas ao longo do ano: a missa

serial, rezada diariamente, normalmente entre seis e trinta e sete horas da manhã,

era acompanhada por um pequeno número de fiéis, que entoavam uns poucos

cantos e ouviam um pequeno sermão, só ocorrendo onde houvesse uma matriz,

com seu pároco. Um segundo tipo era a missa solene, realizada aos domingos,

depois da oito horas da manhã, com um número maior de fiéis, apresentando o

coral local ou um puxador de cânticos, dois Evangelhos, sendo o segundo, no final

da missa, invariavelmente, o mesmo texto de João. A missa de gala ocorria em

ocasiões extremamente solenes, como a Missa do Galo, realizada a meia-noite do

dia de Natal, nas festas do padroeiro, em ordenações sacerdotais e outras ocasiões,

poderia ter a participação de outros sacerdotes, que ostentavam túnicas douradas e

extremamente bordadas e pesadas.

Invariavelmente, o sacerdote fazia uma oração antes de colocar cada uma

das peças que formavam sua indumentária da missa: o “amito”, uma peça de tecido

96 Padre Silvestre Koepp. Entrevista realizada em 06/09/2005.

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triangular branca que protegia a cabeça, o pescoço e escondia a gola da camisa. A

“alva”, a veste talar, uma túnica branca com larga barra de bordado ou crochê, do

joelho aos pés. Um cordão cingia os rins, em sinal de pureza, remetendo às

Escrituras; o “maniplo”, duas proteções de tecido também branco, presos aos

punhos e que poderiam servir, por exemplo, para secar a testa, durante a missa. A

“estola”, cuja cor seria determinada segundo a época do ano ou ocasião da

celebração, que poderia ser de cor branca no Natal, amarela nas festas e no dia de

Páscoa, preto nos velórios e na Sexta-feira Santa, verde no “tempo comum” e

vermelho no dia da festa do Sagrado Coração de Jesus e missas dos santos

mártires97.

Ilustração 6 - Padre Pedro Pellanda. Nas mãos, o missal e a água benta. Data indeterminada.

97 Ainda segundo padre Silvestre atualmente, a cor preta dos velórios foi substituída pelo roxo e o roxo, antes usado na quaresma, foi substituído por um tom rosa ou róseo.

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Até o Vaticano II, as celebrações sempre eram feitas em latim, porém o

“Orates Frates” (Orai, irmãos) e o sermão, sempre eram feitos de frente para a

Assembléia.

Para a imaginação criativa da menina Norma, o padre virado de costas

escondia importantes segredos: “/.../ a gente querendo espiar o que tinha lá. Era um

mistério para quem era novo. Depois, quando os padres viraram é que a gente viu

que só havia um livro. O livro que liam a missa. Mas era um livro em latim”. A

Ladainha de São José era uma das orações que poderiam ser feitas durante a

missa:

Kyrie, eleison. / Chistie, eleison. / Kyrie, eleison. / Chistie, audi nos. / Chistie, exaudi nos./ Pater de caelis Deus, miserere nobis. / Fili, Redemptor mundi, / Deus. / Spiritus Sancte, Deus, / Sancta Trinitas, unus Deus./ Sancta Maria, ora pro nobis. / Sancte Joseph, / Proles David inclyta, / Lumen Patriarcharum, / Dei Genitricis sponse, / Custus pudice Virginis, / Fili dei nutritie, / Chistie defensor sedule, / Almae Familae praeses, /.../.* 98.

A importância do dia fazia com que a maioria ostentasse roupas novas: os

homens vestiam seus melhores ternos, enquanto as mulheres tinham que ir a missa

de vestidos sem decotes, com mangas longas. Eram comuns as roupas de duas

peças, um vestido comum com um casaco curto por cima, o bolero, que velava

qualquer transparência ou decote. Algumas mulheres usavam véus. Dona Norma

afirma que o “vestido da missa tinha que ter bolero. Eu nunca usei véu, mas a minha

mãe sim, ela não ia a missa sem o véu. /.../ Mas o bolero até que ficava bonitinho e a

gente fazia tentando ficar na moda.” Também Dona Ignês se orgulhava das belas

roupas: “Eu tinha ganhado uns vestidos novos da mulher do Bortoluzzi, lá onde eu

98 SINZIG, Frei Pedro. ROEWER, Frei Basílio. Texto do manual de cânticos sacros “Cecília”. 16.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1946. p. 100. * Senhor, tende piedade de nós. / Jesus Cristo, tende piedade de nós. / Senhor, tende piedade de nós. / Senhor, tende piedade de nós. / Jesus Cristo, ouvi-nos. / Jesus Cristo, atendei-nos. / Deus Pai dos céus, tende piedade de nós. / Deus Filho, Redentos do Mundo, / Deus Espírito Santo, / Santíssima Trindade, que sois um só Deus, / Santa Maria, rogai por nós. / São José, / de Davi, ilustre descendente, / Lume dos patriarcas. / Esposo da Mãe de Deus, / Casto, defensor da Virgem. / Nutrício do Filho de Deus, / Desvelado defensor de Cristo, / Chefe da Sagrada Família, /.../.

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trabalhava na (Nova) Veneza e tinha um com a barra branca que aparecia por baixo

da saia. Eu me achava a mais bonita da festa”.

Ao perguntar se haviam reclamações das mulheres acerca do

comportamento dos padres, Dona Norma foi categórica, falando do padre Pedro:

Eu estava no colégio e as irmãs ensinaram a bordar no tule, que o tule é bem transparente e eu fiz o bordado de lã. Enchi tudo. E fiz uma blusa muito bonita para a Lurdes, minha irmã /.../ e ela ficou tão linda com a blusa. Lá na igreja, o padre viu a Lurdes com a blusa e falou, logo par a minha mãe que era puxa-saco do padre. Era só ela e igreja e nada mais: o queijo mais bonito ela mandava para o padre, a manteiga mais bonita ela levava, para depois ela falar da filha. Ele só disse que era da praça. Era e não era transparente. Quem sabe a manga, porque senão nem a mãe deixaria ela ir. /.../ quando ela chegou em casa e a Lurdes entrou, a minha mãe arrancou a blusa dela e colocou no fogão a lenha. Queimou na hora. E o que falou. /.../ Era só ele que fazia isso. Nem Urussanga, nem Criciúma. Nada. Ele veio para cá e queria que todo mundo virasse santo. Mas acho que o maior pecador era ele. (risos)

Antes de terminar a missa, o padre determinava o momento da procissão.

Uma vez na rua, organizava-se uma fila que tinha as crianças na frente, meninos de

um lado, meninas de outro, seguida dos homens. No meio ia o andor do santo,

carregado nos ombros por quatro homens, que se revezavam no caminho,

acompanhado de perto pelo padre, que ia debaixo de um toldo, carregado por outros

quatro homens e seguido pelo coral local. No final da procissão iam as mulheres,

casadas, viúvas ou solteiras.

Terminada a procissão, todos retornavam à igreja para o final da missa.

Na varanda da casa de seu Alexandrino Possoli, ecoam suas memórias:

/.../ no dia da festa vinha muita gente. Na procissão tinha gente da igreja até lá em cima. Sempre todo ano tinha procissão. E tinham palmeiras e palmitos fincados dos dois lados da rua, da igreja até onde mora o Sônego, lá em cima.

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Ilustração 7 – procissão 1. Chegada da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Segurando o andor, à esquerda, Adelina Fenili e ao lado

Ignácio Fenili, pais da autora. À frente, padre Pedro Pellanda.

As lembranças de Maria Avelina99 trazem imagens de padre Antônio

Kondlick, um homem um tanto intolerante com as roupas femininas e o

comportamento durante as procissões e confissões se comparados ao padre Luigi

Gilli, que esteve em Treviso anteriormente:

/.../ naquele tempo (do padre. Luigi Gilli) ninguém usava manga curta. Depois quando veio o outro padre, o padre Pedro, que começou a (rezar) missa em português, ele exigia (roupas fechadas). Padre Antônio Kondlick também. Esse sim era exigente, não só na roupa. Ele dava até o livro na cabeça da gente, na procissão ou se ia confessar. Tinha que ser direitinho, senão ele resmungava alto. Tinha que chegar lá (no confessionário) e contar tudo direitinho, todos os pecados, contar tudo e se a gente se atrapalhava e parava um pouquinho, ele resmungava. E quantas vezes ele dava com o livro na cabeça da gente.

Existiam regras rígidas também para poder comungar, sendo a principal

que não se poderia comer nada antes da missa, nem mesmo tomar o café da manhã

e as lembranças de seu Alexandrino demonstram isso:

A gente vinha para se confessar e naquela época era rigoroso, não podia botar nem água na boca par apegar a comunhão. Nós saía lá do costão de lanterninha, as três horas da madrugada, para se confessar que o padre estava na igreja, confessando logo cedo e comungando. Mas não podia botar nem uma gota de água na boca, era um jejum, uma coisa sagrada mesmo, naquela época. /.../ e hoje em dia se comunga

99 Maria Avelina Abati. 76 anos. Aposentada. Entrevistada em 09-09-2005. Maria Avelina é filha de José Foresti Abati e de Maria Casaletti Abati, sendo seu pai o autor do Manuscrito sobre a fundação de Treviso.

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de qualquer jeito (risos): se comunga bêbado, de barriga cheia, de qualquer jeito.

Ilustração 8 – Procissão 2. Década de 50. Ao fundo, o que será, depois, a Praça Benjamin Scussel.

Ilustração 9 - Santas Missões de 1955. Da esquerda para a direita Josefina Ubialli, Cláudia Ubialli, Lorenzo, Ildefonso, Eugênio,

Alzira Messagi, Clotilde Doneda e Hugo Pagani.

Durante toda a manhã, os morteiros eram disparados, exceto na hora da

missa. Isso acontecia devido ao forte respeito à Igreja, à fé, ao divino que se

manifestava no templo. A missa e a procissão da festa de Santo Alexandre

representam os elementos fortes do catolicismo popular, um momento sagrado que

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sempre acontecia no dia do padroeiro, ainda que em dias de semana, indicando a

profunda religiosidade dos agricultores que abandonavam seus afazeres para o

momento de oração e encontro com sua fé.

4.3 - Festa Profana

Quem assistiu às corridas de cavalo de Santo Alexandrim nunca

esqueceu. Eles chegavam durante a manhã, com seus donos, vindos de Nova

Veneza, Rio Jordão e Siderópolis e encantavam a todos, porque eram diferentes dos

cavalos habituados ao trabalho diário. A praça fervilhava de gente. Todos os

entrevistados concordaram que enquanto a festa existiu, ela foi mais freqüentada do

que aquela que ocorria no dia anterior, nos festejos do padroeiro. Dona Ignes explica

que havia mais gente na festa de Santo Alexandrim do que na de Santo Alexandre,

porque as pessoas ocupavam os dois lados da praça, em todo o percurso que os

cavalos correriam. Seu Alexandrino se empolgou, sorriu, fez gestos:

A saída deles era ali no jardim e ia até lá em cima. O camarada deitava em cima do cavalo e faz com o chicotinho (cavalga, reproduz o som do galope e chicoteia um animal imaginário – risos). Todo mundo gritava: Eia! Era bonito de se ver. Era bonito. /.../ Esse negócio de cavalgada, então – Deus me livre – todo mundo era animado para ver!

As corridas aconteciam no centro, indo do lado da igreja até o prédio de

Pedro Doneda, próximo ao ginásio de esportes, onde hoje é a Avenida José Abati e

principal rua da cidade. Nesta reta as pessoas procuravam a melhor maneira de ver

tudo, amontoando-se. As crianças ficavam na frente, porém nunca houve nenhum

acidente na pista, com a platéia.

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Ilustração 10 - Festa na Praça de Treviso. Data indeterminada. Na foto à direita, o campanário da igreja velha (canto esquerdo).

Ilustração 11 - Prédio de Pedro Doneda, que passou à família Stopazzolli e hoje é patrimônio da Prefeitura Municipal.

Ilustração 12 – Crianças. Entusiasmadas, os pequenos acompanhavam a festa.

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Antes de iniciar a gravação, em conversa informal, seu Alexandrino

contava que, menino ainda, sonhava com o momento de ver os cavalos, queria

chegar bem perto dos grandes animais e dar cubos de açúcar grosso (mascavo) e

bolachas, estendendo suas pequeninas mãos para que, nelas, os animais

comessem. Chegavam a comer, eles mesmos, os pequenos pedaços de guloseimas

e nenhuma atração se comparava àquela. Gotardino Conti, Ângelo Dal Moro e João

Madalena eram, segundo Ignes de Lorenzi, os proprietários dos animais mais

bonitos. “O Gotardino era do Jordão e o Dal Moro da (Nova ) Veneza. O João

Madalena eu não sei de onde era, mas ele era casado com a Dona Cecília, que era

professora. Esses três eram os principais, que traziam os cavalos bonitos”. Seu

Alexandrino conta que os melhores cavalos eram dos Bortoluzzi, confirmado pelas

informações de Maria Avelina, que afirma ainda ter sido Dona Cecília a primeira

professora de Treviso.

As pessoas se apertavam ao longo do percurso para garantir a visão do

espetáculo, deixando sempre as crianças na frente. Apesar de nenhum esquema de

segurança ser montado, nunca ocorreu nenhum acidente com o público. O único

relato é o de que Julinho Eleutério se feriu no rosto quando caiu do cavalo, durante a

corrida, sendo pelo animal pisoteado, porém, sem gravidade.

O horário em que as corridas aconteciam ficou um tanto confuso, uma vez

que Maria Avelina afirma que eles aconteciam de tarde, a partir de uma hora; Seu

Alexandrino e Dona Norma afirmam que aconteciam de manhã, enquanto Dona

Ignes afirma que aconteciam em intervalos irregulares ao longo do dia; Seu Bruno, o

mais jovem dos entrevistados, não lembra das corridas, mas narra que os homens

se reuniam na praça para beber e detonar os morteiros.

É possível que ao longo dos anos as corridas acontecessem em

momentos diferentes do dia, conforme as atrações da tarde, principalmente as

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domingueiras, os bailes vespertinos. Mas Maria Avelina conta que com o tempo as

corridas deixaram de acontecer, ficando restrita apenas a um grupo que costumava

ficar na praça, detonando os morteiros, na tentativa de não deixar a festa morrer,

assunto que será abordado no próximo capítulo.

O ritual de carregamento dos morteiros também era uma atração, assim

como sua detonação. As peças pertenciam à igreja e consistiam de um cilindro oco,

com um orifício na parte inferior, por onde se introduzia o estopim. Depois a

cavidade era preenchida com pólvora, terra, areia, pedras e cacos de tijolos e

compactados com um pedaço de madeira. Ao atear fogo no pavio do artefato, este

produzia uma forte explosão, com barulho superior aos dos atuais foguetes. Durante

todo o dia das duas festas, os morteiros eram preenchidos e detonados inúmeras

vezes, para deleite dos presentes.

Na parte da tarde o momento mais esperado era aquele do baile, que

poderia ocorrer em diferentes locais da cidade. Segundo Maria Avelina, os primeiros

que ela lembra ocorriam na pensão dos Messaggi, quando o senhor João Périco fez

uma casa de bailes nas proximidades da pensão e depois os bailes passaram a

serem feitos próximo à igreja, no centro, construída pelo pai do senhor Hilária

Gamba, onde hoje é o mercado Cooperca. Ali, segundo ela, “se arranjava um

namoradinho e também se brigava”.

A preparação para o baile iniciava durante as semanas anteriores.

Primeiro, lembrando que a festa era ocasião de roupas novas, as moças que tinham

melhores condições econômicas tratavam de comprar tecidos para a confecção de

vestidos. A vaidosa Norma conta

Quem costurava para mim era a Clotilde (Doneda) e eu comprava o tecido em Urussanga. Eu dava aula em Urussanga, separava o dinheiro da viagem e o resto eu torrava tudo. Mas aqui também tinha. No Ubialli tinha muito tecido. Mas a gente queria trazer de outro lugar. Não tinha roupas prontas, só blusas de lã e casacos. Os modelos eram copiados das revistas que eu comprava em Urussanga. A gente andava

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sempre na moda. As revistas vinham de fora. /.../ e aquelas que não quiseram ou não puderam (fazer as roupas) iam a mesma coisa. O baile era assim.

As paredes enfeitadas do salão de baile mostravam um trabalho

organizado pelas meninas da praça, que não hesitavam, inclusive, em pegar peças

inteiras de tecido emprestadas nas lojas. Os comerciantes, por sua vez, ajudavam

porque era a garantia de negócios para as famílias das moças que logo iriam lá

comprar peças para o enxoval em andamento, como pelo próprio brilho da festa.

4. 4 – Jogo de mútuos interesses

A festa representava o momento de reunião dos fiéis da paróquia, mas

representava também uma oportunidade para que rapazes e moças iniciassem um

relacionamento que poderia se transformar em namoro e talvez um casamento. Era

um dia em que as roupas grosseiras de trabalho, normalmente feitas com tecido de

riscado, tiradas de uma única peça, eram trocadas pelas roupas feitas por uma

costureira local. Em Treviso destaca-se o nome de Clotilde Doneda, que costurou os

vestidos de Norma Dal Bó Perucchi e de outras mulheres. Marina Maluf afirma que a

memória feminina é trajada e

Num esforço para expressar sua individualidade, as mulheres [...] encontram nas vestimentas um meio permitido de refazer e expor não só seu corpo, mas também inscrever “as circunstâncias de sua vida nos vestidos que ela usa, seus amores nas cores de uma echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço são para ela relíquias das quais só ela sabe o preço”. 100

Na igreja, as mulheres ocupavam o lado esquerdo de quem entra e os

homens o lado direito. Contritos, rezavam as orações em latim, mas não sem perder

de vista o/a namorado/a, o/a esposo/a ou as crianças que sentavam nos bancos da

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frente. Terminada a missa, os casais iam para suas residências, enquanto os jovens

iam para a praça esperar a hora do baile. Aqueles que moravam por perto

almoçavam em casa, enquanto quem morava nas comunidades fazia um lanche em

qualquer lugar:

Tinha pão, tinha bolacha, qualquer coisa. Tinha gente que vinha até de Rio América vender bolacha, o tal de Chico, que vinha com aquela cesta comprida, cheia de bolacha e rosca de polvilho. Se não, passava fome, que também não tinha problema. (risos) [...] às vezes, não tinha nem dinheiro para comprar. Para ter 100 réis no bolso, naquela época, 100 réis, 200 réis, 500 réis. Mil réis era um real agora, vamos supor. Na pensão era só gente de gravata. E tu ia (sic) pagar com dinheiro um prato de comida? Não tinha! (risos).

Era também o momento de conferir se os pertences deixados na casa de

um conhecido ou parente, como sapatos e guarda-chuvas, estavam em ordem. Isso

acontecia porque as péssimas condições das estradas faziam com que os sapatos

chegassem à praça extremamente enlameados. Então, vinham com o velho sapato

de trabalho ou descalços, até uma residência próxima, onde realizavam a troca, não

sem antes lavarem os pés.

Ilustração 13 – Ponte Nicolau Pederneiras 1. O local era ponto de encontro dos jovens. Ao centro, de chapéu, Luís Fenili (esquerda). À direita, seu “Manequinha”, policial que trabalhou por muitos anos em

Treviso.

100 MALUF. Op. Cit. P. 81.

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À tarde, a ponte coberta Nicolau Pederneiras era ponto de encontro de

jovens e local preferido pelos namorados.

Ilustração 14 – Ponte Nicolau Pederneiras 2. Quando a enchente de 73 carregou as cabeceiras da ponte, o único meio de transporte era um pequeno barco que ligava as duas margens. Anos depois, uma nova

enchente carregaria a própria ponte.

Mas havia certa dificuldade em iniciar um namoro, porque era costume um

rapaz andar com outros rapazes e uma moça, com outras moças, separadamente.

Um rapaz que falasse com uma moça era por amor ou por estar mandando um

recado de um amigo. O mesmo ocorria com as moças. Porém, não havia a procura

desenfreada por um namoro sério, mas a necessidade de conhecer vários possíveis

pretendentes para que a escolha fosse “acertada”:

Nós pegávamos (os moços) só para dar uma volta e eles ficavam bobos achando que a gente ia namorar. A gente combinava para fazer isso. E tinha aquela bendita ponte abençoada que o rio carregou. Lá era o “point” como dizem agora e era lá que a gente marcava os encontros. Ela era linda

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e não era tão pequena, era grande, era a atração de Treviso. Foi uma pena, mas a enchente carregou.

Hoje, basta olhar a água de tom ferrugem do rio mãe Luzia para saber que

a poluição foi instalada após o início da atividade de mineração, porém, antes disso,

eram suas águas um convite para banhos, diversões infantis e brincadeiras. Alguns

até se aventuravam em passeios de barco. Sobre a ponte, conversavam com os

amigos/as, com primos/as, com um conhecido do ou da pretendente, buscando

informações sobre aquele/a a quem dedicavam afeição, formando-se uma rede de

informações. Ali poderia nascer um namoro ou encerrarem-se as esperanças de um

romance.

As roupas novas eram objetos de desejo das meninas, para que

pudessem exibir sua melhor forma e assim entrar no competitivo ambiente do salão

de danças.

Ali podiam se conhecer, trocar olhares, não sem enrubescerem diante de

um sorriso do preferido, para então se aproximarem e se tocarem no momento da

dança. Neste ambiente, moças e rapazes discutiriam entre si quem dançava melhor,

a/o mais bonita/o ou simpática/o ou quem despertasse maior interesse.

Tímidos, os rapazes escolhiam uma moça já conhecida para começar a

dançar:

Nos bailes, a gente ia chegando devagarzinho, se ambientando. No começo pegava como par uma moça que já conhecia e que tivesse um pouco mais de liberdade para tirar para dançar. Para fazer um aquecimento se tomava uma cachacinha, para tomar coragem. 101

101 Bruno Scussel. Entrevista citada.

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Ilustração 15 – Moças. Ao fundo, à esquerda a antiga casa paroquial e em segundo plano a residência do senhor José Abati. Ao centro, a igreja velha e o campanário.

Ilustração 16 – Rapazes

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Ao exercitarem seus talentos no salão, dançando, eles expunham o que

tinham de melhor, mostrando-se solidários com quem por acaso não soubesse

dançar ou não dominasse bem essa “arte”. Para seu Alexandrino, o baile não era

importante, porque ele era – e ainda o é – avesso ao barulho: “Eu nunca dancei na

minha vida. Quando eu comecei a namorar com a minha velha ela dançava. Aí eu

disse para ela que não tinha mais essa coisa. Eu disse: ‘Se tu quer (sic) me

acompanhar e não dançar, ta bom, senão pode procurar outro.’” Dona Norma,

porém, adorava o ambiente do salão e a excitação que ele produzia e lembra que o

marido a conquistou com um artifício:

E eu fui casar com um que nem sabia dançar, do jeito que eu gostava tanto. Eu sempre digo: na próxima encarnação, homem que não dança eu não namoro. Nem caso. Eu conheci ele num baile em Siderópolis. Ele disse que sabia dançar e era mentira, foi só para me convencer. 102

Entre uma dança e outra, casais iam se formando ou um namorico

incipiente se encerrava. Uma das mulheres afirmou que durante algum tempo teve

um amor inconquistável, “mas chegou a outra, que é a mulher dele agora e casou.

Eu tinha saído do colégio, era jovem e as freiras diziam “não faça isso, não faça

aquilo” e ela carreou o L. Mas era divertido!” Os olhares e pequenos gestos eram os

únicos indícios de que um agradasse o outro.

Os olhares e sorrisos faziam parte de um jogo de sedução, de

encantamento para conquistar o/a parceiro/a e se houvesse entendimento entre um

casal, depois do baile o rapaz levaria a moça para casa, indo normalmente, um de

cada lado da estrada, “com muito respeito”. Esses bailes poderiam ocorrem à noite

ou aos domingos à tarde, e por isso mesmo denominados domingueiras, animados

por um gaiteiro que morava na região:

102 Norma Dal Bó Perucchi. Entrevista citada.

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Era uso, entre os adultos, entreter a bebida com o barulhento jogo de “mora”103 ou com o baralho, enquanto os mais moços intercalavam aos copos a dança. O baile em Treviso rodopiava, naqueles tempos ao som de Ângelo Brina, e se a música era sempre a mesma, o entusiasmo porém, era sempre novo; era nesse momento que se cerravam os punhos, erguiam-se os cacetes, detonavam armas e os homens voltavam depois às suas casas empoeirados, com arranhões ou com a orelha decepada, ora pelo facão, ora pelos dentes do “compadre”.

O ambiente onde ocorria os bailes também era local para brigas mais ou

menos constantes. Um dos motivos poderia ser o excessivo consumo de álcool ou

as moças que resolvessem negar a dança a um rapaz. Isso poderia acontecer

porque, de forma diferente dos rapazes, as moças não pagavam entrada no salão,

ficando, portanto, obrigadas a dançar com todos os rapazes que as escolhessem

numa forma de poder simbólico que sempre funcionava, como explica seu Bruno:

/.../ as moças eram proibidas de negar o par, porque daí elas teriam que ficar de fora (do baile). Era uma espécie de punição. Essa história era porque os rapazes pagavam a entrada – mas o (baile de) casamento era uma festa diferente. Mas no caso de um baile em que só os homens pagavam, eles se sentiam no direito de não serem humilhados. Era uma forma de as moças não negarem par, de não deixar a (elas) liberdade de escolha.

Segundo Marina Maluf, as experiências sociais produzem as pessoas,

construindo seus atributos específicos e nesta esfera, as fronteiras destas

representações são extremamente movediças104. No salão de baile, a teatralidade

produzida por essas relações tomava porte e podiam ser observadas as diferenças

sexuais, um local onde tais diferenças são interpretadas e ganham significado,

principalmente no que tange às relações entre homens e mulheres. A relação de

dominação aparece no fato de não se cobrar o ingresso para a entrada das

mulheres e a recusa em dançar com este ou aquele moço poderia gerar brigas entre

os rapazes, quando o preterido tentava retirar a moça do salão:

103 Este jogo consiste na disputa por acertar o número de dedos que dois oponentes batem sobre uma mesa de madeira. O barulho dos números sendo “cantados” pelos oponentes e seus dedos batendo contra a madeira, são a característica mais marcante deste curioso jogo.

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Aconteceu com a minha irmã, a Lurdes, na Santa Cruz /.../ e (ela) dançava muito bem. O cara quis tirar ela para dançar e ela não quis /.../ Ele chamou palavrão para ela /.../ e quis tirar ela do salão para ela não dançar com ninguém. Quando o meu irmão viu aquilo, avançou nele com um canivete e chegou a machucar o rapaz. Foram parar na delegacia. Ele quis defender a honra da irmã. Mas na praça não acontecia isso. 105

Se esse costume pudesse constranger algumas moças, elas teriam vez na

chamada “marca das damas”, momento em que elas escolheriam o moço com quem

dançariam. Seu Bruno fala que eram poucas as vezes que isso acontecia, mas para

Dona Norma Perucchi, era um momento especial de relativa liberdade e

encantamento em que a moça “tirava quem gostava, quem queria. Mas tinha que ser

rápida. Todas tínhamos o preferido e ai de quem atravessasse o caminho.”

A sociedade gravita então sobre a oposição binária macho x fêmea, em

que o primeiro tenta e consegue induzir a segunda a submissão. Não há, porém por

que considerar essa oposição como algo inato ou necessário e os estudos das

relações de gênero caminham no sentido de nuançar tais diferenças, descobrindo as

diferenças delicadas entre pessoas ou coisas do mesmo gênero, percebendo as

diferenças dentro das diferenças e não apenas as diferenças entre os sexos, ou

seja, buscam refletir que se existem as diferenças entre homens e mulheres,

também existem entre o mesmo gênero:

Na epistemologia feminista sujeito e objeto estão diluídos um no outro. [...] Os estudos feministas propõem uma redefinição dos processos de subjetividade, uma crítica ao conceito de identidade, assim como ao conceito da própria racionalidade no mundo contemporâneo, que se volta par ao passado a fim de se reencontrar, devidamente relativizado, no presente. 106

Joan Scott nos ajuda a compreender o processo por que passou a análise

histórica que vai ter nas mulheres o seu objeto de estudo, destacando que:

104 MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 198. 105 Norma Dal Bó Perucchi. Entrevista citada.

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A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história especializada e daí para a análise. [...] A palavra política é usada atualmente em vários sentidos. Primeiro, em sua definição mais típica, ela pode significar a atividade dirigida para /ou em governos ou outras autoridades poderosas, atividade essa que envolve um apelo à identidade coletiva, à mobilização de recursos, à avaliação estratégica e à manobra tática. Segundo, a palavra política é também utilizada para se referir às relações de poder mais gerais e às estratégias visadas para mantê-las ou contesta-las. Terceiro, a palavra política é aplicada ainda mais amplamente a prática de reproduzem ou desafiam o que é as vezes rotulado de “ideologia”, aqueles sistemas de convicção e prática que estabelecem as identidades individuais e coletivas que formam as relações entre indivíduos e coletividades e seu mundo, e que são encaradas como naturais, normativas e auto-evidentes. Essas definições correspondem a diferentes tipos de ação e diferentes esferas de atividade, mas a minha utilização da palavra “política” para caracterizar tudo isso sugere que os limites de definição e espaço são indistintos, e que, inevitavelmente, qualquer utilização tem múltiplas ressonâncias. A narrativa da história das mulheres que eu desejo fazer depende dessas múltiplas ressonâncias; é sempre uma narrativa política. 107

Os estudos feministas então criticam abordagens que universalizam e

generalizam a história das mulheres enquanto categorias fixas e permanentes,

propondo enfoques que retiram o feminino do plano abstrato, através de planos

concretos acerca de suas especificidades históricas, cristalizadas em ações de um

sistema ideológico de dominação. 108 A partir de 1950 homens e mulheres

passaram a escavar o universo feminino com o intuito de trazer à luz o ponto de

vista das mulheres, porque sua história não é exclusiva, isolada: é a história da

família em que está inserida, de sua família, dos trabalhos que realiza. Ali,

imbricados, estão seu corpo e sexualidade, a violência onde é vítima e algoz e

também todo o conjunto dos seus sentimentos

106 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças. Estudos Feministas. N.º2 / 94. P. 373-374. 107 SCOTT, Joan. História das mulheres. In. A escrita da história: novas perspectivas. Peter Burke. (org.) São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 65-66 108 FOULCAULT, Michel. Sexo, poder e indivíduo. Desterro: Edições Nefelibata, 2003. p. 35

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Ilustração 17 - Namoro. Ao centro, Irene de Lorenzi, filha de dona Ignes.

“Me gá per moroso?”, ou seja, “me aceita para namorado?”.

Possivelmente assim começava um namoro. Depois de uma missa ou terço, ou

ainda depois de uma domingueira, o rapaz poderia levar uma moça até em casa. Se

o repetisse por três vezes seguidas era um sinal de que havia interesse de ambas as

partes. Dona Ignes conta que gostava de um rapaz e ele até a levou para casa uma

vez.

Mas então ele conheceu a Salute e levou ela para casa. Aí eu fiquei com o Bruno. Coitadinho. Ele bebia, mas eu gostava dele. Me levou até em casa três domingos seguidos e eu sabia que tava namorando. [...] depois vieram os filhos e ele continuou bebendo. Quando morreu, eu fiquei triste, mas tinha que criar os filhos.

A vida afetiva dos jovens estava sob rigorosa censura familiar e religiosa,

razão pela qual qualquer manifestação de carinho, como beijos e abraços, só

fossem permitidos após o noivado. Para namorar, o jovem tinha que pedir permissão

à família da moça, especialmente ao pai dela, quando acertavam os horários de

namoro e se comprometiam em aceitar as exigência e imposições para o

relacionamento. Se o pai da moça fosse falecido, deveria conversar com a mãe da

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moça ou com um tio. “O moço tinha que ter um comportamento que justificasse

confiança. [...] Ninguém freqüentava uma casa sem o consentimento dos pais da

moça. Esse era o ponto crucial da história.” Assim seu Bruno define sua própria

experiência, sua vivência numa sociedade que ele mesmo perpetuará ao formar as

novas condições familiares que ele constituirá ao lado de Norma Zanelatto.

Tão logo as moças iniciassem um namoro havia a preocupação da mãe

de adiantar a preparação do enxoval, por vezes iniciando quando a filha tinha sete

ou oito anos:

Para entrar na casa tinha que falar com os pais, noivar direitinho. Era namoro sério. A mãe já começava o enxoval da filha, porque de repente pode casar. Tinha mães que desde que tinham uma filha começavam o enxoval, toalhinhas para guardar. Eu fiz muitos bordados à mão porque eu fiquei três anos no Colégio. Então tudo o que eu fazia a mãe guardava, não usava nada. E eu gostava muito de bordar. A (minha irmã) Lurdes, que não gostava de bordar, disse: ‘-Tu é quem levasse um enxoval bonito. Mas é claro, porque eu bordei e tu?’ Uma vez, para não bordar ela escondeu um lençol embaixo do colchão. A mãe tinha obrigado ela a bordar e ela não gostava. 109

Havia, portanto sessões de trocas e sugestões entre a filha e a mãe, não

havendo regras, nem rigores, iam simplesmente selecionando e organizando as

peças do enxoval, normalmente guardadas dentro de um baú que também fazia

parte do dote. A qualidade da peças dependia do capricho e do gosto pelo bordado

que a futura noiva possuía, a destreza com suas tesouras, agulhas e linhas, o tempo

disponível para fazer as peças, bordá-las carinhosamente, prendendo nas tramas

dos tecidos sua ansiedade em relação ao futuro. Não era incomum também que

famílias com melhores condições econômicas comprassem um guarda-roupa, ou

uma cômoda, o “comó” ou ainda uma máquina de costura, que seria providencial na

fabricação e manutenção de roupas para a família. As modernas são elétricas,

porém aquelas usadas na adolescência de dona Norma e em sua vida adulta eram

109 Norma Perucchi. Entrevista citada.

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mecânicas, acionadas pelo movimento dos pés, enquanto aquelas mais antigas, da

época de sua avó, eram movimentadas por uma pequena manivela.

Desde pequenas as meninas iam sendo preparadas para o serviço

doméstico, para ser boa esposa e mãe, sendo transmitida sua educação de mãe

para filha, em um modelo que elas mesmas repetiriam com suas próprias filhas. “As

meninas aprendiam mais pela prática e pelo costume, de modo que pode-se dizer

que as tarefas domésticas se confundiam com a aprendizagem.”110 A educação das

moças então, voltavam-se no sentido de atender à elaboração de um papel que a

sociedade construira para ela e esperava que ela desempenhasse. A imagem

idealizada desta mulher-esposa-mãe, divulgada na Europa a partir do século XVII111,

repercute na sociedade ítalo-brasileira que se forma na colônia Nova Veneza. A

mesma autora exemplifica essa imagem a ser idealizada nos “Dez mandamentos da

mulher”, publicado no Jornal do Commercio, de 1888:

1. Amai a vosso marido sobre todas as coisas. 2. Não lhe jureis falso. 3. Preparai-lhe dias de festa. 4. Amai-o mais do que a vosso pai e a vossa mãe. 5. Não o atormenteis com exigências, caprichos e amuos. 6. Não o enganeis. 7. Não lhe subtraiais dinheiro, nem gasteis este com

futilidades. 8. Não resmungueis, nem finjais ataques nervosos. 9. Não desejeis mais do que um próximo e que este seja o

teu marido. 10. Não exijais luxo e não vos detenhais diante das vitrines.

Estes dez mandamentos devem ser lidos pelas mulheres doze vezes por dia, e depois ser bem guardados na caixinha da toillete.112

Ainda segundo Joana Maria Pedro, esta imagem idealizada de mulher

será publicada em vários jornais nos anos e décadas seguintes, identificando-a

como a responsável pela felicidade no lar, “homenageadas como as responsáveis

110 MALUF. Op. Cit. P. 227 111 PEDRO, Joana Maria. História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: ed. Contexto, 1997. p. 284 112 Idem . P. 285

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pela civilização, pelo heroísmo, pela piedade cristã dos homens [...]”. 113 Esta família

“civilizada” deveria constar de pai, mãe e filhos, excluindo os demais parentes. Por

isso, se as moças levavam o enxoval, representado pelas roupas de cama, mesa e

banho da nova casa, o noivo era responsabilizado pelo terreno, pela casa e pela

provisão do novo lar. Seu Bruno expõe essa necessidade:

Tinha alguns (moços) que se desligavam da família e iam trabalhar fora, como quem ia para o Rio grande do Sul, antes da mineração e tinham dinheiro próprio, que adquiriam bens: uma casa, um terreno. Normalmente, primeiro era o terreno, construía uma casa simples e ganhava uma vaca, uma porca e umas galinhas, para começar (a nova família).

Os rapazes que moravam com a família recebiam um lote vizinho ao do

pai e alguns animais, normalmente fêmeas, que ao procriarem garantiriam o

crescimento do patrimônio. Muriel Nazzari, em O desaparecimento do dote, afirma

que no período colonial brasileiro era comum que famílias abastadas dessem ricos

dotes às suas filhas, porém, o costume tornou-se cada vez mais escasso, à medida

em que a distribuição desse patrimônio, por vezes, levava ao comprometimento dos

bens da família. Em uma sociedade em que ninguém levava dotes vultosos, era

imprescindível que o homem tivesse condições de casar-se e manter,

economicamente, a família:

O surgimento do amor como razão principal par ao casamento passou a ocorrer na medida em que a família mudava de unidade primordial de produção para unidade de consumo, o que foi facilitado pela existência de profissões liberais ou outras carreiras que permitiam que os homens sustentassem as esposas sem herdar bens ou receber grandes dotes. [...] Essas transformações proporcionaram ao marido maior peso dentro do casamento diante da esposa e de sua família de origem, o que demonstra claramente pelo número cada vez maior de esposas que adotaram o sobrenome do marido e de filhos com o sobrenome do pai.114

113 Idem ibidem p. 287. 114 NAZZARI, Muriel. O desapareciemtno do dote – mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 240.

Page 82: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

82

Uma vez determinada uma data para a realização do casamento,

começavam os preparativos para a festa. Enquanto a preparação do enxoval era

acelerada, as famílias procuravam ajeitar as roupas que usariam na festa,

principalmente o vestido da noiva. “O tecido do meu vestido de noiva custou um mês

inteiro do meu salário de professora e foi feito em Urussanga. O diadema e o véu, foi

alugado em Criciúma. (mostra a foto) Este buquê de noiva, foi o primeiro usado em

Treviso e era lindo” fala emocionada dona Norma.

A festa de casamento iniciava pela manhã quando o casal de padrinhos e

o noivo passavam pela casa da noiva para levá-la à igreja, porém, antes, algumas

famílias serviam um café da manhã com pão feito em casa. Entre onze horas e

meio-dia, tinham que estar em Urussanga ou Siderópolis para que o padre os

casasse. Não havia decoração de flores no corredor na igreja, nem tapete vermelho

esperando pela passagem triunfal da noiva. Quando muito, os vasos de vidro eram

preenchidos com copos-de-leite, abundantes na região e o deslocamento até a

igreja poderiam ser feito a cavalo ou com um caminhão ou caminhonete

especialmente pago para o evento, quando a família tinha condições de fazê-lo.

Seu Bruno conta como foi seu casamento:

Eu casei em Siderópolis porque aqui ainda não tinha paróquia. [...] o almoço – porque era mais almoço do que janta e se ia para a casa do noivo, mais ou menos às duas horas da tarde, essa despesa ficava com a família do noivo. [...] Muitas vezes (havia baile) até o amanhecer. As pessoas iam ficando, jantavam o que havia sobrado do almoço e depois tinha o baile. Enchia a casa.

Page 83: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

83

Ilustração 18 – Casamentos 1. Norma Dal Bó e Reny José Perucchi. Data - 18- 07-1953.

Ilustração 19 – Casamentos 2. Célia Angulski e

Luís Fenili. Data: 26-07-1952.

Page 84: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

84

“Cada meio social atribui às experiências passadas um significado

particula.” 115 e, por conseguinte, os enquadramentos de memória, de formas

diferenciadas, acabam por tingir a própria reconstituição do passado feita por

homens e mulheres, uma vez que foram criados, para ambos, lugares e identidades

distintas e desiguais. Quando a sociedade produz lugares e identidades distintas e

desiguais para homens e mulheres, eles viverão de formas diferenciadas as

experiências do cotidiano. O exercício de determinadas práticas sociais e a forma

que a sociedade elabora conceitos acerca destas práticas, produzem o testemunho

de mulheres e de homens sobre o passado. O sentido que essas práticas assumem

no discurso feminino, imbricadas em relações sociais e de poder historicamente

determinadas, elaboram um discurso que favorece a elaboração de representações

masculinas que dominam as femininas, tornando-as desiguais.

4.5 – Um acidente e o desaparecimento da festa profana

Não foi possível determinar com clareza a época em que a festa iniciou. O

pai de dona Ignez dizia que a festa era “uma homenagem ao santo” padroeiro. Se

ela própria tem oitenta e três anos e conheceu a festa na sua infância, que já era

freqüentada pelo pai e pelo avô, Vitale Carminatti, chegado ao Brasil em janeiro de

1892, 116 pode-se supor que a festa iniciou-se no final do século XIX. O fim da festa

teria sido há cerca de 60 anos, uma vez que seu Bruno, o mais jovem dos

entrevistados, nascido em 1939, disse não ter conhecimento das corridas de cavalo

realizadas na praça, mas lembra que quando vinha para a escola, no centro, havia

movimento nos bares, principalmente o ajuntamento de homens em torno de

bebidas e morteiros.

115 MALUF. Op. Cit. P. 83.

Page 85: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

85

Ao realizar as entrevistas, este foi um fato curioso que despertou minha

curiosidade, uma vez que para todos eles, a lembrança mais forte eram justamente

as corridas. A resposta começou a ser delimitada quando seu Alexandrino explicou

que as festas foram escasseando, que as corridas foram deixando de acontecer,

sem que nem ele nem os demais justificassem o motivo. Para Avelina,

Quando teve o acidente, já não faziam mais as corridas de cavalos. Tinham diminuído. Eles festejavam só com os morteiros, porque era costume, mas já não vinha muita gente, nem tinham mais as orações que faziam antes (das corridas). Era só uma turma daqueles (homens) que estavam acostumados a festejar. Naquele dia eles vinham só para soltar os morteiros. Depois do acidente, então, não soltaram mais, parou tudo. Santo Alexandrim terminou.

Esta festa não desapareceu de súbito. “Praticamente não lembro de ter

havido, (por parte) das mulheres, participação. Era mais masculina.” A festa foi se

tornando um encontro de homens, normalmente nos bares, dispostos a conversar,

detonar tiros de morteiros e divertir-se. Ela foi se transformando de um grande

evento em algo menor, até se resumir à festa predominantemente masculina que

seu Bruno cita, excluindo as mulheres, para quem não era de bom tom participar de

eventos nos bares da praça, ou melhor, não freqüentarem nenhum bar, considerado

um templo masculino.

É importante ressaltar que os sinalizadores da festa de Santo Alexandrim

eram os tiros de morteiro e as corridas de cavalo. Porém, na década de 60, quando

os cavalos deixaram de ser atração, a data passou a ser festejada apenas pelos

homens, permanecendo os morteiros e diminuindo a participação de crianças e

mulheres, além das pessoas que vinham de outros municípios. Nenhum dos

entrevistados levantou um motivo concreto para explicar tal fenômeno. Mas todos

citaram o acidente ocorrido com o senhor Higino (Gino) Tasca, sem que nenhum

deles tivesse apontado uma data exata, mas afirmaram que ele e sua família fixaram

116 BORTOLOTTO. Op. Cit. P. 309.

Page 86: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

86

residência em Chapecó, poucos anos após o ocorrido, aqui relatado pelo senhor

Garzoni Losso117:

Foi um tiro de morteiro. Esses tiros eram a alegria da festa. Mas esse dia foi um dia depois da festa. Ali no jardim. Abriu no meio o morteiro. Uma parte foi para lá (aponta para o leste) e a outra metade acertou ele. Não sei quem trouxe os morteiros. O Tasca machucou a perna, o quarto. Ficou cinco ou seis meses em Florianópolis. Não sei bem. Ficou bastante tempo. Ele vinha para a praça meio manco [...] Depois foi morar com a família em Chapecó.

Dona Norma e seu Bruno também comentam o acidente: “eu lembro que o

meu pai chegou aqui (em casa) bem apavorado. Tinha acontecido um acidente ali

perto [...]” diz a primeira enquanto seu Bruno lembra que “foi a detonação de um

morteiro [...]. Uma parte atravessou a praça e o Gino estava sentado na calçada ou

no degrau e foi atingido pela peça de ferro. Houve fratura na perna”.

Maria Avelina também comenta o fato, dizendo que o

Higino Tasca sofreu o acidente. Eles foram soltar os morteiros. [...] Os que soltavam os morteiros eram o Eugênio (“Gênio”), o Giocondo (falecidos) e o Garzoni Losso, o Higino Tasca e o João Tasca. Eram eles que vinham e faziam barulho na praça, talvez ainda vinham alguns (outros).

Surgem então nomes de pessoas da comunidade que tentavam não

deixar desaparecer a festa de Santo Alexandrim. Segundo Maria Avelina, “depois do

acidente não soltaram mais (os morteiros), parou tudo. Santo Alexandrim terminou.”

O acidente com o morteiro parece então ter sido decisivo para que apenas a festa

sagrada de Santo Alexandre permanecesse.

Segundo Natalie Zamon Davis as festas populares têm como função

social perpetuar certos valores da comunidade e por outro lado, fazer uma rigorosa

análise do Estado e dos seus órgãos de governo e da própria sociedade e o

“desgoverno” seria a cristalização desse protesto:

Às vezes pode ser útil dar permissão ao povo para fazer palhaçadas e alegrar-se”, dizia o advogado francês Claude de Rubys, no final do século XVI, “para impedir que, ao controlá-lo muito rigorosamente, ele caia no desespero. Abolidos esses

117 Garzoni Losso. 97 anos. Aposentado. Entrevistado em 10/09/2005.

Page 87: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

87

jogos alegres, em vez de tomar parte neles as pessoas vão pra as tavernas, põem-se a beber, a tagarelar, com os pés inquietos sob a mesa, e a analisar o Rei e as princesas [...] o Estado e a Justiça e ficam imaginando panfletos difamatórios e escandalosos”. [...] (tais festividades) ocorriam a intervalos regulares, sempre que a ocasião o permitisse, e eram acertados pelo calendário religioso e sazonal (os doze dias do Natal, os dias antes da Quaresma, o início de maio, Pentecostes, a festa de São João Batista, em junho, a festa da Assunção, em meados de agosto e Todos os Santos) também pelos eventos domésticos, casamentos e outros assuntos familiares. 118

Esta manifestação popular tão singular em toda a região apresenta e

representa as formas de transgressão e resistência oferecidas ao poder secular da

Igreja e da elite que procuravam garantir que o modelo de sociedade que surgia no

Brasil da época, branqueado pela introdução do europeu imigrante, principalmente

no sul, reformulasse a conduta e a sociabilidade da população. 119 Deveriam

dedicar-se às orações, às relações sociais dentro de uma conduta “cristã”

inteiramente romanizada, onde Deus e o Diabo, o pecado e o perdão parecem andar

juntos frente à dicotomia do novo homem que surge dali em diante. Por sua vez, a

festa de Santo Alexandrim vem representar a quebra desses preceitos e a

resistência à ordem estabelecida, porém, o acidente com o morteiro faz com que os

festejos sejam exterminados por uma decisão coletiva irrevogável pela população

temerosa da ira divina, cristalizada no “acidente”.

Nesse contexto, a Festa de Santo Alexandrim se encaixa como uma

manifestação popular, de caráter transgressivo e de resistência ao espartilhamento a

que é submetida a sociedade. O espartilhamento, segundo Bortolotto, se faz pelas

dificuldades naturais que encontram os imigrantes, pelo trabalho árduo no campo, os

ataques indígenas, a falta de boas estradas, pelo abandono – por parte do governo

118 DAVIS, Natalie Zamon. Culturas do Povo – sociedade e cultura no início da França Moderna. São Paulo: Paz e Terra, 1990. p. 87-88.. 119 SERPA, Élio Cantalício. Igreja e Poder em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997. P. 15-16.

Page 88: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

88

italiano – a que foram submetidos. 120

Quando a comercialização de bebidas e os bailes são proibidos, a

celebração no dia seguinte ao dia do santo padroeiro é a saída encontrada para a

diversão, tão esperada após cansativos dias de trabalho e fome. A resistência é a

própria festa. Ao procurarmos informações sobre nossos antepassados, desejamos

buscar um pouco de nós mesmos, de nossa História impregnada da vida social que

nos cerca, da cultura que nos é familiar. Mas ao mergulharmos na história de uma

sociedade, em um determinado momento, nos deparamos com um valor intrínseco

difícil de ser analisado e principalmente avaliado.

120 BORTOLOTTO, Zulmar. “Estradas precárias”. In História de Nova Veneza. P. 51 – 56.

Page 89: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

89

5 CONCLUSÃO

Anos atrás, ao pesquisar a história de Treviso para o Trabalho de

Conclusão de Curso, as pessoas citavam uma festa estranha e meio esquecida,

marcada por corridas de cavalos e estouro de morteiros. Içando-a do risco do

esquecimento surgiu este trabalho, agora pronto, sobre a Festa de Santo

Alexandrim.

Extravasar era a palavra de ordem para os colonos de Treviso ao criar

uma festa profana dedicada a “santo Alexandrim”, nos dias seguintes à do padroeiro,

Santo Alexandre, nos dias 26 de agosto de cada ano. O cotidiano dos colonos urgia

a sobrevivência, transcendia o alimento à religiosidade com a devoção ao protetor

dos céus que os haveria de acudir. As festas e bailes facilitavam a solidão das

famílias que viviam bem distantes, nas suas glebas de grande monta e superfície –

enquanto na mãe-pátria ficavam nas aldeias perto uns dos outros – porque assim se

apresentava sua forma de contrabalançar ao trabalho duro alguns momentos de

demonstração de alegria de viver, para depois reiniciar a estafante tarefa de

produzir. Afinal, a Companhia Metropolitana estava sempre à espreita, dono dos

prazos e da exigência dos pagamentos acordados na vinda para a Colônia.

E Santo Alexandre recebeu um santo apócrifo, Santo Alexandrim, fruto da

criatividade daqueles homens para colocar o profano, fonte de festas acima dos

limites. Após a contrição da missa e das demonstrações de uma profunda devoção,

lançavam-se às bebidas, lidas de cavalos, estampidos dos mosquetes e o cheiro da

pólvora.

Durante todo o processo de assentamento e da ratificação de suas vidas

como membros daquela comunidade, sem o retorno à mãe-pátria, com a definição

Page 90: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

90

de que suas terras passariam finalmente aos filhos por haverem cumprido os

compromissos financeiros e as colheitas eram a recompensa final de seu esforço,

eles festejavam: Santo Alexandre, com tez séria, assistindo as práticas religiosas da

Igreja, com a contrição dos convictos; Santo Alexandrim, como a válvula de escape

enquanto lutavam pela prole e pela superação na nova terra.

E a lei da vida suplanta, pelos próprios homens, a criação de mitos e

convenções.

Tal se processou, em Treviso, enquanto houve dificuldades no trato da

terra e na auto-afirmação das famílias como detentores de uma vida real e objetiva

somente em Treviso, sem mais laços com a terra-mãe a não ser a preservação do

idioma e dos sobrenomes. Quando se tornaram senhores de si, não precisavam

extravasar mais em uma festa de Santo Alexandrim, já que estavam eles estáveis na

vida e no cuidado de filhos e netos. Não. Eles teriam a festa sagrada de Santo

Alexandre para agradecer, com tranqüilidade, sem arroubos e sem excessos, no

agradecimento eterno à sua condição de protetor. Com o lançamento de fogos de

artifício conclamavam as pessoas, assistiam à Missa e depois tomavam vinho,

jogavam conversa fora, dançavam um pouco nas matinés, necessária ao convívio e

chance maior da aproximação dos gêneros e, finalmente, iam embora, alguns com

seus sapatos nas mãos (somente era necessários nas festas, já que a maioria, na

faina diária andavam descalços), outros com charretes, mostrando belos cavalos, a

maioria ainda um português arrevesado, cheio de sotaque, que ainda permanece

nos mais velhos.

E assim Santo Alexandrim foi relegado ao esquecimento, porque já não

era necessário, não havia mais agonia nos gestos e nas preocupações, não eram

mais necessários os excessos. O profano acabou engolido pelos costumes mais

estratificados na terra, na certeza de que eram agora de Treviso, sem a ânsia de

Page 91: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

91

voltarem vitoriosos à Itália. Seriam vitoriosos em Treviso do Novo Mundo, da “Terra

da Cocagna”, sem mais precisarem dos folguedos profanos do santo apócrifo, mais

Baco que membro da Igreja. A evolução dos costumes matou Santo Alexandrim, é

esta a maior demonstração da evolução e do progresso da gente da comunidade de

Treviso.

A que se lamentar quando um aspecto folclórico, quando um ritual secular

ou de muitas décadas decai e depois desaparece. Não foi por simples “perseguição

de padre” nem por motivos de “deculturação”. Apenas tinha que acontecer quando o

colono italiano sorrisse de satisfação na nova terra, após até mais de 50 anos de

luta para a produção ficar sólida e efetiva e não precisasse mais que uma oração

tranqüila para agradecer ao santo padroeiro.

Dona Ignes, dona Norma, Maria Avelina, seu Alexandrino, seu Garzoni e

seu Bruno são guardiões do passado e como diria Ecléa Bosi eles têm a função de

“lembrar e aconselhar – memini, moneo – unir o começo e o fim, ligando o que foi e

o porvir.” 121 Os entrevistados vestem-se com suas memórias, são capazes de

lembrar com que camisa, vestido ou chapéu foram às festas, quatro, cinco ou seis

décadas atrás. Dona Norma, por exemplo, pormenorizou o quanto pode suas

lembranças, expondo-as como se fossem fotografias, retratando-as e mostrando-as

em seus melhores ângulos. Lembrando dos bailes os olhos sábios de todos

brilhavam. Falando das bolachas que seu Chico vendia ou dos torrões de açúcar

grosso dado aos cavalos, seu Alexandrino disse ainda sentir o sabor delicioso que

hoje já não existe mais. Lembrando da caminhada de sua casa “embaixo do costão”,

de madrugada, vindo para a Igreja cumprir seu papel de devoto, foi possível sentir o

ar frio da aurora e acompanhar as formas bruxuleantes que o mato formava quando

ele passava com a lamparina nas mãos.

121 BOSI. Op. Cit. p. 18

Page 92: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

92

As festas grandiosas de Santo Alexandre e Santo Alexandrim são

lembradas de forma saborosa, com intenso prazer, pois fizeram parte das

experiências lúdicas de cada um, havendo um impressionante quadro de minúcias

em suas lembranças e em um momento qualquer, entre os anos 40 e 50 do século

XX, a necessidade de um Santo Alexandrim foi sepultada.

Ficou apenas uma saudade dos participantes da típica “bagunça” em que

a maioria das vezes ela se constituía.

Page 93: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

93

REFERÊNCIAS ORAIS

ABATI, Maria Avelina. 76 anos. Entrevista concedida a Lenir Mateus Cesconetto em

09/09/2005. Treviso, SC.

DE LORENZI, Ignes Carminatti. 83 anos. Entrevista cedida a Lenir Mateus

Cesconetto em 22/06/2005. Treviso, SC.

KOEPP, Pe. Silvestre. Entrevista cedida a Lenir Mateus Cesconetto em 06/09/2005.

Treviso, SC.

LOSSO, Garzoni. 87 anos. Entrevista concedida a Lenir Mateus Cesconetto em

10/09/2005.Treviso, SC.

PERUCCHI, Norma Dal Bó. 70 anos. Entrevista concedida a Lenir Mateus

Cesconetto em 03/09/2005. Treviso, SC.

POSSOLI, Alexandrino. 87 anos. Entrevista concedida a Lenir Mateus Cesconetto

em 07/09/2005. Treviso, SC.

SCUSSEL, Bruno. 66 anos. Entrevista concedida a Lenir Mateus Cesconetto em

16/08/2005. Treviso, SC.

Page 94: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

94

REFERÊNCIAS ICONOGRÁFICAS

Ilustração 1 – p. 17. Imigrante Giovanni Fenili. Foto de Ary Medeiros (Lauro

Muller). Arquivo da autora.

Ilustração 2 – p. 34. Imigrantes de Nova Belluno. Esta foto é uma cópia ampliada

da fotografia original, de propriedade da família de Ana Vilma Cambruzzi, de

Siderópolis, aluna do Ensino Médio, 1.º ano, turma 01 do ano de 2005.

Ilustração 3 – p. 49. Santo Alexandre de Bérgamo. Internet. Acessado em

23/11/2005. 23:27h. www.catholic-forum.com/saints

Ilustração 4 – p. 52. Coroação de Nossa Senhora das Graças. Foto de Ary

Medeiros. Arquivo da autora.

Ilustração 5 – p. 59. Interior da igreja velha. Autor desconhecido. Arquivo da

autora.

Ilustração 6 – p. 60. Padre Pedro Pellanda. Autor desconhecido. Arquivo da autora.

Ilustração 7 – p. 64. Procissão 1. Foto de Ary Medeiros. Arquivo da autora.

Ilustração 8 – p. 64. Procissão 2. Autor desconhecido. Arquivo de Dionysia Abati

Cesconetto.

Page 95: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

95

Ilustração 9 – p. 64. Santas missões de 1955. Autor desconhecido. Arquivo da

autora.

Ilustração 10 – p. 66. Festa na Praça de Treviso. Autor desconhecido. Arquivo da

autora.

Ilustração 11 – p. 66. Prédio de Pedro Doneda. Autor desconhecido. Arquivo da

autora.

Ilustração 12 – p. 66. Crianças. Foto de Ary Medeiros. Arquivo da autora

Ilustração 13 – p. 71. Ponte Nicolau Pederneiras 1. Foto de Ary Medeiros. Arquivo

da autora.

Ilustração 14 – p. 71. Ponte Nicolau Pederneiras 2. Foto de Ary Medeiros. Arquivo

da autora.

Ilustração 15 – p. 73. Moças. Foto de Ary Medeiros. Arquivo da autora.

Ilustração 16 – p. 73. Rapazes. Autor desconhecido. Arquivo da autora.

Ilustração 17 – p. 78. Namoro. Autor desconhecido. Arquivo da autora.

Ilustração 18 – p. 83. Casamentos 1. Photo Comim. Siderópolis. Arquivo de Norma

Dal Bó Perucchi.

Page 96: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

96

Ilustração 19 – p. 83. Casamentos 2. Santos Felipi. Urussanga. Arquivo da autora.

Page 97: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

97

REFERÊNCIA MANUSCRITA

ABATTI, José Foresti. Manuscrito da fundação de Treviso. 1963.

Page 98: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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Page 103: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

103

APÊNDICE

Page 104: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

104

ROTEIRO PARA ENTREVISTA:

Todas as entrevistas constaram de uma fase inicial, com conversa informal sobre os temas abordados e conseqüente gravação das falas.

TEMAS

• Festa profana

• Festa sagrada

• Alimentação

• Bailes

• Namoros

• Casamentos

• Cotidiano

Page 105: Trabalho Sobre Treviso e Nova Veneza

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ANEXO