trabalho, saÚde e ambiente: (in)justiça ambiental e amianto

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Lays Helena Paes e Silva TRABALHO, SAÚDE E AMBIENTE: (IN)JUSTIÇA AMBIENTAL E AMIANTO NO BRASIL Tese de Doutoramento em Democracia no século XXI, orientada pela Doutora Stefania Barca e pela Doutora Laura Centemeri e apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra para a obtenção do grau de doutora. Setembro de 2014

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  • Lays Helena Paes e Silva

    TRABALHO, SADE E AMBIENTE:

    (IN)JUSTIA AMBIENTAL E AMIANTO NO BRASIL

    Tese de Doutoramento em Democracia no sculo XXI, orientada pela Doutora Stefania Barca e pela Doutora Laura Centemeri e apresentada Faculdade de Economia

    da Universidade de Coimbra para a obteno do grau de doutora.

    Setembro de 2014

  • Lays Helena Paes e Silva

    TRABALHO, SADE E AMBIENTE:

    (in)justia ambiental e amianto no Brasil

    Tese de Doutoramento em Democracia no sculo XXI, apresentada Faculdade de

    Economia da Universidade de Coimbra para a obteno do grau de doutora. Investigao

    realizada com o apoio da Fundao para a Cincia e a Tecnologia; comparticipada pelo

    Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC (SFRH/BD/64076/2009).

    Capa: Les casseurs de pierres (Gustave Coubert, 1849)

    Orientadoras: Doutora Stefania Barca e Doutora Laura Centemeri

    Coimbra, 2014

  • ii

  • iii

    Agradecimentos

    gratido s. f.

    1. Reconhecimento (por bem que se nos fez).

    2. O ser grato.

    E como construir uma tese um eterno perguntar sobre o qu e como se deve

    fazer, tambm a realizao de agradecimentos no deixa de suscitar questes. Afinal, a

    quem agradecer? O que e o que no digno de agradecimentos neste espao? Essa busca

    nos encaminha para um relembrar sem fim de pequenos momentos, s vezes mais ligados

    outras menos tal da tese (afinal, no se esquea de que estes agradecimentos se

    referem bendita) e a tantos encontros e desencontros proporcionados por ela. E a que

    se nota que a tese, gigante onipresente que ocupou tanto espao em uma vida durante

    alguns anos, , ela mesma, mais uma parte desta vida. E muito do que veio com ela restar

    para alm dela. Uma tese, um processo... Processo tantas vezes associado solido, mas

    to completamente povoado de presenas e compreenses. E assim, agradecer se enche de

    sentido...

    Ao Johann e ao Toms, companheiros de todos os dias, pelo amor, apoio e alegria

    que me trazem. Ao Johann, por ter tornado possvel conciliar a maternidade e o

    doutoramento. minha me e ao meu pai, porque so os melhores do mundo e sempre

    tm uma pacincia infinita comigo. Por serem to fortes, to admirveis e positivos no

    constante suporte que me do.

    s minhas orientadoras, Stefania Barca e Laura Centemeri, pela admirao que

    tenho pelas suas trajetrias e seu profissionalismo, porque cada pgina deste trabalho conta

    com ideias e motivaes suas.

    Aos meus amigos e familiares que mesmo distantes esto to presentes. A Carol,

    to doce amiga, pela meiguice e carinho de tantos anos. Ao Diogo, por fazer a Carol feliz e

    pelas trocas acadmicas de boteco, sempre to vlidas. minha v Lilica, minha tia

    Berna, minha prima Rosa e minha afilhada, Dani, porque so membros amados de

    minha famlia e me acompanham aonde vou. A Mara e ao Sabino, meus amigos e

    padrinhos, pelo constante apoio. Ao Vincius e a Andreia, amigos que a cada encontro me

    deixam saudades da presena, do abrao, do carinho. A Arethusa e a Manuela, pelos tantos

    anos de to boa amizade e pelas incontveis vezes em que me ouviram e me ajudaram com

    tantas coisas. A Tati, pela presena e carinho ao longo de tantos anos. Aos meus queridos

    Marilane, Juju e Dudu, amigos h mais de 20 anos, pelo suporte e pela acolhida que recebi

    nas minhas passagens por Braslia. A Talita, agregada muito bem-vinda. A Nina, a

    Rosely, ao Joo Donizete, a Dod e a Chaguinha, famlia que a vida me proporcionou

    sem querer, pessoas com quem sempre pude contar. A minha sogra, que se fez presente e

    cuidou dos meus garotos quando precisei me ausentar; que me presenteou com livros to

    teis.

    Aos colegas e companheiros que o doutoramento me deu. A Sheila, minha colega

    e amiga, por me oferecer tantas vezes o seu teto, pelas trocas dirias em todos os setores

    que esta vida pode permitir. A Lidi, minha amiga e minha companheira de congressos,

    pessoa por quem eu guardo tanto carinho e com quem me identifico tanto (apesar de tantas

    diferenas). A Lcia, amiga sempre to prestativa, pela admirao que tenho pela sua

    abertura e capacidade de trocar e colaborar. Ao Lo, que s de pensar tenho vontade de

    abraar. A Thas, pelas tantas vezes que me ajudou com minhas dvidas metodolgicas

  • iv

    (convertidas em ontolgicas). Ao Juliano e a Fernanda, pelos momentos to agradveis e

    por serem babs do nosso Toms quando foi necessrio. Ao Joo Paulo, pela amizade e

    pela partilha de ideias e de aflies. Ao Roberto, porque torna os ambientes mais alegres e

    barulhentos. A Neiara, pelas conversas produtivas e pelos encontros agradveis regados a

    boas sobremesas (divididas, claro!). Ao Marcelo e ao Giulio, porque os encontros so

    poucos, mas as trocas so muitas e valem a pena.

    Aos amigos que Portugal me deu. A Vanessa e a Jlia, pela amizade em seu

    sentido mais simples e verdadeiro. A Becas e ao Tiago, os babs mais frequentes do

    pequeno Toms, porque esta cidade e este pas no seriam os mesmos sem sua amizade.

    Ao Mickael e a Delfine, pela amizade e boa companhia, por tradues e ajudas

    lingusticas. A Isabelle, pela doce e alegre presena, pelas ajudas com o ingls. Ao

    Hermundes, meu colega de mestrado e amigo, pela ajuda burocrtica. A Cline, pour tout!

    Tu me manques ma belle!

    Ao Edinan, pela correo da tese, e a Mnica, por haver colaborado em sua

    formatao. Pelo carinho e profissionalismo com que trataram a mim e ao meu trabalho.

    A todos que colaboraram com esta pesquisa, compartilhando suas experincias. A

    Lcia, a Cludia, ao Srgio, ao Pedro Paulo, a Joelma, a Janete, ao Ronni, ao Fbio, a

    Jaqueline... Enfim, a todos os moradores de Minau. A Fernanda Giannasi, ao Edson

    Duarte e aos representantes da ABREA, senhor Elizer e senhor Toms, pelo tempo e

    pacincia que tiveram para me ouvir e para compartilhar experincias de vida, trabalho e

    luta.

    Ao Centro de Estudos Sociais e a todos os seus funcionrios, especialmente o

    Accio e a Maria Jos, pelo espao de acolhimento e de trocas que formam. A Marta

    Arajo, pelas orientaes e trocas durante o doutoramento. Ao Marcelo Firpo Porto, pelos

    valiosos comentrios que fez a este trabalho.

    Ao Giovanni Alegretti e ao Clemens Zobel, porque, para alm dos cargos que

    possam ocupar, sempre foram facilitadores e intermedirios de solues.

    Fundao para a Cincia e Tecnologia, pelo apoio financeiro sem o qual a

    realizao deste trabalho seria impossvel.

  • v

    Resumo

    A proposta central desta tese discutir a interdependncia entre trabalho, sade e

    ambiente, analisando criticamente os elementos que demarcam as relaes entre trabalho e

    (in)justias ambientais. Considerando situaes em que as fontes de riscos e danos

    industriais coincidem com as fontes de trabalho e sustento para as comunidades afetadas,

    as principais perguntas que a tese procura responder so: quais convergncias e

    contradies so geradas pela interao de tais elementos? Tendo em vista as relaes que

    se estabelecem entre eles, que tipo de impacto possvel encontrar na realidade dos

    trabalhadores e habitantes locais? Como promover o enfrentamento das contradies e

    potencializar as convergncias na promoo da justia ambiental? O texto est embasado

    no paradigma da justia ambiental luz de conhecimentos provenientes da ecologia

    poltica, da histria e da sociologia ambientais e da geografia crtica. Os conceitos so

    trabalhados articuladamente com conhecimentos e prticas que permitem (re)pensar nas

    possibilidades e potencialidades da conciliao entre trabalho e justia ambiental,

    identificando e refletindo sobre os paradoxos que caracterizam a relao entre esses

    elementos. O estudo de caso enfoca a cidade brasileira de Minau, localizada no interior do

    estado de Gois. Esse municpio se originou em funo da minerao de amianto, mineral

    reconhecidamente nocivo sade humana, que constitui a principal fonte de renda e

    trabalho, recebendo apoio da populao local. Os instrumentos metodolgicos empregados

    foram: observao, entrevistas semiestruturadas e anlises documentais. Foi realizada uma

    anlise sobre o histrico global de utilizao do mineral e sobre o contexto brasileiro. A

    nfase incidiu na forma como os riscos relacionados ao amianto so produzidos,

    distribudos e geridos atravs da participao de diversos atores sociais. Em seguida, foram

    apresentados elementos concernentes origem e organizao de Minau. O caso foi

    destrinchado em trs eixos de anlise: 1) a forma como a populao representa os riscos

    relacionados ao amianto; 2) os dissensos relativos a essas representaes; 3) as

    vulnerabilidades populacionais e institucionais identificadas e os impactos que geram no

    cotidiano dos habitantes e trabalhadores locais. A tese concluiu que a separao entre

    trabalho e ambiente gera efeitos perversos na percepo, priorizao e combate aos riscos e

    que a luta contra as injustias ambientais geradas atravs do trabalho deve contemplar este

    elemento atravs de articulaes convincentes entre questes laborais e ambientais.

    Palavras-chave: (in)justia ambiental, amianto, trabalho, sade, Minau.

  • vi

  • vii

    Abstract

    The main purpose of this thesis is to study the interdependence between work, health and

    environment, based in critical analysis of the elements that delineate the relations between

    work and environmental (in)justice. This was achieved evaluating cases in which the industrial

    source of environmental hazard and the source of employment and subsistence for the affected

    communities concur. The main questions that this thesis tries to answer are: what are the

    convergences and contradictions that result from the interaction between these elements? What

    kind of impacts on the reality of the workers and locals can occur taking into account the

    interaction between these factors? How to combat these contradictions and to encourage

    convergences in promoting environmental justice? The foundation of this study is the

    environmental justice paradigm supported by the knowledge acquired from political ecology,

    environmental history, environmental sociology and critical geography. These concepts are

    articulated with knowledge and practices that allow re-thinking the possibilities and

    potentialities to conciliate work and environmental justice, identifying and reflecting over the

    paradoxes that result from this interaction. The case study focuses on Minau, a Brazilian town

    located in the inner Gois state. This city was founded after the beginning of the asbestos

    mining exploitation - a harmful activity to human health -, which is the main source of

    employment and income to the local community receiving therefore the support of the

    population. The following methods were used in this study: observation, semi-structured

    interviews and analysis of documents. The thesis includes an historical analysis of the use of

    this mineral in the global as well as in the Brazilian context. This analysis emphasizes the way

    in which the hazards related to the asbestos exploitation are created, transferred and managed

    by different social actors. Consequently, the aspects concerning the origin and organization of

    the Minau case were presented. This study is structured in three analytical axes: 1) the

    representations of the asbestos-related hazards on the part of the local population; 2) the

    disagreements related to these representations; 3) the vulnerabilities of the population and

    institutions and the impact generated in the everyday life of the local inhabitants and workers.

    This thesis concludes that the opposition between work and environment generates perverse

    effects in the perception, prioritization and public action against the hazards. It also shows that

    the fight against the environmental injustices created through work should regard the reported

    contradictions articulating more meaningfully work and environmental elements.

    Keywords: environmental in(justice); abestos; work; health; Minau.

  • viii

  • ix

    Rsum

    L'objectif central de cette thse est de discuter l'interdpendance entre travail, sant et

    environnement, en analysant de faon critique les lments qui dlimitent les relations entre

    travail et (in)justice environnementale. En se basant sur les situations dans lesquelles les sources

    de risque industriel et de dommages concident avec les sources de travail et de subsistance pour

    les communauts affectes, les questions principales auxquelles cette thse cherche rpondre

    sont : quelles sont les convergences et les contradictions gnres par l'interaction entre ces

    lments ? partir des relations qui se crent entre eux, quel type d'impact peut-on observer

    dans la ralit des travailleurs et habitants locaux ? Comment faire face aux contradictions et

    potentialiser les convergences dans la promotion de la justice environnementale? L'nonc se

    base sur des concepts qui dialoguent avec le paradigme de justice environnementale la lumire

    des connaissances provenant de l'cologie politique, de l'histoire et de la sociologie

    environnementales, et de la gographie critique. Ces concepts sont tudis en articulation avec

    des connaissances et des pratiques qui permettent de (re)penser les possibilits et les potentialits

    de conciliation entre travail et justice environnementale, en identifiant et en rflchissant sur les

    contradictions et les paradoxes qui caractrisent la relation entre ces lments. L'tude de cas

    porte sur la ville brsilienne de Minau, situe dans l'tat de Gois. Cette municipalit s'est cre

    partir de l'exploitation minire d'amiante minral reconnu nocif pour la sant humaine -, qui

    constitue la principale source de revenu et de travail de la population locale. Les outils

    mthodologiques qui ont t utilis sont: lobservation, des entretiens semi structurs et lanalyse

    de documents. Une analyse de l'historique global de l'utilisation du minral et du contexte

    brsilien a t ralise. L'accent est mis sur la faon dont les risques lis l'amiante sont produits,

    distribus et grs travers la participation des diffrents acteurs sociaux. Aprs cette

    contextualisation, des lments concernant l'origine et l'organisation de Minau sont prsents.

    Le cas est analys selon trois axes : 1) la reprsentation que la population se fait des risques lis

    l'amiante ; 2) les dissensions relatives ces reprsentations ; 3) les vulnrabilits des populations

    et des institutions et les impacts qu'elles engendrent dans le quotidien des habitants et travailleurs

    locaux. La thse conclue que lopposition entre lenvironnement et le travail cre des effets

    pervers sur la perception, la hirarchisation et la prvention des risques, et que la lutte contre les

    injustices environnementales gnres par le travail doit inclure cet lment travers des liens

    convaincants entre les questions environnementales et les questions du travail.

    Mots-cls: (in)justice environnementale, amiante, travail, sant, Minau.

  • x

  • xi

    Sumrio

    Agradecimentos .................................................................................................................... iii

    Resumo .................................................................................................................................. v

    Abstract ................................................................................................................................ vii

    Rsum .................................................................................................................................. ix

    Sumrio ................................................................................................................................. xi

    Lista de quadros ................................................................................................................... xv

    Lista de figuras ..................................................................................................................... xv

    Lista de acrnimos ............................................................................................................. xvii

    INTRODUO ..................................................................................................................... 1

    1. Problema e hiptese ....................................................................................................... 1

    2. Metodologias e procedimentos de investigao .......................................................... 10

    3. Estrutura da tese ........................................................................................................... 18

    PARTE I. ENQUADRAMENTO TERICO E CONTEXTUALIZAO ....................... 21

    1. ENQUADRAMENTO TERICO: ENTRE CONHECIMENTOS E PRTICAS ........ 21

    1.1. Regimes de risco industrial e (in)justia ambiental .................................................. 22

    1.2. O amianto e a ecologia poltica dos riscos ............................................................ 33

    1.3. Justia ambiental e trabalho: elementos do contexto brasileiro ................................ 41

    2. AMIANTO NO MUNDO: A EMERGNCIA E A TRANSFERNCIA DE UM

    PROBLEMA ........................................................................................................................ 49

    2.1. Indstria do amianto: entre ocultao e desconstruo dos riscos ............................ 51

    2.2. Banimento na Europa: construo do amianto como causa coletiva e problema

    pblico internacional. ..................................................................................................... 53

    2.3. Rssia, sia, frica e Amricas: a transferncia dos riscos ................................. 61

    3. AMIANTO: CONTROVRSIA E CONFLITOS NO CONTEXTO BRASILEIRO ..... 67

    3.1. Extrao e utilizao do amianto no Brasil: SAMA e Eternit .................................. 71

  • xii

    3.2. Programa e antiprograma: identificao inicial de atores e vozes atravs da

    Audincia Pblica do Amianto ........................................................................................ 73

    3.3. Cincia e controvrsia ............................................................................................... 77

    3.4. Fontes oficiais de registro sobre doenas relacionadas ao amianto .......................... 82

    3.5. Cronologia do amianto: formao e consolidao da luta pelo banimento .............. 85

    3.6. Conflitos econmicos: Minau no centro do debate ................................................. 96

    PARTE II: ESTUDO DE CASO ....................................................................................... 101

    4. DO CAPITAL DO AMIANTO CAPITAL DO AMIANTO: CRIAO E

    HISTRIA DE MINAU ................................................................................................. 105

    4.1. Paisagem e meio ambiente: impactos e mitigao .................................................. 105

    4.2. A mina grande ......................................................................................................... 109

    4.3. A cidade sem infncia ............................................................................................. 111

    4.4. A populao de Minau e o apoio SAMA ........................................................... 115

    5. COMO SE VEEM E COMO VEEM O AMIANTO OS HABITANTES E

    TRABALHADORES DE MINAU ................................................................................. 119

    5.1. Signos aparentes de apoio empresa e minerao ............................................... 120

    5.2. As representaes sobre o amianto e a desconstruo social do risco .................... 124

    6. PROCESSOS DE RUPTURA: HISTRIAS E TRAJETRIAS DE

    QUESTIONAMENTO E/OU NEGAO DO DISCURSO OFICIAL ........................... 141

    6.1. Dona Dora (nome fictcio entrevista 6) .............................................................. 144

    6.2. As filhas do Manoel (entrevistas 9 e 10)................................................................. 146

    6.3. Srgio (entrevista 49) .............................................................................................. 152

    7. AMIANTO, TRABALHO E SADE EM MINAU: PRTICAS, VIVNCIAS E

    INSTITUIES................................................................................................................. 155

    7.1. O sindicato dos mineiros de Minau: aes e articulaes na defesa do uso

    controlado....................................................................................................................... 155

    7.2. O acompanhamento da sade dos trabalhadores e ex-trabalhadores da SAMA ..... 161

  • xiii

    7.3. Acordos extrajudiciais ............................................................................................ 164

    7.4. Sade ou doena? .................................................................................................... 166

    7.5. O peso e os estigmas da doena. ............................................................................ 170

    7.6. O sistema pblico de sade ..................................................................................... 172

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................ 177

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 185

    ANEXOS ........................................................................................................................... 201

    Anexo 1 Quadro de entrevistas e declaraes ............................................................ 201

    Anexo 2 Roteiro das entrevistas realizadas e dos depoimentos recolhidos (habitantes

    em geral, trabalhadores da empresa, profissionais da rea de sade e educao). ........ 207

    Anexo 3 Roteiro base de questes para o Sindicato dos Trabalhadores da Indstria de

    minerais no metlicos de Minau. ................................................................................ 209

    Anexo 4 Roteiro base do focus group 1, realizado na Prefeitura Municipal de Minau

    (14/03/2012). .................................................................................................................. 211

    Anexo 5 Roteiro de visita proposto pela empresa SAMA .......................................... 215

    Anexo 6 Roteiro base do focus group 2 e visita realizados na SAMA (14/03/2012) . 217

    Anexo 7 Material fornecido pelo Sindicato dos Trabalhadores ................................. 219

    Anexo 8 Questionrio. Estudantes do ensino mdio e superior em Minau. ............. 225

    Anexo 9 Anlise dos dados colhidos atravs da aplicao dos questionrios

    (estudantes). ................................................................................................................... 227

    Anexo 10 Roteiro de Entrevista (Auditora Fiscal do Ministrio do Trabalho Fernanda

    Giannasi). ....................................................................................................................... 231

    Anexo 11 Roteiro de Entrevista - Membros da Associao Brasileira de Expostos ao

    Amianto ABREA ........................................................................................................ 233

    Anexo 12 Roteiro de entrevista (Ex-deputado do Partido Verde Edson Duarte). ...... 235

  • xiv

  • xv

    Lista de quadros

    Quadro 1 Cronologia do banimento do amianto em 54 pases ......................................... 55

    Quadro 2 Principais doenas relacionadas exposio ao amianto ................................. 57

    Quadro 3 Atores que se pronunciaram na Audincia Pblica do Amianto e seu

    alinhamento .......................................................................................................................... 75

    Lista de figuras

    Figura 1 Diviso percentual da produo mundial de amianto em 2008 calculada

    sobre um total de 2.335 mil toneladas. ................................................................................ 61

    Figura 2 Diviso percentual do consumo estimado de amianto por regies em 2008

    calculada sobre o total do consumo mundial (2.380 mil toneladas). ................................... 62

    Figura 3 Consumo estimado de amianto (e m mil toneladas) por pases em 2008 ........... 63

    Figura 4 Quantidade de amianto (em quilogramas) suportada por pessoa nos pases em

    2008. .................................................................................................................................... 64

    Figura 5 Panorama geogrfico da exportao brasileira de amianto em 2008 ................. 68

    Figura 6 Diviso percentual dos pases importadores do amianto brasileiro em 2008 ..... 68

    Figura 7 Mapa da localizao da cidade de Minau Gois. ......................................... 101

    Figura 8 Cava A mina de Cana Brava ....................................................................... 106

    Figura 9 Monte de rejeitos da minerao que circunda Minau. .................................... 107

    Figura 10 Foto Abrao SAMA (26/3/2012). ............................................................ 117

    Figura 11 Foto Abrao SAMA (26/3/2012). Populao em volta das instalaes da

    empresa. ............................................................................................................................. 117

    Figura 12 Porta de sada do aeroporto (em telha de amianto), em que h uma placa da

    prefeitura de Minau com as principais riquezas da cidade. A terceira imagem refere

    Usina SAMA. ................................................................................................................. 121

    Figura 13 Placa com os prmios e reconhecimentos atribudos SAMA. ..................... 121

    Figura 14 Hotel Crisotila ................................................................................................ 121

    Figura 15 Sindicato dos trabalhadores na indstria da extrao de minerais no metlicos

    de Minau (detalhe da pedra de amianto no canto inferior direito). .................................. 122

    Figura 16 Frum de Minau e pedra de amianto em sua entrada. .................................. 123

  • xvi

    Figura 17 Relatrio mdico dos exames realizados em Manoel pela SAMA (2005) ..... 147

    Figura 18 Traduo do laudo dos exames de Manoel realizados pela SAMA (2006).... 148

    Figura 19 Relatrio mdico relativo a exames que vinculam a doena de Manoel

    exposio ao amianto (2008). ............................................................................................ 149

  • xvii

    Lista de acrnimos

    ABEA - Associao Baiana de Expostos ao Amianto

    ABRA - Associao Brasileira do Amianto

    ABREA - Associao Brasileira de Expostos ao amianto

    ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade

    AGEA - Associao Goiana de Expostos ao Amianto

    Anamatra - Associao Nacional dos Magistrados da Justia do Trabalho

    ANDEVA - Association Nationale de Dfense des Victimes de l'Amiante

    ANPT - Associao Nacional dos Procuradores do Trabalho

    AP - Audincia Pblica

    APESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    ARC - Asbetosis Research Council

    BA - Bahia

    CEREST - Centro Regional de Ateno Sade do Trabalhador

    CIPA - Comisso Interna de Preveno de Acientes

    CLT - Consolidao das Leis Trabalhistas

    CMADS - Comisso do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel

    CNI - Confederao Nacional da Indstria

    CNI - Confederao Nacional da Indstria

    CNMA - Comisso Nacional de Meio Ambiente da CUT

    CNTA - Confederao Nacional dos Trabalhadores do Amianto

    CNTI - Confederao Nacional dos Trabalhadores da Indstria

    CNTI Confederao Nacional dos Trabalhadores da Indstria

    CPA - Comit Permanent Amiante (CPA)

    CUT - Central nica dos Trabalhadores

    DNER - Departamento Nacional de Estradas e Rodagens

    DNPM - Departamento Nacional de Produo Mineral

    EEA - Agncia Europeia de Ambiente

    EPA - Environmental Protction Agency

    EU - Unio Europeia

    FASE - Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional

  • xviii

    FITAC - Federao dos Trabalhadores da Amrica Latina para o Amianto Crisotila

    IBC - Instituto Brasileiro do Crisotila

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    METAGO: empresa estadual de explorao mineral

    MME - Ministrio das Minas e Energia

    MP - Ministrio Pblico

    MPAS - Ministrio da Previdncia e Assistncia Social

    MS - Ministrio da Sade

    MT - Ministrio do Trabalho

    MTE - Ministrio do Trabalho e Emprego

    NR - Norma Regulamentadora

    OIT - Organizao Internacional do Trabalho

    OMS - Organizao Mundial de Sade

    OS - Previdncia Social

    PSF - Programa de Sade da Famlia

    PT - Partido dos Trabalhadores

    PV - Partido Verde

    RBJA - Rede Brasileira de Justia Ambiental

    RENAST - Rede Nacional de Ateno Integral Sade do Trabalhador

    SAMA - Sociedade Anonima de Minerao de Amianto/ SAMA S. A. Mineraes

    Associadas

    SIM - Sistema de Informao de Mortalidade

    STF - Supremo Tribunal Federal

    UFG - Universidade Federal de Gois

    UNICAMP - Universidade de Campinas

    USP - Universidade de So Paulo

  • 1

    INTRODUO

    1. Problema e hiptese

    Esta tese busca discutir a interdependncia entre trabalho, sade e ambiente

    analisando criticamente elementos que demarcam as relaes entre trabalho e (in)justias

    ambientais. Para isso, considera as fontes de gerao de riscos e danos socioambientais, as

    quais, muitas vezes, so tambm fontes de trabalho e sustento das populaes afetadas. A

    construo da tese parte de trs perguntas: quais convergncias e contradies so

    geradas pela interao de tais elementos? Tendo em vista as relaes que se

    estabelecem entre eles, que tipo de impacto possvel encontrar na realidade dos

    trabalhadores e habitantes locais? Como promover o enfrentamento das contradies

    e potencializar as convergncias na promoo da justia ambiental? Esta anlise inclui

    um estudo de caso que enfoca o caso do municpio brasileiro de Minau, no estado de

    Gois, onde a minerao de amianto realizada pela SAMA S. A. Mineraes

    Associadas, do grupo Eternit constitui a atividade econmica central; e sua

    continuidade recebe apoio da populao local.

    Minau representa a generalidade de localidades onde se estabelecem relaes de

    dependncia econmica quanto a atividades que geram riscos sade e ao ambiente dos

    trabalhadores e das populaes vizinhas s unidades industriais. Ao mesmo tempo,

    representa a singularidade gerada por um encontro nico entre tempo, lugar e pessoas

    (Porto, 2007); e isso permite acrescentar novas dimenses a serem consideradas nesta

    problemtica. Essa singularidade se constitui porque a cidade surgiu em funo da ltima

    mina de amianto em funcionamento na Amrica Latina; tambm pelas caractersticas da

    atividade e do produto que movem sua economia: a minerao de uma fibra nociva sade

    humana (seus efeitos so crnicos) e cujo passivo socioambiental global e brasileiro

    extenso. Acrescente-se que a natureza dos riscos e danos relacionados ao amianto enseja a

    defesa do banimento desse mineral como nica forma efetiva de eliminar riscos aos

    trabalhadores e s populaes em toda a sua cadeia de produo e utilizao nos pases

    onde esta ainda se realiza. Assim, a defesa do banimento do amianto no Brasil se insere

    numa conjuntura internacional de luta pela eliminao global do mineral a fim de evitar

    que os riscos relativos a essa indstria continuem a afetar localidades e populaes mais

    vulnerveis.

  • 2

    O caso de Minau representa uma inverso da ideia contida na expresso not in

    my back yard (NIMBY)1, traduzvel por no no meu quintal. Na comunidade, a

    manifestao predominante diz: Sim! Queremos o amianto em nosso quintal. Queremos

    e precisamos viver e trabalhar com essa atividade e com os riscos que possa implicar

    aqui ou em outros lugares. Trata-se de uma configurao paradoxal cuja hiptese de

    compreenso ponto de partida desta tese fundamenta-se na atuao de um conjunto

    de injustias ambientais relativas no s aos danos provocados pela exposio ao amianto

    em Minau, mas tambm histria e organizao do municpio, compreendidas no

    contexto global de explorao e uso desse mineral. Em linhas gerais, injustias ambientais

    abrangem aes ou omisses geradoras da imposio desproporcional de riscos ambientais

    s populaes menos dotadas de recursos financeiros, de informao ou polticos (Acselrad

    et al, 2009).

    Nessa perspectiva, considera-se que, por ter surgido em funo da minerao de

    amianto e visto que esta representa a fonte de renda e trabalho central para Minau ,

    de tal condio se originou um quadro de identificao e dependncia relativas atividade

    produtora e empresa. A construo desse quadro compreendida como fruto de aes e

    omisses divididas em dois eixos: 1) a chantagem da localizao (Acselrad, 2009)

    que se realizou em nome da gerao e manuteno de postos de trabalho e da arrecadao

    de impostos, constituindo uma cidade monoindustrial; 2) a ausncia do Estado como

    provedor de direitos o que permitiu desenvolver uma relao paternalista relativamente

    empresa. Esse contexto cria a impossibilidade de uma escolha livre pelos trabalhadores e

    habitantes de Minau; ao mesmo tempo, dificulta a oposio coletiva s injustias

    relacionadas ao amianto negadas ou relativizadas publicamente e circunscritas esfera

    privada dos afetados.

    Assim, as injustias ambientais criadas atravs do trabalho no atual modelo de

    produo geram dinmicas perversas que afetam a vida dos trabalhadores e habitantes dos

    lugares onde esto as indstrias. Isto, atravs dos riscos industriais e das influncias que

    geram na percepo e priorizao destes. Em contrapartida, o rompimento com essas

    dinmicas requer potencializar as convergncias entre trabalho e justia ambiental com o

    1 A expresso NIMBY encontra-se associada a manifestaes que se restringem defesa de interesses locais,

    negao de dada atividade poluidora somente em determinado espao geogrfico, ou seja, sem articulao

    com causas ambientais mais gerais (Capek, 1993).

  • 3

    intuito de buscar alternativas novas e convincentes que permitam articular questes

    ambientais e questes laborais.

    A problemtica apresentada e seus desafios se inserem num contexto demarcado

    pela centralidade das questes ambientais que se configurou a partir das ltimas dcadas

    do sculo XX. Uma multiplicidade de abordagens e interpretaes enfocou o significado

    do ambiente e das implicaes sociopolticas das relaes que estabelecemos com ele.

    Dentre elas, predominam perspectivas reducionistas que concebem a natureza como uma

    questo de gesto, exterior sociedade e a ser equacionada nos parmetros da tradio

    racionalista burocrtica e iluminista, em sintonia com a concepo hegemnica de

    desenvolvimento (Zhouri, 2004). Igualmente, ignoram as dimenses conflituais que

    caracterizam a disputa entre diferentes formas de apreender e de se apropriar do ambiente,

    no qual, mais que um conjunto de recursos ou sinnimo de natureza intocada, constitui-

    se o espao onde as pessoas vivem, trabalham e se organizam.

    Essa perspectiva do ambiente como espao de vida e ao est contida na ideia de

    justia ambiental, que se compreende como o tratamento justo e o envolvimento

    significativo de todas as pessoas, independentemente de etnia, nacionalidade e classe

    social, no desenvolvimento, na implementao e na fiscalizao de leis, polticas e

    decises envolvendo o ambiente (Martinez-Alier, 1997). Esse paradigma terico e de

    ao abarca tanto o questionamento das injustias que determinam a distribuio dos

    benefcios e riscos ambientais quanto a busca pelo desenvolvimento e pela compreenso de

    conhecimentos e prticas capazes de identificar as injustias e fazer oposio a elas em

    casos concretos (Martnez-Alier, 2011; Silva, Barca, no prelo). Nessa dialtica, novos

    fenmenos so construdos e expostos esfera pblica, enquanto velhos fenmenos so

    renomeados como ambientais (Acselrad, 2010).

    As experincias de comunidades pobres e racializadas dos Estados Unidos na

    dcada de 1980 mostraram as potencialidades que poderia ter o reconhecimento da

    associao entre questes sociais e ambientais segundo uma perspectiva de distribuio e

    justia (Levine, 1982; McGurty, 2009). Nesse contexto, a participao de movimentos

    populares no questionamento de pautas socioambientais em esfera nacional alterou a

    economia poltica do movimento ambientalista; tambm lhe possibilitou novas linguagens

    conceituais e novas estratgias, desafiando a estratificao baseada em raa, classe, gnero

    e distribuio do poder (Capek, 1993). A compreenso de que as situaes de injustia

  • 4

    ambiental so reprodues da organizao desigual das sociedades, em que algumas

    parcelas da populao suportam desproporcionalmente os danos e riscos ambientais, levou

    essa temtica a ganhar um carter mais abrangente. O debate ampliou-se: foi alm da

    realidade dos Estados Unidos; isto , alcanou outros contextos histricos marcados por

    situaes de desigualdades e injustias como o caso do Brasil aqui tratado (Carruthers,

    2008; Agyeman e Evans, 2004).

    As experincias de luta por justia ambiental evidenciam a forma como podem se

    organizar as populaes para exigir a concretizao de polticas pblicas capazes de

    impedir a vigncia da desigualdade social e racial, tambm, no campo ambiental. Assim, a

    justia ambiental se converte num desafio democracia e aos sistemas jurdicos ante os

    problemas ambientais quanto a construir um projeto de emancipao social (Alegretti et

    al., 2013). Segundo Santos (2007: 20), est em desenvolvimento um movimento de

    globalizao contra-hegemnica que se desdobra em lutas polticas e jurdicas orientadas

    pela possibilidade de pr em causa as estruturas e prticas do atual modelo de

    desenvolvimento atravs de princpios poltico-jurdicos alternativos. Nesse caso, a ideia

    de justia ambiental se consubstancia em um princpio que, ao questionar a globalizao

    hegemnica e os princpios do capitalismo neoliberal, permitiria (re)pensar as relaes

    sociais e estruturas de poder.

    Acselrad (2002) destaca a existncia de uma ligao lgica entre o exerccio da

    democracia e a capacidade da sociedade de se defender de injustias ambientais; nela, o

    enfrentamento da degradao ambiental e dos riscos industriais e a luta por condies

    dignas de trabalho e sade so momentos privilegiados para obter ganhos de

    democratizao. Nesses processos, ocorre um questionamento contnuo da capacidade dos

    instrumentos e procedimentos do governo e de deciso quanto sua capacidade de

    reconhecer a pluralidade de sujeitos portadores de interesses conflituais e de vises

    contrapostas quanto ao significado de justia ou de sustentabilidade nas polticas propostas

    e implementadas (Allegretti et. al., 2013). Isso sinaliza a relevncia da considerao da

    justia ambiental como princpio poltico-jurdico norteador a ser (re)considerado e

    (re)pensado em todas as etapas que o constituem.

    O ponto de partida da trajetria que culminou na elaborao desta tese foram os

    primeiros contatos com estudos sobre casos de injustia ambiental e de lutas por justia

    ambiental, tanto quanto sobre o interesse por esse paradigma como quadro interpretativo

  • 5

    capaz de responder s complexidades das questes ambientais. Esses contatos ocorreram

    no decorrer da realizao de um mestrado na rea de cincias jurdico-filosficas na

    Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O interesse pelas questes ambientais

    me fez associar s disciplinas obrigatrias as cadeiras em Direito do Ambiente, disciplina

    em que encontrei estmulo e orientao para pesquisar a relao humana com a natureza

    tendo em vista a tica, a ecologia e o direito do ambiente. E foi no percurso de escrita da

    dissertao de mestrado que deparei com o termo justia ambiental, quando, por acaso, li

    um texto acadmico sobre esse assunto. Desde ento, tenho notado a ausncia da

    considerao desse paradigma na literatura sobre ambiente e direito do ambiente; da o

    estmulo para dar vazo ao meu interesse e aprofundar minha compreenso dessa temtica

    em campos como a sociologia e a histria ambiental.

    A proximidade entre o Centro de Estudos Sociais e a Faculdade de Direito me

    possibilitou frequentar este centro e encontrar ali o espao e os livros onde as

    abordagens que incluem a perspectiva da justia ambiental estavam mais presentes. Desse

    contato derivou um projeto de doutoramento fundamentado nessa base terica e aceito no

    programa Democracia no Sculo XXI, na rea de sociologia. Durante a parte curricular do

    doutoramento, pude ampliar as leituras, que me mostraram a diversidade de situaes

    relacionadas com a temtica. Isto se tornou possvel sobretudo atravs da participao na

    Oficina Ecologia e Sociedade e do contato com os investigadores que dela fazem parte,

    dentre os quais est a orientadora principal desta tese.

    No mapa de conflitos envolvendo injustia ambiental e sade no Brasil (2010), a

    Fundao Osvaldo Cruz, do Ministrio da Sade, e a Federao de rgos para Assistncia

    Social e Educacional (FASE)2 tornam pblicos casos em que ocorrem injustias ambientais

    e mobilizaes sociais simultaneamente. Foi atravs deste mapa que eu tive contato com

    dados que mostram o Brasil como um dos maiores produtores mundiais de amianto graas

    produo da mina de Cana Brava, no interior de Gois. Talvez por eu ser brasileira, mas

    viver na Europa, o contato concomitante com essas duas realidades tenha evidenciado mais

    a forma como uma mesma questo (os riscos e danos de uma atividade industrial) gerida

    segundo padres to diferentes conforme a parte do mundo onde se localize.

    2 Atuante na organizao e no desenvolvimento local, comunitrio e associativo, a FASE uma das

    organizaes no governamentais mais antigas do Brasil.

  • 6

    A busca por informaes sobre o problema do amianto mostrou o quo conectadas

    esto as realidades global, nacional e local, mas que o problema vinha sendo socialmente

    construdo de forma diferente nessas esferas: internacionalmente, como catstrofe

    sanitria, escndalo de sade pblica; no Brasil, como uma controvrsia; em Minau,

    como um consenso. O histrico de utilizao e destruio causadas pelo amianto, a

    trajetria de luta pelo seu banimento em esfera global e a reorganizao geogrfica da

    indstria desde as ltimas dcadas do sculo XX em pases da frica, sia e Amrica

    Latina evidenciam as influncias do modelo de desenvolvimento e suas estruturas sobre

    a gerao de riscos e em sua distribuio. No Brasil, a disputa para modificar ou manter

    uma poltica nacional que autoriza a explorao e utilizao do amianto, enquanto

    desconsidera as reinvindicaes dos grupos envolvidos e as dimenses implicadas neste

    problema, evidencia como essas estruturas criam vulnerabilidades que afetam

    diversamente as instituies, as populaes e os territrios expostos em escalas menos

    abrangentes.

    fato que o Brasil continua a explorar aquele que, na Europa, o mineral

    maldito, assim como fato que a comunidade onde se localiza a minerao se apresenta

    como consensual na defesa desta atividade embora haja um movimento

    nacionalmente consolidado que luta pelo banimento do mineral. Mas este contexto destoa

    nos estudos sobre (in)justia ambiental, em geral focados na forma como as comunidades

    expostas a riscos ambientais formulam tais riscos e como se organizam coletivamente

    contra seus impactos negativos (Brown e Mikkelsen, 1990; Allen, 2003; Levine, 1982).

    Menos comuns so os estudos que buscam compreender os contextos de riscos industriais

    e de injustias ambientais onde populaes potencialmente expostas no se mobilizam

    contra estes riscos; ou expressam apoio s atividades que os geram.

    Sobre comunidades silenciosas, algumas pesquisas evidenciam a ausncia de

    mobilizao social atravs da presena de aes ou situaes que a impeam. Por exemplo,

    Zavestoski et al. (2004) analisam o papel de fatores como a ao governamental e a

    cobertura miditica no desencorajamento da mobilizao social contra a poluio de um rio

    nos Estados Unidos. Para os autores, haveria uma relao causal direta entre a ideia de

    confiana nos rgos pblicos (ou a falta dela) e a (in)ao da populao, determinando

    que, com a perda dessa confiana, ela sinta a necessidade de agir em nome prprio. Em

    contrapartida, o desenvolvimento e a aplicao de um quadro de ao institucional bem

  • 7

    planejado com o intuito de gerir o risco teriam a capacidade de minimizar o conflito e

    evitar a mobilizao social (Zavestoski et al., 2004). Em outro caso o de um bairro

    pobre e contaminado da capital Argentina, analisado em um trabalho etnogrfico ,

    Auyero e Swistun (2008, 2009), a partir de um espao objetivo de contaminao da gua,

    do ar e do solo, estabelecem relaes com as representaes subjetivas dos habitantes dessa

    localidade. Demonstram a presena de uma heterogeneidade de percepes da

    contaminao, vivida diferentemente atravs dos corpos e comportamentos de quem

    convive com ela. A ausncia da mobilizao social aparece relacionada com o estado de

    confuso constante no qual essa comunidade estaria imersa; no qual imperaria a dvida

    quanto contaminao ora negada, ora afirmada.

    O objetivo principal desta tese contribuir para ampliar esta discusso sobre

    a forma como as comunidades expostas ou potencialmente expostas a riscos

    ambientais so afetadas e respondem a estes riscos. Isto, pela introduo de elementos

    resultantes da investigao do caso especfico de Minau, uma cidade no silenciosa, que

    defende o amianto como nica possibilidade de ter acesso, por meio do emprego, a direitos

    sociais no assegurados por outras vias. Portanto, vale reiterar, a tese adota uma hiptese

    iterpretativa baseada na centralidade da dimenso do emprego, por um lado, e da (in)ao

    das instituies polticas, por outro, para compreender a realidade desta cidade.

    As escolhas at aqui enunciadas se justificam na medida em que a articulao

    entre trabalho (emprego) e sade que se encontra no discurso da comunidade; ou seja,

    quando se busca compreender a formao ou a fundamentao desse consenso na

    forma como publicizado nacionalmente pelos habitantes e trabalhadores de Minau

    (igualmente representados pelo sindicato dos trabalhadores da minerao). Nesse discurso,

    a defesa do amianto deriva da ideia de que o mineral , seno a nica fonte de postos de

    trabalho e de renda para Minau, ao menos a principal; e de que os problemas de sade

    associveis com a exposio ao amianto se encontram controlados, isto , deixaram de

    existir na cidade a partir de um dado momento de sua histria.

    Em contrapartida, a possibilidade de banimento do mineral apresentada como

    injustia, como nico prejuzo para a populao. Tal configurao sinalizava a

    necessidade de compreender as referncias locais subjacentes constituio dessas leituras

    e desse discurso, assim como a (im)possibilidade de que as demandas e os interesses dessa

    populao encontrem pontos de convergncia e articulao com a busca por justia

  • 8

    ambiental na problemtica do amianto. Assim, atravs desse mineral, torna-se possvel

    reafirmar o quanto falar sobre o ambiente significa falar sobre ns mesmos e sobre a nossa

    organizao poltica, social, econmica... E o quanto falar sobre ns, o ar que respiramos,

    os lugares onde vivemos e trabalhamos e nosso estado de sade-doena falar sobre o

    ambiente e nossa interao com os demais seres vivos e os ecossistemas.

    Na dialtica que envolve o amianto em Minau, contextualizada na histria e

    poltica globais e nacionais quanto ao mineral, ficam evidentes as relaes estreitas entre

    os riscos vivenciados pelos trabalhadores e aqueles vivenciados pelas comunidades; logo,

    evidenciam-se as relaes entre as lutas empreendidas por trabalhadores quanto aos seus

    ambientes de trabalho e as lutas mais gerais contra a poluio industrial como forma de

    garantir que estas ltimas contemplem suas experincias de vida e suas demandas. No caso

    de Minau como no caso do amianto em esferas mais abrangentes destacam-se: 1) a

    existncia e atuao de foras opostas formao de uma frente unida entre conscincia de

    classe e conscincia ambiental (Barca, 2010), 2) as vulnerabilidades populacionais e

    institucionais (Porto, 2007) que estas foras podem gerar no enfrentamento dos riscos, 3)

    os efeitos perversos gerados nas vidas dos que so confrontados pela escolha entre ter

    trabalho e ter sade.

    Estas questes conduzem ao dilogo com a sociologia das ausncias e das

    emergncias desenvolvida por Santos (2006). Trafegando entre o disponvel e o possvel, a

    primeira busca identificar a construo das ausncias em contextos presentes; a segunda, as

    possibilidades e alternativas passveis de emergir no futuro. Conforme destacou o autor, as

    duas sociologias encontram-se estreitamente associadas, visto que, quanto mais

    experincias estiverem hoje disponveis no mundo, mais experincias so possveis no

    futuro. Assim:

    [a] sociologia das ausncias visa identificar o mbito dessa subtraco e dessa

    contraco de modo a que as experincias produzidas como ausentes sejam

    libertadas dessas relaes de produo e, por essa via, se tornem presentes (...) A

    amplificao simblica operada pela sociologia das emergncias visa analisar

    numa dada prtica, experincia ou forma de saber o que nela existe apenas como

    tendncia ou possibilidade futura (Santos, 2006: 97).

    Trata-se, portanto, de destacar as vozes ausentes no contexto de Minau, as

    perspectivas e as experincias que estas aportam como caminho da emergncia do

    questionamento dessa realidade social e das injustias que dela participam. Destacar

    tambm a possibilidade de surgimento de abordagens e alianas guiadas pelas relaes

  • 9

    estreitas entre trabalho e justia ambiental de modo a tornar visveis e presentes estas

    tendncias como instrumento de identificao e combate de injustias como aquelas que

    se realizam em casos como o de Minau, que colocam de lados opostos e vistos como

    inconciliveis lutas empreendidas por trabalhadores e pelo trabalho e lutas por justia

    ambiental.

    O caso de estudo se desenvolve a partir da considerao: 1) da populao atingida

    por esta problemtica, incluindo a experincia dos trabalhadores e dos habitantes de

    Minau; 2) das organizaes e instituies locais, sobretudo os rgos de sade pblica e o

    sindicato dos trabalhadores.

    Partindo da perspectiva enunciada e considerando a relao entre o global e o

    local como central compreenso de processos de injustia ambiental e do surgimento (ou

    no) de lutas que os questionem, os objetivos especficos deste trabalho so: 1) a anlise do

    regime de risco industrial do amianto a partir da perspectiva da justia ambiental e da

    distribuio ecolgica dos riscos; 2) a anlise da problemtica do amianto,

    contextualizando o caso brasileiro e de Minau numa ecologia poltica dos riscos (Porto,

    2007); 3) a anlise das relaes contradies e potencialidades entre trabalho e justia

    ambiental que se evidenciam neste regime de risco e da forma como impactam a realidade

    de comunidades afetadas. Para atingir estes objetivos, buscou-se:

    situar o contexto global de produo e utilizao do amianto, destacando os

    processos de injustia atuantes na forma como os riscos socioambientais so

    criados, distribudos e geridos;

    situar o contexto brasileiro de uso do amianto, identificando os atores sociais

    envolvidos, seus interesses e seus conflitos, alm das diversas dimenses da

    problemtica do amianto no Brasil, que gerou a polarizao entre vtimas deste

    setor;

    analisar o papel desempenhado pelos trabalhadores e ex-trabalhadores do setor

    do amianto na configurao global e nacional desta problemtica, com nfase

    nas relaes estabelecidas com questes ambientais no decorrer desse percurso

    e a forma como influenciam na leitura que se realiza;

  • 10

    situar a histria de Minau em relao s esferas mais abrangentes e analisar as

    representaes sociais (sobre o amianto e o banimento) subjacentes ao

    consenso nacionalmente expresso pela populao;

    buscar elementos reveladores dos aspectos da experincia dos trabalhadores e

    habitantes de Minau (os dissensos), ausentes da esfera pblica;

    analisar os silncios (ou silenciamentos) e as invisibilidades relacionveis com a

    temtica do amianto no Brasil e em Minau e como estes determinam a

    existncia de vulnerabilidades populacionais e institucionais;

    avaliar como essas vulnerabilidades so limitadas ou potencializadas pela ao

    das instituies pblicas e privadas locais e como atingem a vida e a relao dos

    trabalhadores e habitantes com os riscos e danos gerados pelo amianto.

    Na busca da compreenso e do aprofundamento de aspectos desta/as realidade/es,

    as fontes de informao utilizadas, as tcnicas escolhidas para a recolha de dados e a

    realizao da anlise, bem como as dificuldades encontradas nessa trajetria, dizem muito

    sobre o resultado final deste trabalho. No prximo tpico, exponho o percurso

    metodolgico e as opes que, como enfatizou Mendes (2003), cumprem o papel de atuar

    como referncias constantes isto , de vigiar os limites da subjetividade e, no

    decorrer do trabalho, complexificar os resultados e as concluses de modo a permitir

    estabelecer ligaes entre os fenmenos em anlise.

    2. Metodologias e procedimentos de investigao

    As metodologias empregadas neste trabalho so de carter qualitativo. As fontes

    de informao incluem pesquisas bibliogrficas e de campo, realizadas atravs de

    instrumentos mobilizados conforme as especificidades e circunstncias apresentadas em

    cada momento do trabalho.

    Quanto ao enquadramento terico, o paradigma da justia ambiental se constituiu

    como o eixo central da discusso, com nfase na compreenso dos regimes de risco

    industrial, da ecologia poltica dos riscos e dos debates sobre as relaes entre trabalho e

    justia ambiental no contexto brasileiro. Para elaborar a contextualizao da problemtica

    do amianto em esfera global e nacional, alm de bibliografia acadmica, foram consultados

    relatrios de pesquisas, websites institucionais, relatrios epidemiolgicos, legislaes,

  • 11

    materiais produzidos por organizaes no governamentais e por rgos pblicos, textos

    jornalsticos e outros. Foram entrevistados atores representantes do projeto nacional de

    banimento do amianto, especificamente aqueles cuja atuao foi considerada relevante

    para compreender esse contexto. A contextualizao foi realizada pela descrio da

    controvrsia sociotcnica sobre o uso controlado do amianto no Brasil (Latour, 1991, 1999;

    Callon, 1986), o que, em linhas gerais, consistiu-se na proposta de identificar os atores e a

    forma como esto alinhados nos diversos momentos e conflitos que a compe.

    No que se refere segunda parte do trabalho, o estudo de caso visa analisar mais a

    fundo um dos atores envolvidos na controvrsia: o municpio de Minau. O estudo de caso

    possibilita articular os discursos pblicos presentes na controvrsia com os que foram

    calados ou ocultados relativamente ao posicionamento e identidade dos habitantes e

    trabalhadores da cidade. Para isso, a recolha de dados ocorreu mediante um trabalho de

    campo, no qual a diversidade de instrumentos mencionada esteve especialmente presente.

    A propsito da anlise da forma como as problemticas relativas ao amianto so

    socialmente construdas no espao de uma cidade, o trabalho de campo incluiu atores

    sociais e instituies diversificados em contextos que variaram de entrevistas e reunies

    pr-acordadas a momentos informais de dilogo propiciados pela estada no municpio.

    Nesse sentido, a aplicao de tcnicas variadas permitiu conhecer parcelas dessa

    realidade que, uma vez conectadas, pudessem compor uma viso mais ampla possvel de

    sua totalidade. No contato com essa realidade, o mtodo do estudo de caso alargado,

    proposto pelo socilogo britnico Michael Burawoy (1998), orientou a metodologia em

    especial. Esse mtodo se embasa no que Burawoy intitula cincia reflexiva, que se

    fundamenta na participao do investigador no mundo estudado e no desenvolvimento de

    dilogos mltiplos para explicar os fenmenos empricos. A cincia reflexiva baseada em

    mtodos qualitativos e expressa a compreenso de que o termo qualitativo implica uma

    partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objeto de pesquisa, para extrair

    deste convvio os significados visveis e latentes (Chizzotti, 2003: 2). O estudo de caso

    alargado prope escrever o mundo descoberto atravs da observao participante com o

    intuito de, do particular, extrair o geral e de modo a se mover em meio a dimenses

    diferentes e conectar o presente com o passado em antecipao do futuro (Burawoy, 1998:

    5).

  • 12

    Minau cabe reiterar apresenta a particularidade de abrigar a ltima mina de

    amianto em funcionamento na Amrica Latina e representa a generalidade de populaes

    expostas a riscos industriais que so, ao mesmo tempo, fonte de postos de trabalho e

    desenvolvimento econmico. A considerao das formas como esse mineral tem sido

    socialmente construdo nas ltimas dcadas na esfera global, nacional e local permite

    abordar as dimenses mltiplas implicadas nesta problemtica.

    Quatro caractersticas marcam o mtodo do caso alargado: a intersubjetividade, o

    processo, a estruturao e a reconstruo terica. Jos Manuel Mendes as apresenta assim:

    Com a intersubjetividade o observador torna-se um participante, experimentando

    o mundo do outro. Com a lgica do processo, as observaes so projectadas no

    tempo e no espao, permitindo uma perspectiva enquadradora. A estruturao

    permite atender s foras extra-locais que moldam os acontecimentos e as

    situaes. Por ltimo a reconstruo terica, a que Burawoy d especial nfase,

    parte de um quadro terico existente e busca descobrir anomalias e testar esta

    teoria (Mendes, 2003: 4).

    As opes associadas com uma pesquisa qualitativa fundada num estudo de caso e

    realizada pela observao impuseram dvidas e questionamentos nos desdobramentos do

    estudo; em parte, como fruto de limitaes pessoais e circunstncias enfrentadas na

    trajetria da pesquisa. Das limitaes, algumas so inerentes natureza de trabalhos

    qualitativos; isto , exigem ateno e cuidado com questes como as relaes de poder que

    se estabelecem entre pesquisador e atores em estudo, assim como as influncias que as

    escolhas de quem pesquisa podem exercer sobre o silenciamento de dados aspectos da vida

    social (Burawoy, 1998). Outras derivaram de situaes concretas resultantes do contato

    com os interlocutores e da interferncia na vida deles. Isso obrigou a reflexes (e revises)

    constantes, de carter prtico e metodolgico, sobre os rumos e as decises a serem

    tomadas na pesquisa. Algumas dessas questes e situaes, bem como as decises que

    geraram ou mesmo seus elementos de contextualizao, merecem reflexo e anlise pelo

    que revelam da realidade estudada ou da viso lanada sobre ela.

    Contextualizao dos perodos de trabalho de campo. Fui a Minau pela primeira

    vez em maro de 2012. Cheguei cidade poucas semanas aps ter ocorrido, em Turim,

    Itlia, o julgamento e a condenao dos ex-diretores do grupo multinacional Eternit, em

    meados de fevereiro. Contra eles pesavam as mortes e os danos resultantes da utilizao do

    amianto na regio da comuna de Casale Monferrato. O captulo que situa a problemtica

    do amianto globalmente enfoca o julgamento e sua relevncia internacional. De imediato,

  • 13

    importa dizer que o jornal de maior audincia na televiso aberta brasileira noticiou as

    milhares de mortes associadas com a exposio ao amianto na Itlia em razo das

    atividades do mesmo grupo que atuou na explorao do mineral em Cana Brava, Minau,

    do fim dos anos 1960 at a dcada de 90, quando a Eternit foi nacionalizada.3

    Em dez dias de estadia para um exerccio de pr-campo, estabeleci contatos e

    entrevistei representantes do sindicato dos trabalhadores, alm de realizar um focus group

    com representantes da prefeitura4, visitar a empresa SAMA, conversar informalmente com

    os habitantes do municpio e realizar as primeiras entrevistas. Antes de ir a Minau, pude

    me dar conta do desconforto e da preocupao gerados pelo julgamento de Turim nos

    representantes da empresa e do sindicato dos trabalhadores, com quem eu fiz os primeiros

    contatos telefnicos. Como se tratava de um momento em que acontecimentos

    internacionais envolvendo o amianto reacendiam as discusses sobre a possibilidade de o

    mineral ser proibido no Brasil, a presena de algum estudando esse assunto em uma

    universidade europeia gerou curiosidade e desconfiana.

    Ainda assim, no houve entraves para ser recebida pela prefeitura, pela empresa e

    pelo sindicato dos trabalhadores. A, tive acesso a um nmero significativo de

    representantes dessas instituies. Ter chegado cidade naquele momento ajudou a

    encontrar condies mais favorveis para abordar o assunto informalmente com as pessoas

    e fazer contato com possveis entrevistados. Ao mesmo tempo, fui alvo de

    questionamentos s vezes hostis sobre meu posicionamento ante a questo e minha

    possvel ligao com o lado oposto quem defende o banimento do mineral. Nos

    espaos aonde fui, minha presena, explicitamente, suscitou o receio de que eu buscasse

    elementos a fim de influenciar nas decises e polticas quanto ao mineral na esfera

    nacional. Tive de deixar claro o meu papel de investigadora sem vnculos com

    organizaes ou partidos polticos eventualmente envolvidos nas decises sobre o amianto

    no Brasil. Manifestei o interesse pela compreenso da realidade local como produtora e

    defensora de um mineral nocivo, isto , de uma fonte de controvrsia.

    3 Quando o julgamento foi noticiado no Brasil, a Eternit brasileira declarou se tratar de uma empresa nacional

    de capital aberto sem relao atual com as Eternits de outros pases, pois a propriedade e o uso da marca se

    dariam distintamente por empresas de vrios pases. A nota est disponvel em:

    http://www.eternit.com.br/destaques/institucionais/esclarecimentos-do-grupo-eternit-do-brasil. No entanto, a

    Eternit brasileira foi, at 1990, uma filial das empresas belga e sua, que dirigiam a fbrica de Casale

    Monferrato (Giannasi, 2012). 4 Trata-se da sede do poder executivo do municpio. Divide-se em secretarias (como educao, sade, etc.) e

    administrada por um prefeito.

    http://www.eternit.com.br/destaques/institucionais/esclarecimentos-do-grupo-eternit-do-brasil

  • 14

    Esse contexto me ps em confronto com um fator cuja considerao era

    indispensvel pesquisa aqui materializada: a perturbao que minha presena e minhas

    intervenes provocavam em parte da realidade local. As reaes provocadas por esta

    perturbao, associadas quelas que provinham dos acontecimentos internacionais

    envolvendo a indstria, foram reveladoras de elementos no visualizveis em outro

    contexto; por exemplo, as instituies que, ao se sentirem ameaadas, buscaram se

    defender atravs de posturas e discursos que informaram mais de suas prticas do que se

    tivessem respondido restritamente ao roteiro apresentado. Assim, o momento de crise

    potencializou o carter revelador da postura institucional quanto s caractersticas e

    prticas das instituies (Burawoy, 1998).

    Em 16 de maro, deixei Minau. No dia 26, houve o abrao SAMA, quando a

    populao formou um cordo humano ao seu redor, com faixas de apoio ao uso do amianto

    crisotila5 e mineradora. Esse evento confirmava que minha estadia coincidira com um

    momento especial das discusses sobre o amianto na cidade; mas no consegui identificar

    indcios da organizao dessa manifestao em meio s pessoas com quem falei. Isso me

    fez refletir sobre como ocorriam as iniciativas e a organizao de mobilizaes de apoio

    mineradora e sobre a hiptese de que a prpria SAMA as promovia.

    Meu segundo perodo de estadia em Minau durou 25 dias entre setembro e

    outubro de 2012. Outra vez, cheguei quando o assunto amianto havia invadido o cotidiano

    mais do que o habitual. De fato, os habitantes esto habituados a viver na cidade do

    amianto, a trabalhar com esse mineral (e com sua nocividade) e ter na mineradora uma

    referncia de emprego e progresso. Mas a possibilidade de banir o mineral e as implicaes

    do banimento revelaram-se temticas muitas vezes adormecidas, esquecidas em meio a

    questes prticas do dia a dia.

    De 24 a 31 de agosto de 2012, uma audincia pblica sobre o amianto no

    Supremo Tribunal Federal (STF), responsvel pela apreciao da constitucionalidade das

    leis, ps tais temticas na ordem do dia. Embora seja tratada com mais detalhamento no

    captulo sobre a controvrsia em torno do amianto no Brasil, convm adiantar que a

    audincia ocorreu em razo da existncia de aes de disputa pela manuteno ou

    redefinio da poltica nacional do mineral; o que determinar a continuidade de sua

    extrao e utilizao ou seu banimento. Embora tenham tido impacto maior nos rgos

    5 Pertencente ao grupo das serpentinas, a crisotila o tipo de amianto extrado em Minau.

  • 15

    mais diretamente envolvidos com a empresa, esses acontecimentos afetaram os

    trabalhadores da SAMA; logo, amigos e familiares tomaram conhecimento das discusses

    para as quais a empresa levou representantes da comunidade.

    Outro fator influente na atmosfera encontrada em Minau foi a proximidade das

    eleies municipais, em outubro. Em cidades pequenas como Minau, esse perodo toma

    propores significativas quanto a deixar a populao amplamente envolvida com o

    processo eleitoral. As demais atividades param. Nesse sentido, as questes relativas ao

    amianto e minerao deram lugar eleio como objeto de conversas informais,

    discusses e debates. Ao mesmo tempo, deixou as pessoas pr-dispostas a falar sobre a

    ao ou inao dos representantes polticos quanto situao socioeconmica do

    municpio e s relaes com a empresa e o amianto (seja relaes de defesa ou de crtica;

    seja quanto responsabilidade ou desenvolvimento de opes caso deixem de existir).

    Voltei ao sindicato dos trabalhadores da minerao. Visitei escolas, instituies

    religiosas, frum e centros de sade. Entrevistei mais pessoas. Sobretudo, fiquei mais

    vontade para frequentar ambientes pblicos e conversar. No por acaso esse perodo foi

    dedicado, em especial, s entrevistas e s observaes que uma permanncia mais longa

    permitiria. Mas, embora tenham sido mais tranquilos os meus contatos com as pessoas, no

    deixaram de emergir questes e questionamentos referentes ao(s) papel(is) que eu

    desempenhava naquele contexto.

    Observao (no)participante. Na minha primeira estada em Minau, imps-se a

    necessidade de avaliar e definir meu posicionamento no contato com a realidade e os atores

    sociais estudados. Foi necessrio pensar em meu papel ali como pesquisadora e indivduo

    para ter o mximo possvel de conscincia das consequncias dessa subjetividade para o

    desenvolvimento e os resultados da pesquisa. A necessidade de equilibrar os papis a

    serem desempenhados evidenciou-se na constatao de uma dinmica que Gold (2003)

    anunciou. Para o autor, cada papel desempenhado no trabalho de campo tanto um

    conjunto de procedimentos de interaes sociais para obter informaes cientficas quanto

    um conjunto de comportamentos que envolvem o eu do observador. Desenvolve-se uma

    dialtica entre os papis desempenhados como investigadora e uma tentativa de

    compreender a posio do interlocutor, de se colocar em seu lugar, medida que se busca

    penetrar nos discursos, nos registros e nas atitudes at ento estranhas ou conhecidas vaga

    e abstratamente.

  • 16

    Sair de um contexto em que o carter devastador do amianto e a necessidade de

    seu banimento so amplamente reconhecidos a Europa e chegar a um lugar onde h

    posies inversas Minau ps-me em uma situao de incmodo e desconforto.

    Nessa cidade, o amianto representado como inocente, enquanto a comunidade se

    identifica como vtima de uma injustia o ataque ao mineral que se constri por

    interesses alheios aos seus. Por isso foi relevante o espao temporal entre a primeira estada

    em Minau (quando eu constatara a presena e profundidade do discurso de defesa da

    empresa e da minerao de amianto) e a segunda (quando se amenizaram minhas

    convices pessoais no contato com os habitantes e trabalhadores). Mesmo havendo

    divergncias entre meu posicionamento pessoal que no explicitei e aquele expresso

    por grande parte da comunidade sobre as questes relacionadas com o amianto e a

    necessidade de seu banimento, o contato com os habitantes me permitiu identificar, aos

    poucos, a convergncia de vises sobre a incidncia de injustias na trajetria de Minau e

    de sua populao. Essas injustias so concebidas e interpretadas distintamente conforme

    se defenda ou a continuidade das atividades relacionadas com o amianto, ou o banimento

    do mineral; mas em ambos os casos as questes que permeiam a discusso centram o foco

    na interdependncia entre trabalho, sade e ambiente, bem como na necessidade de sua

    considerao.

    Outra dimenso do papel desempenhado por mim na conduo da pesquisa se

    refletiu, no na minha forma de ouvir e gerir o fornecimento de informaes, mas na

    maneira de os interlocutores assimilarem minha presena e meu papel. Assumindo como

    papel principal o de participante-como-observadora, houve sempre a conscincia de

    todos os que colaboraram com meu trabalho exceto em poucas conversas informais

    de que eu era estudante de doutoramento pesquisando questes sobre o amianto em

    Minau. No contato com os habitantes, busquei deixar claro que meu interesse era na

    compreenso de como a cidade vivencia as questes relativas a um mineral cuja

    nocividade amplamente divulgada, e reconhecida em outros contextos.

    Embora no haja neutralidade da minha parte nessas questes, era preciso anular

    mpetos de confronto do meu posicionamento com o da populao, ou de defesa, perante

    os moradores, de uma soluo adequada para a problemtica do amianto no Brasil. Era

    preciso ter claro em minha postura meu propsito: compreender o contexto local e os

    fatores que determinam o posicionamento expresso pelos habitantes e trabalhadores de

  • 17

    Minau, bem como os conflitos e dissensos existentes. Nas ocasies em que questionaram

    o propsito das entrevistas, eu disse que meu trabalho inclua a perspectiva dos apoiadores

    e dos opositores minerao de amianto no municpio e que entrevistaria, igualmente,

    atores que defendem seu banimento em esfera nacional. Assim, minha participao

    naquele contexto se restringiu observao; e os interlocutores sabiam que eu desenvolvia

    uma investigao, mesmo que desconhecessem os princpios ou as premissas que a

    guiavam.

    Convm considerar os papis atribudos a mim pelos membros do grupo em

    diferentes momentos ora de aliada, ora de possvel opositora e a forma como

    exerceram influncia sobre o que disseram ou me deixaram ver (Becker, 2003). Neste

    sentido, foi importante minha no participao na controvrsia poltica em curso no pas

    como no participante direta de organizaes ou instituies envolvidas, pois me

    possibilitou no exprimir posicionamentos sobre as questes investigadas. Mas foi

    importante expressar que, independentemente do meu posicionamento, minha pesquisa

    partia do reconhecimento da necessidade de considerar Minau e sua populao nas

    questes que envolvem o amianto, bem como os impactos que as decises relativas a essas

    questes tm gerado e podem gerar.

    De fato, no poder explicitar meu posicionamento com a convico que o

    caracteriza durante o trabalho de campo criou um mal-estar tico. Ainda assim creio

    , a compreenso da realidade de Minau de modo a identificar fatores que impedem o

    estabelecimento de dilogos teis ao fluxo de ideias e prticas de justia ambiental pode

    contribuir favoravelmente aos interesses dessa comunidade. Significa que a considerao

    dos paradoxos e contradies que compem o contexto do municpio pode potencializar

    vias de identificar problemas e construir solues das quais seus habitantes participem de

    forma a integrar suas demandas e preocupaes. Dadas as complexidades do caso em

    questo, restam abertas as possibilidades de retorno que este trabalho possa representar

    para a comunidade de Minau.

    Tcnicas de recolha de dados. Alm das anlises bibliogrfica e documental

    durante a elaborao da tese, no trabalho emprico a observao, as entrevistas e as

    conversas informais formaram as bases que permitiram buscar elementos para

    compreender a realidade de Minau e de seus habitantes, os quais foram considerados

    individualmente e como membros de dadas categorias sociais (Kleinman et al. 1994). No

  • 18

    entanto, outros mtodos usados foram indispensveis para possibilitar uma observao

    mais abrangente e viabilizar o contato com pessoas com as quais uma entrevista individual

    no se justificaria. Estudantes de escolas pblicas e da universidade responderam aos

    questionrios (cf. modelos e resultados anexos). Na prefeitura e na empresa de minerao,

    as pessoas participaram de reunies (ou focus group).

    Dada a necessidade de entrevistar, dentre outros atores, profissionais de reas

    diversas de atuao pblica no municpio (educao, sade e sistema judicirio),

    trabalhadores da SAMA e ex-trabalhadores dessa empresa, representantes sindicais e

    pessoas que se destacavam como contrrias ao amianto naquele contexto, de incio busquei

    encontr-las onde trabalhavam, com exceo dos funcionrios da SAMA. Para os outros

    entrevistados, recorri ao mtodo bola de neve ou tcnica de indicao sucessiva de

    entrevistas (Biernack e Waldorf, 1981), em que um interlocutor indica outro que se destaca

    em alguma questo abordada. Com exceo dos representantes institucionais, das figuras

    pblicas nacionais e dos atores que reivindicam o reconhecimento pblico de seu

    posicionamento, os entrevistados no foram identificados na tese. Os relatos foram

    numerados num quadro (cf. anexo 1) onde constam informaes gerais e aproximativas de

    cada entrevistado ou entrevistada.

    3. Estrutura da tese

    Esta tese se divide em duas partes. A primeira tem trs captulos sobre o

    enquadramento terico e a contextualizao da problemtica do amianto globalmente e no

    Brasil; a segunda, quatro captulos, onde analiso aspectos referentes ao estudo de caso

    deste trabalho.

    O primeiro captulo apresenta o enquadramento terico que sustenta a pesquisa

    aqui descrita. O enquadramento parte do paradigma da justia ambiental como base para

    analisar a problemtica do amianto compreendido como fonte de injustias e desigualdades

    ambientais. A anlise se sustenta em trs eixos tericos centrais que permitem integrar a

    anlise do caso de Minau: 1) regimes de risco industrial e (in)justia ambiental,

    considerando as interaes entre global e local e os fatores que envolvem a distribuio dos

    riscos e a sobreposio de percepes e regulamentaes concernentes a dado risco

    industrial; 2) o amianto e a ecologia poltica dos riscos, considerando as especificidades

    dos riscos relacionados ao amianto, as vulnerabilidades populacionais e institucionais que

  • 19

    emergem em contextos especficos de risco e a dialtica entre injustia e justia ambiental;

    3) justia ambiental e trabalho: elementos do contexto brasileiro, considerando as

    dialticas entre trabalho e (in)justia ambiental (com nfase em conhecimentos e prticas

    produzidos no contexto brasileiro) como elementos que permeiam os dois eixos anteriores.

    O segundo captulo aborda o amianto como problema social e as respostas

    sociais elaboradas para tal problema, assim como os elementos e as estratgias que se

    contrapuseram e se contrapem a essa problematizao. A proposta analisar a

    histria e a poltica globais do amianto atravs dos processos de banimento em alguns

    pases e da redistribuio dos riscos relativos a esse mineral para os pases perifricos.

    O terceiro captulo busca analisar o contexto brasileiro compreendido segundo as

    dinmicas que se efetivam em esfera global, inserindo alguns elementos concernentes ao

    caso de estudo deste trabalho. Esta anlise se desenvolve por meio da identificao e

    descrio de uma controvrsia sociotcnica em torno do uso controlado (e do banimento)

    do amianto no Brasil; a descrio se desdobra na identificao e contextualizao dos

    atores sociais envolvidos e das alianas e dos conflitos no decorrer dessa controvrsia, o

    que inclui a participao do sindicato dos trabalhadores de Minau e a expresso do

    posicionamento apresentado como predominante nesta comunidade.

    O quarto captulo, que demarca o incio da segunda parte, introduz a anlise do

    estudo de caso e dos dados obtidos no trabalho de campo. Apresenta o surgimento e as

    estruturas sociais de Minau luz de suas conexes com o contexto global de explorao

    do amianto e a gerao de um cenrio de identidade entre a populao local e a empresa

    SAMA, que se constituiu pela gerao de empregos, pelas relaes de trabalho e pela

    ausncia do Estado, e que permeia as demais relaes sociais.

    O quinto captulo se prope a analisar as representaes sociais formuladas pela

    populao de Minau quanto s questes concernentes ao amianto no municpio. A se

    incluem no s a forma como a populao elabora os riscos associados ao mineral e a

    atuao da empresa SAMA, mas tambm o significado que ela atribui defesa do

    banimento. Nesse processo, destacam-se a vulnerabilizao da comunidade na percepo e

    priorizao dos riscos e do projeto de banimento do amianto, evidenciando as influncias

    exercidas pelos processos analisados no captulo anterior.

    O sexto captulo dedicado aos casos de ruptura com as representaes sociais

    identificadas no captulo anterior. A inteno demonstrar como os casos de ruptura com o

  • 20

    discurso oficial de defesa do amianto e as experincias vividas e contadas pelas pessoas

    ex-trabalhadores da SAMA ou seus familiares permitem identificar elementos

    convergentes na invisibilidade e no silenciamento das perturbaes causadas pelo amianto

    em Minau e impedem que se realize sua articulao em torno de um questionamento

    coletivo da presena de injustias nessa realidade.

    O stimo captulo apresenta a anlise das prticas, vivncias e instituies que

    compem o cotidiano dos habitantes e trabalhadores locais nas relaes entre amianto,

    trabalho e sade. A proposta destacar os elementos que permitem evidenciar os impactos

    negativos resultantes das dialticas entre trabalho e (in)justia ambiental no caso do

    amianto atravs das vulnerabilidades populacionais e institucionais identificadas.

    Nas concluses, retomo a argumentao enfatizando que as complexidades

    componentes da problemtica do amianto precisam ser refletidas de forma a incorporar as

    especificidades de contextos locais. Nesse percurso, o caso de Minau evidencia tanto a

    forma com que as contradies criadas entre trabalho e justia ambiental influenciam a

    vida dos trabalhadores e habitantes afetados por riscos industriais quanto a necessidade de

    construir caminhos de conciliao entre esses elementos que permitam criar condies para

    que as populaes participem da identificao e do combate a injustias ambientais, assim

    como da construo de alternativas.

  • 21

    PARTE I. ENQUADRAMENTO TERICO E CONTEXTUALIZAO

    Nesta parte, inicialmente, sero apresentados os conceitos e as reas de

    conhecimento e de ao que fundamentam a anlise da problemtica do amianto no

    Brasil e em Minau como caso paradigmtico tanto da relao entre trabalho, sade e

    ambiente quanto das convergncias e das contradies entre trabalho e (in)justia

    ambiental. Nesse percurso, considera-se a relao entre global e local como determinante

    da forma como so produzidos e geridos os riscos industriais, o que torna fundamental

    realizar uma contextualizao das questes que envolvem os riscos relacionados ao

    amianto e as respostas produzidas perante eles. Considera-se, portanto, o histrico e a

    poltica global e nacional em relao ao amianto, situando-se e estabelecendo-se relaes

    com o contexto local do caso de estudo.

    1. ENQUADRAMENTO TERICO: ENTRE CONHECIMENTOS E PRTICAS

    As discusses tratadas neste trabalho se constrem a partir de algumas reas de

    estudo terico. Conta-se, assim, com contribuies de autores das cincias sociais e

    humanas e da sade coletiva em abordagens realizadas nos campos da sociologia, da

    geografia crtica e da histria ambiental, em dilogo com ramos interdisciplinares como a

    ecologia poltica. Essas referncias encontram-se organizadas em trs eixos de discusso

    que se desenvolvem em dilogo constante com o paradigma da justia ambiental,

    compreendido como principal quadro interpretativo das questes aqui abordadas.

    No primeiro eixo regimes de risco industrial e (in)justia ambiental , a

    compreenso dos regimes de risco industrial evidencia a diversidade de atores sociais e

    de instituies pblicas e privadas implicadas nos processos de gerao, conhecimento

    e gesto desses riscos. Revela-se a relao orgnica entre trabalho, sade e ambiente, uma

    vez que esses regimes se compem de questes ambientais e laborais que afetam a sade

    de trabalhadores, de suas famlias e de populaes vizinhas. Atravs do paradigma da

    justia ambiental nas vertentes terica e prtica destacam-se as injustias que

    determinam a forma como os riscos so gerados e distribudos em diferentes escalas.

    Destaca-se ainda que estes riscos atingem desproporcionalmente grupos vulnerabilizados,

    como os trabalhadores e suas famlias, atravs de fenmenos como a deslocalizao, a

  • 22

    chantagem da localizao e do emprego, e o empresariamento urbano, que se desenvolvem

    conforme as especificidades dos contextos locais.

    No segundo eixo o amianto e a ecologia poltica dos riscos , esta

    abordagem contribui para buscar a compreenso integrada e contextualizada dos riscos

    no regime do amianto. Considera-se, para tanto, no somente a relevncia das dinmicas de

    poder envolvidas nas relaes entre centros e periferias, mas tambm as alternativas e

    possibilidades de reverso das tendncias negativas que estas geram. Evidenciam-se as

    especificidades dos riscos causados pelo amianto e as vulnerabilidades que so criadas

    nesse regime, considerando aspectos tericos que se relacionam com o caso de Minau,

    demarcado pela dependncia scioeconmica em relao fonte de risco. Aborda-se a

    centralidade da ideia de transio justa como princpio norteador na busca de justia

    ambiental nestes casos.

    No terceiro eixo justia ambiental e trabalho: elementos do contexto brasileiro

    , ganham destaque as convergncias e contradies que se estabelecem entre trabalho e

    (in)justia ambiental, com nfase no contexto brasileiro. Discute-se a forma como certos

    campos sade ambiental, sade coletiva e sade do trabalhador, e a integrao entre eles

    possibilitam novos conhecimentos e novas formas de atuao prtica que rompem com

    a fragmentao que demarca a trajetria desses elementos. Destaca-se a existncia e as

    potencialidades do ambientalismo da classe trabalhadora, bem como as dificuldades na

    articulao de questes ambientais e questes laborais, sinalizando novamente os desafios

    em que se constitui a busca de caminhos comuns e alianas entre estes.

    1.1. Regimes de risco industrial e (in)justia ambiental

    A partir da metade do sculo XIX, a expanso dos mercados e o crescimento da

    produo intensiva e das indstrias extrativas convergiram no desenvolvimento dos pases

    europeus e da Amrica do Norte. Consolidava-se, assim, o modelo de desenvolvimento

    econmico6 que caracteriza as sociedades industriais e que, na segunda metade do sculo

    XX, havia se espalhado por quase todos os pases do mundo. Nesse percurso, surgiram,

    intensificaram-se e internacionalizaram-se os riscos decorrentes de processos produtivos e

    6 As estratgias de desenvolvimento econmico adotadas pelos pases centrais (marcadas pela

    industrializao e urbanizao) foram adotadas pelos pases perifricos e semiperifricos na busca de gerao

    de riquezas e poder. No entanto, esse modelo de desenvolvimento, associado s dinmicas de mercado

    internacionais, intensificou tanto as desigualdades entre os pases do norte e do sul quanto aquelas que se

    manifestam internamente nas sociedades destes ltimos (Arrighi, 1997).

  • 23