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ALMEIDA GARRETT E O TEATRO DO SEU TEMPO TRABALHO FINAL /22/06/2016 Ana Sousa Martins

O elemento histórico em Frei Luís de Sousa

Perspetivas sobre a prática letiva

0. O propósito deste breve ensaio é descrever a proeminência da informação histórica relativamente à ação de Frei Luís de Sousa na sua vertente individual, nacional e universal. O texto conclui com uma descrição breve das práticas correntes de lecionação desta obra dramática e materiais didáticos disponíveis para o ensino secundário, que se faz de par com uma reflexão crítica sobre as metodologias de ensino aí aplicadas.

1. O século XIX vê abrir portas à historiografia nacional, tendo como figura cimeira Alexandre Herculano. A miríade de documentos que vem a lume, inclusivamente em publicações periódicas, é notável, se comparada com as épocas precedentes. Afinal é o século em que a História se afirma como ciência autónoma, com o trabalho de sistematização metodológica de fontes e registos diversos. Combinado, não por acaso, com a estética literária romântica, o furor de dar um pano de fundo histórico – ou pseudo-histórico – a histórias inventadas passou a ser um lugar comum, e não apenas na dramaturgia. A peça Frei Luís de Sousa emerge como um caso representativo do pathos dramático que se serve dos dados históricos não como pano de fundo, mas a servir os filões temáticos dominantes: o sebastianismo, a demanda africana, a subordinação ao domínio filipino.

No plano do individuo, há a salientar desde logo a personagem Manuel de Sousa Coutinho (1555-1632). Figura de grande porte social, militar e filósofo, governador na Índia, participou no cerco de Diu, foi cativo e resgatado à pátria - vivências factuais que são transvasadas para a vivência ficcional de D. João de Portugal, morto em Alcácer. A produção historiográfica de Frei Luís de Sousa (Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires; História de São Domingos; Conquistas de Portugal, Vida do Beato Henrique Suso, entre outras) ainda que não se assumindo como fontes, ajudaram a criar na mundividência coletiva essa figura de proa que é o personagem central da peça. A assunção da viuvez de D. Madalena de Vilhena pertence também ao domínio da história e do factual, mas já não o episódio do peregrino e da entrega de um recado que um certo português errante por terras do Infiel o incumbiu de entregar, declarando, perante D. Madalena que «ainda por lá vivia quem se lembrasse de Vossa Mercê». O relato histórico não justifica a razão do divórcio nem a entrega dos dois aos votos sacerdotais, mas a estranheza dessa opção (uma vez que a morte da filha, quando a mortalidade infantil era, e continuou a ser, muito elevada não podia ter sido razão) era inspiradora. O entrelaçado dos eventos da ordem do verdadeiro e os da ordem do inventado formam o sublime das figuras simples e sóbrias apanhadas pelo destino trágico e implacável: inocentes e culpadas; incautas e arrependidas. A morte em plena jovialidade faz de Maria a heroína mais pura. A informação histórica sobre esta filha de um casamento erróneo é naturalmente residual, pois está em conformidade com a sua idade: uma criança tem sempre pouca história de vida. Portanto, de um modo geral, é a história da tríade Manuel de Sousa Coutinho – D. Madalena – D. João de Portugal já de si fantástica e trágica que se presta naturalmente à refiguração ficcional.

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ALMEIDA GARRETT E O TEATRO DO SEU TEMPO TRABALHO FINAL /22/06/2016 Ana Sousa Martins No que concerne à dimensão nacional da componente história da peça, há seguramente a referir a perda da soberania e o ano de 1580, que aviva o sebastianismo, o mito do desejado, a crença no Encoberto, concentrados na figura de D. João de Portugal. A razão ou a perceção da realidade (de que D. Sebastião está morto), oposta à credulidade infundada é uma das dialéticas da obra e que constituem, como é sabido, um símbolo do carácter coletivo da nação. Cumulativamente, há a referir o incêndio premeditado da casa de D. Manuel apresentado ao leitor como ato patriótico de renegação do domínio filipino.

A dimensão humana da obra não precisa do fundamento histórico para que a pertença de Frei Luís de Sousa ao grupo das grandes obras da literatura universal seja avalizada. No entanto, ele está lá e a interpretação da obra exige a sua integração no conjunto dos produtos ficcionais que foram «baseados em factos reais». Nesta medida, a peça Frei Luís de Sousa emparceira de direito, por via dos princípios abstratos e universais do elemento trágico, como sejam a viagem, a guerra, a traição, o fatalismo, com as obras de Walter Scott, Schiller ou Calderón. Frei Luís de Sousa resiste ao tempo e manterá o seu impacto através dos séculos pela limpidez com que esboça os matizes da condição humana e da maneira como continuará a inspirar reações emotivas por anos vindouros. Não apenas reflete história, mas já faz parte da história das ideias. A obra potencia, neste sentido, nos leitores a busca de conexões, incentiva-os a descobrir influências de outros autores e a ganhar assim uma compreensão mais profunda de como o mundo está (des)organizado.

2. A sua universalidade, o facto de a peça estar afeiçoada a qualquer interpretação moderna, justifica a sua presença, de há décadas, nos programas do ensino secundário. Uma obra que não só resiste ao tempo como, quiçá até mais notável, às sucessivas reformas do ensino. A obra pertence ao cânone literário português e, como tal, está de pleno direto visada nas orientações programáticas e metas curriculares.

No entanto, o problema da prática de lecionação desta obra é o mesmo que afeta outras obras e que se passa a explicar. Ao contrário do que refere Martins (2003), para a leitura orientada da peça não se julga essencial convocar as interpretações da obra produzidas por várias gerações de especialistas e académicos. Na sua célebre publicação Perché leggere i classici (1995), na observação que introduz as últimas sete razões, Italo Calvino é perentório: a formação escolar que os alunos recebem mais não faz do que obscurecer a apreciação estético-emotiva, pessoal, da obra. “As escolas”, refere, “devem ajudar os alunos a entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais do que o livro em questão; pelo contrário, fazem o melhor que podem para nos levar a pensar o contrário” (tradução livre). Naturalmente que a vasta e rica bibliografia disponível de crítica literária sobre Frei Luís de Sousa é meritória e deve ser consultada, primeira e criticamente pelo professor e só depois pelos alunos. Mas não deve ser esse o primeiro passo. O primeiro passo deve ser a leitura integral – autónoma – da obra. Atualmente, é apenas uma minoria de alunos que faz a leitura integral das obras dos programas e o professor não tem meios de os penalizar os que o não fazem, porque a panóplia de resumos, contextos histórico-biográficos resumidos e leituras críticas em segunda mão que os manuais escolares plasmam, não só se interpõe entre o aluno e a leitura integral da obra, como parece ter como único fito permitir ao aluno fingir que leu a obra.

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ALMEIDA GARRETT E O TEATRO DO SEU TEMPO TRABALHO FINAL /22/06/2016 Ana Sousa Martins Se, por sua vez, nos focarmos na minoria dos alunos que lê integralmente Frei Luís de Sousa, assim como as demais obras dos programas, percebemos facilmente que é justo o que Martins (2003) refere relativamente ao facto de não haver uma edição escolar crítica digna desse nome. No entanto, essa lacuna não deve ser tanto atribuível à lógica negativa do mercado editorial, como à falta de priorização da comunidade académica na produção de um trabalho deste tipo. Afinal é essa a função das unidades editorais das Universidades e do próprio Ministério da Educação. Em última análise, há programas de apoio financeiro à edição (FCT, por exemplo).

3. Neste trabalho, procurou-se traçar uma panorâmica do papel da informação histórica, não apenas na construção, mas na interpretação da dramaticidade e do molde romântico de Frei Luís de Sousa. Sublinhou-se o paralelismo factual-ficcional nas dimensões individual, nacional e universal. Por último, foi delineada uma brevíssima reflexão sobre a prática letiva e materiais disponíveis (ou a falta deles) que visa treinar o aluno na leitura direta de Frei Luís de Sousa, assumindo-se que o ensino da literatura em estudos não graduados tem como principal propósito transformar os jovens em leitores adultos, ávidos, fluentes e críticos.

Referências:

Martins J. Cândido de Oliveira 2003. Almeida Garrett. Um Romântico, um Moderno. Vol. II, Lisboa, INCM.

Calvino, Italo 1995, Perché leggere i classici, Milano, Oscar Mondadori.