trabalho final
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
BRILHANTE E PROMISSOR
Disciplina: Aspectos Psicossociais da Inclusão
Docentes: Dra. Cleonice Alves Bosa
Doutoranda Márcia Semensato
Mestranda Renata Giuliani Endres
Discente: Maynar Patricia Vorga Leite
Porto Alegre
Dezembro de 2012
BRILHANTE E PROMISSOR
CUTE AND PROMISING
Maynar Patricia Vorga Leite1
RESUMO: As políticas inclusivas para a educação propõem o acesso universal. No entanto, pouco se fala
sobre as reais possibilidades de estudo universitário para pessoas com deficiência intelectual, como se
essa condição e esta modalidade de ensino fossem mutuamente excludentes, sem discussão possível. Ao
realizar acompanhamento de jovens com deficiência intelectual durante sua inserção no trabalho e ao
ministrar uma disciplina sobre o tema, foi possível questionar o limite entre universidade e deficiência
intelectual. Esse questionamento foi alimentado quando, em 2012, um jovem de 21 anos, com síndrome
de Down, foi aprovado em concurso vestibular na Universidade Federal de Goiás. Pretende-se, neste
artigo, revisar sumariamente fundamentações teóricas e jurídicas para pensar as possibilidades de que as
pessoas com deficiência intelectual cursem o Ensino Superior, relatando, concomitantemente, o caso de
um jovem acompanhado entre os anos de 2009 e 2011.
ABSTRACT: Inclusive educational policies have universal access as a goal. Nevertheless, the real
possibilities for persons with intellectual disability to follow a university course are hardly ever on the
table, as if such condition and higher education were mutually excluding. Following the processes of
young people with intellectual disability along their insertion into the world of working, and while
delivering classes on this topic, it has been possible to question the limit between higher education and
intellectual disability. This questioning became stronger when, in 2012, a 21 years old young man with
Down Syndrome was approved in the entrance examination to the Universidade Federal de Goiás
incoming test. In this article is intended to briefly review theoretical and juridical foundations in order to
raise a discussion about the possibilities of persons with intellectual disability to follow a university
course, reporting the case of a young man that was followed up between 2009 and 2011.
Nas últimas décadas ocorreram movimentos internacionais que obtiveram
destaque para os direitos das pessoas com deficiência,2 como atestam a Declaração
Mundial de Educação para Todos (1990) e a Declaração de Salamanca (1994). No que
tange à educação, a primeira determina que as necessidades básicas de aprendizagem
sejam oportunizadas para todas as pessoas, entendendo como “básicas” aquelas que
forem necessárias para que “possam sobreviver, desenvolver plenamente suas
potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do 1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional, Graduanda em Licenciatura em Psicologia, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.2 As denominações das pessoas com as diferentes formas de deficiência é discutível; no presente texto adotou-se esta expressão e optou-se por manter a terminologia dos textos originais sempre que necessário.
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desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e
continuar aprendendo”. Já a segunda demanda que os governos “atribuam a mais alta
prioridade política e financeira ao aprimoramento de seus sistemas educacionais no
sentido de se tornarem aptos a incluírem todas as crianças, independentemente de suas
diferenças ou dificuldades individuais”.
O Brasil tem participado desses movimentos e reformulado suas políticas
públicas para a educação. Em 1988 o artigo nº 208 da Constituição da República
Federativa do Brasil estabeleceu como dever do Estado o “atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência, preferentemente na rede regular de ensino”.
Deste modo, a Carta Magna permitiu a manutenção da existência de escolas
especializadas para o atendimento de pessoas com deficiência, mas, ao mesmo tempo,
começou a instituir alguma abertura para que as pessoas com e sem deficiência
pudessem estudar juntas. Já em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) definiu a educação especial, no art. 58, como “a modalidade de educação
escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos
portadores de necessidades especiais”. O mesmo artigo determinou que o atendimento
educacional fosse realizado “em classes, escolas ou serviços especializados, sempre
que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração
nas classes comuns de ensino regular”. Mas também estabeleceu, no art. 4º, que esse
atendimento seja oferecido preferencialmente na rede regular de ensino. Desse modo a
LDB institui uma política integrativa de educação, isto é, uma modalidade na qual as
dificuldades ainda estão localizadas nos alunos, os quais, mediante ajuda, deverão
superá-las ou compensá-las a fim de acompanhar corretamente o ensino regular.
Em 2001, com a emissão do Plano Nacional de Educação, o Brasil determinou
que a educação especial fosse destinada “às pessoas com necessidades especiais no
campo da aprendizagem, originadas quer de deficiência física, sensorial, mental ou
múltipla, quer de características como altas habilidades, superdotação ou talentos”. Este
documento estabeleceu metas e prazos para que o ambiente educacional regular se
constituísse como “uma escola integradora, inclusiva, aberta à diversidade dos alunos”,
esclarecendo que as escolas especiais deveriam ser reorientadas “para prestarem apoio
aos programas de integração”. Desse modo, mesmo utilizando como sinônimos os
termos “integração” e “inclusão”, percebe-se que o Plano mostrou uma tendência no
sentido deste último, isto é, conduzindo os recursos da educação especial para que a
rede regular pudesse atender alunos com necessidades diversas.
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Já em 2008, o Decreto nº 6.571 determinou que fosse ampliada a oferta, na rede
pública regular de ensino, do atendimento educacional especializado aos alunos com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação,
tendo, entre seus objetivos, o de “fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e
pedagógicos que eliminem as barreiras no processo de ensino e aprendizagem”. Este
Decreto foi revogado pelo de número 7.611, de 2011, o qual estabelece, dentre as suas
diretrizes, a “garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, sem
discriminação e com base na igualdade de oportunidades”; o “aprendizado ao longo de
toda a vida”, a “não exclusão do sistema educacional geral sob alegação de deficiência”,
a “oferta de apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a
facilitar sua efetiva educação” e a “adoção de medidas de apoio individualizadas e
efetivas, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de
acordo com a meta de inclusão plena”, embora mantenha, provavelmente para
salvaguardar situações realmente excepcionais, a preferência – e não a compulsoriedade
– da educação especial na rede regular de ensino, considerando como “público-alvo da
educação especial as pessoas com deficiência, com transtornos globais do
desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação”.
As possibilidades para o acesso ao Ensino Superior por parte das pessoas com
deficiência intelectual foram questionadas a partir de vivências relativas: ao Estágio de
Psicologia da Comunidade Escolar, realizado no Centro de Orientação e Preparação
para o Trabalho (COPA) da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas
Públicas para PPDs e PPHAs no Rio Grande do Sul (FADERS); ao trabalho
acompanhado junto ao Gabinete de Psicologia da Câmara Municipal de Porto Alegre
(CMPA); ao estágio-docência realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
O antigo COPA, atualmente denominado Serviço de Capacitação Profissional
(SECAP) era, em 2008, o único centro profissionalizante, no Rio Grande do Sul,
destinado a atender pessoas com deficiência intelectual. Contava com uma equipe
formada por professores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, um neurologista, e
pessoal administrativo. Desenvolvia cinco cursos: Office-boy, doces e salgados, serviços
gerais, encadernação e marcenaria. Ao começar a partilhar a rotina do COPA
surpreendia o fato de que seus alunos, quando recebiam um chamado de atenção por
uma tarefa que não haviam cumprido a contento, pareciam exultantes. Com o tempo foi
possível perceber o motivo provável dessa alegria: não era comum que alguém
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acreditasse na capacidade desses jovens3 para aprender a realizar corretamente uma
tarefa relativamente complexa. Outro fato relevante era a circulação diária de um jornal
pelas salas de aula, que era lido à vontade pelos alunos, os quais discutiam junto aos
professores aquelas notícias que lhes haviam chamado a atenção. Depreende-se que os
profissionais do COPA trabalhavam com base nas capacidades cognitivas, nas
possibilidades destes jovens, e não nas dificuldades, sem, contudo, deixar de lhes
oferecer suporte para se haver com as mesmas. Talvez por estarem familiarizados,
devido à sua experiência profissional, com a rapidez dos seus alunos para encontrar
respostas fora do comum perante situações que para nós, os “normais”, eram difíceis de
resolver. Além disso, com freqüência percebia-se, nestes jovens, persistência,
determinação e aplicação em graus excepcionais. Por exemplo, numa ocasião uma aluna
que cursava o segundo ano do Ensino Médio no contra-turno, comentou que, ao chegar
em casa, ficava estudando durante horas, até conseguir aprender alguma coisa. E que
faria o esforço que fosse necessário, durante o tempo que fosse preciso, para concluir
também o terceiro ano.
Também houve ocasião de questionar o status da deficiência intelectual em
relação ao Ensino Superior entre 2010 e 2011, ao acompanhar a inserção no trabalho de
pessoas com deficiência. Esta inserção era propiciada mediante convênio de estágio que
a Câmara Municipal de Porto Alegre (CMPA) mantinha com a Secretaria Municipal de
Educação de Porto Alegre (SMED) e com a FADERS. O acompanhamento referido
consistiu em participar dos grupos quinzenais realizados com os estagiários pelo
Gabinete de Psicologia da CMPA, bem como presenciar o dia-a-dia no trabalho de um
dos estagiários com deficiência intelectual.
Nos grupos, os estagiários analisavam aspectos tensos do funcionamento da
CMPA, propunham soluções, questionavam sua própria situação na sociedade e no
mundo do trabalho. Esta habilidade crítica pode ser compreendida como uma
capacidade cognitiva complexa, e era facilmente perceptível nos estagiários com
deficiência intelectual. Cabe ressaltar que as pessoas com este tipo de deficiência são as
mais discriminadas para o trabalho. Por esse motivo, quando um dos estagiários com
deficiência intelectual relatou que havia recebido uma oferta de emprego, num
supermercado, e que a rejeitou, o grupo todo ficou muito surpreso. Mas o estagiário em
questão soube relatar com muita precisão os motivos pelos quais declinou do trabalho a
ele oferecido. Primeiramente, conhecia a própria têmpera, e sabia, por uma experiência
3 A maioria dos alunos do COPA contava com idades entre 18 e 30 anos.
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anterior, que as pressões freqüentemente exercidas pelos clientes o deixavam muito
nervoso. Além disso, o horário era muito extenso, o que não lhe permitiria dar
continuidade a outras atividades que ele desenvolvia. Relatou, ainda, as dificuldades
enfrentadas para sustentar essa negativa perante a família, a qual imaginava que, sendo
ele uma pessoa com deficiência intelectual, deveria considerar como uma oportunidade
ímpar qualquer emprego que lhe fosse oferecido.
Este tipo de escolha profissional e os meios para trilhar essa decisão constituem
aspectos reconhecidos da dignidade e da maturidade humanas. A partir das políticas de
inclusão para a educação e o trabalho desenvolvidas em nível internacional e nacional é
cada vez menos incomum encontrar um estudante universitário ou um profissional
usando cadeira de rodas, bengala, aparelho auditivo, ou falando LIBRAS. Nos grupos
acompanhados na CMPA havia estudantes dos três níveis de ensino, mas nenhum dos
estagiários com deficiência intelectual sequer cogitava a possibilidade de cursar estudos
universitários. Um deles apresentava peculiaridades que levavam a questionar com
maior intensidade a ausência de pessoas com deficiência intelectual no Ensino Superior,
ausência pouco questionada e aceita como um fato natural. O estagiário em questão
destacava-se por apresentar habilidades cognitivas notáveis que o tornariam um
candidato qualificado, por exemplo, para um curso superior de Relações Públicas.
Este jovem, que será aqui chamado de Brilhante, era sempre o primeiro, dentre
seus colegas de trabalho, a saber o que estava ocorrendo de mais importante na cidade,
no Brasil e no mundo, além de tecer comentários críticos a respeito das notícias que
anunciava. Numa reunião era capaz de saber o que cada convidado estava consumindo,
como cada uma das pessoas presentes estava se sentindo, e o que era necessário fazer
em cada caso para que todos ficassem à vontade. Tinha uma memória invejável. Sabia
relacionar entre si fatos ocorridos havia muito tempo, não raro lembrando com exatidão
as datas, os nomes das pessoas e dos lugares relativos aos mesmos. Também lembrava
com precisão os compromissos, próprios e alheios, a tal ponto que, após alguns meses
de trabalho na CMPA, seus colegas começaram a pedir-lhe ajuda para lembrar datas
importantes – tais como a de um pagamento fora de rotina, por exemplo – ao que ele,
invariavelmente, respondia perguntando se a pessoa desejava ser lembrada no mesmo
dia, no anterior, ou uma semana antes do evento. Era extremamente competente para
desenvolver relações sociais de graus variados. A sua deficiência intelectual estava
relacionada especificamente com o aprendizado de matemática e escrita. Mesmo assim,
6
por iniciativa própria e com escassa assistência, aprendeu a lançar processos no sistema
eletrônico e a fazer crachás, tarefas que evidentemente envolviam escrita atenta.
Para conferir a esta narrativa uma dimensão aproximada do que ela pretende
apresentar torna-se indispensável relatar alguns eventos pessoais. Por ocasião da minha
formatura e com supervisão da técnica que acompanhava Brilhante, resolvi contratá-lo
para me auxiliar a preparar o coquetel de recepção. Ele deveria me ajudar a lembrar dos
compromissos pertinentes à preparação do evento, tais como enviar convites, elaborar
listas de presenças confirmadas ou encomendar e buscar os alimentos e bebidas.
Mostrou-se totalmente proficiente em todas essas tarefas, mantendo a calma em todos
os momentos e lembrando inclusive detalhes que eu, nervosa com o evento, esquecia.
Durante o coquetel fez o que sempre fazia nas reuniões e festas: sem fazer qualquer
esforço, manteve-se atento ao que era necessário para que cada um dos presentes
estivesse à vontade. Desempenhou-se como um RP experiente.
Após a graduação realizei um curso de Mestrado em Psicologia Social e
Institucional4, durante o qual ministrei uma disciplina como estágio-docência. A
proposta era discutir a deficiência enquanto categoria natural. Convidei Brilhante para
participar como aluno. Era uma iniciativa desafiadora, pois eu deveria considerar, ao
mesmo tempo, o nível de leitura dos outros alunos e a dificuldade que Brilhante
apresentava nessa área. De outra parte, ele possuía capacidades e conhecimentos que
dificilmente estariam presentes no restante da turma. Cheguei à conclusão de que, se
não fosse possível desenvolver ali um ambiente inclusivo, então nem valeria a pena a
discussão sobre o tema. Ao mesmo tempo, fazia-se necessário considerar que Brilhante
não era uma cobaia de laboratório que eu pudesse usar para testar minhas hipóteses;
além do mais, a disciplina não consistia nem mesmo remotamente em uma experiência
de pesquisa.
Brilhante participou com o seu admirável modo habitual de ensinar e aprender,
aportando materiais de estudo e comentando os textos que nós líamos – de autores como
Michel Foucault ou Edgar Morin – com a absoluta propriedade do seu senso crítico
acurado, e alimentado por experiências de vida sobre as quais refletia em profundidade.
Mas, além disso, Brilhante surpreendeu a nós todos quando, no final do semestre,
chegou à aula com um texto desse nível lido e marcado, pronto para começar a
discussão como o fazem outros estudantes universitários. Sim, ao longo desse semestre
Brilhante havia redobrado seus esforços para melhorar a leitura e a escrita, e havia
4 No Instituto de Psicologia da UFRGS.
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progredido muito. Nunca deixou de ser alguém com extrema dificuldade “na
matemática e no português”, mas a combinação entre esforço e oportunidade permitiu
que ele estudasse na universidade contribuindo e aprendendo com riqueza e
profundidade.
Finalmente, no início de 2012 foi publicada a notícia de que, na Universidade
Federal de Goiás (UFG), um jovem com síndrome de Down chamado Kallil Assis
Tavares5 conseguiu aprovação no concurso vestibular, conforme noticiado por Zago
(2012). Diante do desempenho de jovens como Brilhante e Kallil, cabe indagar-se sobre
as circunstâncias em que o seu sucesso universitário nos surpreende. Em 1996 a LDB
estabeleceu como dever do Estado, no art. 4º, a garantia de “acesso aos níveis mais
elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada
um”. Já em 2001 o Plano Nacional de Educação determina que a educação especial seja
“promovida sistematicamente nos diferentes níveis de ensino”. Nessa perspectiva cabe
citar o programa da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) chamado “Todos
nós – UNICAMP Acessível”, que permaneceu operante entre 2004 e 2009 e teve, como
linhas de atuação: o Atendimento Educacional Especializado, o ensino inclusivo, o
acesso ao conhecimento e à tecnologia, a tecnologia assistiva, a interação humano-
computador e os ambientes inclusivos de aprendizagem.
Em 2005 o Governo Federal instituiu o “Programa Incluir: Acessibilidade na
Educação Superior”. O mesmo consiste em uma “iniciativa da Secretaria de Educação
Superior e da Secretaria de Educação Especial que visa a implementar políticas de
acessibilidade para pessoas com deficiência”. Inicialmente destinava-se a adquirir
equipamentos ou promover reformas estruturais para acessibilidade. O Edital do
Programa lançado em 2010 já incluía outros objetivos, tais como: implantar “a política
de educação especial na perspectiva da educação inclusiva na educação superior”;
promover “ações que garantam o acesso, permanência e sucesso de pessoas com
deficiência nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES); fomentar o
“desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos que favoreçam o processo de
ensino e de aprendizagem”; promover “a eliminação de barreiras físicas, pedagógicas e
de comunicações”. Para alcançar os objetivos do Programa Incluir as universidades
devem criar Núcleos de Acessibilidade, os quais constam de espaço físico e de
profissionais responsáveis pela organização das ações e pela articulação entre os
5 O nome do jovem é de domínio público, uma vez que consta em várias matérias de jornal que relatam a notícia.
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diferentes órgãos e departamentos da universidade, para a implementação da política de
acessibilidade em todos os espaços, ambientes, materiais, ações e processos
desenvolvidos na instituição. Atualmente o Programa determina, como ações de
acessibilidade, a realização de adequações arquitetônicas, a aquisição de equipamentos e
de materiais didáticos específicos, a aquisição e adaptação de mobiliários, a aquisição
ou desenvolvimento de material de orientação e a formação para acessibilidade do corpo
discente e do corpo técnico da Instituição. De acordo com matéria publicada pela
Agência Brasil – Empresa Brasil de Comunicação (Cristaldo, 2012), a partir de 2012 o
Ministério da Educação decidiu eliminar a seleção anual das universidades participantes
e definir, já na proposta orçamentária, o montante destinado a cada estabelecimento,
propiciando a institucionalização e a continuidade das ações desenvolvidas.
Neste marco cabe mencionar os trabalhos da Universidade Estadual de Londrina
(UEL) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A UEL instituiu, em
2009, o PROENE – atualmente denominado “Núcleo de Acessibilidade da UEL
(NAC)”. Este consiste numa equipe multidisciplinar que trabalha pela remoção de
barreiras físicas, arquitetônicas, metodológicas e atitudinais. Desenvolve procedimentos
educacionais diferenciados para o ensino aprendizagem e avaliação, tais como plano
especial de matriz curricular e prazo diferenciado para a realização das atividades
acadêmicas. Também propicia atendimento educacional especializado a estudantes com
deficiência (física, visual e auditiva), transtornos globais de desenvolvimento e altas
habilidades; um diferencial importante do NAC é que contempla estudantes com
síndrome do pânico (Ferreira, 2007). O Núcleo considera que esta condição pode
requerer orientação aos professores e atendimento educacional especializado, auxiliando
o estudante no enfrentamento das situações desencadeantes de crises em situações
acadêmicas, além das ações propostas para outros estudantes com necessidades
educacionais especiais, como a realização de uma prova em tempo diferenciado.
Já na UFRGS, o Programa INCLUIR foi inicialmente implantado em 2005,
visando possibilitar o acesso e permanência de alunos com deficiência visual.
Atualmente contempla alunos em condições de cegueira, baixa visão, mobilidade
reduzida e deficiência auditiva, bem como surdos e usuários da língua brasileira de
sinais. Os serviços oferecidos são: ledor oral, materiais didáticos para impressão em
Braille e ampliado, guia vidente, tradutor-intérprete de Língua Brasileira de Sinais
(LIBRAS), softwares tais como ledores, ampliadores de tela e lupas eletrônicas, bem
como orientação para o uso dos mesmos.
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Diante de tudo o exposto, percebe-se que a maioria dos programas para inclusão
e permanência de pessoas necessidades educacionais especiais no ensino superior não
desenvolve ações voltadas às pessoas com deficiência intelectual. Não surpreende que
seu acesso e permanência nas universidades sejam eventos praticamente desconhecidos
e inimagináveis. Além de questionar esse contexto institucional, pode-se aventar a
hipótese de que, se as habilidades cognitivas das pessoas com deficiência intelectual
fossem avaliadas de modo diferenciado, seria possível ampliar o seu acesso e
permanência no Ensino Superior. Sacks (1985) pondera que, quando avaliamos as
pessoas com deficiência intelectual, utilizamos instrumentos que servem somente para
medir seus déficits e não suas habilidades. Para explicar a combinação de integração e
desintegração que observa em uma jovem com deficiência intelectual, o autor formula a
idéia de “pensamento narrativo”, referindo-se a uma forma do pensar que se encontra
preservada nas pessoas com deficiência intelectual ou com lesões que afetam a
categorização, e que predomina no mundo infantil. Por este motivo, esse autor refere-se
ao pensamento narrativo como elementar enquanto basilar, fundamental, e não com
caráter regressivo ou menos importante em relação ao pensamento abstrato. Pelo
contrário, para Sacks, é o pensamento narrativo – pelo seu vínculo direto com o que é
concreto – que torna vívido, intenso e rico em detalhes o ato de conhecer e, dessa forma,
personaliza a percepção do mundo. Assim, este modo de pensamento dá sustentação à
imaginação e à sensibilidade e permite uma compreensão mais direta e completa das
vivências emocionais e da arte, se comparada com aquela obtida mediante abstrações.
A respeito do caso referido, Sacks (1985) relata que, embora a jovem não
houvesse aprendido a ler e apresentasse dificuldade para entender proposições e
informações simples, compreendia a linguagem figurada de metáforas e símbolos
presentes em textos narrativos ou líricos, a qual costuma ser rica em sentimentos e
imagens. Também era capaz de elaborar textos poéticos ao falar, dando mostras de
capacidade para perceber e pensar o mundo de modo profundo e elaborado. E
manifestava habilidade para compreender circunstâncias vivenciais muito complexas,
tais como a própria situação perante o falecimento da pessoa que cuidava dela, bem
como a posterior elaboração do luto.6 De acordo com este autor, as crianças pequenas
são capazes de compreender aspectos complexos das histórias, e este pensamento
6 Uma frase dita por ela nesse período ilustra o alcance e complexidade da sua compreensão: “O inverno está dentro de mim”.
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narrativo daria ao ser humano a capacidade para atribuir sentido ao mundo sem a
concorrência do pensamento abstrato.
Relacionando a idéia de “pensamento narrativo” com o modelo de pensamento
complexo elaborado por Edgar Morin (2000 e 2005) é possível atribuir a formas não
racionais de pensamento o mesmo valor que outorgamos aos processos racionais. De
acordo com este autor, o pensamento complexo é sistêmico ou organizacional, pois o
todo é mais do que a soma das partes. Ao mesmo tempo, o todo é menos do que a soma
das partes, posto que algumas características das mesmas são inibidas pelo todo.
Também é hologramático: a parte está no todo, e o todo se inscreve na parte. Um dos
conceitos-chave do pensamento complexo é o anel retroativo ou de auto-regulação,
também chamado de feedback. Complementar a este, Morin descreve o anel recursivo,
que explica a autoprodução e auto-organização; pode também ser chamado de anel
gerador: os efeitos são produtores e causadores daquilo que os produz. O pensamento
complexo harmoniza a relação entre autonomia e dependência, por levar à noção de
auto-eco-organização. Finalmente, esta forma de pensamento leva a uma reintrodução
daquele que conhece no produzido ao conhecer: “todo conhecimento é uma
reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado
tempo” (Morin, 2000, p. 18). A partir destas considerações e fácil compreender como
Brilhante e os alunos do COPA eram capazes de compreender situações – ou mesmo
textos – de alta complexidade, mesmo apresentando sérias dificuldades com a
matemática e a escrita.
Para finalizar, de acordo com Anache (2010) a educação inclusiva requer
transformações na cultura escolar. Krebs (2006), por sua parte, lembra que as políticas
públicas dependem dos valores que permeiam a cultura e das oportunidades existentes
nos contextos onde elas serão implementadas. Diante de tudo o exposto, caberia
questionar o tipo de pensamento hegemônico no Ensino Superior, bem como aventar o
potencial enriquecedor, para as universidades, contido no ingresso e permanência, nas
mesmas, de pessoas com deficiência intelectual. Podemos pensar a inclusão destas
pessoas no Ensino Superior como uma questão também cultural, na qual seria
necessário considerar não apenas os modelos e modos de pensamento que estamos
privilegiando como, também, as nossas crenças a respeito da universidade e das pessoas
com deficiência intelectual.
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