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Trabalho e Subjetividade no Hospital Geral
Claudia Osorio da Silva
Professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
Doutoranda em Saúde Pública na ENSP/FIOCRUZ.
O processo de trabalho no hospital geral é discutido, a partir de um estudo de caso, analisando formas de subjetivação aí produzidas. Apesar do ideal de trabalho em equipe, o processo de trabalho no hospital é analisado como produtor de individualismos e corporativismos que conflitam com este ideal.
As idéias aqui apresentadas são fruto, principalmente, da pesquisa intitulada Curar Adoecendo,
desenvolvida durante os estudos de Mestrado em Saúde Pública, realizados no período 1992-
1994. Estão já marcadas por críticas posteriores, reflexões e desejos produzidos em novos
encontros.
O sistema público de saúde no Brasil tem sido apresentado como em "crise", que, no ideograma
chinês, aparece como a fusão de duas palavras: perigo e oportunidade. O hospital é habitualmente
considerado como o elo mais importante desse sistema, aparece com freqüência na mídia,
recebe muitos investimentos e críticas, assumindo grande importância na formação dos profissionais
da área. Esse tem sido o campo empírico de minhas investigações, buscando as possibilidades
abertas nos períodos de crise.
Observa-se, já há algum tempo, a existência de insatisfações com o serviço prestado na rede
pública de saúde, tanto por parte da clientela quanto dos trabalhadores da área, o que me leva
a questionar o que impede mudanças e inovações. Se o hospital está realmente "em crise", esse
pode ser um período propício a novas configurações mais satisfatórias, se não, cabe investigar o
que de fato ocorre.
A pesquisa Curar Adoecendo foi produzida
como parte de um conjunto de estudos de
caso, desenvolvidos por diversos
pesquisadores, que tinham em comum seu
vínculo com o Programa de Saúde do
Trabalhador da Secretaria de Estado de Saúde
do Rio de Janeiro (PST/SES), no Hospital Geral
de Jacarepaguá.1 Desde nossa inserção, como
técnicos do PST/SES, observávamos, por fontes
diversas e dispersas, que os trabalhadores dos
hospitais públicos do Rio de Janeiro vinham
sofrendo um intenso desgaste, produzido em
sua relação com o trabalho, que se expressava
ora em doenças passíveis de reconhecimento
pelo saber médico, ora em desânimo, irritação
e outros sinais de desgaste psíquico acentuado.
Os estudos encontrados na área de saúde do
trabalhador e processo de trabalho hospitalar
não respondiam a perguntas que
considerávamos fundamentais, entre elas, o
que faz com que estas pessoas continuem
trabalhando, o que sustenta o hospital público
e o bom atendimento em condições
reconhecidamente adversas... Supúnhamos
que os baixos salários, tão freqüentemente
invocados como motivo de desgaste para os
trabalhadores, não eram explicação suficiente
para o quadro observado.
Hoje, a partir desta e outras pesquisas
desenvolvidas (Pitta,1989; Rego, 1993), temos
como hipótese, já fundamentada, que o
desgaste intenso da saúde do trabalhador do
hospital deve-se pr incipalmente à sua
impotência frente a uma estrutura hierárquica
centralizadora. É a alienação, a impossibilidade
de agir criativamente na relação cotidiana de
trabalho, os estreitos limites, colocados pela
organização do trabalho, ao uso de seu saber,
que surge como causa de sofrimento e
desgaste. Penso também que o trabalho no
hospital produz conflitos entre o ideal,
habitualmente suposto, de trabalho solidário
em equipe e a organização do trabalho
indutora das soluções individualizadas, dos
corporativismos e da competição acirrada
entre especialismos. Os problemas vividos no
dia a dia do atendimento aos pacientes e o
desgaste dos trabalhadores do hospital se
devem à forma assumida historicamente por
essa instituição e não apenas a questões
conjunturais de falta de pessoal e/ou baixos
salários... Estas agravam ou aliviam os impasses
sempre existentes, além de terem sua origem
naquelas mesmas dinâmicas instituídas
(Silva,1994).
O objeto de minha pesquisa não tem sido a
instituição hospitalar como totalidade, mas a
teia de encontros e seus efeitos produzidos
nessa instituição. Tais encontros se dão entre
trabalhadores, entre trabalhadores e clientes
e entre pessoas e coisas como, por exemplo,
as novas máquinas inventadas e incluídas a
cada dia no processo de trabalho.
Segredos e invisibilidades:
Produzir conhecimento acerca do trabalho em
suas relações com os processos de
subjetivação em curso no hospital só é possível
trabalhando em parceria com aqueles que
tanto sabem sobre tais assuntos -
trabalhadores em saúde e/ou clientes da rede
pública de saúde - aqueles que produzem e
participam cotidianamente de tais processos.
As metodologias participativas, em que os
objetos da investigação são, simultaneamente,
sujeitos dessa mesma investigação, são as que
se impõem nos estudos acerca do trabalho,
na sua relação com a subjetividade e a saúde.
Estou tomando "subjetividade" e "processos
de subjetivação" no sentido atribuído por
Foucault (1990), e Guattari (1986), de
processos de produção histórica, o que nos
leva a pensar cada sujeito singular como sujeito
coletivo de enunciação.
A metodologia adotada no período de 1992/
1994 por nós, técnicos do Programa de Saúde
do Trabalhador/SES/RJ, a da pesquisa -
1- Hospital geral de médio porte da rede pública de saúde, situado na cidade do Rio de Janeiro.
intervenção, esbarrou em dificuldades que,
num primeiro momento, tematizei a partir da
relação dos trabalhadores com o tempo no
dia a dia do processo de trabalho hospitalar2.
Os convites formulados à participação
recebiam quase sempre como resposta a frase
"gostaria muito, mas não tenho tempo". Em
nossa passagem por aquele Hospital, estudado
no período 1992/1994, buscávamos ser mais
que turistas, mais que visitas de cerimônia.
Era preciso que fossemos parceiros. Creio que
chegamos a ser freqüentadores assíduos, visitas
bem vindas, mas sempre visitas. Destas,
muitos segredos são resguardados. A
vinculação que, àquela época, tínhamos com
a Secretaria de Estado de Saúde, nossa entrada
a partir de demandas da Direção do Hospital
e suas assessorias, terão certamente
influenciado os contornos de nosso acesso.
Outros limites terão sido dados por estarmos sendo recebidos por pessoas sempre apressadas. Apressadas e acreditando-se impotentes, sempre dizendo que "não há nada que possamos fazer, se e/es (as autoridades) não querem saber de nós". Inúmeras vezes esbarramos em desculpas e negativas expressas na frase "não tenho tempo" . Nós, pesquisadores, também não tínhamos tempo, havia que terminar nossas dissertações no tempo dado desde outras relações, ritmos e prazos...
Àquela época, as condições de
estabelecimento do trabalho de pesquisa,
nossas inserções em organismos de fiscalização
da Secretaria Estadual de Saúde e em
organismos acadêmicos de ensino e pesquisa
- nossa implicação - foram insuficientemente
analisadas. O conceito de implicação é
elaborado a partir da preocupação dos
socioanalistas franceses (Lourau,1979) com as
relações que se estabelecem nas relações de
intervenção institucional entre observador e
observado. Há que se analisar o contexto em
que uma demanda de análise e intervenção
é apresentada a um profissional; como o
analista está situado em relação ao grupo
observado e seus diversos subgrupos; e que
lugar o profissional ocupa nas relações sociais
em geral.
Teoria e prática são parte de uma mesma rede
de acontecimentos, não se faz teoria para
posteriormente aplicá-la à prática e
posteriormente retornar a teoria. Em debate
com Michel Foucault, Deleuze assim afirmava:
A prática é um conjunto de transições de um
ponto teórico para outro, e a teoria uma
transição de uma prática para outra. Nenhuma
teoria pode se desenvolver sem encontrar uma
espécie de parede, e é preciso a prática para
atravessar a parede (Deleuze,1976:14).
Analisando o hospital, constato que a análise
teórica é insuficiente, é necessário que se
instaurem condições para que os trabalhadores
e clientes do hospital possam falar de sua
própria vida, por sua própria conta. Concordo
com o que diz Deleuze neste debate: o
intelectual teórico deixou de ser uma
consciência representante, não pode se arrogar
o direito de representar aqueles que lutam -
não há representação, há apenas ação, ação
de teoria, ação de prática em relações de
transição ou de rede (Deleuze,1976:15).
Desde a década de 70, intelectuais afirmam
que os movimentos e grupos sociais não
precisam deles para saber, eles sabem de si e
do mundo e dizem-no muito bem, mas existe
um sistema de poder que barra e invalida este
discurso e este saber. Entre estes autores cito
Marilena Chauí (1982), que tem apontado para
os efeitos de ocultação produzido pelos
discursos competentes. Em Curar Adoecendo,
eu relatava a freqüência com que ouvia que -
se eles, que sabem mais, não conseguem
resolver, o que nós podemos fazer...
(Silva,1994)
No curso do trabalho desenvolvido em Curar
Adoecendo (Silva,1994) esbarrei em uma
parede. Percebia que um manto de
invisibilidades era estendido sobre as questões
que os trabalhadores se colocavam acerca do
seu trabalho. Percebia que o segredo é mais
difícil de levantar que o inconsciente (Foucault,
no mesmo debate com Deleuze, acima
citado, p.23). Esbarrei também nessa aparente
resistência a propor mudanças, a participar (ou
compartilhar?) da fabricação de novos
caminhos.
Para enfrentar estes obstáculos, busco hoje
passar a outro discurso, que não mais
pretende, como em Curar Adoecendo,
descrever coletivamente a rotina do trabalho
de uma enfermaria e o que fazem os
trabalhadores; propõe pesquisar a própria
metodologia adequada a produzir, com os
trabalhadores em saúde, as condições de
visibi l idade de seu saber. Trata-se de
possibilitar o discurso múltiplo sobre o hospital,
o sistema público de saúde, a experiência de
exercer esse tipo de atividade profissional, e
muito mais que tem sido monopolizado por
alguns setores sociais, tornando invisíveis
outras falas.
Especialismos e individualismos
Desde a criação do hospital moderno
(Foucault,1977) instalou-se a hegemonia
médica e movimentos de resistência a esta
hegemonia, com a instalação de
corporativismos vários. O hospital se organiza
em serviços ou departamentos que preservam
as identidades, aprisionam os profissionais em
modelos e salas que acabam por serem
verdadeiros mausoléus. O processo de
trabalho hospitalar, parcelado, reproduz as
características da organização do trabalho
industrial, e produz trabalhadores ora
compromissados, ora desesperançados. O
tempo da vida e do sonho parece estar fora
de seu alcance. O processo de trabalho,
naturalizalizado como único possível,
frequentemente repete a lógica do trabalho
taylorizado, por vezes ocultada pelo discurso
valorativo do "trabalho em equipe". O
corporativismo - expresso na competição entre
as diversas profissões presentes - e o
individualismo constituem-se em obstáculos
importantes à invenção de novos caminhos
(Silva,1994). Sabemos que, na organização
taylorizada, não está em cena apenas a ação
mecânica dos trabalhadores, sua atividade
mental e inventividade é dificultada mas
necessária à própria execução para que se
possa chegar ao resultado pretendido.3 Onde,
no hospital, se esconde tal inventividade?
Como potencializá-la?
Os trabalhadores da saúde têm feito alguns
movimentos de busca de uma nova forma de
organização, que rompa com a atual
paralisação das potências percebidas, em
alguns momentos e por alguns trabalhadores,
como existentes. Muitos desejam a criação
de espaços/tempos de encontros
transdisciplinares, potencializadores da
diversidade de olhares presentes no hospital,
mas o medo de uns de ficar irre
mediavelmente submetidos ao poder médico,
2- No trabalho taylorizado que encontramos no hospital, o tempo está fora do campo de inventividade e autonomia dos trabalhadores, estes não têm o controle do ritmo de trabalho e nem mesmo de seus ritmos corporais.
3 - No trabalho hospitalar encontramos uma particularidade, entre outras, o trabalho prescrito é menos taylorizado que o trabalho real; os cuidados aos pacientes, prescritos para ser emprestados de forma individualizada, eram organizados "em série" pelo pessoal de enfermagem, "devido à falta de tempo".
e o medo de outros de perder todo o poder
que têm, faz com que nada mude.
A atual divisão do trabalho cria obstáculos ao
bom atendimento e insatisfações entre os
trabalhadores. Esta divisão está estabelecida
entre profissionais de diferentes categorias
profissionais, mas também entre trabalhadores
de uma mesma categoria ou setor de trabalho.
Algumas especialidades médicas são mais
prestigiadas que outras. A distribuição das
tarefas parceladas até o absurdo cria
dificuldades de comunicação e realização dos
objetivos manifestos de um hospital - cuidar
da saúde de sua clientela.
No estudo de caso em que referencio estas
notas (Silva,1994), observei efeitos
desconcertantes do parcelamento das tarefas
a que me refiro. Num certo dia foi relatado
que eventualmente pacientes sumiam de seus
leitos. Naquela semana havia ocorrido que,
na hora da visita, familiares procuravam por
uma dada paciente. O leito estava vazio e os
familiares muito assustados. Onde estava a
senhora que deveria estar deitada ali?
Questionados, os auxiliares de enfermagem
não sabiam informar. Nas papeletas dos
doentes não havia nada, no livro de
ocorrências também não. Após algum tempo
de busca de explicações, estas foram obtidas
de um funcionário da limpeza: a paciente
havia sido transferida para uma enfermaria da
ala cirúrgica. Alívio geral e imediato
esquecimento do incidente...
O Serviço de Enfermagem aponta a
fragmentação do trabalho como origem de
outras insatisfações: "ninguém pede a uma
Nutricionista que empurre o carrinho de
comida; na Enfermagem nunca está claro o
que é papel do profissional porque existe o
trabalho desqualificado, o excesso de divisão
de tarefas". O que não é reconhecido é que
se ninguém tem como formação profissional
"empurrar carrinho de comida", não exige
conhecimentos sofisticados e específicos,
qualquer membro da equipe poderia fazê-lo!
No entanto, não surge da enfermagem mais
do que a queixa de uma situação a que parece
estar grudada.
Observamos muitas desigualdades (não são
apenas diferenças) produzidas pela divisão do
trabalho e, como outra face deste prisma, o
impedimento à solidariedade.
A rotina de plantões é claramente produtora
de sofrimento; seria mesmo necessário que
tantos trabalhem nesse regime? Outras rotinas
são feitas para dar errado, para fazer sumir
paciente, para fazer sumir papel, para ninguém
estar informado. Porque não são modificadas?
"Falta de comunicação" e "falta de tempo"
são desculpas para tudo! A organização
naturalizada do trabalho não tem sido posta
em questão. A distribuição das tarefas numa
enfermaria hospitalar concentra-se na parte
da manhã, deixando a tarde com um mínimo
de trabalho prescrito e a noite num marasmo
em que nem se pode dormir, nem há com
que se ocupar. Quais as astúcias implicadas
nesta organização de tarefas? E quais as
cristalizações que impedem a inventividade?
Pela manhã, vêm os médicos, que devem
encontrar seus pacientes limpos, sem cheiros,
ter os diversos auxiliares à sua disposição.
Também há, talvez, o desejo de acabar logo
uma rotina entediante para poder conversar,
não fazer nada, ou fazer algo não definido
previamente.
Estudos acerca do tempo têm trazido
contribuições para problemática dos processos
de subjetivação em relação com o trabalho.
Comentávamos acima o quão os tra
balhadores do hospital se mostram apressados.
Na sociedade ocidental moderna o tempo
tem sido gerenciado de forma a passar de um
tempo corporal a um tempo ditado pela
máquina, pelo tempo medido com precisão.
Veschi afirma: Com isso surge a vivência da
pressa (1996:15). O autor continua, dentro
do mesmo tema - do tempo-máquina,
comentando o t ipo de relação que o
trabalhador estabelece com seu trabalho:
Podemos fazer uma hipótese segundo a qual o
fazer mais rápido é também fazer menos
da coisa, deixar-se envolver menos por ela.
Abre-se assim, um vazio cada vez mais amplo
onde se procura fazer com que ele seja ocupado
por "mais coisas", portanto em menos
tempo.. .(Veschi,1996:15)
Dessa forma, haveria um pacto entre as
exigências da produção na lógica taylorista,
com as formas encontradas pelos trabalhadores
na redução da angústia proveniente do
trabalho insatisfatório, pelo menor
envolvimento e menor investimento afetivo
nas atividades.
O menor envolvimento com o trabalho faz parte de uma relação de menor vivência de responsabilidade.
A introdução do tempo medido é análoga à
introdução do sentimento de culpa: produzem
um alívio ambíguo no contexto em que se
inserem. Graças ao sentimento de culpa a
cultura cristã criou o perdão, sendo este, de
certa forma, um grande alívio: evita-se a
densidade da vivência que poderíamos designar
como "responsabilidade", ou ainda, "ética".
(Veschi,1996:17)
As responsabilidades, que penso serem
coletivas, são freqüentemente atribuídas a
outro trabalhador ou grupo, transformadas em
culpa, o que levaria aos temas do
individualismo e do corporativismo, de que
tratei brevemente aqui.
Existem pistas de alguns outros movimentos
e obstáculos que extrapolam os limites
espaço-temporais do hospital , mas
inegavelmente fazem parte do processo de
trabalho aí desenvolvido. Sabe-se, a partir dos
estudos de Marisa Palácios Rego, que as
mulheres, em especial as casadas, referem
sofrimento psíquico com maior freqüência que
os homens. De acordo com estes estudos, a
metade dos trabalhadores do Hospital
estudado no período 1992/1994 tinha outro
emprego e mais da metade trabalhava mais
de 40 horas semanais.
No cotidiano a que tive acesso em meu
estudo, as limitações salariais eram pouco
comentadas; eram mais freqüentes as
referências às condições gerais de trabalho,
às relações intra ou inter-equipes, às relações
com os pacientes e suas famílias, aos
sentimentos que estas condições e relações
suscitam.
A organização do trabalho que fragmenta as
tarefas e os trabalhadores, as caraterísticas da
subjetividade moderna, individual ista,
atravessando a rede de relações no hospital,
a subjetividade produzida no Brasil desde os
anos 60/70, anos autoritários e des¬
qualif icadores dos movimentos sociais
(Coimbra,1992), exigem mais que mudanças
conjunturais para seu enfrentamento.
Comentando o Discours de La Boétie, Pierre
Clastres diz que a instalação da tirania no lugar
da liberdade exclui a lembrança da liberdade
e, por conseguinte, o desejo de reconquistá-
la. Toda sociedade dividida, entre tirano e
súditos, está portanto fadada a durar (La
Boétie, 1982:122). No hospital, em que se diz
que eles devem decidir, espera-se
voluntariamente pela tutela dos tiranos, dos
que sabem ou deveriam saber para dizer-nos
o que fazer.
La Boétie nos fala da relação com a lei numa
sociedade dividida:
Exclusives a qualquer liberdade, elas ditam a
lei nova que regem a sociedade: deve-se amar
o tirano. A insuficiência de amor é a transgressão
da lei. Cada um vela pelo respeito à lei, cada
um só avalia o próximo por sua fidelidade à
lei. O amor à lei - o medo da liberdade - faz de
cada um dos súditos um cúmplice do Príncipe:
a obediência ao tirano exclui a amizade entre
os súditos. (La Boétie, 1982:122)
Os trabalhadores do hospital queixam-se da
falta de cumprimento da lei e pedem por leis
novas e melhores, soluções administrativas,
para suas insatisfações. E queixam-se também
da falta de solidariedade, de trabalho coeso,
compartilhado.
Encontramos, nesse trecho escrito por Gilles
Deleuze (1974:131), a nossa principal
inquietação: como um grupo pode conduzir
seu próprio desejo, colocá-lo em conexão com
os desejos de outros grupos e os desejos de
massa, produzir os enunciados criadores
correspondentes e constituir as condições, não
de sua unificação, mas de uma multiplicação
propícia a enunciados de ruptura?
Na conclusão de Curar Adoecendo
(Silva,1994), eu afirmava: Dizemos hoje que
a esperança no Hospital não está morta, mas
está abafada. O medo e o cansaço tem
produzido movimentos que interrompem os
fluxos de solidariedade e inventividade. Mas,
que medos? Que cansaços? E, principalmente,
em que fluxos de solidariedade e
inventividade podemos embarcar? Naquele
momento não foi possível deslizar na
problematização que essas questões sugerem.
Pude apenas divisar pontas de sonhos, de
proposições criativas para a gestão e a
organização do trabalho no hospital, ficando
sempre com a dúvida se divisava meus
próprios sonhos ou aqueles dos trabalhadores
do hospital estudado.
Nos movimentos cartografados em Curar
Adoecendo (Silva,1994), as possíveis artes da
existência (Foucault,1977), fluxos plenos de
inventividade e vida, pareciam estar
freqüentemente abafadas. Se era possível falar
numa estética, esta estaria ligada ao "bom
atendimento do paciente", noção que ora
priorizava a ciência e a técnica, ora o
tratamento humano, atencioso, capaz de dar
suporte às angústias e dores do doente e sua
família. Sempre que ocorre, este "bom
atendimento" é fruto de encontros felizes
entre muitas pessoas e coisas. São esses
encontros felizes que animam a seguir
buscando e potencializando as possibilidades,
insistindo em cartografar movimentos de invenção de modos de trabalhar, de cuidar do cliente
e de nós mesmos, trabalhadores em saúde, para assim, fazê-los mais intensos e freqüentes.
Observo no hospital geral uma estética do bom atendimento. Mas o que é bom atendimento
para os diversos grupos envolvidos nessa teia de relações? Do ponto de vista destes sujeitos,
quais são os encontros felizes e os acontecimentos desejados? Destes, quais tem encontrado
condições de possibilidade? Quais as invisibilidades sobre as quais podemos e devemos lançar
focos de luz? Estas perguntas têm nos servido de bússola em nossos encontros com o hospital
geral e seus trabalhadores.
Claudia Osório da Silva Rua Barão de Itapagipe, 385 Bloco 02 Apt 303,
Tijuca. Rio de Janeiro, RJ. Brasil. CEP: 20261-000.
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