trabalho de conclusão de curso

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Pós-Graduação em Jornalismo Literário Especialização — Lato Sensu ABJL / FAVI JANAÍNA QUITÉRIO Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas Trabalho de Conclusão de Curso São Paulo Julho de 2011

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TCC em Jornalismo Literário, apresentado à Academia Brasileira de Jornalismo Literário, para obtenção do título de especialista. Julho, 2011.

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Page 1: Trabalho de Conclusão de Curso

Pós-Graduação em Jornalismo Literário

Especialização — Lato Sensu

ABJL / FAVI

JANAÍNA QUITÉRIO

Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas

Trabalho de Conclusão de Curso

São Paulo Julho de 2011

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Pós-Graduação em Jornalismo Literário

Especialização — Lato Sensu

ABJL / FAVI

JANAÍNA QUITÉRIO

Um caminho no meu caminho Peregrinação de bicicleta pelas montanhas de Minas

Trabalho de Conclusão de Curso

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado como exigência parcial

para obtenção do título de Especialista

em Jornalismo Literário pela Faculdade

Vicentina de Curitiba, em convênio com

a ABJL, sob orientação do Prof. Dr.

Celso Falaschi.

São Paulo Julho de 2011

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Para ler ao som de Like a Rolling Stone, de Bob Dylan “How does it feel How does it feel

To be without a home Like a complete unknown

Like a rolling stone?”

— Eu con-se-guiiiiiiii! Se-guiiii! Se-guiiii!

Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava

sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes vista do terceiro pico

mais alto do Brasil, o da Bandeira, a 2.891,9 metros de altitude. Postada ao

lado do cruzeiro, meus olhos alongados eram capazes de acompanhar o

caminho invisível ecoado pelas oito letras do verbo proclamado, ainda que a

névoa espessa pintasse um cenário alvacento.

A respiração ofegante — provocada pelo esforço físico de subir a

montanha e pelo ar rarefeito — não conseguia abrasar o corpo, que estava

inerte sob o frio intenso avivado pela ventania. Gorro de lã, cachecol, jaqueta

corta-vento e luvas felpudas não esquentavam nem as partes encobertas.

Mesmo assim, àquela altura, o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade

por mim sentida.

Eu estava no céu, sobranceira, enxergando o mundo ao longe, no ponto

de intersecção entre o plano terrestre e o céu divino, na morada sagrada dos

deuses ou no esconderijo de monstros sagrados, de acordo com a simbologia

milenar atribuída às montanhas. Nunca antes havia experimentado a sensação

fervorosa de consumar um retiro de alma com o objetivo de melhorar minha

integração em vida.

Para chegar ali, foi um solitário caminho: cinco dias de pedaladas por

estradas de terra e por trilhas que cortam o relevo acidentado de oito

municípios da Zona da Mata mineira, de Tombos a Alto Caparaó. Ao meio-dia

em ponto de um domingo, eu terminava a jornada de 190 quilômetros

desenhada pelo Caminho da Luz — uma rota que pode ser percorrida a pé, a

cavalo ou de bicicleta por peregrinos, aventureiros, ecologistas ou por aqueles

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que, sem rótulos, buscam o desafio metafórico de “mover montanhas” com o

esforço — ou prazer — de percorrê-las.

No Brasil, um número expressivo de pessoas tem se deslocado de

diferentes regiões para fazer peregrinações por caminhos que se espelham em

Santiago de Compostela, na Espanha, sobretudo após o ano 2000, com a

criação de novas rotas nacionais. Além do Caminho da Luz, há outros quatro

bastante percorridos, como o Caminho do Sol e o Caminho da Fé, ambos no

Estado de São Paulo, o Caminho das Missões, no Rio Grande do Sul, e o mais

antigo, o Caminho de Passos de Anchieta, no Espírito Santo.

De minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo

de penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a

maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de

introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em experiências

solitárias, por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação

sociocultural com as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem

companhia, e estava determinada a conhecer os meus limites na iniciação em

cicloviagens.

No topo da montanha, fim da minha jornada, eu não estava sozinha.

Subi acompanhada de um guia turístico e de um casal capixaba. Depois de

meu desabafo verbal, a jovem arquiteta, que escalava pela primeira vez o Pico

da Bandeira, admirou-se com a empreitada:

— Você fez quase 200 quilômetros de bicicleta? Sozinha? É corajosa!

Fingi concordar com ela. O desassombro para enfrentar situações

difíceis você só sabe se tem, realmente, no momento da desventura. E, nesses

cinco dias, vi-me algumas vezes titubeante.

— Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos

iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei

a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes

dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte

recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

As minhas sombras foram expostas à medida que procurava o

interruptor de luz metafórico pelo caminho.

— É, eu consegui. Mas, como?

***

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Às 6h25 de uma segunda-feira fria — o termômetro local acusava oito

graus Celsius —, cheguei à cidade mineira de Carangola. O Itapemerim

desembarcou os passageiros no bordo de uma pista de paralelepípedo da

miúda rodoviária, tal qual faziam os trens quando, em vez de calçadas, havia

naquele espaço as plataformas. Com a ajuda do comissário da viação,

acomodei minha bagagem no banco de ferro-sépia da estação: um par de

alforjes traseiros, um alforje de guidão com o mapa altimétrico da rota já

acomodado em seu porta-mapas e uma pochete a tiracolo com documentos,

dois gravadores, canetas, bloquinho e dinheiro. Ao lado do banco, equilibrei a

mala-bike, que abrigava a bicicleta desmontada.

Antes de o ônibus silvar seu caminho, acendi um cigarro de menta para

refrescar a mente.

— E agora? Monto o “cavalo de ferro” com 16 quilos de corpo e

acomodo nele os 15 quilos de parafernália aqui mesmo na calçada?

Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as

mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem

em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem.

Apesar de ter pernas — não rodas —, assumi o papel da bicicleta:

transportei a malaria no corpo. Um dos alforjes se fez mochila e foi alçado nas

costas. O alforje de guidão foi carregado no ombro esquerdo, junto com a

pochete e, no ombro direito, pendurei a desajeitada mala-bike. O outro alforje

traseiro, mais pesado, foi agarrado com as duas mãos. Com os passos

murchos, saí à procura de alguém com quem me sentisse mais à vontade para

pedir emprestada uma informação. Precisava chegar a Tombos, cidade a 30

quilômetros de distância, de onde partem as primeiras setas do Caminho da

Luz.

No fundo, eu queria frear a insegurança e, com habilidade

autossuficiente, mostrar para mim mesma que aprendera com diligência a

tarefa de encaixar cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente

ou com falhas periculosas, como um parafuso desapertado, o freio frouxo, o

guidão torto ou o câmbio desregulado. Entretanto, essa engenharia havia sido

por mim testada apenas duas vezes — e sob supervisão do marido.

— Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... — reproduzia no

pensamento o som dos parafusos sendo enroscados, enquanto, sonolenta e

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com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos

estabelecimentos ainda fechados.

O ritmo preguiçoso dos transeuntes mineiros não combinava com a

imagem que eu fizera da cidade durante os preparativos da viagem. Com 32

mil habitantes, Carangola é o maior município pelo qual eu passaria nos

próximos seis dias. Naquela manhã, parecia abrigar menos de mil.

Amargurada, eu respirava as primeiras angústias internas quando um

senhor, que aparentava 40 anos de idade, aproximou-se com um sorriso

amigável:

— Vai fazer o Caminho da Luz?

— Sim, vou sair de Tombos, mas ainda estou na dúvida se parto para lá

de bicicleta ou se pego um ônibus.

Para meu alívio, Paulo Fernando de Almeida (cujo nome só descobriria

dois dias depois) achou mais prática a segunda opção. E me deu todas as

orientações.

***

Tombos é conhecida como “Portal de Minas” por fazer divisa entre os

estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Em seu caminho, de Carangola

até lá, as montanhas que margeiam a Rodovia MG-111 pareciam esconder

algum segredo.

— Passariam por elas, por seus contornos, os caminhos da Luz? —

imaginava.

O mistério aumentava ainda mais com a neblina que esfumaçava cada

cume.

— O que me espera nesse percurso? Terei resistência o suficiente para

cumprir a jornada de 190 quilômetros? — questionava-me ao mesmo tempo

em que lembrava as recomendações dadas pelo clínico cirúrgico às vésperas

da viagem, quando fui fazer uma ultrassonografia das vias urinárias a pedido

da médica endocrinologista. Quarenta e cinco dias antes, eu havia sido

hospitalizada por dez dias devido a uma pielonefrite aguda — inflamação dos

rins, muito perigosa em pacientes com Diabetes tipo 1, o meu caso. O clínico,

que havia me acompanhado durante a internação, costuma fazer rotas de

peregrinação e, por isso, conhece na pele os esforços físicos demandados pela

empreitada.

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— Se sentir-se cansada, não continue. Muita gente ignora que uma

sobrecarga muscular pode causar falência renal. — alertou-me.

Ao desembarcar na rodoviária de Tombos — antiga estação de trem

que, atualmente, também abriga o museu da cidade —, dei-me conta de que

não tinha o endereço do hotel onde havia feito reserva pela operadora oficial do

caminho. Só sabia que se tratava de uma construção sesquicentenária. Mas,

em uma cidade de dez mil habitantes, essa informação é dada de olhos

fechados.

A poucos passos da rodoviária, as imensas portas e janelas azul-claras

do Hotel Serpa estavam abertas. Sua construção oponente e bem conservada

tinha carimbada em sua entrada uma placa com o desenho de uma seta

amarela que a identifica como estabelecimento credenciado pelo Caminho da

Luz: “Nós fazemos parte dessa rota”. Não havia campainha, tampouco

recepção, apenas cinco mesas de madeira com quatro lugares, forradas com

toalhas alaranjadas e adornadas cada qual com um vaso de flores. Sobre uma

delas, o café estava servido. Do lado esquerdo da entrada, uma cristaleira

expunha livros publicados pelo jornalista e escritor Albinno Neves, idealizador

do Caminho da Luz, oficialmente instituído em julho de 2001. Em um deles,

intitulado “Um Caminho dentro do Caminho”, o jornalista conta que, em tempos

remotos, muitos coronéis e jagunços perscrutavam das enormes janelas do

Serpa quem passava pelas ruas da cidade ou desembarcava de trem junto

com a produção agropecuária e com as modernidades advindas da então

capital da República, o Rio de Janeiro.

Sobre o móvel de madeira, sete quadros emolduravam pinturas do

patrimônio natural e histórico da cidade, como a cachoeira de Tombos, onde se

inicia o caminho, o hotel em várias perspectivas, o prédio da rodoviária, que

tem arquitetura típica de estação ferroviária, e outras construções tombadas

pela rota peregrina. Apesar de tortos, os quadros estavam em harmonia com o

pé direito alto e combinavam com as pesadas portas de madeira dos quartos.

— Olá! Posso entrar?

Ninguém respondeu. Insisti no chamado proferido. Do interior da

antessala, apareceu dona Rogéria, uma senhora de estatura mediana, cabelos

escuros e traços agudos, com semblante monossilábico, que pediu para me

sentar à mesa, onde, em seguida, acomodou um livro-guia explicativo, uma

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camiseta e minha credencial, de papel cartolina dobrado, com dez quadrados

para serem carimbados a cada jornada cumprida, a exemplo do que acontece

no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Só estava em falta o

cajado estilizado, que compunha o kit peregrino. Ali mesmo, recebi o primeiro

carimbo.

Todo o resto era por minha conta. A começar pela montagem da bike.

***

Num momento de crise conjugal, transferi minhas esperanças de viver

um dia a dia sem rotinas com a compra de uma bicicleta. Escolhi um modelo

europeu, robusto, com aro 700 e quadro step through, próprio para mulheres

de vestido não mostrarem a roupa íntima ao subir na bike. Com cor grafite, a

Blitz Comodo 700 é bem alinhada em suas curvas esbeltas de bicicleta urbana

e já vem equipada com cestinha que imita vime, para-lamas, bagageiro e

protetor de corrente.

Em menos de seis meses, ela já havia se tornado minha parceira de

deslocamentos rápidos pela capital paulista, embora eu ainda não tivesse

intimidade suficiente para fazer nela qualquer reparo. Um mês antes da

cicloviagem, precisei aprender a arte de fazer ajustes rápidos. Mas, na calçada

do Hotel Serpa, o primeiro teste prático poderia dar fim à minha jornada caso

não conseguisse colocar as duas rodas e seus componentes, fixar

adequadamente o guidão e ajustar com eficiência os freios.

O dia estava ensolarado e, às duas da tarde, a cidade parecia fazer uma

sesta coletiva. Comecei pelo que considerava mais difícil: apertar o guidão.

Saquei as ferramentas, ajustei-o ao quadro, mas, por mais que parafusasse, as

peças não se encaixavam. Uma hora depois já estava desesperada.

— Tem uma bicicletaria aqui perto. Quer que eu chame o funcionário

para ajudar a montar? — ofereceu Seu Zelito, proprietário do hotel, depois de

acompanhar por 15 minutos o conserto sem sucesso.

Aceitei prontamente. Em menos de 20 minutos, o rapaz da bicicletaria

encaixou todas as peças, consertou a rosca do guidão com cera de vela,

ajustou os freios e deixou em pé a minha bike. Não conversou. Não perguntou

nada. Agradeci.

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— Obrigada, sem você não conseguiria montá-la. — assumi

envergonhada. — Quanto ficou?

— Não é nada não. — E saiu com o passo apertado.

Corri atrás dele.

— Moço, pelo amor de Deus, ficou, sim, alguma coisa. Você veio até

aqui, consertou tudo, precisa receber por isso.

Mas ele não olhou para trás.

Saí para conhecer a cidade. Tombos é formada por vias de

paralelepípedos nas quais prevalecem as bicicletas como meio de transporte.

Estacioná-las no meio-fio, sem supervisão, é uma praxe, mas, com isso, não

pude me acostumar nos vários passeios que fiz durante a tarde.

À noite, pedi a Seu Zelito que a guardasse em outro quarto, já que até

altas horas as portas e janelas do hotel costumam ficar abertas. Deitei cedo.

Estava ansiosa para iniciar a jornada no dia seguinte. Mas, não consegui

dormir a noite inteira. Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não

queria se retirar do meu quarto, apesar de tê-la convidado,

espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha.

***

Não madruguei para iniciar a pedalada, na terça-feira, dia 17 de maio.

Também não me alonguei, pois a ansiedade transbordava a alma. Engoli o

café da manhã servido no hotel e distribuí os 15 quilos de bagagem pela bike.

Nunca havia pedalado com tanto peso nela: no bagageiro, estavam

pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé

descansava; o alforje dianteiro, acoplado na parte externa do guidão, levava a

máquina fotográfica, o mapa do percurso, celular, gravadores, lanches rápidos,

mel em saquinhos e laterna pisca-pisca. Do lado esquerdo, ficava um retrovisor

e, no meio, o ciclocomputador para eu mapear a velocidade média e a

quilometragem percorrida por dia e durante todo o trajeto. Não tinha hora para

sair, mas, como não queria ficar à noite no meio do mato, necessitava chegar

aos destinos até, no máximo, 17h30, horário em que o sol se punha.

Nas costas, levava uma mochila de hidratação, cujo reservatório estava

abastecido com dois litros de água e de onde a sugava por meio de um cano

de plástico. Na cabeça, coloquei o capacete sobre um lenço, que absorvia o

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suor dos dias quentes. Vestia uma calça preta de ciclismo, confeccionada com

espuma no assento, e camisa vermelha de manga comprida dry fit — cujo

tecido, feito em poliamida e elastano, tem capacidade de tirar a umidade do

corpo e transportá-la para fora do pano. Nas mãos, dentro das luvas de

proteção, havia colocado um mini-mapa com a metragem de cada ponto por

onde passaria.

Estava com um aparelho MP4 no bolso da camisa, no qual meu marido

gravara músicas que, segundo ele, combinariam com a minha viagem:

“Janalone” era o nome do álbum. Mas, como desconhecia o caminho, preferi

ficar atenta aos sons da natureza.

A cicloviagem, enfim, iniciava-se. O primeiro percurso tem 24,7

quilômetros até Catuné, distrito de Tombos. O caminhante, cavaleiro ou ciclista

segue as placas brancas — cujo desenho é uma seta amarela apontada para

cima —, que indicam a direção correta a ser seguida. Na velocidade média de

10 Km/h, saboreava as novas paisagens com os sentidos abertos para receber

os primeiros cheiros de mato molhado, apesar de não ter chovido naqueles

dias, misturado com o aroma do álcool, que brotava das plantações de cana e

de pequenas usinas.

O dia estava encoberto. Quando alcancei o marco inicial do caminho, já

havia me acostumado a pedalar com a bagagem. A placa “Aqui começa o

Caminho da Luz” está fincada ao lado da cachoeira de Tombos, assim

chamada por ter três quedas (ou tombos) de 60 metros. Para acessá-la é

preciso ignorar a placa no portão de uma das primeiras hidrelétricas mineiras,

que ainda abastece o Estado do Rio de Janeiro: “Propriedade particular.

Acesso somente com autorização. Área de segurança, não ultrapasse”. À

frente da cascata, uma escultura de Afonso Barra saúda os visitantes: trata-se

de uma mãe amamentando ao lado de um índio guerreiro com uma espada

empunhada, em homenagem aos primeiros caminhantes desse percurso — os

índios.

Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino

externalizada —, comecei a explorar as estradas amarronzadas em meio a

fragmentos da Mata Atlântica e a pastos leiteiros. Fazendas centenárias

abertas a visitantes, chácaras protegidas com carrancas, árvores estrondosas,

plantações de café maduro à espera da colheita, porteiras que pedem para ser

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abertas e fechadas pelo viajante para que ele continue o caminho por trechos

dentro de fazendas particulares, tudo isso me fascinava. Com os proprietários

dessas terras eu não me preocupava, já que a credencial de peregrino me

permitia acesso livre.

— Trim, trim! — eu cumprimentava com a buzina da bike o lavrador que

colhia o café nas lavouras da beira de estrada. Era comum receber um sorriso

e um chapéu levantado como resposta. Trata-se de um cumprimento

desprovido de palavras, mas adornado com a simbologia das pessoas simples.

Os primeiros nove quilômetros foram tranquilos. Se fosse nesse ritmo,

chegaria antes dos quatro dias de pedalada inicialmente programados. Estava

confiante. Mas, assim que entrei no trecho chamado “Mata do Banco”, fiquei

com os sentidos em alerta. Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia

o viajante. Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas

esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava.

— E se eu não percebi que peguei o caminho errado? Nunca ouvi falar

de animais que atacaram humanos no Caminho da Luz, mas, e se esta não for

a trilha correta? E se ali à frente tiver um abismo? — não estava com uma

sensação boa. Eram os primeiros gostos amargos do medo que a viagem me

oferecia.

— Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no

caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria

socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente

estar perdida. Isso não tem a menor graça...

Enquanto empurrava a bicicleta por uma trilha desfeita, era preciso

superá-la sem esperar ajuda. O cérebro trabalhava dobrado na sua função de

perceber barulhos e sinais de perigo. Eu respirava mais fundo e olhava para

todos os lados enquanto caminhava. Até que, logo à frente, vi uma placa:

estava no caminho certo!

— Ufa!

A poucas pedaladas, passei por uma casa com a placa “Família

Iluminada” pendurada em sua cerca de entrada, que a identifica como um

ponto de apoio organizado pela Abraluz (Associação Brasileira dos Amigos do

Caminho da Luz).

— Ô de casa! — chamei.

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— Tarde! — respondeu um jovem negro de sorriso cor de neve. — A

senhora quer água?

Na verdade, eu não queria. Estava com a mochila de água na metade.

— Sim, aceito, obrigada. Aqui é a casa da Dona Francisca? — tinha

visto no mini-mapa que me encontrava nesse ponto. Sabia que se tratava de

uma personagem lendária.

A senhorinha, com mais de 70 anos de idade, estatura baixa, pele negra

e lenço branco na cabeça apareceu na porta. Dona Francisca me convidou

para entrar e prosear. Disse que, toda semana, um peregrino batia em sua

casa para tomar água.

— Sou muito procurada pelos caminhantes, Graças a Deus.

Dali em diante, faltavam 11 quilômetros para chegar a Catuné. Dona

Francisca apontou para a direção na qual a vila se encontrava.

— Agora é só subida. — preveniu-me.

O sol das duas da tarde já estava alto. Pelo retrovisor, vi que Dona

Francisca velava minha partida. Antes de pegar velocidade na bike, parei para

abrir uma enorme porteira de madeira atravessada no meu caminho, que

estava fechada com um trinco. Mas isso não era tarefa simples. Para entrar na

propriedade, deixava a bicicleta equilibrada com apoio de seu cavalete central

numa distância que me permitisse segurar a porteira pesada, depois de aberta,

com o cotovelo esquerdo enquanto empurrasse a bicicleta com a mão direita.

O portão, quando batia, invariavelmente fazia um estrondo que ecoava pelo

pasto, o que assustava o rebanho de vacas.

— Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu!

O gado solto pela fazenda percebia a minha entrada em sua cercania.

Todos — eu e as vacas — ficávamos nervosos. Atormentava-me a

possibilidade de ser pisoteada por elas, que estavam pastando

despreocupadamente à beira do caminho. Quando me aproximei, as vacas

brancas, da raça nelore, fitaram-me ao mesmo tempo. Imóveis, algumas delas

ficaram com o pasto pendurado na boca. Desci da bike. Não podia avançar:

eram dezenas. Se ficassem mais assustadas e debandassem, em coletivo,

para a minha direção, eu morreria pisoteada. Poupei a respiração.

— Trim, trim! Trim, trim! — comecei a buzinar, e nada. Como resposta,

mugiam.

Page 13: Trabalho de Conclusão de Curso

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Fui empurrando a bicicleta em câmera lenta. Algumas vacas corriam,

outras aproximavam-se. Fiquei mais de 40 minutos ali parada. Não havia um

roceiro por perto, ninguém que pudesse me socorrer. O sinal do celular

também não pegava. Por telefone, queria pedir para alguém pesquisar no

google como fazer para, em segurança, eu tocar o gado.

Até que meu medo perdeu a validade. Subi na bike, contei mentalmente

até três e saí pedalando. Adiante, começavam as temerosas subidas. Antes de

percorrê-las, saquei meu lanchinho, composto por bananinhas desidratadas,

nozes, castanhas, barras de cereal, mel em saquinho e isotônico com sais

minerais. Com a energia renovada, apesar de já estar bem cansada, comecei a

empurrar a bicicleta ladeira acima. Sempre no mesmo ritmo: com muita dor nas

costas, empurrava dois minutos, mas descansava cinco. Toda vez que parava

me lembrava do amigo Leandro Valverdes, de quem havia comprado a bicicleta

em São Paulo, que me desaconselhou a levá-la nessa empreitada:

— A Blitz Comodo é muito pesada. Não foi fabricada para trilhas com

tantas subidas. Você não vai aguentar! — alertava-me.

No fundo, eu sabia que ele estava certo. Mas não via sentido em usar

outra, emprestada, se esta era minha parceira. Um outro colega cicloativista de

São Paulo deu-me o aval que eu procurava: “Experimente-a!”.

Foram três horas e meia subindo nesse ritmo. No meio do caminho, dois

agricultores haviam deixado a lida e seguiam para casa, em Catuné, no mesmo

percurso que eu fazia.

— Nós levamos 40 minutos para chegar lá. — garantiram-me.

Eram quatro da tarde. Animei-me e desci pedalando na frente. Mas eles,

a pé, ultrapassavam-me nas subidas. Eu, curvada para frente, aplicava uma

força de gigante para fazer os pneus rodarem, mas os agricultores nem

olhavam. Pensei em pedir para eles empurrarem um pouquinho a bike na

subida, enquanto eu alongasse a coluna. Fiquei envergonhada. Eles também

não pareceram incomodados com o meu esforço nas ladeiras. Às cinco da

tarde, minhas forças esvaíram-se. Meu reservatório de água secou. Tudo doía:

pulsos, braços, joelhos, nádegas, lombar. Os senhores haviam sumido. Teriam

chegado?

Nos meus últimos suspiros de energia, enquanto empurrava a bicicleta

com os pés arrastados sobre a terra seca, avistei uma casa. Com os cotovelos

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apoiados no muro, uma senhora de cabelos compridos grisalhos mirava com

seus olhos azuis os montes ao longe.

— Ainda falta muito para eu chegar a Catuné? — perguntei ofegante.

— Não, minha linda, você chegou. É caminhante?

Eram 17h30, e a escuridão começava a ser esboçada no horizonte. Para

concluir aquela rota, faltava ainda passar pela gruta da Pedra Santa. Mas, para

mim, naquele dia, era o fim do caminho. Entrei na casa de Dona Maria Helena,

reidratei-me, tomei um café quentinho e disfarcei a fadiga com um demorado

bate-papo. Ela me explicou como chegar à casa de Dona Dulce Fulmian, onde

me hospedaria naquela noite. Entrei em uma acomodação aconchegante, com

um quarto perfumado e arrumado com carinho para os peregrinos. Na mesa do

jantar, servido para toda a família, estava posta uma iguaria mineira: arroz,

feijão com paio, frango à milanesa, bisteca, salada de horta e um reconfortante

doce de tangerina. Foram algumas horas de muitas histórias. Até eu pegar no

sono.

***

Na vila de mil habitantes, ronda um mistério: como a gruta da Pedra

Santa, que há um século tinha 150 metros quadrados, expandiu sua área para

1.200 metros quadrados e 35 metros de altura sem que tenha sido vista uma

única rocha cair de suas paredes? Os moradores de Catuné contam que a

gruta era local de pernoite para índios que saíam da região litorânea e, no

mesmo percurso do atual Caminho da Luz, rumavam até o Pico da Bandeira —

para eles, a “Montanha Sagrada” — com o objetivo de encontrar a “Terra dos

Sem Males”.

Antes de pedalar até a cidade de Pedra Dourada, a 23 quilômetros de

distância, voltei à gruta. A tronqueira que protege a sua entrada ainda estava

fechada às oito da manhã. Pedi, mentalmente, licença para entrar no local,

considerado sagrado, graças às histórias multiplicadas de muitos milagres e

preces atendidas a quem até ali se dirigia. Águas cristalinas pingavam de suas

rochas sem, no entanto, fazer qualquer barulho. O silêncio era a única música.

No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída, em frente de

bancos espalhados para acomodarem religiosos durante as celebrações e

festas. No teto, bandeirolas coloridas animavam o ambiente. Sentei-me por

poucos minutos e fiz alguns pedidos.

Page 15: Trabalho de Conclusão de Curso

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— Que minha jornada termine com muitas descobertas.

Antes de sair, passei as mãos pelas paredes de pedras e, como sinal de

respeito, fiz uma oração em frente à estátua de Nossa Senhora de Lourdes,

protetora dos enfermos. Era preciso absorver a áurea de um lugar sagrado.

***

As descidas não são fáceis. Para quem não está acostumado a

manobrar a bicicleta em grande velocidade, é preciso apuração redobrada para

segurar, além do peso do ciclista, os trinta quilos fincados na bike, cujas rodas

deslizam na terra ladeada de pedregulhos e de folhas secas. O som do freio é

de um chiado ininterrupto, que abafa a música da natureza circundante.

— Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu.

Depois de uma subida permanente, do Km 3,9 ao Km 7,6, até o Lombo

do Burro e o Vale do Silêncio — trechos que beiram as encostas do alto do

morro —, desci com a mão no freio traseiro até o fim do rebaixamento, na

altura do Km 9,3, onde avistei uma praça bem afeiçoada, com árvores

frondosas e, sob elas, bancos para estimular uma prosa. Chegava à

comunidade de Água Santa — também distrito de Tombos —, com mil

habitantes. Aproveitei para descansar, sob a sombra, e fazer meu lanchinho de

almoço: maçã, nozes, castanhas e passas. Do outro lado da rua, um cavalo

aguardava seu dono comprar mantimentos na Padaria Lazaroni e, na mesma

calçada, a avó Sonia Lazaroni e sua vizinha acomodavam-se no degrau, diante

da Farmácia Ramos — “Na dor e na alegria, sempre em sua companhia” —,

para ajudarem o neto Henrique Lazaroni, de oito anos, a concluir a lição de

português.

— Avó é masculino ou feminino? — quer saber o menino.

— É feminino, veja! Tem um espetinho na letra, não chapeuzinho! — a

avó, prontamente, soluciona a questão gramatical e levanta-se para me

atender na padaria.

— Vó, traz uma bala!

— Uai, vem buscar! Não sei que bala você quer.

— É de caramelo, vó! — agita-se o menino.

Sonia Lazaroni é avó e mãe de Henrique há mais de seis anos, desde

que sua filha morreu de parada cardíaca aos 26 anos de idade. Enquanto ela

Page 16: Trabalho de Conclusão de Curso

16

me servia um refrigerante, eu observava as fotos de sua filha coladas no vidro

que protege o caixa da padaria. A filha, que era professora primária, também

era apaixonada pelo mar. Sonia lembra-se dela aos prantos e me confessa:

— Minha missão é fazer meu neto formar-se doutor. Aqui em Água

Santa já saíram médicos, advogados, farmacêuticos, contabilistas. Não há

escola de ensino médio na região. Mas estou guardando dinheiro para me

mudar para outra cidade quando o Henrique completar a idade certa.

No planejamento familiar, os médicos do distrito costumam sugerir às

mulheres que tenham seus filhos em intervalos de cinco anos. Assim, quando

os pais terminarem de pagar a faculdade de um, começam a bancar o curso

superior de outro. E o calendário familiar é estipulado para que seus filhos

tenham uma vida estudada. E digna.

Saí de Água Santa antes das duas da tarde, e já sabia que seria

impossível alcançar Carangola, tal como havia planejado com a operadora

credenciada antes de conhecer as dificuldades das ladeiras de Minas.

Portanto, faltavam apenas 14 quilômetros de descida até Pedra Dourada —

município cujo nome foi inspirado em uma enorme pedra que, nos primeiros

minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol

que raiam o dia. Como não havia sido feita reserva no hotel da cidade, liguei

para a agência, que me orientou a procurar por Rosângela, dona da pousada.

Aproveitei a chegada breve para dar um banho na bike, enquanto Rosângela

preparava a janta. Quando foi servida na enorme mesa da cozinha, seu marido

aguardava os convidados. Percebi que já o conhecia: era Paulo Fernando de

Almeida, que havia me dado as primeiras informações na rodoviária de

Carangola, cidade para onde eu voltaria no dia seguinte.

***

Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra

Dourada. Estava com energia para pedalar 48 quilômetros até Carangola,

depois de, no meio do caminho, carimbar a credencial na cidade de Farias

Lemos.

— Você vai pegar uma subida brava, logo de início, mas, depois de

ultrapassá-la, seguirá tranquila. — mapeou em prosa mineira o casal

Rosângela e Paulo.

Page 17: Trabalho de Conclusão de Curso

17

No início da subida, como de costume, zerei a contagem do

ciclocomputador e consultei a metragem no mini-mapa. Memorizei o número

8.100 metros, onde queria fazer uma parada mais demorada para sentir as

energias advindas da Pedra do Lagarto — local onde índios, pajés e xamãs

faziam cantos de louvação a seus deuses quando partiam em busca da “Terra

dos Sem Males”.

Na minha desastrada maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de

tartaruga que não aguenta seu casco, zerei a quilometragem do aparelho com

o cotovelo. Como já havia pedalado dois quilômetros, refiz os cálculos. Nas

minhas contas, quando o ciclocomputador marcasse 10,1 quilômetros, chegaria

ao destino almejado.

O tempo, um pouco nublado, amenizava o suadouro do esforço. Depois

de passar por um longo trecho em obras, no qual precisei dividir a estradinha

com tratores que, ao meu lado, pareciam dragões assombrosos, fiz uma curva

acentuada logo após uma ponte. Em marcha lenta, sorvi um cheiro conhecido,

de preces, velas acesas, que não identifiquei de onde vinha. A 100 metros

abaixo, uma vaca desgarrada abandonou o pasto e se postou no meu caminho

no momento em que eu me equilibrava na descida. De frente para mim, ela me

olhava. Freei bruscamente, desci da bicicleta e esperei ela voltar a ficar

faminta. Olhei a marcação no aparelho, que indicava seis quilômetros

percorridos, quatro antes do destino que esperava alcançar logo.

— Sai vaquinha, deixe-me passar, não tenho o dia todo. Vai pastar! —

dialogava. Mas o animal não se movia.

Olhei para os lados, saquei uma fruta do alforje e mastiguei-a no mesmo

ritmo das outras vacas, que, impassíveis, mantinham-se do lado de dentro da

cerca. Mas não percebia um único gesto da vaca estacionada no centro da

estradinha que sugerisse que sairia do meu caminho em breve. Como que

colocando em primeira marcha o meu veículo, respirei ao contrário e apertei o

passo, com a bike ao lado, até ultrapassá-la. Seu olhar me seguia. Observei de

espreita e fui correspondida: a vaca, de costas para mim, virava-se.

— Muuuuuuuuuuuuuuu! — soltou um lamúrio.

Para compensar o tempo ali perdido, saí em alta velocidade. Usei todas

as minhas energias para deslizar até o destino. Quando cheguei à marca do

Km 10,1, não vi nada. Estranhei.

Page 18: Trabalho de Conclusão de Curso

18

— Cadê a pedra em forma de lagarto? — peguei o livro-guia e me

certifiquei da metragem.

— Não é possível! Fiz a conta errada! Se eu já tinha pedalado dois

quilômetros quando zerei, sem querer, o cronômetro, então a Pedra do Lagarto

ficava no Km 6,1, não no 10,1. — refiz as contas mentalmente [6.100 metros +

2.000 metros = 8.100 metros].

Fiquei atordoada. O local sagrado ficava 100 metros acima de onde a

vaca se colocara no meu caminho. Bem onde sentira o cheiro de vela.

— Era um aviso da natureza? Ignorei uma advertência, que agora me

parece tão clara, tal como um trator é incapaz de perceber uma trilha de

formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana, quantas comunicações

dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus olhos sensíveis, a

minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou uma pedra que

ainda não foi lapidada.

Tratava-se de um alerta? Uma lição? Estava a quatro quilômetros de

distância da Pedra do Lagarto, mas abdiquei de sentir a energia indígena que

tanto queria. Uma perda.

***

No quarto dia da jornada, esperavam-me os 25 quilômetros mais

fascinantes do percurso todo. No Km 9,3, uma porteira de madeira separa a

Parada General — da antiga estrada de ferro Leopoldina, construída no século

19 para levar o café da Zona da Mata mineira ao Rio de Janeiro — até as

construções ainda resistentes da Estação Ernestina. A trilha, tomada pelo

mato, é uma “passagem de volta no tempo”: entre os paredões rochosos à

esquerda e a encosta à direita, são avistados antigos casarios e um

assombroso túnel de pedra — perfurada para possibilitar o deslocamento de

trens que por ali circulavam. Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras

vegetações despencam de paredões rochosos e formam uma cabana de

labirintos. Ali, devido ao isolamento, foi preciso aplicar doses de coragem na

veia para, junto com a adrenalina, eu não desistir da empreitada.

Quando abri a porteira da Parada General, uma chuva fina começou a

regar o caminho. Não demorou para a trilha, que beira a encosta do alto da

montanha, ficar escorregadia e lamacenta. Protegi-me com uma capa de chuva

azul, em forma de poncho, mas os pés ficaram à mercê do barro. Não era

Page 19: Trabalho de Conclusão de Curso

19

possível andar de bike, apenas empurrá-la. Um redemoinho de energia

misteriosa brotava do solo, perpassava a minha alma e esvoaçava pelo

horizonte, o que desenhava no lugar uma aura de cidade fantasma. Eu estava

arrepiada: de medo, de frio, de excitação. Já havia lido histórias de terror sobre

esse trecho, como mortes de trabalhadores durante a construção da linha

férrea, túneis de pedras que desabaram e trens que descarrilaram vertente

abaixo. Tudo isso parecia caminhar comigo num dia encoberto.

Pela segunda vez durante o Caminho da Luz, tive a sensação de estar

perdida. Ao me deparar com a trilha literalmente despedaçada, com as pedras

molhadas por um rastro de água, dei-me conta de que não era possível

continuar no caminho. Liguei para o operador da agência de turismo, Vitor

Hugo, e pedi ajuda.

— Vitor, devo estar perdida. Aqui é uma encosta, ou passo eu, ou a

bicicleta. Isso está muito perigoso! Peguei o caminho errado?

Vitor tentava me tranquilizar pelo telefone. Refez verbalmente todo o

percurso por onde passaria, o que me fez visualizar um caminho mais sereno.

— Depois de passar pela ruína da antiga Estação Ernestina, você

percorrerá um trajeto estreito, muito bonito, encoberto por plantas até uma

tronqueira. Ali, tome cuidado, você deve abri-la e seguir à esquerda. Não vá

para a direita! — advertiu-me.

A chuva deu uma trégua. Para seguir em frente, tirei o tênis encharcado,

descarreguei a bagagem da bicicleta e a transportei no ombro direito,

vagarosamente, com as meias sobre os pedregulhos molhados. Caí e me

levantei algumas vezes. Depois, voltei para buscar as malas. Menos de um

quilômetro à frente, mais um caminho desfeito. Repeti o procedimento.

Em toda aquela trilha que parecia circundar um trecho inexistente, não

subi na bicicleta. Empurrei-a sob o túnel de pedra e alcancei a Ernestina, num

total de sete quilômetros de chão de pedras desde a entrada, na Parada

General. Ainda faltavam nove quilômetros até chegar à cidade de Caiana. Mas

já eram quatro da tarde.

Às cinco, estava em frente à tronqueira descrita por Vitor. Mas ela não

abria. Escurecia. De tão cansada e faminta, decidi desistir do caminho e tentei

avisar a agência de turismo. Não havia sinal para o celular. Tentei mais uma

vez não esfacelar a mão no arame farpado, mas não tinha forças. Desesperei-

Page 20: Trabalho de Conclusão de Curso

20

me. Quando a abri, entrei numa plantação de café, onde havia sacos da

colheita ainda abertos — sinal de que os trabalhadores rurais estavam ali havia

pouco tempo. Estava esgotada para empurrar a bicicleta numa ladeira de terra

íngreme, por isso, descarreguei a bagagem e voltei para buscá-la, uma a uma.

Pela estradinha de terra ao lado, uma caminhonete passava. Gritei por socorro.

— Moço, me ajuda, estou perdida! Moço! Moço! — a caminhonete

seguiu seu caminho.

Saí da plantação sob o céu já preto. Liguei a laterna pisca-pisca da

bicicleta e as sinalizações vermelhas afixadas no capacete. Eu devia parecer

um alienígena a bordo de uma nave terrestre brilhante. Naquela altura, restava-

me apenas procurar uma pedra, ao lado da qual eu pudesse esperar até ser

localizada na escuridão. Alguém sentiria minha falta mais tarde. Ou não?

Sentei e chorei.

— Que visões eu teria aqui de madrugada? E se o gado me achasse

aqui à noite? E o frio, eu aguentaria? Ai meu Deus, e as assombrações, que,

pelas histórias populares, aparecem por esse trecho aos montes? Não, não

vou ficar aqui. Terei de andar até onde conseguir.

Meus passos não queriam obedecer a minha vontade. Esbarrei noutra

porteira, que me introduzia na casa de um gado numeroso, mas fingi não me

incomodar com isso. Logo à frente, havia um casebre à beira da estrada, cujas

luzes estavam acesas. Os cachorros começaram a fazer um escândalo à

medida que minhas luzes pisca-pisca se aproximavam. A escuridão dominava.

— Calma cachorrinho, chama seu dono para me ajudar! — tentava

abrandar o resmungo dos animais. — Ô de casa! Alguém, por favor, estou

perdida — gritava, batia palmas, mas ninguém aparecia. Fui embora.

Sozinha e perdida no meio da estrada, percebi o barulho de uma moto

se aproximando. Chamei. Ela freiou.

— Moço, como faço para chegar a Caiana? É muito longe? Estou

fazendo o Caminho da Luz, mas não tenho como chegar no hotel da cidade

nesta escuridão. Por favor, não me deixe aqui sozinha! — soluçava aos

prantos.

O motoqueiro havia acabado de sair da casa onde eu tanto gritara. A

televisão estava ligada, por isso, ninguém havia escutado. Ele chamou seu

irmão, que abriu a porta desesperado por achar que algo de mais grave me

Page 21: Trabalho de Conclusão de Curso

21

havia acontecido. Tranquilizou-se ao saber que se tratava de... medo. Para

mim, era mais do que isso. Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem

luz alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada

no caminho. Aos 31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava

acostumada com os perigos que permeiam as grandes cidades, não com os

fantamas da noite no mato.

Seu Geiton e a esposa, Cilene, que trabalham na colheita de café,

receberam-me em sua casa. Acomodaram minha bagagem, prepararam um

café quentinho, cujos grãos haviam sido torrado por ele e moídos naquele

momento. Improvisaram um cinzeiro, já que não fumavam, para que eu ficasse

à vontade. Como eu estava enlameada e molhada, pediram para eu tomar um

banho. O casal já havia jantado, mas não aceitaram que eu recusasse a janta.

Cilene fritou bisteca, cozinhou arroz e requentou o feijão. Enquanto isso,

Geilton fazia ligação via satélite — instalado em sua casa — para alguns

estabelecimentos da cidade à procura do contato do hotel onde me hospedaria.

Consegui ligar a cobrar para a agência do Caminho da Luz, já que os créditos

do celular de Geilton se acabaram. Enquanto conversava com ele sobre a safra

de café e o novo Código Florestal, Vitor Hugo planejava buscar minha bicicleta

com um automóvel 4x4. Geilton se ofereceu para me levar de moto até a

cidade. Estava tudo resolvido.

***

No último dia — o quinto de pedalada —, 44 quilômetros me separavam

de Alto Caparaó, cidade localizada ao pé do Pico da Bandeira. São quatro

municípios que integram esse percurso (Caiana, Espera Feliz, Caparaó e Alto

Caparaó). De Caiana a Espera Feliz, onde pararia para carimbar a credencial,

eram apenas dez quilômetros. Ali me desfiz dos pesos: despachei a bagagem

de táxi até a pousada. Por ser o trecho mais tranquilo e com pouca declividade,

a situação era excelente para pedalar sentindo o vento na face, escutando a

música dos pássaros e a dissonância ritmada do mugido do gado. Aproveitei

para curtir a música selecionada por meu marido: Bob Dylan estava em

harmonia com a paisagem bucólica e romântica desse último dia.

Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu corpo já se

sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada.

Page 22: Trabalho de Conclusão de Curso

22

Quando cheguei à noite na pousada, minha bagagem já me esperava.

Fazia frio na região montanhosa. Como, inicialmente, havia programado

pedalar em quatro dias, não em cinco, perdi o grupo agendado para subir a

montanha. Uma última equipe sairia naquela madrugada. Da tronqueira do

Parque Nacional do Caparaó — onde se inicia a trilha a pé — são 6,9

quilômetros de subida pesada até o cume, ou aproximadamente, três horas e

meia de caminhada apenas na ida. Depois de um dia inteiro de esforço físico,

essa empreitada era, para mim, impossível.

Do orelhão em frente à praça da cidade, liguei para o diretor de redação

da revista onde trabalho, em São Paulo, para avisar que minha jornada

terminaria ao pé do pico. Havia prometido levar a ele uma matéria de

ecoaventura a partir da minha cicloviagem, para justificar os seis dias ausentes.

— Oi Wilson, estou aqui em Alto Caparaó. Não, não subi no Pico da

Bandeira, pedalei um dia a mais. É que as montanhas são muito íngremes,

estou acabada. Meus joelhos doem, tenho câimbras constantes, estou um

bagaço. Ãh? Não, não dá mais para subir. Teria que contratar um guia só para

mim. É muito caro. Deixa para uma próxima vez, já tenho imagens fantásticas.

— Não acredito que você foi até a porta do céu e está se recusando a

ver Deus? — repreendeu-me.

Refiz os planos.

***

Com o cajado estilizado em mãos, guia contratado e corpo descansado,

subi no jipe às oito da manhã do domingo, dia 22 de maio. O sol brilhava.

Mesmo assim, fui agasalhada, já que os relatos eram de que, no cume da

montanha, a temperatura despenca.

Nas primeiras pedras escaladas, as câimbras não davam trégua. Jaci, o

guia, alongava-me. Cajado na mão direita, mão esquerda apoiada no braço do

guia, só assim me equilibrava na tarefa de ultrapassar o labirinto de pedras. A

vegetação rasteira esverdeada contrastava com a terra pardacenta. Alcançar a

verticalidade de um lugar considerado sagrado parecia exigir que o prazer

fosse diluído no sofrimento.

Logo à frente, três jovens rapazes estavam estendidos sobre volumosas

pedras. Ao olhá-los, escutei um desabafo:

Page 23: Trabalho de Conclusão de Curso

23

— Pra que subir até o cume? É frio e cansativo. Aqui embaixo é também

tão bonito...

Os aventureiros que escalaram o pico durante a madrugada voltavam.

Às seis da manhã, no topo da montanha, a névoa não abriu a cortina para

apresentar a paisagem. O sol que nascia não foi visto.

— Lá em cima é imprevisível. Em segundos, a neblina tanto pode fechar

tudo quanto pode desaparecer e dar lugar a uma imagem deslumbrante. —

ponderou o guia.

Para mim, esse detalhe já não importava. O que almejava era cumprir

minha jornada. Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se

eu tivesse o peso de uma idade avançada, minha expedição acabava. Em

segundos, as cenas do percurso se misturaram. Como uma metáfora da vida, o

Caminho da Luz me levou a altos e baixos, iluminou meus temores, colocou-

me obstáculos e me apresentou as simplicidades naturais da existência. Todas

as agruras não foram capazes de sombrear as belezas apresentadas. Nesse

momento, eu sentia-me bem-aventurada.

— Nesse caminho, eu segui! Consegui! E na vida?

***

Page 24: Trabalho de Conclusão de Curso

24

Making of A peregrinação de uma narrativa

“Um caminho no meu caminho — Peregrinação de bicicleta pelas

montanhas de Minas” é uma narrativa de viagem, gênero que apresenta,

segundo Edvaldo Pereira Lima, “um grau de aproximação ao ensaio pessoal e

aos textos de memórias porque é também, em essencial, um texto

autobiográfico” (LIMA, 2009, p. 433).

O tema foi escolhido na aula de narrativa de viagem ministrada pelo

Prof. Edvaldo Pereira Lima, em 28/2/2011. O fato de a narrativa permear o

ensaio pessoal, no qual o protagonista-autor se mostra ao leitor e faz uma

reflexão sobre sua viagem externa e interna, era, para mim, um grande desafio

a ser superado. Acostumada a redigir matérias de ecoturismo para uma revista

do segmento, não apresento a viagem do ponto de vista das minhas

transformações pessoais, tampouco a narro em primeira pessoa. Entretanto,

Lima adverte que “a humanização que se destaca nesse caso é a do próprio

escritor, sua vulnerabilidade diante dos acontecimentos sumamente tocantes.

(...) O movimento para expor seu mundo interior procede das entranhas. A cura

vem pela exposição” (2009, p. 432).

O foco dessa narrativa de viagem é a peregrinação a qual me propus a

fazer de bicicleta pelo Caminho da Luz, da cidade de Tombos ao Pico da

Bandeira. Trata-se de uma jornada em busca do autoconhecimento — tema

explorado a partir de meus temores internos, iluminados a cada etapa

cumprida, e reconhecidos com o término da viagem, em pleno cume da

montanha. Dessa forma, assumo o papel de protagonista na história e tento

levar o leitor a explorar as descobertas simbólicas desse caminho

desconhecido.

Para narrar a viagem, procurei delinear as conotações da Jornada do

Herói — estrutura básica averiguada pelo mitólogo norte-americano Joseph

Campbell, na obra “O Herói de Mil Faces”, publicada em 1949, que permeia as

narrativas míticas, nas quais é relatada a evolução do herói durante a sua

jornada em busca de ampliar a sua consciência do ponto de vista pessoal e

comunitário (MARTINEZ, 2005, p. 5).

Page 25: Trabalho de Conclusão de Curso

25

Em sua pesquisa de doutorado defendida em 2002 pelo Núcleo de

Epistemologia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São

Paulo, Monica Martinez sugere uma combinação das estruturas propostas por

Campbell, pelo analista de roteiros da Companhia Wall Disney Christopher

Vogler — que faz adaptações importantes à obra original — e pelo Prof.

Edvaldo Pereira Lima, que, ao perceber o potencial da Jornada do Herói como

uma ferramenta para a construção de histórias de vida, sintetiza a jornada em

oito etapas com intuito de torná-la mais funcional no jornalismo (MARTINEZ,

2005, p. 7).

A proposta de Martinez engloba 12 etapas, nas quais me fundamentei

para estruturar a narrativa de viagem com o objetivo de mapear uma

experiência particular dentro de um contexto universal, isto é, cujas fases da

aventura são permeadas por fatores verificados na vida dos seres humanos.

Ao optar por construir a narrativa usando as premissas da Jornada do Herói,

apliquei a técnica de jornalismo em prol da tentativa de compreender que as

experiências — individuais ou coletivas — são complexas, cujos fatores podem

ser percebidos não apenas a partir de dados concretos, mas, como enfatiza

Martinez, por meio de muitos mistérios (MARTINEZ, 2005, p.17).

A sequência apresentada pela autora não foi seguida à risca devido às

opções de edição que levaram em conta a apresentação de um “suspense”

inicial para instigar a leitura. São elas:

1. Cotidiano: etapa que apresenta o universo do protagonista. Nessa

narrativa, trata-se de uma ciclista que optou por adquirir uma bicicleta como

forma de “viver um dia a dia sem rotinas” num momento de crise conjugal —

ideia narrada apenas na página 8, quando apresento as minhas dificuldades

de fazer reparos na bicicleta, devido ao pouco tempo de uso, o que se revela,

ao mesmo tempo, como a situação responsável por romper com o meu

cotidiano, cuja etapa, de certa forma, mescla-se com a que vem a seguir.

2. Chamado à aventura: não está descrito explicitamente o motivo pelo

qual me lanço a fazer a peregrinação de bicicleta. Entretanto, na sequência

inicial de reflexão sobre as peregrinações, na página 4, dou uma pista: “De

minha parte, fazer o Caminho da Luz, de bicicleta, não era sinônimo de

penitência, de pagar promessa ou de venerar uma religião. Assim como a

maioria dos peregrinos-viajantes-turistas, fui atraída por um chamado de

Page 26: Trabalho de Conclusão de Curso

26

introspecção e autoconhecimento, que se aprofundam, em viagens solitárias,

por meio do genuíno contato com a natureza e pela interação sociocultural com

as comunidades locais. Era a minha primeira viagem sem companhia, e estava

determinada a conhecer os meus limites na iniciação em cicloviagens”.

Portanto, o autoconhecimento buscado por mim levava em conta uma viagem

que nunca havia feito, ainda mais sozinha, mas que, para isso, era necessário

aprender a manusear a bicicleta, tal como um viajante de carro precisa saber

dirigi-lo e ter noções de manutenção do veículo.

3. Recusa do chamado: para eu ingressar na aventura, procurei

ciclistas experientes em cicloviagens para analisar se eu teria condições de

fazê-la. Não se tratou de relutar ao chamado, mas de balancear os prós e

contras da viagem, o que poderia resultar em minha desistência. Alguns

mentores me orientaram sobre os perigos da cicloviagem, tal como fez o

ciclista Leandro Valverdes, que me sugeriu trocar de bicicleta para conseguir

superar as subidas do caminho, cuja cena foi citada na página 13.

4. Travessia do Primeiro Limiar: apesar das minhas limitações de

saúde, estava convicta de que tinha condições de entrar aventura, sozinha.

Mas só simbolizo que apresento essa dificuldade quando o clínico geral me

adverte sobre os riscos do esforço físico, narrado nas páginas 6 e 7. Aqui

entra em cena o personagem denominado por Martinez como “Guardião do

Limiar”, que me chama a atenção para os limites aceitos pelo meu organismo

nessa expedição.

5. Testes, aliados, inimigos: trata-se dos tempos de crises, que me dão

oportunidades de crescimento. Essa etapa permeia toda a narrativa: seja

quando me sinto perdida ao adentrar a “Mata do Banco”, descrito na página 11, ou quando fico sozinha com uma manada, sem saber lidar com ela, tal

como narrei na página 12, ou ainda, quando ignoro um “aliado oculto”, que

tenta me avisar de que cheguei ao destino almejado, na página 17. Todos os

personagens envolvidos nessas cenas são seres da natureza, ou a própria

natureza , com a qual não tenho intimidade.

6. Caverna Profunda: o momento mais crítico da partida, inclusive por

mim internalizado, aconteceu na cena em que percebi que não escuto os sinais

(sobre-humanos) da natureza. O monólogo interior narrado na página 17 tem o

objetivo de sinalizar isso: “— Era um aviso da natureza? Ignorei uma

Page 27: Trabalho de Conclusão de Curso

27

advertência, que agora me parece tão clara, tal como um trator é incapaz de

perceber uma trilha de formigas em seu caminho. Na minha vida cotidiana,

quantas comunicações dessa natureza eu desconsidero? Onde estão os meus

olhos sensíveis, a minha intuição, o meu sexto sentido? Definitivamente, sou

uma pedra que ainda não foi lapidada. “

7. Encontro com a Deusa: viajar sozinha e interagir com a natureza

circundante na maior parte do tempo não me permitiu trabalhar essa etapa na

narrativa de viagem. Entretanto, no último dia de pedalada, narrado na página 22, permiti-me escutar as músicas gravadas por meu marido em MP4, o que

não fiz em nenhum outro momento. As melodias que mais ouvi foram a de Bob

Dylan, cuja música “Like a Rolling Stone” foi por mim atribuída como trilha

sonora dessa viagem. Afinal, era também como me sentia num ambiente

desconhecido.

8. Provação Suprema: nesta etapa, o herói enfrenta seus maiores

medos, o que para mim aconteceu quando fiquei sozinha à noite na estrada de

terra. Na página 21, depois de já narrada a cena, eu confesso: “Eu estava em

pânico. Ficar na estrada rural, no interior dos caminhos da montanha, sem luz

alguma, era o meu principal temor, a sombra que não queria ver iluminada. Aos

31 anos de idade, vividos no meio urbano, estava acostumada com os perigos

que permeiam as grandes cidades, não com os fantamas da noite no mato.” O

medo do escuro no mato foi indicado desde o início da narrativa, quando

escrevi, na página 9, que “não tinha hora para sair, mas, como não queria ficar

à noite no meio do mato, necessitava chegar aos destinos até, no máximo,

17h30, horário em que o sol se punha”.

9. Recompensa: mesmo antes de chegar ao Pico da Bandeira, já

delineio as conquistas de conseguir percorrer em cinco dias o Caminho da Luz

até Alto Caparaó: “Depois de tantos trechos a vencer medos e obstáculos, meu

corpo já se sentia sadio, a mente, livre, e a alma, equilibrada.” (página 22).

Mas, tratava-se apenas de um dos desafios — cumprir o trecho de bicicleta —,

que pretendia findar com o trecho da escalada ao cume, só feito a pé.

11. Ressurreição: as etapas 10 e 12 (Caminho de Volta e Retorno com

Elixir) não foram trabalhadas no texto por questão de edição, já que a narrativa

está no seu limite de tamanho para uma leitura fluente, não cansativa.

Portanto, a Ressurreição está descrita no ínicio da história (que, justamente,

Page 28: Trabalho de Conclusão de Curso

28

começa pela catarse da conquista: de ter conseguido terminar a jornada). O

“último e mais perigoso encontro com a morte” acontece, entretanto, nas

páginas finais, quando ligo para o diretor de redação e comunico que não teria

mais forças de subir a montanha. Mas, desisto de desistir, e solto um grito de

missão cumprida no cume.

Os pilares do jornalismo literário e suas técnicas O jornalismo literário vale-se de técnicas da literatura para comunicar um

fato com criatividade e qualidade. A descrição detalhada de lugares, feições,

atmosferas etc., a construção cena a cena, os diálogos, as figuras de

linguagem, as digressões, os monólogos interiores e os fluxos de consciência

são recursos que, além de tornarem a narrativa mais atraente, contribuem para

humanizar a história. É o que defende Ormaneze (2003, p. 3) quando conceitua

o jornalismo literário como “uma corrente que prega a utilização das

ferramentas de um repórter e as estratégias e técnicas textuais dos bons

escritores para o relato dos fatos verídicos.” Com uma ressalva: a construção

do enredo deve ser fiel ao que foi apurado.

Esta narrativa de viagem está permeada pela maioria das técnicas

indicadas. Há descrições pormenorizadas de construções, tal qual o Hotel

Serpa, descrição de feições, como fiz com a Dona Rogéria, também no Hotel

Serpa, descrições dos ambientes da mata, não apenas de aspectos físicos,

mas dos cheiros, das cores etc. Os diálogos aparecem sempre que um

personagem entra na história, para valorizá-lo, o que também ajuda a inserir o

leitor no ambiente da narrativa. Já as digressões, como a que inseri na página 4 sobre os demais caminhos de peregrinações existentes no Brasil, são

recursos que ajudam a contextualizar a temática da reportagem, de forma

breve, sem que a sequência e o ritmo da narrativa se percam.

Como sou a protagonista da história — e entro na aventura sem

companhia —, externalizo meus pensamentos na forma de monólogos

interiores, que contêm os medos, as dúvidas, as reflexões e os pensamentos

durante a cicloviagem. Para a narrativa ficar mais dinâmica, essa exteriorização

está grafada com travessão, tal como se fosse um diálogo com outros

personagens:

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— Quem se aventura por caminhos desconhecidos tem os medos

iluminados com a lanterna da sabedoria? — pela primeira vez desde que iniciei

a jornada, questionei-me, em silêncio, enquanto sopros intermitentes

dissipavam a névoa e mostravam os contornos ensolarados do horizonte

recortado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

A única tentativa de inserir um fluxo de consciência (que se diferencia do

monólogo interior por estar apresentado de forma desordenada) está na

seguinte seguência, retirada da página 11:

— Ixi, o celular está sem sinal... pra quem eu vou perguntar se ando no

caminho certo? E se uma cobra me picasse agora, para que lado procuraria

socorro? Cadê as placas indicativas? Com este mato fechado, devo realmente

estar perdida. Isso não tem a menor graça...

A ideia era dar voz ao meu medo interior, que era processado como um

amontoado de temores que explodiam na mente.

Mas as figuras de linguagem foram os recursos mais bem explorados na

narrativa. Segue um quadro resumido com exemplos retirados do texto:

ALITERAÇÃO

• Depois de um suspiro espichado, o grito de missão cumprida ressoava sem sobressaltos pela paisagem de dunas verdejantes

• névoa espessa pintasse um cenário alvacento • frio intenso avivado pela ventania • o uivo dos ventos entoava louvores à liberdade por mim sentida • Ali, a floresta alta chega a encobrir o céu que vigia o viajante • No fundo da furna, uma pequena capela azul fora construída

.

COMPARAÇÃO • Ao seguir as placas — como se fossem uma intuição do peregrino

externalizada • precisei dividir a estradinha com tratores que, ao meu lado, pareciam

dragões assombrosos • Eu devia parecer um alienígena a bordo de uma nave terrestre

brilhante • Ao alcançar o cume com o corpo doído e arqueado, tal como se eu

tivesse o peso de uma idade avançada • maneira de empurrar a bicicleta na velocidade de tartaruga que não

aguenta seu casco METÁFORA

• Antes de o ônibus silvar seu caminho • Com os passos murchos

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• Sou uma pedra que ainda não foi lapidada • Pelo antigo leito férreo, samambaias e outras vegetações despencam de

paredões rochosos e formam uma cabana de labirintos • Eu estava em pânico. Ficar na estrada rural, sem luz alguma, era o meu

principal temor, a sombra que não queria ver iluminada no caminho • reproduzia no pensamento o som dos parafusos sendo enroscados,

enquanto, sonolenta e com o corpo enferrujado, olhava pesadamente para as portas dos estabelecimentos ainda fechados

• a cidade parecia fazer uma sesta coletiva • meu medo perdeu a validade • aplicava uma força de gigante

METONÍMIA

• Não queria chamar a atenção, embora os chapéus de palha e as mochilas estudantis que circulavam àquele horário pela rodoviária já olhassem em tom de estranheza uma moça, sozinha, com tanta bagagem

ONOMATOPEIA

• Trim, trim! • Nheeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec, nheeeec... • Muuuuuuuuuu! Muuuuuuuuuu! • Shhhhhhuuuuuuuuu. Shuuuuuuuuuuuuu.

PERSONIFICAÇÃO

• cada membro da bicicleta apeada, sem deixá-la deficiente • Fui visitada por uma enorme mariposa negra, que não queria se

retirar do meu quarto, apesar de tê-la convidado, espalhafatosamente, a sair pela janela com uma toalha

• no bagageiro, estavam pendurados, um de cada lado, os dois alforjes traseiros e, sobre ele, o tripé descansava

• Não estava acostumada com a intimidade de flores e plantas esbarrando em meu corpo e na bagagem assim que as ultrapassava

• uma enorme pedra que, nos primeiros minutos da manhã, é presenteada com uma pintura dourada pelas luzes do sol

• Da sacada da pousada, dei bom dia aos montes verdejantes de Pedra Dourada.

• porteiras que pedem para ser abertas e fechadas pelo viajante

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Mas, o jornalismo literário é baseado em alguns princípios que o

diferenciam da ficção. Todos eles foram aplicados nesta narrativa de viagem:

1. IMERSÃO: Para Lima (2009, p. 373), só há uma maneira de o

repórter compreender a realidade: mergulhar nela. “O autor precisa partir a

campo, ver, sentir, cheirar, apalpar, ouvir os ambientes por onde circulam seus

personagens. Precisa interagir com eles. (...) É sua tarefa esforçar-se para

vencer suas próprias barreiras e seus condicionamentos de percepção de

mundo, alterando o seu próprio olhar para o olhar de seus personagens”.

Assim, ao fazer uma peregrinação de bicicleta, mergulhei em dois mundos,

para mim até então desconhecidos: o das pessoas que procuram o

autoconhecimento por meio de viagens e de aventureiros que viajam utilizando

como meio de transporte uma bicicleta. Toda a interação nos sete dias de

aventura foi transformada em narrativa. Além disso, pesquisei livros, relatos,

artigos que descrevessem esse dois mundos antes de partir a campo, de forma

que conseguisse afinar meus sentidos para o que de mais interessante poderia

ser explorado nessa experiência.

2. HUMANIZAÇÃO: não existe narrativa do real se nela não estiverem

presentes os personagens. Mais do que isso: eles não devem ser descritos

como caricaturas, mas destrinchados em suas peculiaridades humanas. Nesta

narrativa, tentei me despir sem máscaras para os leitores, com o cuidado de

não me fazer parecer uma heroína endeusada, nem patética em meus medos.

Todos os demais personagens que aparecem na história são tratados a partir

de sua força humana no ato de solidarizar-se, de acolher, de sonhar a vida.

3. EXATIDÃO E PRECISÃO: pilar fundamental do jornalismo, esse

quesito diferencia-se no jornalismo literário apenas na forma como as

informações são apresentadas: com mais criatividade e sem relatórios

estafantes ou burocráticos. Neste trabalho, chequei todas as informações

apresentadas, desde os nomes dos personagens até os números da população

nas diferentes cidades e nos distritos por onde passei no Caminho da Luz,

economia das cidades, tamanho da cachoeira, quilometragem do percurso,

localização dos pontos turísticos, informações geográficas etc., que foram

incluídas no decorrer da narrativa.

4. ESTILO PRÓPRIO E VOZ AUTORAL/ 5. CRIATIVIDADE: Segundo

Lima (2009, p. 369), o leitor não espera um discurso da “verdade absoluta”,

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mas sim uma leitura individual, marcada por seu modo de captar e expressar a

realidade. Tendo isso em vista, toda a produção desta narrativa está alicerçada

na minha experiência como peregrina-cicloturista, sobretudo no modo como

exteriorizo a realidade por mim vivenciada, cujos pilares foram explicitados no

item anterior, a partir das técnicas de jornalismo literário, responsáveis por

imprimir um tom de criatividade na construção da narrativa.

6. SIMBOLISMO: esta história tem como pano de fundo a busca pelo

autoconhecimento. Mas isso não é explicitado a todo momento. Como essa

procura dá sentido à narrativa do início ao fim, os símbolos de luz e sombra,

medo e coragem etc. são ícones que sugerem, de modo sutil, as lanternas que

iluminam a alma do protagonista.

7. RESPONSABILIDADE ÉTICA: apesar de utilizar recursos de

linguagem comuns na literatura para a construção da narrativa, toda ela está

alicerçada na realidade. Não houve falas inventadas, passagens fictícias ou

copiadas de outras reportagens e personagens criadas. Toda a narrativa é

construída a partir de uma experiência do autor, que utilizou material

jornalístico (como gravador, máquina fotográfica, anotações em bloquinho) com

o intuito de transmitir uma realidade compreendida, nunca uma verdade

absoluta.

Page 33: Trabalho de Conclusão de Curso

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Referências bibliográficas

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brasileiro que fez a volta ao mundo em uma bicicleta. 3ª edição. São Paulo:

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ORMANEZE, Fabiano. Quando as palavras dizem mais do que seus verbetes

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