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TORNAR-SE MULHER DE TERREIRO – Estudos sobre o processo de adesão as
religiões de matrizes-africanas
Gracila Graciema de Medeiros1
Elisabete Vitorino Vieira2
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo investigar a construção da identidade das adeptas do
Candomblé, compreendendo o trajeto realizado por mulheres no processo de vivência,
até o processo de reconhecimento enquanto uma mulher de terreiro. A compreensão do
terreiro como espaço de construção de identidades, onde homens e mulheres têm
funções e atribuições específicas, o que pode contribuir ou não para a adesão e
permanência de mulheres nos terreiros. A pesquisa aqui apresentada é do tipo
qualitativa, a metodologia utilizada fez uso de um levantamento bibliográfico assim
como o uso da História Oral por meio de entrevistas semiestruturadas para dar voz a
interlocutoras. Diante do exposto pelas interlocutoras, percebeu-se uma forma de
identificação e acolhida entre pares. Portanto, a compreensão da influência das
vivências religiosas na construção da identidade e de essas vivências ressignificam o
cotidiano das mesmas, a partir das vivências no terreiro e a partir de qual momento se
compreenderam ou compreendem como mulher de terreiro.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher de Terreiro; Candomblé; Religiões de Matriz Africana.
ABSTRACT
This work aims to investigate the construction of the identity of Candomble followers,
including the path taken by women in the process of living, until the process of
recognition as a woman from the Candomble house. The understanding of the
Candomble house as a space for the construction of identities, where men and women
have specific functions and attributions, which may or may not contribute to the
adherence and permanence of women in the Candomble house. The research presented
here is qualitative, the methodology used made use of a bibliographical survey as well
as the use of oral history through semi-structured interviews to give voice to
interlocutors. In the face of what was said by the interlocutors, a way of identifying and
welcoming peers was perceived. Therefore, the understanding of the influence of
religious experiences in the construction of identity and of these experiences reaffirm
1 Mestra em Sociologia e Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Ekedy no Ilê
Axé Odé Tá Ofa Si Iná. E-mail: [email protected].
2 Assistente Social e Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba. Yawo no Ilê Axé
Odé Tá Ofá Si Iná. E-mail: [email protected].
their daily life, starting from the experiences in the Candomble house and from which
moment they understood or understood as a woman in the Candomble house.
KEYWORDS: Candomble house’s woman; Candomble; African Matrix Religions.
INTRODUÇÃO
Tornar–se mulher de terreiro, tema abordado nesse trabalho, não foi em
memento nenhum uma escolha aleatória, muito pelo contrário é fruto de uma parceria
em diferentes aspectos das vida social e de uma conexão com dois universos tão
distintos: a universidade e o terreiro.
Somos adeptas de Candomblé na cidade de João Pessoa, iniciamos nossa
vivência no terreiro em 2011, fomos iniciadas em períodos diferentes, mas hoje somos
ambas iniciadas, uma Ekedy e a outra Yawo.
O tema abordado neste trabalho, não é algo distante a nós, passamos e
vivenciamos esse processo de tornar-se mulher de terreiro. Viemos, ambas do
catolicismo, adentramos em um universo completamente novo, distinto de tudo que já
havíamos vivenciado.
Esse trabalho assim como outras pesquisas, foram idealizadas a partir de nossas
inquietações cotidianas, por vezes nos motivamos a saber mais, a buscar conhecimento
teórico e empírico.
Quando a tornar-se mulher de terreiro, nossas próprias histórias poderiam ser
facilmente colaboradoras, ao invés de pesquisadoras, acompanhamos algumas outras
histórias de mulheres próximas a nós. Mas queríamos ver em outras casas, outras
mulheres, outras histórias como elas percebiam esse processo, como elas se percebem
enquanto mulher dentro de suas casas de axé, como elas percebem a relação com o seu
corpo. Todas essas inquietações, foram transformadas em projeto, materializadas em
pesquisa, e esse é o resultado de todos esses encontros.
Escolhemos trabalhar com mulheres de terreiro, especificamente de terreiros
autodeclarados Candomblé Ketu na cidade de João Pessoa – PB. Conseguimos apenas
quatro colaboradoras, mas fizemos contatos com 10 mulheres, algumas disseram que
não queriam participar de pesquisa de forma direta, outras desmarcavam no dia
marcado, outras diziam não ter tempo. Por fim, fomos trabalhando com as que
aceitaram.
1. Candomblé e as Ancestralidades Femininas
O candomblé, o culto aos orixás, é uma religião. Tem por base a sua relação com
a natureza, seus Deuses recebem o nome de orixás, cada um deles tem uma
representação como força da natureza, sendo Oxum diretamente relacionada a força dos
rios, Yemanjá a água do mar, Nanã a lama dos pântanos e etc. O panteão de divindades
cultuadas no candomblé foi trazida da África.
Sabemos que é brasileira essa organização do Candomblé, esta forma de culto
as divindades africanas organiza-se no Brasil, como forma de adaptação no contexto em
que se encontravam a pessoas que foram escravizadas, uma forma de resistência a uma
diáspora forçada.
Nesse contexto sabemos que muitos elementos forma perdidos, outros foram
mantidos, muitos outros adaptados, alguns criados. Mas vamos nos deter ao panteão de
divindades que conseguiu ser mantido no Brasil, no Candomblé Ketu ao longo de tantos
anos de luta e resistência do povo negro, sua cultura e religião. No panteão de
Divindades temos os Orixás:
Exu; Ogum; Ossain; Oxóssi; Omolu; Oxumare; Xangô; Iansã; Oba; Euwa;
Oxum; Yemanja; Nanã; Ibeji; Oxaguiã; Oxalufan; Obatalá; Odudua; Orumila. Dentre
esse panteão apresentado, apenas seis divindades são mulheres ou representações do
feminino.
O Culto aos Orixás, o Candomblé no Brasil, tem sua organização explicada
através de mitos, (assim como a maiorias das religiões que se tem conhecimento até os
dias atuais), esses mitos são chamados de Itans – histórias de quando os orixás viviam
em terra.
Dentre uma infinidade de Itans um deles tem destaque em relação ao sagrado e
ao feminino, aqueles que fazem referência ao culto das Grandes Mães, as Iyá-Mi.
[...] as Iyá-mi, também conhecidas sob os nomes de Eléye, Àjé, Eníyan, Íy-
agbà (segundo Verger:1965 : 142, “a anciã, a pessoa idosa, a mãe idosa e
respeitável”, para poderem cumprir sua função devem ser fecundadas,
umedecidas, restituídas. È isto que constitui a base de seu aspecto agressivo
[...].
A dicotomia do símbolo Iyá-mi fez com que o estudo dos ancestres femininos
fosse separado do da religião Nágô; consideradas destruidoras e anti-sociais, o estudo dos ancestres femininos foi limitado e associado ao estudo da
bruxaria. Nada é mais inexato. Não só as Iyá-mi possuem suas representações
coletivas divinas entre os orixás genitores femininos como também elas são
cultuadas na representação de Iyá-mi-Òsòròngà. (SANTOS, 1993, p.114)
O culto as Iyá-Mi, é extremamente restrito, respeitado e guardado em segredo.
Trouxemos esse exemplo de força e poder feminino ancestral, para situar quão antiga é
a relação do sagrado feminino e o culto aos orixás.
No Candomblé tal qual está posta sua organização hoje, acredita-se que foi
Oxum quem institucionalizou o culto aos orixás, criando a conexão entre o Orum e o
Aye. Fazendo ela mesma as primeiras Yao’s. “Oxum [...] recebeu de olorum um novo
encargo: preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás. [...] (PRANDI,
2001, p.527)
Com base neste itan, considera-se o período de iniciação um nascimento para a
religião dos orixás, um renascimento para uma nova vida, o runkó – o útero de oxum. A
umbigueira, além de proteção faz o papel de cordão umbilical, nos conectando (junto
com tantos outros elementos sagrados para os adeptos) a ancestralidade.
2. Candomblé no Brasil e Matrifocalidade
Quando falamos de Matrifocalidade no Candomblé no Brasil, não estamos nos
referindo apenas à história oficial da religião no País, que fala de três mulheres negras
vindas de África, três irmãs, que dão origem aos principais terreiros de Candomblé do
Brasil. Historias repetidas exaustivamente por todos aqueles que se debruçam a estudar
a religião e\ou a vivenciá-la.
Fundaram o engenho velho três negras da Costa, de quem se conhece apenas
o nome africano – Adetá (talvez Iyá Dêtá), Iyá Kalá e Iyá Nassô. [...] ainda
hoje o Engenho Velho se chama Ilê Iyá Nassô, ou seja, em português Casa de
Mãe Nassô. Por muito tempo estas três mulheres emprestaram grande brilho
a casa, não se tendo certeza, entretanto, quanto a se repartiam entre si o poder
ou se se sucederam nele. De qualquer maneira, o nome de qualquer das três
merece ainda as maiores reverencias por parte das filhas. (CARNEIRO,
1977, p.56)
Queremos afirmar, que além de toda herança deixada por estas mulheres, porque
a liderança religiosa no Brasil, em termos de Candomblé nasce feminina, toda a força do
comercio e autonomia que tinham as mulheres na África, isso é resinificado no Brasil da
diáspora negra, e transformado em poder religioso.
Quem melhor aborda esse tema, é a Terezinha Bernardo no seu artigo O
Candomblé e o Poder Feminino. Ela nos mostra um passo a passo, desde a organização
das mulheres na África e seu papel na sociedade, seja no comércio, na relação com sua
família ou de seu marido, com os filhos, em suas associações:
A Ialodê era uma associação feminina cujo nome significa "senhora encarregada dos negócios públicos". Sua dirigente tivera lugar no conselho
supremo dos chefes urbanos e era considerada uma alta funcionária do
Estado, responsável pelas questões femininas, representando, especialmente,
os interesses das comerciantes. Enquanto a Ialodê se encarregava da troca de
bens materiais, a sociedade Gueledé era uma associação mais próxima da
troca de bens simbólicos. Sua visibilidade advinha dos rituais de propiciação
à fecundidade, à fertilidade; aspectos importantes do poder especificamente
feminino (BERNARDO, 2005, p.4)
E como isso transmuta ao longo do tempo, fazendo também associações entre os
papéis ocupado pela mulher em África e no Brasil Escravocrata, a exemplos das
quituteiras; e como algumas escravas de ganho conseguem comprar suas alforrias e de
parentes, inclusive companheiros.
A nossa religião, na África é comandada por homens, no Brasil se deu o
inverso, porque aqui as mulheres foram as primeiras a conseguir as alforrias.
Quando elas conseguiam as alforrias, elas já se tornavam comerciantes, elas
vendiam jóias, vendiam mugunzá, elas vendiam acarajé, as chamadas negras
vendeiras, que na Bahia, botaram o nome de mulheres do partido alto [...]
então, com essas vendas, elas começaram a comprar os seus pares e também a comprar seus companheiros tanto maritalmente como companheiros da
escravidão [...]. A partir daí, elas conseguiam a alforria e a independência
econômica primeiro do que os homens [...] talvez tenha sido Iemanjá que deu
essa força pra elas e Oxum, as Iabás certo, porque eu acredito que, como
vieram pelo oceano, Iemanjá que deixou elas chegarem aqui, então eu acho
que Iemanjá olhou assim e disse “Na África quem comanda são os homens,
mas quem vai comandar no Brasil somos nós as mães, as mulheres”. Aí
houve essa troca, as mulheres vão e formam os primeiros candomblés,
porque a maioria era tudo sacerdotisa ou iniciada na religião dos
antepassados dos orixás divinizados - e com a escravidão eles tinham que
fazer mil peripécias, 158 às vezes até faziam um samba, os senhores de
engenho pensavam que era um samba, mas na verdade eles estavam louvando os orixás - aí essas velhas, que ficaram três famosas na Bahia foram Iyanassô,
Adetá e Iyakalá. Adetá faleceu, Iyakalá voltou para a África e Iyanassô
permaneceu no Engenho da Casa Branca, no Engenho Velho, em Salvador.
Dessa casa matriz, aí vocês já sabem a história né, surgiram as principais
casas de Salvador, que regem soberanas: o Gantois, o Afonjá e a Casa Branca
(Entrevista com mãe de santo do candomblé, 04/04/2008). Apud (BASTOS,
2009, p.157)
A fala acima, de uma mãe de santo, coloca a força da mulher negra, dentro da
sociedade brasileira escravocrata. E como as mulheres se tornam lideranças religiosas
no Brasil, o que não foram na África, mas conseguiram ser no Brasil.
3. A Hierarquia nos candomblés.
Todos os terreiros de Candomblé têm a sua hierarquia, com pequenas variações
de casa para casa, mas em linhas gerais seguem uma lógica piramidal ao meu ver, onde
compõe a base os/as abians – aquele que acaba de chegar, que observa, que não foi
iniciado na religião. Na camada seguinte podemos ver os Yawo´s – termo que designa
os iniciados rodantes (aqueles/as que entram em transe), que ainda não tem sete anos de
iniciados, Os termos Abian e Yawo, é comum aos dois gêneros, suas tarefas e
atribuições também.
Na terceira camada, um pouco mais estreita pode-se encontrar os Egbomis –
termos que designa os iniciados com mais de sete anos de santo. Nessa faixa destinada
também a todos cargos3 – quer dizer aquele designa função especifica dentro do terreiro,
também estão os ogans e ekedis.
Na segunda camada encontra-se um grupo específico, podendo ser ocupada pelo
Pai pequeno de uma casa – babakekere e/ou Yakekere – mãe pequena de uma casa. Esta
faixa pode ser composta por esses dois membros ou apenas um deles. No topo da
pirâmide está a liderança religiosa do terreiro, o Pai – Babalorixá ou a Mãe – Yalorixá.
Cada casa tem apenas uma liderança religiosa.
3 Quando nos referimos acima, sobre os cargos no Candomblé, é porque existe um leque de
cargos, alguns atribuídos ao feminino outros ao masculino, cada cargo tem sua função litúrgica dentro do
terreiro. Não queremos nos detalhar sobre o assunto, mas mencionar que existem distinções entre o papel
feminino e o masculino nos atos litúrgicos, podem ser observadas algumas variações de uma terreiro para
outro, é sempre bom reforçar que cada terreiro tem suas peculiaridades, onde cada casa também vivencia
uma realidade diferente.
Nada se faz, no candomblé, sem a licença expressa do chefe. A sua vontade é
lei, que só ele mesmo poderá revogar ou modificar. Todo o peso da sua
autoridade recai sobre as mulheres, invadindo mesmo o terreno particular,
privado, mas, como os homens, - ogans, alabé, outros funcionários do candomblé, - não se fala de cima para baixo, mas com amabilidade, e este o
tratam respeitosamente. (CARNEIRO, 1977, p.108)
.
No trecho acima escrito por Escrito por Edson Carneiro em 1912ª primeira
edição, nos dá uma dimensão do poder de uma Yalorixá ou de um babalorixá dentro dos
terreiros. Outro ponto que chama atenção é a relação com o masculino, nesse caso
expressa na relação com os ‘ogans, alabe e outros funcionários’, os quais são tratados
com amabilidades, mesmo estando estes também sujeitos ao poder da liderança
religiosas.
4. Os Candomblés de João Pessoa: da adesão ao tornar-se mulher de terreiro.
Todos os nomes apresentados são fictícios de modo a preservar a identidade das
colaboradoras. São elas:
1 – Equedji Maria* - 30 anos, iniciada há 5 anos.
2 – Equedji Ruana* - 20 anos, iniciada há 5 anos.
3 – Yawo Lidia* - 35 anos, iniciada há 5 anos.
4 – Yawo Niara*- 32 anos, iniciada há 6 anos.
Durante as entevista a primeira pergunta realizada era pedir que a colaboradora
se apresentasse. Em suas apresentações elas colocam suas identidades para sociedade
(nome, sobrenome, profissão, estado civil, mães ou não) e suas identidades dentro do
terreiro. Costuma-se usar o nome da pessoa, ou nome pelo qual é conhecida (como um
nome social), a ele acrescido o orixá que rege aquela pessoa, em seguida sua função e a
casa a qual pertencem. Assim as colaboradoras se apresentaram, como foram ensinadas
a se apresentar, demarcando uma construção de identidade, por elas e pela comunidade
a qual pertencem.
Quem é Ruana, é complicado, eu sou Ruana, eu sou ekedy ruana, fui e nunca
vou deixar de ser, uma das principais coisas do candomblé é a ancestralidade
e a gente não negar quem a gente foi, quem a gente é, eu fui confirmada na
nação angola, hoje estou dando continuidade no ketu. Na parte religiosa, eu
sou isso.
Meu nome é Maria Araújo, nome completo, Maria Araujo de Lima, mas eu
uso Maria Araújo, tenho 30 anos, formada em [...] pela UFPB. E minha
identidade religiosa eu sou Maria de Ogum, Ekedi no ile axé [...] .
Me chamo Lidia, basicamente sou Lidia de Oxalá, dofona de Oxalá, sou do
ile axe [...], sou raspada catulada e adoxada pelo Babalorixá Pai X, muito bem
educada, muito bem criada e tenho muito orgulho disso, independentemente
de qualquer coisa. Sou casada meu esposo também é candomblecista,[...] ,
tenho duas filhas com muito orgulho.
Eu sou Niara, Niara da Silva Soares, sou [profissão] pela UFPB, tenho 32
anos. Há oito anos frequento o Ilê Axe [...], sou Yawo, sou Yawo de Iansã.
Sou casada, não tenho filhos.
Essas identidades hoje, já consolidadas, tem uma história, cada uma passou por
um processo diferente de aproximação com o candomblé, os processos de busca
poderiam vir a se repetir caso analisássemos o número maior de trajetórias religiosas.
Dos quatro relatos que acompanhamos, dois deles têm seu primeiro contato com
o universo de terreiro a partir da família biológica, indo no caminho contrário ao do
campo religioso afro-brasileiro na cidade de João Pessoa, onde as pessoas tornam-se
adeptos de religiões de matriz afro-brasileira ao alcançar a vida adulta e com ela
podendo acessar um leque de possibilidades no mercado religioso.
A Ekedi Ruana, que morou dentro de um terreiro na primeira infância, seu pai
biológico é uma liderança religiosa, sua mãe já foi adepta de candomblé, toda a família
paterna é iniciada, todos são de candomblé angola.
[...] vem da minha ancestralidade, meu pai de sangue é de terreiro, minha
mãe de sangue foi de terreiro não é mais porque a vida levou ela a se afastar,
mas ela tem as entidades dela, ela tem as coisas dela, mesmo eu sempre tendo
quando criança frequentado por ter sido levada eu passei muito tempo, depois
de me entender de gente eu passei muito tempo no evangélico, eu fui
evangélica, passei uns cinco anos no evangelho, só que não me identifiquei,
comecei a ir pra os terreiros quando minha mãe ia pras festas, na casa de meu
pai, quando tinha festa eu ia pra lá, fui gostando, fui gostando, comecei a criar amizades no terreiro de pai [...], fui pra uma festa lá, fui com minha
mãe. Ai lá eu comecei a criar amizades com o pessoal de terreiro. (Ekedi
Ruana)
Porém em seu relato a família não entra como fator decisivo em sua
aproximação com os terreiros, e sim suas experiências socializadoras da adolescência.
Em suas falas, a família aparece como um elemento facilitador da sua inserção nos
terreiros, não como um elemento decisivo.
Outro caso de aproximação pela família, é o da Yawo Lídia:
meu pai me levou, tava dando uma febre repentina em mim, pra o médico era
febre emocional, mas pra ela (refere-se a mãe de santo) não, ia e voltava , ia e
voltava, sem contar que tirando o emprego que meu pai tinha que ele e
funcionário público, ele era fotografo tirava foto lá no terreiro de mãe [...] lá em Bayeux, ele sempre acreditou. Vamos passar umas ervar nessa menina,
porque isso não pode acontecer, eu levei foi uma pisa¹, mas no outro dia tava
boazinha. (Yawo Lidia)
Assim como a Ekedi Ruana, não se torna adepta na infância, onde já admirava
os cultos afro-brasileiros que tinha contato, em sua trajetória relata vários contatos com
rezadores, benzedores, cartomante, jogo de búzios – todos elementos disponíveis
religiosidade popular e no campo religioso afro-brasileiro na cidade. Mas só se torna
adepta aos 22 anos, quando decide ficar na casa que está até hoje.
Estradas diferentes levaram as Yawo Niara e a Ekedy Maria. Niara, iniciou a sua
busca motivada pela curiosidade.
Eu fui ao terreiro pela primeira vez por curiosidade, queria saber meu orixá.
Era 16 de dezembro de 2010. Eu já lia coisas sobre Candomblé, mas tinha
medo de chegar lá e “dar santo”. Mas, a curiosidade foi maior que o medo e eu fui lá fazer um jogo, porque queria saber meu orixá e acabei por saber
muito mais. É estranho recordar isso quase 9 anos depois. Lembro da menina
que entrou no terreiro curiosa e cheia de medo! (Yawo Niara)
Já a Ekedy Maria tem sua aproximação com a religião através do meio político,
como militante suas experiências socializadoras a levaram para o terreiro.
Maria- sim lembro, na verdade foi a partir desse processo de identificação de
raça e étnica que eu me aproximei e comecei a em identificar com o candomblé, na época eu tinha 18 anos fazia parte do movimento de
juventude negra junto com outras pessoas, e foi nesse movimento que depois
com o passar do tempo se constituí o fórum de juventude negra da Paraíba,
que eu tive contato com [cita uma mulher do movimento negro e
candomblecista], passei a acompanhar um pouco da vivência dela como
religiosa de candomblé, e fui a saída dela como religiosa de candomblé.
(Ekedi Maria)
Temos aqui em quatro relatos, formas diferentes de se chegar a um terreiro: por herança
familiar, por curiosidade, por militância, mas todas elas só foram possíveis diante de um misto
entre disposição e contexto, onde a disposição para agir que é acionada pelo contexto. Lahire,
em sua sociologia em escala individual nos alerta para esse modo de analisar a ação do sujeito.
O que determina a ativação de determinada disposição em dado contexto
pode ser concebido como produto de interação entre (relações de) forças
internas e externas: relação de força interna entre disposições mais, ou
menos, fortemente constituídas ao longo da socialização passada, e que são
associadas a maior ou menor apetência, e relação de forças externas entre
elementos (características objetivas da situação, que podem ser associadas a
pessoas diferentes) do contexto que pesam mais, ou menos fortemente sobre
o ator individual, porque o forçam ou o solicitam mais, ou menos, (por
exemplo, as situações profissional, escolar, familiar, de amizade... são
desigualmente impositivas para os indivíduos) (LAHIRE, 2004, p. 330)
O terreiro como espaço social, de socialização e sociabilidades, o espaço físico
onde acontecem os ritos que dão vida a organização religiosa, que é atravessada tanto
pela hierarquia como pela distinção entre papeis atribuídos ao masculino e ao feminino.
Por vezes sua lógica remonta ou argumenta-se na idealização do que foi a África antes
do período colonial, esses valores herdados por vezes se conflitam com a lógica
moderna ocidental. Esse entrave, entre modernidade e tradição, gera vozes que não
ecoam na mesma direção, não nos cabe o julgamento em nenhuma vertente, apenas a
constatação.
Lidia – cada um tem seu tempo de aprendizado [...] tem certas coisas que um
yawo não pode fazer, do meu ponto de vista, eu jamais vou ignorar se eu ver um irmão ou uma irmã, mais novo que eu, fazendo aquilo que um yawo não
pode fazer é porque se ele ta fazendo ele teve algum merecimento.
Niara - Por exemplo, a mulher que é yawo ela é atravessada por dois
marcadores: o gênero e a hierarquia. Visto que para as yawos existe uma
cobrança maior com relação a postura e ao comportamento dentro e fora do
Terreiro. Sendo que dentro do Terreiro, as mulheres devem assumir as tarefas
tidas como domésticas (lavar, cozinhar, passar). A cobrança se dar para
execução de um trabalho “braçal”. É cobrado que a yawo aprenda essas
tarefas, com mais rigidez do que é posto aos yawos do sexo masculino.
Maria - nos moldes da religião eu sou uma pessoa que deveria me colocar em
posição de obediência, e confesso que em minhas crises existenciais que eu
tinha receio de participar de algumas coisas, e tanto que em quatro anos o
primeiro oro que eu participei foi o meu, eu não participei do oro das outras
pessoas, que é o processo de iniciação das outras pessoas. É ruim falar isso,
hoje eu tenho ciência que é uma responsabilidade que eu carrego de ser
exemplo dentro da religião. [Nesse momento refere-se ao tempo de abian]
Ruana - Como eu tinha essa impressão que as pessoas passaram para mim
que Ekedi é tão ruim que não se manifesta, que não sei o que, eu procurei
aprender muito me aprofundar muito pra quando alguém falasse alguma coisa assim eu dizer que eu não me manifesta eu dizer assim que não me
manifesto, mas eu sei disso, disso e disso. O que você me botar para fazer eu
sei!
Os quatro relatos, mesmo abordando temas diferentes, falam da imposição que é
posta aos adeptos de terreiro em especial, as mulheres, assim como todas as religiões o
candomblé também formata, rotula, dita comportamentos, tem seus dogmas.
Quando Lidia fala que há restrições de atividades para os Yawos, mas que
mesmo assim há alguns é permitido, ela está nos direcionando para fluidez de regras,
cada casa de candomblé tem suas regras próprias, aquilo que é permitido em alguns
lugares e negado em outro. Ela nos aponta também para distinções que são feitas dentro
das casas, entre os filhos por vezes pares dentro da hierarquia, mas ela bem diz não
ignoro, não repreendo, pois que faz é porque foi permitido, em sua fala aponta como
merecimento.
Niara, nos aponta para o peso das tarefas domésticas, em nossa sociedade
sempre atribuídas ao feminino, e como isso é reforçado em seu grupo hierárquico que é
composto por homens e mulheres em iguais condições litúrgicas. Nos alertando
inclusive, para fiscalização do corpo, das ações, “a postura dentro e fora do terreiro”
(Niara) – segundo seu relato o mesmo não acontece com os homens.
Maria, reforça a ideia trazida por Niara, do controle dos corpos, quando diz “eu
deveria ter uma posição de obediência.” Todo seu relato é atravessado por
autocobranças, geradas por cobranças externas, que a fizeram mudar gradativamente de
comportamento dentro e fora do espaço do terreiro.
Ruana, trás o mais forte dos relatos, visto que no Candomblé não se escolhe ser
Ogan ou Ekedi (Ogan, homem que não entra em transe/Ekedi, mulher que não entra em
transe), essa é uma escolha, segundo os adeptos, feita pelos Orixás, é algo previamente
determinado. Mas mesmo assim ela foi alvo de palavras em tom pejorativo, que
diminuíam em tão importante função. O oposto não acontece com os homens não
rodantes, onde tem posição exaltada.
Como no candomblé tem essa liturgia da gente que e mulher não poder tocar
a atabaque, eles terminam se empoderando de mais em relação a isso, e
querem diminuir a gente, se tiver um candomblé pra acontecer, sem mim que
sou ogan não vai acontecer se eu não chegar, sem vocês não tem problema
nenhum porque pra secar um suar a gente mesmo seca, entendeu? (Ruana)
Dentro dos atos litúrgicos, dos ritos religiosos, as mulheres quando estão
menstruadas são restringidas de algumas atribuições dentro da casa de axé, nossas
interlocutoras nos ajudam a refletir sobre os interditos, propondo questionamentos,
mesmo tendo consciência que as regras por vezes são fluidas por vezes são
extremamente rígidas.
Maria – (risos) bem na minha opinião eu sei que existe as restrições, mas eu
maria, e algo que é inerente ao meu corpo[...], sendo mulher eu tenho isso, eu
vou ter isso todo mês, [...], eu pensando fora do campo religioso, é um tabu
desnecessário! Se a gente for ler alguns itans, [...] o eje tem muita força e o
eje tendo muita força, isso causa medo! Principalmente para os homens, na
nossa religião não fazermos nada sem folha e sem eje, o eje vermelho, não se
faz nada sem o eje! E sendo nós mulheres que sangram, tem um medo em
relação a esse poder, e talvez coloquem esse tipo de restrição. Mas ai eu acho
que caberia uma discussão muito mais profunda com pessoas mais velhas, ler
sobre as ya mis oxoronga! Talvez elas tenham muito a nos ensinar nesse
sentido.
Niara - Não existe na casa que eu frequento tabus para os homens. O que
pelos itans poderíamos encontrar vários, mas os itans só justificam tabus para
as mulheres. Ao estabelecer a menstruação como tabu, você limita a
participação das mulheres nos terreiros. Ao mesmo tempo, existe a cobrança
para que as mulheres participem mais, principalmente, no período das
obrigações. Só que o tabu estabelecido diz que as mulheres menstruadas não
devem preparar as comidas do santo, não devem suspender os orixás etc… E,
com todas essas cobranças, eu vejo as pessoas serem maltratadas, no caso
específico das mulheres presenciei por mais de uma vez tanto o babalorixá quanto outros homens que são cargos na casa (ogans) destratarem mulheres
cargos e yawos de forma pejorativa pelo fato de serem mulheres.
Tanto Niara, como Maria apresentam desconforto e questionamentos quando às
restrições estabelecidas às mulheres no período menstrual, problemas que não é
enfrentado por Ruana, inclusive um ensinamento lhe passado por um homem, seu pai de
santo. Inclusive vale ressaltar, que as quatro colaboradoras estão em casas lideradas por
homens, diferentes casas, mas todas com liderança masculina.
Ruana - Uma vez eu perguntei isso a um pai, e a resposta que eu tive é a
resposta que eu levo ate hoje eu acho que assim, a menstruação a mulher é a
saúde da mulher, é a fertilidade da mulher, tudo ta ali ne, e pra gente, pelo
menos ao meu ver, se a fertilidade da mulher, a saúde da mulher, tudo isso foi
deixado por oxum, não tem porque ter tanta restrição sabe, hoje em dia nem
tanto assim, mas antigamente a gente passava 21 dias 30 dias recolhidas, e
uma mulher vai menstruar nesse tempo e se menstrua recolhida então não
tem problema de menstruar e participar de uma obrigação. Então tem coisa
assim de santo aboro, ou de santo que tem realmente restrição com
menstruAção a gente respeita, mas em geral eu acho que num tem problema não, a gente ta recolhida dentro do quarto de santo, ta de quele no pescoço,
toda amarada de contregum, arrodiada de iba e a gente menstrua, se fosse
assim quando menstruar sai do runko e só volta quando acabar.
Diante das exposições, os relatos nos mostram suas vivências e experiências em
diferentes terreiros de João Pessoa, nos inserem em uma percepção ainda que pequena
das lutas diárias das mulheres, processo que se repete dentro dos de terreiros. Ainda
assim, para Lidia ser mulher de terreiro é levantar a bandeira do Axé, para Maria
continua sendo um ato político e assim com Ruana, ressaltaram a importância da mulher
na formação do candomblé no Brasil.
Considerações:
Este trabalho teve por objetivo investigar a construção das identidades das
adeptas do Candomblé, compreendendo o trajeto realizado por mulheres através de seu
processo de adesão ao candomblé no município de João Pessoa. Toda via o percurso da
pesquisa nos mostrou diferentes situações, que podem levar as mulheres ao terreiro,
como a própria família biológica, o meio político ou a até mesmo a curiosidade.
De toda forma, as contribuições que conseguimos obter apontaram para diversos
aspectos que tentamos elencar ao longo do trabalho, como a ancestralidade africana –
transmitida através dos Itans; o marco histórico da formação do candomblé, a sua
relação com o feminino e as experiências atuais sobre ser uma mulher de terreiro,
tomando por base a experiência local.
O que chama atenção nos relatos é que as casas das colaboradoras são todas de
liderança masculina. A oposição entre masculino / feminino aparece de forma
conflitante, em diferentes aspectos o que nos levariam a outros estudos, mais
aprofundados.
Referencias:
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTOS, Joana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: Pàde, Àsèsè e o Culto a Egun na Bahia
-1986; 6ª Edição – Petrópolis – Vozes, 1993.
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 5ed. Rio Janeiro, Civilização Brasileira;
Brasília, INL, 1977.
BERNARDO, Teresinha. O Candomblé e o poder feminino. IN.: Revista de Estudos
da Religião - nº 2. São Paulo: PUC, 2005. p. 01-21. Disponível em:
WWW.pucsp.br/rever/rv2_2005/p_bernardo.pdf Acesso em 14/05/2019
BASTOS, Ivana. A visão do Feminino nas Religiões Afro-brasileiras. IN.: Revista
Caos – Revista Eletrônica de Ciências Sociais – Nº 14. João Pessoa: UFPB, 2009. p.
156 a 165. Disponível em :
http://www.cchla.ufpb.br/caos/n14/9A%20vis%C3%A3o%20do%20feminino.pdf
Acesso em 21/05/2019.