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TORNAR JUSTO O DIREITO JUSTO A CRIAÇÃO METODOLÓGICA DO DIREITO PELOS TRIBUNAIS “O CASO AQUAPARQUE DO RESTELO” N’gunu Tiny FDUNL N.º5 - 2002

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TORNAR JUSTO O DIREITO JUSTO

A CRIAÇÃO METODOLÓGICA DO DIREITO PELOS TRIBUNAIS

“O CASO AQUAPARQUE DO RESTELO”

N’gunu Tiny FDUNL N.º5 - 2002

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 5/02

TORNAR JUSTO O DIREITO JUSTO

A Criação Metodológica do Direito pelos Tribunais

“O Caso Aquaparque do Restelo”

N’gunu Tiny∗

© N’gunu Tiny Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou

primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A

sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação

posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working

Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de

Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro,

[email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão

Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

∗ Aluno do 5º ano da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Trabalho elaborado no âmbito da disciplina de Metodologia Jurídica leccionada pela Senhora Professora Doutora Maria Lúcia Amaral na FDUNL, no ano lectivo 2001/2002.

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O exercício que se tentou realizar na disciplina de metodologia do direito, através do trabalho em seminários, é um exercício ambicioso e difìcl porque – entre muitas outras razões – nem sempre se consegue, perante um caso concreto, isolar o problema metódico do problema substantivo, isto é, nem sempre se consegue (e conseguir-se-á alguma vez?) distinguir entre as questões do método que foram seguidas pelo juiz para obter a resolução do caso das questões fundamentais de direito que nele se tiveram que julgar. Como é evidente, a dificuldade em fazer esta distinção é tanto maior quanto mais difícil for o próprio caso. Ngunu Tiny teve plena consciência de todos estes entraves; não obstante isso – com sentido crítico, inteligência e agilidade - resolveu empreender o trabalho ousado de analisar o modo de “achamento do direito” num dos casos mais controversos da nossa actualidade.

Maria Lúcia Amaral

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Introdução

O “caso aquaparque” constitui uma dos mais interessantes (embora complexa)

decisões da jurisprudência portuguesa dos últimos tempos. Apesar da decisão estar a

aguardar recurso já fez correr “rios de tinta” na doutrina jurídica portuguesa, com

análises apaixonadas quer apoiando quer rejeitando a jurisprudência do Tribunal da

primeira instância.

Estas posições, embora discordantes, têm algo em comum: analisam a questão de um

ponto de vista do Direito substantivo, procurando responder a questão acerca da

existência na ordem jurídica portuguesa da responsabilidade civil do Estado pela

prática de actos legislativos e a eficácia directa ou imediata do art. 22º da CRP.

Neste breve ensaio, que se insere no âmbito da disciplina de Metodologia Jurídica

abraçada e regida pela Profª. Doutora Maria Lúcia Amaral, tivemos a “ousadia” de ir

para além desta vexata quaestio e analisar a decisão de um ponto de vista

metodológico. Não interessa, deste ponto de vista, a correcção da questão de Direito

substantivo e a solução concreta para o caso, mas antes o modo como se alcançou o

resultado final.

Propomo-nos a analisar as correntes metodológicas que estiveram na origem da

obtenção do resultado concreto. Por conseguinte, iremos analisar como é que a

jurisprudência das valorações, a hermenêutica e a tópica influenciaram os métodos e

técnicas escolhidas e utilizadas pela Juíza. Tentaremos “mapear” o percurso da

sentença judicial e descobrir os valores e pré-juízos que orientaram a sua feitura.

Na Parte I deste ensaio fornecemos - ao leitor - as ferramentas necessárias para uma

pronta familiarização com o “caso aquaparque do Restelo”; daremos uma panorâmica

geral do caso não dispensando, para os leitores mais curiosos, uma leitura da

sentença. Na Parte II analisamos a criação metodológica do Direito através das

valorações, da pré-compreensão e do procedimento argumentativo. De seguida, na

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Parte III, cuidaremos de saber se a Juíza teve consciência ou conhecimento dos

métodos jurídicos utilizados. A terminar, na Parte IV, elaboramos uma análise crítica

em relação a esta verdadeira revolução metodológica.

O escasso tempo de elaboração do trabalho, (sobretudo!) as limitações do seu autor e

o escasso tratamento doutrinário da metodologia jurídica em Portugal explicam as

possíveis incorrecções deste breve ensaio; incorrecções que ao longo do tempo

procurarei colmatar.

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Parte I: “O caso Aquaparque do Restelo”

1. O Processo

Tribunal: 13ª. Vara Cível da Comarca de Lisboa

Tipo de Acção: Acção de condenação por responsabilidade civil do Estado na sua função

legislativa.

Forma de Processo: Processo ordinário

As Partes:

a) Autores: Alfredo Duarte e Ana Duarte

b) Réu: Estado

Pedido: Declaração de condenação do Réu Estado por omissão legislativa ilícita e

culposa; direito à reparação; pagamento da indemnização a título de danos patrimoniais e

morais.

Fundamentação do Pedido: Responsabilidade civil do Estado por omissão censurável

de conduta legislativa devida, que a ter ocorrido evitaria a situação concreta de perigo na

utilização de parques aquáticos e a consequente morte do filho de Alfredo e Ana;

fundamento normativo: art. 22º da CRP.

Contestação: o Réu Estado nunca reconheceu, directa ou indirectamente, que a ausência

de legislação pudesse provocar acidentes mortais em parques aquáticos; a omissão

legislativa não é ilícita e não existe nexo de causalidade adequada entre esta e a morte do

filho dos autores da acção; por conseguinte, o Estado não incorreu em responsabilidade

civil, devendo, como tal, ser absolvido.

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2. A Factualidade

1. Frederico Duarte, filho dos autores (AA), faleceu em 30 Julho de 93, com nove

anos de idade, na sequência de acidente no Aquaparque do Restelo, no dia

anterior;

2. O Governo mandou, na sequência destes acontecimentos, instaurar inquérito

administrativo, com vista a esclarecer os factos bem como as diversas condutas

dos agentes, públicos e privados, envolvidos; a comissão de inquérito viria a ser

nomeada em 30 de Julho de 93; na sequência das actividades desenvolvidas pela

comissão acima referida um relatório preliminar veio a ser produzido e publicado

em Diário da república; o relatório evidenciava a necessidade de aprofundar e

esclarecer alguns dos factos aí relatados, mas em qualquer dos casos concluiu pela

verificação de conduta negligente e/ou deficiente nas condições de funcionamento

e vigilância do parque, enviando o respectivo relatório para a Procuradoria Geral

da República (PGR) para eventual procedimento criminal.

3. O acidente sofrido por Filipe foi motivado pela deslocação de grelhas protectoras

colocadas numa das caldeiras do chamado “ribeirão”, tendo este penetrado pela

grelha em causa.

4. Em Agosto de 91 a Administração do Aquaparque havia sido avisada pela

Direcção Comercial da necessidade de, com urgência, realizar acções preventivas,

nomeadamente em relação à “falta de grades protectoras do ribeirão”,

evidenciando, o Aquaparque, “um maior número de acidentes a hora do almoço”

e “falta de vigilância”.

5. O Aquaparque foi inaugurado em Julho de 87 tendo a sua autorização

administrativa sido precedida de pareceres negativos por parte de órgão da

Administração Pública estadual.

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6. Em Julho de 93 a DECO publicou um estudo sobre parques aquáticos onde

denunciava não serem locais seguros, nomeadamente por apresentarem, na sua

maioria, defeitos e falta de vigilância que poderiam originar acidentes com nível

elevado de gravidade; este estudo foi dado a conhecer aos responsáveis dos

estabelecimentos em causa, bem como à própria Administração Pública, com o

objectivo de propiciar a esta o conhecimento e a tomada de “consciência” da

necessidade de elaborar regulamentos e pôr em prática mecanismos de

fiscalização eficientes e eficazes; este estudo teve grande impacto público na

imprensa escrita portuguesa.

7. Frederico era considerado uma criança saudável, normal, educado e com bom

comportamento, sociável e com aproveitamento escolar na média do Muito Bom;

de acordo com a opinião dos familiares, amigos, colegas, médicos e professores,

teria concluído os estudos a nível primário, secundário e, inclusive, superior e

obtido a inserção no mundo laboral.

8. Frederico sofreu com a submersão de que foi vítima e que originou a sua morte,

tendo lutado pela sua vida durante dois ou três minutos.

9. Em Agosto de 91 o Aquaparque do Restelo foi visado na comunicação social na

sequência de um estudo desenvolvido pelo Instituto Nacional de Defesa do

Consumidor (INDC); este estudo, em forma de relatório, teve o intuito de alertar

os consumidores e outras autoridades, como por exemplo, os responsáveis por tais

estabelecimentos, dos riscos que os Aquaparques causavam à saúde e segurança

dos utilizadores, concluindo com uma série de recomendações (através de Aviso

Público) aos consumidores, proprietários e agentes exploradores dos parques

aquáticos.

10. O estudo desenvolvido pelo INDC foi amplamente divulgado nos órgãos de

comunicação social, que salientou a gravidade dos acidentes que tinham vindo a

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verificar-se nos parques aquáticos. Por outro lado, é entendimento do INDC, bem

como de outras instituições de natureza pública que, entre outros motivos

concorrentes, a falta de legislação por parte do Estado português contribuiu para o

aumento, em número e em gravidade, dos acidentes ocorridos.

11. “O Estado bem sabia e não podia ignorar que este tipo de recintos de diversões

aquáticos eram autorizados e licenciados, funcionando sem qualquer cobertura

regulamentar ou de outro tipo, designadamente, quanto ao seu exercício de

actividade, ao estabelecimento de condições de segurança, de vigilância e de

respectiva formação técnica, para além de se considerar inadmissível qualquer

tipo de fiscalização, insusceptível, por si mesma, de existir”1.

12. A preocupação manifestada pelo INDC com a ausência de legislação, veio a ser

materializada numa Informação/Proposta que incluía a criação de um grupo de

trabalho que pudesse elaborar a proposta legislativa; este documento elaborado

pelo INDC viria a ter despacho superior em 04 de Abril de 92, com o seguinte

teor: “Visto com grande interesse, integrar no dossier sobre parques aquáticos em

preparação[...]”.

13. Em Junho de 92 o INDC voltou a elaborar nova Informação/Proposta onde

sumariava o tipo de intervenção e produção normativa necessárias, referenciando

a sinistralidade nesta matéria, com base em dados recolhidos no Hospital de Faro

em 87; logo, o Estado tinha conhecimento, já em 87, através dos mecanismos

adequados, dos riscos para a saúde e segurança para os utilizadores deste tipo de

estabelecimentos.

14. Houve a preocupação, através das informações prestadas, de citar um “acidente

fatal” que resultou na morte de uma criança num parque aquático do Algarve,

acidente que foi originado por uma deficiência num ralo de aspiração/circulação

da água.

1 Cfr. sentença, em análise, p. 17, factualidade 110. O itálico é nosso.

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3. Valoração dos factos à luz do Direito português

Questão fundamental: responsabilidade do Estado por omissão legislativa juridicamente

relevante (art. 22º da CRP).

Questão orientadora: saber se a responsabilidade consagrada no art. 22º da CRP

abrange a responsabilidade por actos (ou omissões) legislativos e, em caso afirmativo, se

a interpretação constitucional, na falta de concretização através de lei ordinária, de per si,

permite a efectivação dessa responsabilização por parte dos tribunais, ex vi da força

jurídica ou aplicação directa da norma constitucional do art. 22º.

Técnica seguida pela Juíza:

a) Jurisprudência: Acórdão do STJ de 01.06.94: o Supremo concluiu pela

condenação do Réu Estado por responsabilidade civil pela prática de acto

legislativo, sendo a base legal invocada a Lei Constitucional n. º 3/74 de 14 de

Maio, solução normativa que viria a ser explicitada no art. 21º da CRP na versão

de 76, que corresponde ao actual art. 22º; o art. 22º consagra o princípio geral da

responsabilidade directa do Estado por actos lícitos e ilícitos; na falta de lei

concretizadora caberá ao próprio Tribunal criar a norma que o legislador

formularia, dentro do sistema, para o caso em análise. Acórdão do STJ de

23.09.99: novo reconhecimento da responsabilidade do Estado por acto legislativo

ilícito e culposo, com base no art. 22º da CRP; actos legislativos ilícitos e

culposos. Mas ao remeter para o primeiro acórdão citado, este acaba por

consagrar, via da remissão, os casos de licitude legislativa (na interpretação da

Juíza); os pressupostos deste tipo de responsabilidade (por actos ilícitos) estão

regulados no art. 483º do CC2.

2 Note-se que isto significa que não se recorre ao diploma que regula a responsabilidade pela prática da actos na função administrativa.

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b) Doutrina: orientação dominante: há responsabilidade directa do Estado não só no

exercício da função administrativa (prevista e regulada nos termos do DL. 48 051

de Novembro de 1967), mas também no domínio das funções legislativa,

jurisdicional e política. Nota especial para a posição da Professora Maria Lúcia

Amaral que aceita (com reservas) este tipo de responsabilidades, negando embora

a aplicabilidade directa do art. 22º da CRP.

c) Interpretação da Juíza ao art. 22º da CRP: a responsabilidade prevista nesta regra

jurídica abrange, tal como defende a doutrina e jurisprudência do STJ, a prática de

actos legislativos; essa norma pode ser invocada por particulares para fazer valer

uma pretensão de indemnização contra o Estado. No presente caso só está em

causa a prática de actos (no caso sub judice, omissivos) ilícitos e culposos. O art.

22º tem aplicabilidade directa – ou eficácia imediata - por força do art. 18º/1 (e

17º) do mesmo diploma legal, e como tal não carece de mediação ou

concretização legislativa; na falta de lei existe a possibilidade de exequibilidade

imediata por parte dos Tribunais que criarão, por força da lacuna, uma “norma de

decisão”.

4. Os pressupostos da responsabilidade civil

Está em causa a responsabilidade do Estado por acto (omissivo) legislativo, ilícito e

culposo. Base legal: art. 483º CC.

a) Facto Ilícito: “Há uma conduta ilícita do legislador sempre que da

inconstitucionalidade (ou ilegalidade) resulte a violação de qualquer direito

subjectivo ou interesse legalmente protegido”3. “Haverá um facto ilícito

legislativo, por omissão, sempre que a não aprovação de uma lei, que se

imponha por imperativo constitucional e no contexto da realidade factual

3 Cfr. sentença p. 35.

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conhecida, implicou a violação de direitos, liberdades e garantias ou ofensa de

direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares”4.

b) Culpa: juízo de censurabilidade do comportamento adoptado, pressupondo o

dolo ou um comportamento negligente; a conduta do agente tem de merecer

censura ou reprovação do Direito português; a conduta do agente é culposa

quando for de concluir que ele podia e devia ter agido de forma diferente (V. art.

487º/2 do CC); “A culpa do Estado legislador deve ser apreciada a partir do caso

concreto, tendo em consideração as circunstâncias que rodearam a aprovação da

lei, ou a sua omissão e a gravidade da agressão resultante desse acto (ou

omissão)”5.

c) Dano: perda, prejuízo causado a alguém.

d) Nexo de Causalidade (entre a omissão juridicamente relevante e o dano): haverá

nexo de causalidade adequada entre uma omissão e um certo evento quando, de

acordo com as regras da experiência e as circunstâncias conhecidas ou

cognoscíveis pelo sujeito, a prática do acto omitido teria segura ou muito

provavelmente evitado a prática desse evento (previsto ou previsível pelo

sujeito).

5. A decisão da Juíza

a) Resolução da questão de direito: a omissão do Estado traduz-se na

ausência de legislação específica sobre a segurança em parques aquáticos.

A ilictude reside na violação do direito à vida e à integridade física (arts.

24º e 25º da CRP) e na sua contrariedade ao Direito. Terá sido a omissão

ilícita e culposa? A resposta foi afirmativa por parte da Juíza: por força da

actuação do Conselho das Comunidades Europeias, das recolhas de

4 Idem. 5 Idem, p. 36.

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informação junto de hospitais nacionais, dos estudos e

Informações/Propostas elaboradas pelo INDC e pela DECO, dos

despachos da Secretaria de Estado do Ambiente e Defesa do Consumidor,

o Estado sabia que estes recintos abertos ao público funcionavam sem

qualquer regulamentação no que concerne as condições de vigilância,

segurança e formação técnica. Por conseguinte, o Estado não podia

desconhecer o possível aumento da sinistralidade nesses recintos se não

fossem tomadas medidas legislativas específicas. Perante tais

circunstâncias e segundo as regras da experiência e tendo em conta o

dever de diligência exigido aos órgãos estaduais, exige-se que o Estado

tivesse legislado sobre a matéria em causa, no mínimo até antes do Verão

de 93, ou seja, antes da ocorrência da morte de Frederico. A ausência de

legislação corresponde a conduta “eticamente censurável”. Em relação ao

nexo de causalidade adequada: a ausência de legislação específica

conduziu ao licenciamento do empreendimento pelas entidades

competentes e a realização de vistorias correntes, sem que tivesse havido

imposições relevantes relativas à zona onde se viram a dar os acidentes,

tendo, por sua vez, dado origem à morte de Frederico, isto é, favorecendo

o risco da verificação do dano (morte e ofensas físicas).

b) Titularidade do direito a indemnização: Os titulares deste direito são os

pais de Frederico (arts. 496º/2 e 3 do e 497º do CC) e o próprio Frederico

(transmissão para os pais via sucessória).

c) Danos indemnizáveis: 1) Danos causados ao menor- danos não

patrimoniais (sofrimento que antecedeu a morte e o “dano morte”) e

patrimoniais (lucros cessantes ou benefícios que o menor deixou de ter em

consequência da lesão; 2) Danos causados aos pais- danos não

patrimoniais sofridos pelos pais (ausência da companhia do seu filho

menor, da sua afectividade e carinho; perturbações emocionais resultantes

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da morte do filho) e patrimoniais (despesas diversas relacionadas com o

funeral e actividades afins).

d) A acção é parcialmente procedente condenando-se o Réu Estado ao

pagamento da quantia de 120 mil 250 contos a título de danos morais e

patrimoniais (e juros moratórios desde a citação até ao integral pagamento

da indemnização devida).

Parte II: A Criação Metodológica do Direito

1. A Jurisprudência dos Valores

1.1 Breve noção

A jurisprudência dos valores ou das valorações6 surge no pensamento jurídico alemão,

impulsionado por Stammler e pelos Tribunais alemães, nomeadamente o Tribunal

Constitucional, no imediato pós-guerra. A ruptura com o positivismo e o consequente

abandono do raciocínio causal e teórico deu origem ao aparecimento de teorias

metodológicas em que o intérprete aparece como sujeito activo; a jurisprudência das

valorações insere-se numa dessas novas correntes metodológicas. Quais os seus traços

característicos? De acordo com esta corrente metodológica o trabalho do intérprete e o

bom raciocínio jurídico são orientados a valores ou valorações (na interpretação, na

análise do resultado e na resolução do caso). Os valores têm, nesta teoria, uma natureza

objectiva, tendo de ser válidos para mais do que uma pessoa; estão excluídas as

dimensões subjectivas, isto é, do domínio da opinião individual. Note-se que não estamos

a falar de um regresso saudoso ao Direito natural (normas jurídicas preexistentes ao

Direito posto). Valores são instrumentos metodológicos que nos ajudam a ultrapassar as

6 Para uma noção completa desta corrente metodológica v. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, 3ª Edição.

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incertezas que aparecem nos momentos interpretativos e concretizadores, ou seja, ajudam

a redescobrir o sentido oculto dos textos jurídicos. Por conseguinte, caberá ao espírito

dominante numa sociedade ou comunidade (aquilo que vale para o máximo de pessoas) a

definição dos valores a ter em conta pelo julgador.

1.2. A ponderação dos valores no “caso aquaparque”: Estado, lei constitucional e lei

ordinária

No “caso aquaparque” quais terão sido os valores, utilizados pela Juíza, que estiveram na

base da interpretação e concretização das normas jurídicas relevantes? Do nosso ponto de

vista interessa, dada a relevância na decisão final, descortinar qual a valoração da

Magistrada em três matérias: 1) concepção de Estado; 2) concepção de lei constitucional;

3) concepção de lei (ou falta de lei) ordinária.

Comecemos pela análise da concepção da Juíza acerca da noção de Estado. A Magistrada

entende – como não podia deixar de ser – o Estado como Estado de Direito, em que a

preocupação pela dignidade da pessoa humana, materializada nos direitos, liberdades e

garantias, assume papel central. Deste modo, qualquer violação dos direitos, liberdades e

garantias dos indivíduos merece ser acautelada, prevenida, reprimida e compensada na

esfera jurídica deste, independentemente da natureza jurídica (pública ou privada) do

agressor. Como iremos ver já de seguida, esta concepção acerca do Estado de Direito,

comum às democracias mundiais, terá, no entender deste intérprete, consequências na

forma de conceber a lei fundamental e as regras jurídicas que a compõem. O Estado,

neste sentido, será um «Estado intervencionista», regulando os mais diversos domínios.

O Estado, continuando a interpretar o pensamento da Juíza, tem de ser visto na sua

relação com a sociedade. A existência de leis não gerais e abstractas e o aparecimento de

fenómenos de “delegação” que permitem ao poder executivo intervir em matérias cada

vez mais próximas dos cidadãos, revelam a impossibilidade de se pensar o Estado

desligado da sociedade ou, utilizando uma linguagem de Direito civil, desligado da sua

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“materialidade subjacente”. Quando o art. 22º da CRP se refere a «Estado», a Juíza

interpreta esta realidade da forma como acima a descrevemos.

A constituição não tem, como prima facie se poderia supor, essencialmente um conteúdo

programático, tendo, ao invés, uma ampla vocação concretizadora. No texto fundamental

encontrámos normas-princípio, mas com a evolução da sociedade e tendo em conta as

diversas funções do Estado e as múltiplas formas de este intervir na sociedade, as

normas-regra são cada vez mais frequentes e “dominadoras”. O carácter programático

tem dado lugar a natureza preceptiva da constituição portuguesa não carecendo as normas

constitucionais, na sua grande maioria, de mediação ou concretização por parte do

legislador ordinário. Ilustremos esta nossa afirmação. A Juíza retira do dever de

protecção da saúde e integridade física o imperativo constitucional de regulação dos

parques aquáticos. Para censurar a omissão legal do Estado há como que um fundamento

nas normas constitucionais que estipulam a protecção da saúde e integridade física dos

indivíduos7. Este raciocínio só é possível se entendermos estas normas como

estabelecendo deveres claros e concretos ao Estado no sentido deste, sempre que se

justifique e independentemente da natureza geral e abstracta das normas, legislar ou

regular para protecção dos bens jurídicos fundamentais. Estas normas não estabelecem

um conteúdo meramente programático ou indicativo; elas estabelecem deveres concretos

de actuação para o Estado8. Assim sendo, qual será a sua concepção de lei ordinária?

Lei ordinária resulta nas mais das vezes de um dever de legislar por parte do legislador

ordinário de modo a cumprir as imposições constitucionais. Para tal, deverá haver

regulação quer ao nível geral e abstracto quer a um nível mais específico e determinado

(como por exemplo, a nível regulamentar). Quando a regulação ordinária é imposta por

normas constitucionais preceptivas (e não programáticas) e havendo ausência de tal

concretização, o Juiz estará legitimado a preencher a lacuna daí resultante,

nomeadamente através da criação da norma hipotética à luz do sistema jurídico, maxime

das imposições constitucionais.

7 Esta operação é feita não no momento abstracto da análise, mas no momento da concretização do caso concreto (subsunção dos factos aos requisitos da responsabilidade civil). 8 V. p. 42 da sentença.

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São estas, em suma, as concepções que nos parecem ser as mais relevantes tendo em vista

a solução do caso, isto é, a justa composição do litígio.

2. A Hermenêutica e o uso da pré-compreensão

O método hermenêutico9 insere-se nas correntes metodológicas pós-positivista. De

acordo como esta corrente, o método de interpretação e aplicação do Direito passa pela

seguinte configuração: o significado das palavras utilizadas pelo legislador nas normas

jurídicas deriva da sua conexão com o sentido do texto na sua globalidade; o sentido

global do texto, por sua vez, só pode ser entendido com referência as palavras que o

formam e a combinação das palavras. Por conseguinte, o intérprete (maxime o julgador)

“deve” em relação a cada palavra da norma jurídica tomar em consideração o sentido da

frase e, numa perspectiva global, o sentido do texto; se dúvidas subsistirem ou

aparecerem deverá, então, regressar ao significado da palavra primeiramente aceite – é o

chamado círculo hermenêutico. O Processo hermenêutico manifesta-se não apenas no

momento interpretativo do direito, mas também no processo de aplicação do mesmo. O

intérprete ao realizar a sua tarefa de interpretação apresenta-se, ab initio, com a sua pré-

compreensão, isto é, uma primeira ideia sobre a “coisa” de que o texto fala e sobre a

linguagem utilizada pela norma jurídica. Esta pré-compreensão resulta de um processo

prévio de aprendizagem onde avultam os conhecimentos adquiridos pelo intérprete

através das suas experiências profissionais e extra-profissionais, designadamente as que

resultam dos factos e contextos sociais. O juízo de pré-compreensão surge como

condição prévia e insere-se no processo e interpretação de aplicação do Direito10.

9 Autores existem que qualificam a hermenêutica não como um método jurídico (ou de outra ciência social), mas apenas como filosofia transcendental, onde se nomeiam as condições da possibilidade da compreensão da linguagem e do sentido em geral. 10 No âmbito da economia da nossa exposição não encetaremos uma caracterização completa do método hermenêutico. Para tal, v., por todos, Karl Larenz, Metodologia, pp. 285 e ss. e 339 e ss..

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É nossa convicção que o método hermenêutico esteve na base da decisão e dos processos

e técnicas utilizadas pela Juíza no “caso aquaparque”. Este nosso entendimento é

alicerçado em três momentos do processo, a saber:

1. A existência, em abstracto, da responsabilidade civil extra-contratual por

actos legislativos no ordenamento jurídico português;

2. Na concretização do caso, sub judice, em concreto;

3. Na escolha do método a seguir para resolver o caso.

Abordemos, muito sucintamente, estes três momentos a se.

2.1 A Pré-compreensão da responsabilidade civil extra-contratual do Estado por

prática de actos legislativos no ordenamento jurídico português

Para a Juíza do caso, é «Direito Justo» a existência, na ordem jurídica portuguesa, de

responsabilidade civil extra-contratual do Estado por prática de actos legislativos. De

acordo a sua concepção de Estado, de lei constitucional e da sua concretização na lei

ordinária, é mister que se conclua pela existência deste tipo de responsabilidade. Apesar

do corrente recurso a jurisprudência anterior (precedente judicial) bem como a citação

abundante de doutrina, a pré-compreensão da Magistrada é evidente, resultando esse

entendimento da concepção do Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa

humana. Se o «Direito Justo», no entendimento da magistrada, contempla, ou melhor,

impõe esta modalidade de responsabilidade, então há que considerá-la dentro do âmbito

de aplicação do art. 22º da CRP, que é a lei fundamental de um Estado de Direito como o

Estado português. Se o «Direito Justo» é assim entendido, então há que o tornar justo via

da interpretação do art. 22º e da sistemática e da ratio do texto constitucional. É preciso

tornar Justo o Direito Justo. É esta, em nosso entender, a pré-compreensão da Juíza nesta

matéria e a sua «convicção de justeza». Mas não é tudo.

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Havendo esta modalidade de responsabilidade, prevista e consagrada no art. 22º da CRP.

ela é, por virtude da sua força jurídica enquanto garantia fundamental, imediata ou

directamente aplicável (art. 18º e 17º). A incompletude da lei não é necessariamente uma

falha legislativa, ainda para mais tratando-se de uma regra constitucional; será tarefa dos

Tribunais a determinação do sentido e alcance desta norma jurídica. Neste caso, a livre

criação jurisprudencial do Direito terá como limite e parâmetro de validade o prescrito na

CRP.

2.2 A Pré-compreensão e a resolução do caso concreto

Antes de confrontar e de pôr à prova o seu pré-juízo, a Magistrada, a nosso ver, tinha um

pré-entendimento no sentido de que uma morte como a que ocorreu, nas circunstâncias

em que ocorreu e dada a conduta do Estado seria passível da condenação. Perante aquela

factualidade e como primeiro entendimento o Estado deveria ser civilmente

responsabilizado. Note-se que na factualidade, onde em princípio devem ser descritos os

factos sem quaisquer juízos de valor, os mesmos vêm descritos, a dado momento,

incorporando um juízo de censura. A juíza descreveu os factos tal como eles aparecem na

sua pré-compreensão e não apenas de acordo com a realidade física ou social. Ouçamos

as palavras da Magistrada:

“O Estado bem sabia e não podia ignorar que este tipo de recintos de diversões aquático era autorizado e

licenciado, funcionando sem qualquer cobertura regulamentar ou de outro tipo, designadamente, quanto ao

seu exercício de actividade, ao estabelecimento de condições de segurança, de vigilância e de respectiva

formação técnica, para além de se considerar inadmissível qualquer tipo de fiscalização, insusceptível, por

si mesma, de existir”11.

Cuidaremos aquando da nossa análise crítica sobre este modo se proceder, mais adiante,

de saber se é legítimo ou não este tipo de entendimento. Para já, fica claro que sem esta

pré-compreensão a factualidade nunca seria descrita – de acordo com as melhores regras

de redacção da sentença - com a evidente carga ou sentido de censura e actuação do

Estado. Uma coisa é dizer que o Estado ignorou determinados factos ou informações,

11 Cfr. sentença, p. 17 factualidade 110. O negrito é nosso.

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outra, bem diferente, é afirmar que o Estado ignorou e não poderia ter ignorado. São

afirmações materialmente distintas: a primeira cuida apenas e só da factualidade; a

segunda revela uma imbricação desta com juízos de valor do intérprete. Deste modo, ao

contrário do que acontece na concepção positivista do Direito, a interpretação da lei e o

apuramento da matéria de facto não são actos separados. Havendo uma equiparação entre

a realidade pré-comprendida – que não se resume a mera determinação e subsunção (da

Juíza) - e a norma jurídica, haverá responsabilidade do Estado no presente caso, isto

porque para o Tribunal há uma identidade na relação de sentido entre o caso concreto tal

como ele é pré-entendido e a previsão da regra jurídica tal como é interpretada.

Em suma e numa frase: a lei foi interpretada tendo em vista um resultado12, isto é, a

interpretação do texto tem-se como correcta se e na medida em que é susceptível de

resolver os problemas concretos do caso.

2.3 A Pré-compreensão e a escolha do método jurídico adequado

O papel da hermenêutica não se resume aos processos de interpretação e aplicação das

normas jurídicas. Este método tem influência na escolha do método de resolução do caso

concreto13. Por outras palavras: a pré-compreensão como que antecipa a convicção de

justeza do caso concreto; para confirmar ou rejeitar este pré-juízo será necessário colocá-

lo à prova com os mais diversos elementos e para que isso aconteça, é necessário, de

igual modo, escolher a metodologia a seguir; ora o que acontece é que esta metodologia é

escolhida em função ou consequência do pré-entendimento da norma e do caso em

concreto. É assim que da sentença resulta em primeiro lugar a citação da abundante

doutrina e jurisprudência e de seguida, num segundo momento, a decisão do caso. Em

segundo lugar, há ainda a notar que essa decisão parte da utilização da Jurisprudência dos

Valores e da Tópica. Pergunta-se: terá a Juíza tido a percepção, a fineza e a complexidade

da utilização destas correntes e técnicas metodológicas? Daremos mais adiante e em sede

oportuna a resposta cabal a esta questão. Para já, diremos apenas que uma resposta

12 Aquele que é formulado na pré-compreensão. 13 Karl Larenz, Metodologia, p. 292. Trata-se da concepção de Esser, criticada, no entanto, por Karl Larez.

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negativa, isto é, a não consciência da utilização destes métodos, não nos impede de

descortinar no trabalho de elaboração da sentença e no modo de raciocinar da Juíza os

métodos utilizados. É esta a nossa tarefa: descortinar e redescobrir todo o processo e o

desenho utilizado pela Juíza para chegar a solução do caso concreto, independentemente

se teve consciência ou não dos mesmos.

2.4 O controlo da concordância

Através da valoração pré-dogmática o intérprete determina a sua «convicção de justeza».

Porém, sob pena de se inverter o princípio da “submissão” do Tribunal ao Direito e as

normas jurídicas, esta «convicção de justeza» terá, por sua vez e de forma obrigatória, de

ser sujeita a um controlo posterior, isto é, será sujeita ao controlo da concordância ou a

um auto-exame (teste da comprovação da compatibilidade da solução encontrada com o

sistema do Direito positivo). É este o momento da aplicação dos cânones jurídicos de

interpretação. O intérprete, sob pena de arbitrariedade, deverá testar a sua pré-

compreensão14.

Voltando ao “caso aquaparque”. A Juíza terá de aferir se, na realidade, existe no

ordenamento jurídico português a responsabilidade civil do Estado na sua função

legislativa; terá de interpretar correctamente a sua base legal de modo a determinar o

sentido e alcance de tal responsabilidade e conferir, através da técnica da subsunção, se

essas normas se aplicam aos casos concretos. Sobre este aspecto diremos o seguinte. É

notório que o juízo de consagração desta modalidade de responsabilidade no

ordenamento jurídico português foi colocado em teste ao ser invocado a jurisprudência

uniforme dos Tribunais portugueses. No entanto, não podemos deixar de levantar três

questões que nos parecem de extrema pertinência, quais sejam:

Primo, não houve, até agora, jurisprudência que negasse ou limitasse esta modalidade de

responsabilidade tal como é entendida pelo Tribunal? Secundo, porque é que não houve

um desenvolvimento (embora tivesse havido uma breve referência) da posição, por

14 Karl Larenz, Metodologia, p. 291.

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exemplo, seguida por Maria Lúcia Amaral, segundo a qual, a existir tal modalidade de

responsabilidade, a norma do art. 22º da CRP não é susceptível de aplicação directa ou

imediata, uma vez que o legislador constitucional não definiu ou deu pistas precisas para

a determinação do âmbito de aplicação e dos termos da norma em análise. Tertio, a Juíza

nunca chega a equacionar a seguinte questão que nos parece lógica e imperativa:

admitindo que era exigido, ao Estado, legislação especifica sobre medidas de segurança e

utilização de parques aquáticos, seria exigível que nessa legislação houvesse uma norma

que regulasse as condições específicas do posicionamento das grelhas de aspiração de

água? Se sim, então estará correcto o raciocínio do Tribunal; no caso contrário, não

haverá responsabilidade civil do Estado. Essa questão não chega a ser equacionada pela

Magistrada, mas é vital para a solução do caso concreto.

A resposta a estas questões determinará se foi realizada, com correcção e eficácia, o

controlo da concordância por parte do Tribunal. Com os dados que dispomos até ao

momento diremos apenas o seguinte: o procedimento judicial não é livre, estando sujeito

à lei e tendo o julgador de o respeitar, nomeadamente levantando todas as questões que se

afigurem relevantes para o enquadramento jurídico do caso. A esta questão voltaremos

mais adiante15.

3. A Tópica e o procedimento argumentativo

A corrente tópica16 surge na segunda metade do Séc. XX na Europa Continental

(Alemanha) e adopta desde o início uma perspectiva descritiva e prescritiva. Para esta

corrente metodológica, a existência de uma finalidade (da resolução de uma questão de

direito) exige um método para se convencer, método este que, por sua vez, implica a

aprovação das diversas partes em diálogo. À questão de saber como se acha o Direito no

caso concreto e os métodos a utilizar pelos juristas, a tópica respondeu com uma

metodologia assente em três momentos-chave, a saber: 1) a fase da inventio, onde se dá a

busca ou procura dos argumentos; 2) a fase da ordenatio, que consiste na ordenação

15 Cfr. infra pp. 26 e ss.. 16 Para uma análise mais detalhada acerca deste método v., por todos, Karl Larenz, Metodologia, pp. 170, 201 e ss., 214, 217 e 697.

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lógica dos argumentos encontrados; 3) a fase da elocutio, o momento da argumentação

(escrita ou oral).

Karl Larenz define a tópica da seguinte forma:

“É missão dos Tribunais decidir de modo justo os conflitos trazidos perante si e se a aplicação das leis, por

via do procedimento de subsunção, não oferecer garantias de uma tal decisão, é natural que se busque um

processo que permita a solução de problemas jurídicos a partir dos dados materiais desses mesmos

problemas, mesmo sem apoio numa norma legal” 17.

Quais terão sido os argumentos escolhidos pela Juíza do “caso aquaparque”, a sua

ordenação lógica e a consequente argumentação é o que analisamos de seguida.

Comecemos pela escolha dos argumentos.

3.1. A inventio

A inventio é constituída por dois momentos. O primeiro, o momento lógico, consiste no

conhecimento (dar a conhecer os nossos argumentos), o segundo, o psicológico, na

tentativa de comover a “audiência”18. Começa-se por avançar conceitos, preposições ou

signos que podem ser seguros, menos seguros ou polissémicos e, ainda, apenas

verosímeis.

No “caso aquarparque” podemos encontrar os seguintes conceitos, preposições ou signos:

1. Existe na ordem jurídica portuguesa a modalidade de responsabilidade civil do

Estado por actos ilícitos e culposos praticados na sua função legislativa- signo

seguro;

2. A responsabilidade civil do Estado em todas as suas modalidades, incluindo o

ilícito legislativo, encontra a sua base legal no art. 22º da CRP; o art. 22º é

directa ou imediatamente aplicável- signo menos seguro ou polissémico;

17 Karl Larenz, Metodologia, p. 201. 18 Como diríamos hoje, na tentativa de manipular as consciências (sem qualquer carga negativa).

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3. O Estado cometeu uma omissão juridicamente relevante ao não ter regulado a

segurança, organização e fiscalização dos “parques aquáticos”- signo seguro;

4. O Estado cometeu uma omissão ilícita e culposa causando com esta conduta

danos patrimoniais e morais a terceiros (Frederico e seus pais)- signo apenas

verosímil.

Por conseguinte, o Estado dever ser civilmente responsabilizado.

Estas são as preposições ou signos que podem ser partilhadas pela comunidade

expressiva (maxime, os sujeitos processuais e os intervinientes no processo em causa)-

consensus omnium. Diga-se, antes de analisarmos os argumentos escolhidos pelo

Tribunal para fundamentar as suas preposições ou signos, que o momento psicológico

esteve sempre presente, como não podia deixar de ser; chama-se a atenção, sobretudo

para o momento da determinação do quantum da indemnização, onde o aspecto

psicológico teve – e bem – um papel preponderante.

Estabelecidos os signos podemos começar a avançar os argumentos aduzidos pela

Magistrada em torno da sua fundamentação:

1. Existe, em abstracto, responsabilidade civil pela prática de actos legislativos

porque só esta concepção é compatível com o Estado de Direito na sua vertente

material, que tem como ratio última a protecção da dignidade da pessoa humana;

2. O art. 22º é directa ou imediatamente aplicável, podendo ser invocado pelos

particulares na falta de legislação ordinária porque o legislador, na sua linha

preceptiva e concretizadora (e não meramente programática), fixou ao nível

constitucional os elementos definidores do instituto da responsabilidade civil do

Estado, estabelecendo, em simultâneo, o seu regime jurídico;

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3. Ao ter conhecimento, através de diversos mecanismos públicos e privados, das

condições de funcionamento dos parques aquáticos e da ausência de legislação

específica que regulasse tais recintos, o Estado cometeu uma conduta omissiva

juridicamente relevante.

4. Essa conduta é ilícita porque o Estado19 reconheceu expressamente a necessidade

de legislar sobre o funcionamento dos parques aquáticos e não o fez em tempo

razoável; o Estado devia ter produzido legislação pelo menos até ao Verão de 92.

A conduta é culposa porque atendendo as circunstâncias do caso (informações

sobre o funcionamento de tais recintos, os inúmeros acidentes ocorridos, os

diversos estudos e avisos da comunicação social e a própria intervenção de uma

Secretaria de Estado) um legislador normalmente diligente podia e devia ter

evitado tal omissão (tanto mais que o INDC chegou a propor a criação de uma

comissão como objectivo da criação da legislação adequada e necessária).

Não concordando com a argumentação da Juíza, o Réu Estado contra-argumentou da

seguinte forma: o Réu Estado nunca reconheceu, directa ou indirectamente, que a

ausência de legislação pudesse provocar acidentes mortais em parques aquáticos; a

omissão legislativa não é ilícita e não existe nexo de causalidade adequada entre esta e a

morte do filho dos autores da acção; por conseguinte, o Estado não incorreu em

responsabilidade civil, devendo, como tal, ser absolvido.

3.2 A ordenação lógica da argumentação (ordenatio) e a livre criação

jurisprudencial

Perante um vazio legislativo ao nível ordinário, a ordenação da argumentação assume um

papel primacial. Caberá ao julgador (intérprete e concretizador) criar a norma que o

19 Note-se: «o Estado»; não se fala no órgão que era titular das competências legislativas. Será importante para a nossa análise crítica da decisão jurisprudencial.

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legislador ordinário não criou mas que devia ter criado, dentro do espírito do sistema e de

acordo com as coordenadas e imposições constitucionais.

Concordando ou não com a argumentação da Juíza, a verdade, porém, é que a sua

ordenação lógica obedeceu a critérios e processos que qualificamos como brilhante e

irrepreensível, senão repare-se.

O primeiro passo lógico, antes de avançar com a sua decisão final, consistiu em legitimar

a sua pré-compreensão através da análise da jurisprudência (precedente judicial) sobre a

matéria. Houve a preocupação de mencionar jurisprudência do STJ e de focar a existência

da responsabilidade do Estado por acto legislativo ilícito e do regime jurídico aplicável.

A jurisprudência invocada abrange legislação (que basicamente foi sempre a mesma) que

vai desde o período pós-revolucionário até aos tempos mais recentes, “desarmando”

assim aqueles que vêm esta modalidade de responsabilidade como algo dos tempos

modernos.

De seguida houve a preocupação de citar abundantemente a doutrina, como que com isso

preparando o caminho de legitimação da sua decisão final. Mas a forma com a doutrina é

citada não é inocente. Cada autor citado ou referenciado contribuiu para a matéria

trazendo sempre um elemento extra ou de maior esclarecimento.

Só após estes dois momentos de ordenação vem a decisão da Juíza sobre a existência

desta modalidade de responsabilidade civil e da eficácia directa ou imediata do art. 22º da

CRP. Após esta conclusão, o caso é analisado em concreto. Note-se, nesta fase, a

preocupação em se articular o caminho e a ordenação argumentativa com a exposição dos

factos descritos no início da sentença. A articulação dos factos não surge as mais das

vezes numa sequência espacio-temporal; existe uma ordenação lógica dos factos. Lógica

porque os factos obedecem a uma coerência entre si e porque estão articulados – de

forma quase perfeita diga-se – com a posterior – terá sido mesmo posterior? – ordenação

da argumentação. Ilustremos a nossa afirmação.

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i) A inserção na factualidade tida como provada dos elementos concernentes às

características físicas, psíquicas e sociais de Frederico (vítima do acidente) e o

seu potencial quer enquanto aluno quer enquanto futuro trabalhador surge

logo após a descrição das despesas com o funeral e actividades análogas. A

mesma sequência (lógica) aparece na decisão final do caso. Não era forçoso

que as características de Frederico viessem descritas após as despesas acima

mencionadas; isto só acontece tendo em vista um posterior – ou anterior -

juízo de ponderação dos danos a ter em consideração e do respectivo quantum

da indemnização.

ii) A descrição da factualidade imbricada com juízos de valor – juízo de censura

em relação a actuação do Estado - aponta para uma articulação lógica entre a

forma como os factos estão descritos e a ordenação da argumentação

constante da sentença.

iii) Por último, evidenciamos a forma como foi inserido, na factualidade, os

acontecimentos que rodearam a morte do menor Frederico. Esta inserção

poderia ter tido lugar logo no início quando se fez alusão a morte do menor.

Ao invés, as circunstâncias que envolveram a sua morte só aparece descrita

após o esclarecimento (mais uma vez lógico) do funcionamento dos parques

aquáticos em Portugal e de outros acidentes que ocorreram, bem como após a

referência aos diversos “apelos” para que medidas legislativas e de

fiscalização fossem tomadas.

São exemplos, segundo cremos, que tornam evidente a articulação lógica entre a

factualidade descrita na sentença e a ordenação dos argumentos avançados pelo Tribunal.

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3.3. A elaboração da sentença

Já tivemos a ocasião de ir avançando, ao longo desta nossa exposição, aspectos

relacionados com a elaboração da sentença judicial. É chegada a altura de completarmos

e sintetizarmos, evitando repetições desnecessárias, o quadro anteriormente desenhado.

É necessário ter presente que o método argumentativo foi desenvolvido, por exemplo, por

Aristóteles, tendo em vista a discussão oral (para o caso, nas audiências de julgamento. A

argumentação tópica no contexto da elaboração de uma sentença tem necessariamente de

ser articulada com a obrigação de fundamentação da sentença, que obriga o juiz a

adopção de um processo intelectual ordenado e lógico, onde cada argumento ocupe o seu

lugar determinado, inserindo-se numa cadeia lógica. Terá de haver uma articulação entre

o procedimento argumentativo e a fidelidade à lei.

Perante a sua argumentação no “caso aquaparque” a Juíza teria de se manter

“vinculada”20 à lei, a jurisprudência anterior, as construções doutrinárias e as regras de

processo penal. Toda a sua construção, como vimos, teve em conta estes elementos

condicionantes. A justificação material da sua posição perante as questões jurídicas que

apareceram e perante o caso concreto foi sempre articulada e balanceada por estas

condicionantes, sobretudo no que diz respeito à jurisprudência e a doutrina.

Na busca dos conceitos e preposições que pudessem ser partilhados pelo máximo de

pessoas possíveis, a Magistrada teve que identificar os interesses em causa e, este é o

aspecto mais significativo, encetar um juízo de prognose em relação aos efeitos

previsíveis da sua decisão e da influência desta em outros interesses juridicamente

relevantes, tal como a segurança jurídica. Daí que a sentença tenha tido o cuidado de

referir todos os aspectos que concorreram para se considerar a conduta do Estado como

culposo e tenha ainda, sempre que possível, citado jurisprudência anterior do STJ. Porquê

estes cuidados? Porque se analisarmos bem, o Tribunal fez o mesmo raciocínio que faz o

20 Não se trata de vinculação jurídica no verdadeiro sentido do termo (excepto em relação à lei e ao processo penal), mas antes de elementos condicionantes da decisão judicial.

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legislador em matéria de política legislativa: 1) tenta prever a influência da legislação no

comportamento dos agentes a que se destina; 2) tem em conta os outros interesses em

causa; 3) havendo conflito de interesses enceta uma tentativa de harmonização, através

do método da concordância prática.

Parte III: Conhecimento ou Desconhecimento da Utilização dos

Métodos

A Juíza terá tido consciência ou conhecimento dos métodos que aqui fizemos referência

ao longo da nossa exposição? Cremos que a resposta deve ser positiva em relação ao uso

da tópica e do procedimento argumentativo, mas negativa em relação às valorações e a

própria pré-compreensão.

Antes de justificarmos esta nossa afirmação, convém notar que a utilização de um método

jurídico não pressupõe o seu conhecimento por parte do intérprete do Direito. Basta que

as técnicas utilizadas correspondam, em grande medida, aos métodos utilizados por uma

determinada corrente metodológica. Por outro lado, também é necessário ter presente que

ter conhecimento da utilização de um método não implica, necessariamente, que o

intérprete conheça a literatura jurídica sobre o método em causa, a sua inserção espacio-

temporal e quem são os autores representativos. Apenas se exige, mais uma vez, uma

relação de identidade entre os métodos usados e uma corrente metodológica.

1. A influência automática das valorações

Todos nós – intérpretes – quando analisamos uma questão de Direito, seja ela abstracta

ou concreta -, temos sempre presente as nossas valorações e valores. Atente nos seguintes

exemplos. Ao analisar a questão da interrupção voluntária da gravidez e uma eventual

alteração legislativa, é preciso ter em conta a valoração que os agentes fazem dos

seguintes aspectos: vida humana, saúde da mulher, segurança jurídica da sociedade, etc..

Ao interpretarmos o novo estatuto do Tribunal Penal Internacional é essencial a

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concepção que temos acerca do Estado Nação, da noção de soberania, direitos humanos,

comunidade internacional e indivíduo enquanto sujeito de Direito internacional.

Ao analisarmos estas questões e ao resolvermos casos concretos os nossos valores estão

sempre presentes e, de forma inconsciente e automática, influenciam o modo como

interpretamos as normas jurídicas e como as aplicámos aos casos concretos. O mesmo

aconteceu no presente caso. A Juíza tem uma concepção de Estado, de lei constitucional e

de lei ordinária que influenciou a sua decisão em abstracto e na resolução do caso em

concreto.

2. O uso da pré-compreensão

O que se disse sobre as valorações aplica-se, mutatis mutandis, em relação às pré-

compreensões. Foi este o modo como a Magistrada abordou a questão:

- É «Direito justo» a existência de responsabilidade civil extra-contratual do Estado

pela prática de actos legislativos (com a eficácia directa ou imediata do art. 22º da

CRP);

- Haverá justiça no caso concreto se o Estado for condenado ao pagamento de uma

indemnização justa;

- Há responsabilidade do Estado pela prática de um acto (omissão) legislativo

ilícito e culposo;

- Esta é a solução que melhor se harmoniza com o «Direito justo».

3. O procedimento tópico e o conhecimento da sua utilização

Tal como tivemos ocasião de referir, houve por parte da Magistrada uma utilização do

procedimento argumentativo de forma consciente, eficaz e brilhante. Podemos comprovar

esta afirmação através de três ilustrações: 1) a arrumação ou ordenação lógica da

argumentação (jurisprudência, doutrina e decisão final); 2) Articulação entre a

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factualidade e a ordenação argumentativa; 3) ordenação lógica e não meramente temporal

da factualidade relevante.

Parte IV: Comentário Final

Dissemos na Parte I deste ensaio que a Juíza havia lançado mão de três conjuntos de

técnicas e processos metodológicos: jurisprudência dos valores, hermenêutica e a tópica.

De seguida, iremos analisar criticamente a utilização de cada um destes métodos. Não se

trata de resolver a questão de saber se o art. 22º da CRP engloba a responsabilidade civil

na função legislativa e se tem eficácia directa ou imediata21. Também não cuidaremos de

saber de no caso concreto terá havido omissão ilícita e culposa do Estado. O nosso

objectivo será apenas o de analisar a forma como foram utilizadas as diversas correntes

metodológicas.

1. Pré-compreensão: influência no processo e controlo da concordância

Todo o processo de compreensão terá de ser posto à prova, sob pena de subverter a lógica

da vinculação dos Tribunais e Juizes à lei e ao processo. Não seguimos nem concordamos

com Esser quando este diz que a «convicção de justeza» pode ser alcançada pelo Juiz de

forma prévia e independente da interpretação da lei ou de construções dogmáticas. Com

isto não estamos a afirmar que o Tribunal procedeu deste modo. No entanto, cremos que

o processo do controlo da concordância não foi tão longe quando deveria ter ido. A pré-

compreensão não foi testada de forma completa quanto era possível fazê-lo.

Em primeiro lugar, ficámos com a dúvida da existência ou não de jurisprudência que

contraria a posição da Juíza e da doutrina maioritária. Em nenhum momento a Magistrada

afasta esta possibilidade, invocando apenas acórdãos que vão no sentido da sua opinião.

A dúvida fica registrada. Em segundo lugar, a Magistrada apenas cita a posição defendida

por Maria Lúcia Amaral no sentido da não atribuição de eficácia imediata ou directa do 21 Sobre esta problemática v. Maria Lúcia Amaral, Dever de Legislar e Dever de Indemnizar. A propósito do Caso “Aquaparque do Restelo”, Revista Themis, Coimbra, Almedina, 2000 pp. 67 e ss.. Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil por Actos Legislativos, Coimbra, Almedina, 1992.

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art. 22º, mas não se confronta com ela. Ora a posição apresentada pela Profª. Maria Lúcia

Amaral envolve não apenas a matéria concernente ao princípio da constitucionalidade das

leis e a vinculação jurídica do legislador, mas também – e é aqui que queremos chegar –

os meios de protecção dos privados perante lesões provocadas por leis. Este último

aspecto não foi tido em conta na sentença o que, do nosso ponto de vista, torna

incompleto o controlo da concordância. Em terceiro lugar, não houve ponderação da

seguinte questão fundamental: admitindo que era exigido, ao Estado, legislação

especifica sobre medidas de segurança e utilização de parques aquáticos, seria exigível

que nessa legislação houvesse uma norma que regulasse as condições específicas do

posicionamento das grelhas de aspiração de água? Julgamos que esta não é a sede para

abordar tal questão. No entanto, é notório que só faz sentido condenar o Estado pela

omissão legislativa se a regulamentação, a existir, abrangesse a regulação das condições

de posicionamento das grelhas de aspiração de água. Em quarto e último lugar, diga-se

que em nenhum momento a Juíza chega a explicitar qual o órgão concreto que detém a

competência legislativa nesta matéria.

Um entendimento, ainda que provisório, das questões e dos factos do caso apenas nos

fornecem uma orientação inicial, mas é necessário testar de forma tão completa quanto

possível este pré-juizo. E por aqui nos quedamos.

2. As valorações

Do nosso ponto de vista não se pode retirar da CRP, tendo em conta a sua natureza e

posicionamento na ordem jurídica portuguesa, obrigações concretas para o legislador no

sentido de legislar para protecção da saúde e a integridade física dos indivíduos. Aquilo

que a lei constitucional quis foi tão só dar uma orientação no sentido de que o Estado

deve proteger estes bens jurídicos. Foi deixada ao legislador a forma e o método de

protecção; perante as circunstâncias e a evolução da sociedade este estará em melhor

posição para ajuizar da oportunidade e correcção de uma medida legislativa. Não é

legítimo retirar de toda e qualquer norma da CRP uma vinculação precisa e concreta por

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parte do legislador ordinário. Não cremos ser esta a ratio legis deste tipo de normas. Por

conseguinte, a vinculação do legislador ordinário não é tão ampla e rígida como entende

o Tribunal no “caso auquaparque”. Apesar disto, não podemos deixar de admitir que a

concepção da Juíza sobre Estado e Lei é plausível e juridicamente defensável.

3. Os argumentos e a sua arrumação lógica

Já abordamos anteriormente esta questão22. Em jeito de conclusão diremos apenas que

nos pareceu que o uso do procedimento argumentativo, nomeadamente quando este é

articulado, na fase de elaboração da sentença, com a factualidade provada, revelou uma

grande capacidade de exposição e persuasão da sentença. Do nosso ponto de vista não

temos nada a apontar em termos depreciativos. No entanto, dois aspectos merecem uma

palavra final.

Dissemos que na arrumação argumentativa procedeu-se a um juízo de prognose acerca

das possíveis consequências da decisão judicial e da sua influência em relação a outros

interesses juridicamente atendíveis. Foi feita uma equiparação entre este modo de agir e o

modo de proceder do legislador (política legislativa). Apesar de concordamos com a

inevitabilidade da existência de uma “veia” criadora do Juiz, chamamos a atenção para o

facto de caber ao Juiz o juízo acerca das consequências de longo alcance de uma

regulamentação jurídica. Na ausência da norma jurídica, o julgador está numa posição

semelhante, mas nunca poderá, nesse juízo de prognose, perder aderência com caso sub

judice.

Uma nota final para o modo de elaboração de uma sentença no âmbito do procedimento

argumentativo. Nesta fase não interessa determinar que tem os melhores argumentos; o

que releva é um discurso jurídico formal que esteja estruturado de acordo com regras e

procedimentos lógicos.

22 Cfr. supra pp. 21 e ss..

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Conclusão

É chegado o momento das palavras finais. No “caso aquaparque”, como em toda e

qualquer decisão de um Tribunal, houve a utilização de métodos jurídicos por parte da

Juíza. Partindo de uma concepção de Estado, lei constitucional e lei ordinária, através da

sua pré-compreensão e com utilização brilhante de um procedimento argumentativo,

exposto na altura da elaboração da sentença, a Juíza chegou ao seu resultado justo, a sua

«convicção de justeza».

Julgamos poder sintetizar o raciocínio da Juíza numa só frase: há um «Direito Justo» que

deve estar explanado, de forma mediata ou mediata, directa ou indirecta, nas normas

jurídicas. Cabe ao julgador fazer justiça, isto é, tornar justo o «Direito Justo».

Veremos se em recurso o Tribunal manterá esta «convicção de justeza» ou se terá outra

para apresentar.