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Ditadura militar e concordata moral

Carlos Fico

Serbin, Kenneth P.Diálogos na sombra:bispos e militares, tortura e justi-ça social na Ditadura. Tradução deCarlos Eduardo Lins da Silva. SãoPaulo: Companhia das Letras,2001. 566p.

Críticas acerbas provindas deintelectuais brasileiros atingiam osbrasilianistas no final dos anos 1970:acusados de terem acesso privilegia-

do a documentos históricos, e atémesmo de serem agentes disfarçadosda CIA, a principal censura acadê-mica que se fazia aos pesquisadoresnorte-americanos interessados na história brasileira era a de fragilida-de teórica: empiristas, seus trabalhosseriam ingênuos, carentes de sofis-ticação analítica. No Brasil, era a época do embate entre “velhos” e“novos”, isto é, entre a história tra-dicional factualista e os enfoquesrenovadores do marxismo e da fasebraudeliana dos Annales . Por isso,soava especialmente retrógrada a

opção de alguns brasilianistas pela história narrativa e descritiva que,em alguns casos, focalizavam apenas

as elites e os poderosos. Não é o casode se discutir aqui a justeza dessascríticas, mas acho interessante notarque, em seu mais recente livro,Kenneth P. Serbin optou precisa-mente pelo que ele chama de “nar-rativa interpretativa” e pelo estudodas elites, passando ao largo das aná-lises de fenômenos políticos de uma perspectiva cultural ou antropológi-ca — tendência forte inclusive en-

tre norte-americanos, como lembra-do por Roberto M. Levine — quebuscam, desse modo, renovar a his-tória política tradicional.

Portanto, a consideração do li-vro de Serbin não suscita apenas oexame do seu estrito objeto de aná-lise (relações entre Igreja Católica eDitadura Militar). Enseja tambémuma reflexão sobre as virtualidadese os limites da abordagem de temasque não sejam próprios à história pátria (algo, infelizmente, muitoraro entre historiadores brasileiros)e sobre a problemática teórica de

nossa disciplina, que vive os rescal-dos da assim chamada “crise da his-tória”. Naturalmente, este não é o

Topoi , Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 191-199.

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espaço para o desenvolvimento de

tão amplas questões. Aqui devemosnos restringir a pergunta mais sim-ples, sobre como um brasilianista denova geração enfrenta tais proble-mas. Serbin opta pelo que vem setornando a “saída” encontrada pormuitos de nós, que nos assombra-mos com as críticas feitas às preten-

sões de objetividade da “velha” his-tória dos meados do século XX: orefúgio na pragmática metodológi-ca (revalorização do material histó-rico, especialmente através do docu-mento excepcional e/ou inédito; a reafirmação da capacidade gnoseo-lógica da história de alcançar a ob-

jetividade etc.) e a busca de uma história “agradável de se ler”, espé-cie de reconhecimento da dimensãoestética ou ficcional da narrativa his-tórica — reação algo paradoxal àscríticas que a teoria literária nosassacou a partir dos anos 1970.

Assim, a opção de Serbin peloque ele chama de “narrativa interpre-tativa” define-se pela necessidade deconstituição de uma “ainda inci-piente narrativa histórica da era Médici” (p. 12), algo que supõe a hi-pótese epistemológica da possibili-dade de constituição de uma tal nar-rativa objetiva. De outro lado, oempreendimento assenta-se na cren-

ça de que a constituição dessa nar-

rativa, “ao retratar a convergência deindivíduos, incidentes e tendências”(mesma página), bem esclarece a his-tória, pois o acaso, o indíviduo e seusrelacionamentos pessoais seriamfundamentais para se compreender,no caso, a Ditadura Militar. Comose vê, há muitas formas de se resga-

tar o papel do indivíduo, que a his-tória marxista e “estrutural” pratica-mente elidiram, e não apenas o re-ceituário da história que tem sidochamada de “pós-moderna”. Dito demaneira mais explícita, a estratégia cognitiva de recuperação doindíviuo (cara aos autores do que seconvencionou chamar de “Nova História”) pode estar associada à crença, tipicamente moderna, noalcance explicativo do conhecimen-to objetivo. Além dessa fundamen-tação teórica, a opção de Serbin pela “narrativa interpretativa” busca ser

acessível ao público não especializa-do, na medida em que evita o jargãoacadêmico.

Não se pense que a menção a essas questões seja o intróito de uma daquelas diatribes que abalaram asrelações entre alguns historiadoresbrasileiros e os brasilianistas norte-americanos nos anos 1970/80: esta-mos todos no mesmo barco, e as re-

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flexões que o novo trabalho de Ser-

bin possibilitam servem-nos, igual-mente, para a consideração de nos-sos próprios limites e deficiências.Mas, na verdade, o problema teóri-co posto pela já antiga “questão da narrativa” nada tem a ver com a op-ção, que todos temos procurado fa-zer, por uma escrita atraente. Cor-

remos sempre o risco do recurso aofútil ou ao frívolo: de fato, numa primeira mirada, parece irrelevantesaber que uma das personagens prin-cipais da trama que Serbin recons-tituiu (Candido Mendes) aprecia “peixe ao molho de camarão” (p.38), mas o autor não é um ingênuo,e esse tipo de informação serve para compor não apenas o perfil das per-sonalidades envolvidas, como tam-bém introduz algo que parece serindispensável à compreensão da metodologia da história do “tempopresente”: a própria trajetória da

pesquisa. Kenneth P. Serbin está ab-solutamente presente em seu livro,pois a todo momento podemos vê-lo narrando como conseguiu esta ouaquela entrevista, ou como chegouà descoberta de sua notável docu-mentação. Compartilhar com o lei-tor essas “narrativas” — aquela pro-priamente histórica e aquela que serefere à pesquisa e à trajetória indi-

vidual do autor — não deixa de ser

uma saída apropriada para nossa disciplina, que tem tantas dúvidassobre a eficácia epistemológica deseus procedimentos metodológicos.Os riscos propriamente estéticos ouliterários não devem servir comodesestímulo.

Kenneth P. Serbin pesquisa a

história contemporânea da Igreja Católica brasileira há mais de quin-ze anos. Tendo vindo ao Brasil, em1986, para estudar português, inte-ressou-se pela dita “Igreja progressis-ta”, que lhe pareceu viva e dinâmi-ca, diferentemente do “insípido ca-tolicismo da América do Norte” (p.50). Abandonou, na ocasião, seusantigos interesses pela história me-xicana e decidiu fazer uma tese so-bre a história da formação do clerobrasileiro, que lhe valeu o doutora-mento, em 1993, pela University of California, San Diego (Needs of the

heart: a cultural and social history of Brazil’s clergy and seminaries ). Diá-logos na sombra é uma tradução eampliação de Secret dialogues:Church-State relations, torture, and social justice in authoritarian Brazil ,publicado pela University of PittsburghPress, em 2000, livro que resultou,principalmente, das pesquisas que oautor fez nos arquivos pessoais do

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general Antônio Carlos da Silva

Muricy, custodiados pelo CPDOCe liberados para consulta no final de1992. Para a versão em português,Serbin fez novas pesquisas (sobretu-do entrevistas) e reescreveu o texto.

A principal contribuição deDiálogos na sombra é revelar a exis-tência de uma assim chamada “Co-

missão Bipartite”, fórum informalde discussões entre a Igreja e os mi-litares, durante o governo Médici eo início do governo Geisel. O rela-cionamento entre governo e Igreja estava bastante deteriorado, em1970, em função das denúncias detortura e maus-tratos que atingiamos católicos, inclusive o clero. Poriniciativa de Candido Mendes, dogeneral Muricy e de Tarcísio Padilha — e com a aprovação do presidenteMédici —, ao longo de 4 anos fo-ram realizados 24 encontros, para que cardeais, bispos, militares e in-

telectuais discutissem abertamente a repressão e o ativismo político da Igreja.

Para a feitura do livro, Serbinoptou por uma estratégia que com-bina a cronologia do período comtemáticas importantes da Ditadura Militar (“doutrina” de segurança nacional, acusações de tortura, pro-blemas de censura etc.), que, a par-

tir da constituição da Comissão

Bipartitie, estiveram naturalmentepresentes nos “diálogos” patrocina-dos pelo órgão. Além de um prefá-cio e de uma introdução em que oautor situa os pressupostos da pes-quisa (os que se referem à conjun-tura histórica e os que dizem respei-to à sua própria atuação como pes-

quisador, isto é, as percepções queteve da Ditadura Militar, da Igreja Católica no período e, mormente,da biografia dos envolvidos na Co-missão), o livro se desenvolve ao lon-go de capítulos que vão combinan-do a própria sucessão de reuniões da Comissão com os temas “quentes”que iam se constituindo como pau-ta dos encontros. Assim, após oscapítulos introdutórios, há um queaborda a discrepância entre os prin-cípios de Medelin e os propósitos da “doutrina” de Segurança Nacional;outro que esclarece a tentativa do

governo militar de enquadrar asmanifestações da Igreja por ocasiãodas comemorações do Sesquicente-nário da Independência (1972);outro sobre direitos humanos, refu-giados e censura; um outro sobre a momentosa morte de soldados numquartel de Barra Mansa, e, antes da conclusão, uma narrativa sobre a morte do estudante Alexandre

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Vannucchi Leme e os protestos da

Igreja que se seguiram.Portanto, vê-se que, inicial-mente preocupada com questõesabrangentes, como “uma visão cris-tã do desenvolvimento” (p. 243),logo a Bipartitie teve de enfrentar osepisódios cotidianos da conjuntura política, como as denúncias de tor-

tura ou a divulgação, pela Igreja, dedocumentos críticos. A Comissãoseria extinta em 1974, pelo presiden-te Geisel, que preferiu delegar aoscomandantes de área do Exército a tarefa de estabelecer contato com osbispos. Da leitura deDiálogos na sombra fica a impressão de que asreuniões serviram para, de algummodo, preservar, precária e infor-malmente, a “concordata moral”,isto é, a convenção entre Estado eIgreja que busca resguardar os inte-resses de ambos: de um lado, na im-possibilidade de obter o apoio da Igreja, o governo Médici pretendia,ao menos, arrefecer o ânimo críticoda “Igreja progressista”; de outro, era vantajoso para a Igreja manter umcanal de comunicação com o gover-no militar, tendo em vista a preser-vação de vantagens materiais e sim-bólicas que somente o Estado podia prover.

O trabalho de Kenneth P. Ser-bin pertence a uma etapa da histo-

riografia sobre o período que pode-

ríamos chamar de transição. De fato,como costuma ocorrer com socieda-des que viveram regimes opressivos,num primeiro momento tivemosconhecimento da Ditadura Militarsobretudo através de uma memoria-lística, fruto principalmente dos re-latos dos militantes de esquerda queoptaram pela luta armada e dos de-poimentos de militares, embora também enriquecida por testemu-nhos de diversos agentes históricos,como jornalistas, artistas e outros.Tal memorialística, para o historia-dor de hoje, constitui-se, a um sótempo, em fonte e objeto da histó-ria do regime militar, pois se ela des-creve o período e suas mazelas —sendo fonte —, igualmente fornecesuas interpretações necessariamenteparciais — passíveis portanto deanálise histórica.

Também a história política tra-

dicional, sobretudo amparada nasfontes jornalísticas, vem contribuin-do para a construção de algunsenunciados tidos como verdadesconsabidas, erigindo este ou aqueleepisódio em “marco histórico”, oque colabora, igualmente, para a constituição de certa mitologia po-lítica. É o caso do suposto “legalis-mo”, “moderação” ou “caráter de-

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mocrático” de Castello Branco, ou

de episódios momentosos que aca-bam servindo para definir uma cro-nologia do período (demissão docomandante do II Exército, Ednar-do Dávilla Melo; afastamento doministro do Exército, Sílvio Frota etc.).

Desse modo, o desafio para oshistoriadores que se debruçam sobreo período da Ditadura Militar con-siste em superar essa fase (o que nãosignifica desprezá-la), confrontandoos conflitos de memórias e os enun-ciados aparentemente estabelecidos.Para tanto, novas fontes devem serbuscadas, notadamente aquelas denatureza sigilosa e emanadas do pró-prio regime, pois é flagrante que di-ficilmente surgirão novas revelaçõesno campo das memórias, como já destacou Jacob Gorender. A tarefa poderia parecer de difícil realização,pois, para o senso comum, tais do-

cumentos provavelmente teriamsido destruídos. Felizmente não foiassim: aos poucos, tornam-se aces-síveis acervos outrora secretos, pro-duzidos por instâncias das comuni-dades de segurança e de informa-ções, da propaganda política, dosórgãos de censura e assim por dian-te. Do mesmo modo, importantesarquivos privados também vêm à

tona, como os dos generais Geisel e

Muricy.É esse tipo de documentaçãoque tem permitido revisar algunsmitos e estereótipos. Por exemplo,hoje temos elementos bastante con-sistentes para negar as versões queatribuíam o AI-5 à reação, pela linha dura, ante a opção, por parte da es-querda, pela luta armada, ou vice-versa, haja vista o caráter autônomode ambos os projetos (para parte da esquerda revolucionária, o da luta armada, e, para a linha dura, o da eliminação de quaisquer dissensõesem face das diretrizes da “segurança nacional”). O mesmo pode ser ditoda tortura: negada pelos militaresnum primeiro momento, atribuída aos “excessos” de subalternos numsegundo, hoje não é mais possívelnegar a responsabilidade e conivên-cia dos oficias-generais. Outros es-tereótipos também vão sendo revis-

tos, como o do caráter supostamen-te combativo da imprensa ante a censura política: às poucas atitudesde contestação, somavam-se nume-rosas práticas de autocensura e con-vivência pragmática com censores,como perceberam Anne-MarieSmith e Beatriz Kushnir. Igualmen-te, a mítica capacidade dos guerri-lheiros brasileiros de esquerda trei-

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nados em Cuba — que serviu como

justificativa para as ações bárbaras da linha dura — era avaliação que des-conhecia o elevado grau de roman-tismo e, sobretudo, de improvisaçãodos exercícios, como revelou Deni-se Rollemberg. Com a pesquisa deSerbin, agora é a vez da “Igreja pro-gressista”.

O autor possui grande domí-nio da bibliografia (inclusive da maisrecente) e soube mesclar muito bemas fontes encontradas no arquivo deMuricy com as entrevistas que fezcom participantes da Bipartite. Esta foi a principal estratégia que usoupara tentar completar as lacunas da documentação, pois Muricy, ciosode sua biografia (como tantos outrosmilitares), fez ele próprio uma sele-ção dos papéis, de modo que algu-mas reuniões não estão documenta-das (p. 215). Serbin não usou “ima-ginação histórica”, preferindo recor-

rer às entrevistas orais, e deixa bas-tante claro, para o leitor, as incom-pletudes do material histórico. Nãoobstante, poderia ter-se empenhadoainda mais na “desconstrução” doacervo, pois arquivos particulares,como todos sabemos, são construc-tos artificialíssimos, que devem serinterpretados muito mais comoartefactos pensados por seus autores

(no caso, Muricy), do que como

vestígios reveladores da própria di-mensão ontológica da história.O texto é bem elaborado, e o

relato das reuniões, que poderia serenfadonho, ganha em interesse coma habilidade de Kenneth P. Serbinde, ao mesmo tempo, construir uma narrativa da história do período e da

história de sua pesquisa, como já mencionado. Talvez o livro pudesseser mais sintético, já que alguns as-pectos, provavelmente importantespara o leitor estrangeiro, surgemcomo supérfluos para o brasileiro(notadamente a recensão sobre a re-lação entre Igreja e Estado desde os

anos 1950 no capítulo 1).Em alguns momentos transpa-

rece uma visão algo otimista, uma tentativa de valorizar demasiada-mente a Bipartite, o que é natural,pois todos tendemos a celebrar nos-sos objetos de estudo, mas quandoSerbin diz que Médici usou “mais doque apenas repressão para lidar coma Igreja” (p. 52), ele parece sugerirque o general tenha tido uma inicia-tiva sincera de diálogo, e a própria pesquisa demonstra ânimo contrá-rio: uma tentativa de manipular a Igreja, de refrear a impetuosidade dealguns bispos.

Um dos bons momentos deDiálogos na sombra é o enfrentamen-

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to do antigo e temível problema da

relação entre estrutura e sujeito: porum lado, a “utopia autoritária” da linha dura, (que consistia em com-pletar a “operação limpeza” iniciada em 1964), amplamente vitoriosa após o AI-5, recomendava a expul-são de padres, a pressão ao Vaticanopara se obter a transferência de bis-

pos, a eliminação de subsídios àsobras assistenciais da Igreja e, no li-mite, a prisão, a tortura e o extermí-nio de católicos “vermelhos”. Poroutro, foi a trajetória pessoal de al-guns indíviduos que, de algummodo, gestou a Comissão. Em gran-de medida, o que parece ter movidoo general Muricy, um católico pra-ticante, foi sua consciência trágica da condenação moral que a Igreja esta-va impondo ao regime militar. Des-se modo, não parece abusivo falar-se de um oportunismo da parte deMédici e de seus assessores radicais

ao deixarem Muricy agir e obter osganhos possíveis, sem que uma contrapartida mais conseqüente fos-se alcançada pela Igreja.

Nessa mesma linha, ressalte-sea qualidade da pesquisa por deline-ar, em toda a sua complexidade, ospersonagens envolvidos, evitando osimplismo dos rótulos generalizado-res. Assim, Eugênio Sales surge não

apenas como o cardeal conservador,

mas também como defensor dos di-reitos humanos e benfeitor de refu-giados políticos. Do mesmo modo,Fernando Gomes dos Santos, bispo“progressista” de Goiânia, aparecefazendo críticas públicas ao regime,mas contemporizando com os mili-tares no âmbito da Bipartite.

O autor critica, corretamente,a divisão clássica dos militares entreos linhas-duras e os moderados,questionando a classificação deMédici como um linha-dura, já queo general patrocinou a Bipartite (p.60). Realmente, a divisão é frágil enão realça muitos matizes e combi-

natórias, como as que dizem respei-to à adesão a modelos de desenvol-vimento econômico ou, mesmo, aoposicionamento diante da tortura (Geisel, por exemplo, um “modera-do”, achava a tortura um mal me-nor...). Porém, não se pode descar-tar a velha classificação: a história da Ditadura também pode ser entendi-da como a trajetória da linha dura,que, de grupo de pressão durante ogoverno de Castello Branco, passoua “comunidade de informações e desegurança”, institucionalizadamen-te, a partir do AI-5, tendo seu augeprecisamente sob o governo Médici.

Kenneth P. Serbin critica oshistoriadores que dão muita ênfase

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ao aspecto repressivo da Ditadura

Militar, acrescentando que o gene-ral Muricy e a Bipartite “apresentamum quadro diferente das Forças Ar-madas” (p. 61). Não creio qua a ava-liação seja correta. De fato, esse tipode interlocução jamais deixou deexistir, embora em termos restritos,sem alcançar a sistematicidade e a

dimensão auferidas pela Bipartite.Penso em episódios ainda nebulosos,como o momento inicial do gover-no Costa e Silva e sua proposta deum “humanismo social” e suas ten-tativas de diálogo com alguns seto-res da sociedade, que em nada resul-taram. Ou nas conversações da “Missão Portela”, especialmente nofinal de 1977. Ou, ainda, nas nego-ciações que culminaram na aprova-

ção do projeto de anistia, em 1979.

Naturalmente, seria improcedentecomparar esses “diálogos na meia-luz” com os encontros secretos da Bipartite, mas eles pertencem aomesmo campo.

Apesar da dimensão diferencia-da da Bipartite, as iniciativas de diá-logo do regime militar tiveram um

papel subsidiário e, muitas vezes,não passaram de diversionismo. A utopia que prevaleceu não foi a dodiálogo ou a da harmonia, mas a já mencionada “utopia autoritária”.Infelizmente, o vetor preponderan-te foi mesmo o repressivo. O diálo-go que se pode brindar, isto sim, é oque se estabelece entre as renovadastradições da história política — aquie alhures.