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GT 6. Socialismo no século XXI e problemas da transição 35

Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina ISSN: 2177-9503

Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI

14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL

GT 6. Socialismo no Século XXI e problemas da transição

Tópicos sobre a transição: Tópicos sobre a transição: Tópicos sobre a transição: Tópicos sobre a transição: a a a a revolução russa e o revolução russa e o revolução russa e o revolução russa e o pensamento de Leninpensamento de Leninpensamento de Leninpensamento de Lenin

Gustavo Casasanta Firmino∗

De nada valem as idéias sem homens que possam pô-las em prática

Karl Marx

A história tem nos dado, ao longo de tumultuadas décadas, diversos exemplos de práticas democráticas e horizontais de organização política da classe trabalhadora em torno de suas demandas. Tais organizações surgiram de forma mais marcante em momentos de aguda crise revolucionária. Alguns dos exemplos mais conhecidos são a Comuna de Paris de 1871, as Revoluções Russas de 1905 e 1917, a Revolução Alemã de 1918/1919, e a Revolução Húngara de 1956. Os conselhos operários (certamente a mais importante forma de organização política dos trabalhadores) surgiam quase sempre do improviso e de forma descentralizada; de organizações clandestinas, passavam a organizações de massa que articulavam, ao mesmo tempo, reivindicações econômicas (conquista de direitos diversos no terreno da produção) e políticas (a crítica à organização política burguesa, ao substitucionismo parlamentarista, etc.). Em ambos os momentos, como pano de fundo, o que se colocava era a própria superação do capitalismo.

* Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina - UEL/PR. Este artigo retoma alguns pontos expostos de maneira mais consistente na monografia Estado, partido e sovietes: os desafios da transição socialista na União Soviética. Londrina: CCH, UEL, 2009. End. eletrônico: [email protected]

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Por outro lado, os partidos políticos adeptos do ideário revolucionário tradicionalmente contaram com uma intelligentsia partidária, com estatutos e programas previamente definidos e com uma concepção teórica (pelo menos por parte de seus dirigentes) acerca dos problemas colocados pela realidade concreta. Dito isso, é necessário acrescentar que houve toda uma orientação teórica predominante tanto na antiga tradição socialista representada pela Segunda Internacional, bem como na posterior tradição comunista, representada pela Terceira Internacional, em identificar a classe trabalhadora enquanto existente apenas no terreno da produção (no plano estritamente econômico), de modo que a consciência propriamente política de classe adviria do partido (expressão trabalhada sempre no singular, por grande parte da tradição marxista do século XX) (BOITO, 2003, 239-40). Primeiro ponto de debate deste artigo gira em torno da relação entre partido (pensado do ponto de vista teórico, estratégico e programático) e o movimento de massas.

Tomaremos como referencial histórico as discussões relativas à organização de massas no episódio da Revolução Russa de 1917. A opção se deve ao fato de que das revoluções de caráter socialista, nessa em especial, pôde-se notar tanto a influência teórica da antiga tradição socialista da Segunda Internacional, bem como seus reflexos fizeram-se sentir numa tradição posterior, representada na Terceira Internacional Comunista. De tal sorte, embora a experiência russa não tenha sido a primeira, nem sequer a última, no que se refere à transição foi, sem dúvida, a mais significativa na orientação do movimento comunista (ocidental e oriental) ao longo do século XX. Do ponto de vista teórico, partiremos de algumas das reflexões de Lenin1 no tocante à discussão proposta.

Uma questão importante: partido e democracia na transição socialista

São sempre clássicas as formulações de Lenin a respeito do papel do partido operário nos acontecimentos revolucionários, na elaboração de bandeiras de luta e na organização do proletariado enquanto classe em torno de um programa político comum. Assim sendo, interessa saber que Lenin teorizava a organização partidária como que dividida em três eixos centrais de crescente importância: organização, estratégia e programa, onde se opera uma clara divisão do trabalho partidário entre base (militantes) e executiva partidária (vanguarda), aproximando esse tipo de organização partidária ao núcleo duro das empresas capitalistas, onde há um grupo diminuto e melhor

1 A opção se deve ao fato de ter sido Lenin importante teórico, militante e dirigente partidário. Como bem lembrara Bettelheim (1976, 118); o partido bolchevique podia ser considerado um partido leninista, na medida em que reconhecia em Lenin o seu dirigente melhor armado teoricamente (embora nem sempre o partido aderisse às proposições do líder bolchevique de maneira “espontânea” ou ainda que as análises de Lenin fossem a expressão exata daquilo que o partido ou sua direção pensavam).

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remunerado, que fixaria de antemão um programa a ser seguido (CARDOSO, 2007, 8).

De acordo com Duarte Pereira (2003, pp. 232-3) o pensamento de Lenin herdou as concepções político-revolucionárias da Segunda Internacional Comunista, de modo que em concordância com Kautsky, o autor concebia que a “consciência espontânea” do proletariado (a que lhe é dada pela posição ocupada na produção) não conduziria ao socialismo, de tal modo que seria necessária uma teorização científica advinda “de fora” da classe trabalhadora, de uma vanguarda política, no caso, o partido. Formulações dessa ordem foram por vezes denunciadas como “autoritárias” ou “vanguardistas”, por conceber a ação política a partir de uma organização centralizada e de programas partidários definidos por uma cúpula dirigente.

Na obra Um passo a frente, dois atrás (1902), Lenin definiria o social-democrata enquanto “um jacobino indissoluvelmente ligado à organização do proletariado com consciência de classe” (LENIN, 1982, 227). De acordo com Rosa Luxemburgo, Lenin nesse momento, teria enxergado que a união de um rigoroso centralismo organizatório somada ao movimento de massas social-democrata um princípio específico do marxismo revolucionário (LUXEMBURGO, 41). Ainda segundo a autora, nessa perspectiva, verifica-se uma separação entre a tática e as tarefas detalhadas da ação (fixadas de antemão, como um plano determinado) e a luta de classes elementar (ibidem, 42-3).

Há de se notar, todavia, que além de razões teóricas, as posições de Lenin referentes à organização revolucionária possuíam também raízes históricas. A Rússia no início do século XX ainda não havia experimentado a via democrático-parlamentar como os países de capitalismo desenvolvido no Ocidente, nem tampouco contava ainda com uma tradição consolidada do movimento operário. Some-se a isso o fato de que os partidos revolucionários russos provinham de um antigo movimento denominado Narodnaja Volja (Vontade do Povo), socialista e de caráter populista donde proviera o partido social-democrata fundado em 1898, e posteriormente dividido em duas frações: bolcheviques e mencheviques (FERRO, 17-8). A cisão da social-democracia russa ocorrera em 1902, quando os bolcheviques, liderados pelas teses de Lenin, preconizaram a defesa de um partido de “revolucionários profissionais”, centralizado, de efetivo limitado e manejável (ibidem, 19).

Entretanto, também é correto que o episódio da Revolução Russa de 1905 contribuiria para uma mudança no pensamento de Lenin em relação à importância do partido e das organizações de massa no interior da revolução. Para Cardoso (2007, 97), a abertura à experiência soviética proveio da tentativa de aproximação de duas estruturas distintas: partido e

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sovietes2. Contudo, o partido não deixaria de exercer seu protagonismo. Na verdade, o reconhecimento da importância política dos sovietes, nesse momento, deveu-se, fundamentalmente, pela mobilização insurrecional que essas organizações foram capazes de provocar, e não pela potencialidade de serem o lócus político do governo da classe operária, ou a base político-econômica de um Estado socialista.

Após ter contato com os textos de Marx sobre a Comuna de Paris, os conselhos passaram a figurar, no pensamento leniniano, enquanto corpo legislativo e órgão definidor de políticas, exercendo assim papel muito mais amplo. É conhecida a principal bandeira dos bolcheviques às vésperas da Revolução de Outubro de 1917: “todo poder aos sovietes!”. Nas suas famosas Teses de Abril (1917), Lenin deixava claro quais deveriam ser as tarefas do partido em relação aos sovietes:

Explicar às massas que os Sovietes de deputados operários são a única forma possível de governo revolucionário e que, por isso, enquanto este governo se deixar influenciar pela burguesia, a nossa tarefa só pode consistir em explicar os erros de sua tática de modo paciente, sistemático, tenaz e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas.

Enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem de seus erros.

Não uma república parlamentar – regressar dos Sovietes de deputados operários a ela seria um passo atrás, mas uma república dos Sovietes de deputados e operários, assalariados agrícolas e camponeses em todo o país, desde baixo até acima (LENIN, 1988, 14).

As teses de Lenin adiantaram alguns pontos essenciais de O Estado e a Revolução (1917), em linhas gerais: a reivindicação de um Estado-Comuna (ou seja, cuja prefiguração havia sido a Comuna de Paris de 1871), lembrando em muitos aspectos as análises de Marx acerca das medidas colocadas em prática pela Comuna, e que foram pontuadas em A Guerra Civil em França (1871).

Após a tomada do poder em outubro, os bolcheviques dissolvem a Assembléia Constituinte (a defesa da convocação de uma nova Constituinte havia sido uma das bandeiras do partido, bem como de diversas outras organizações revolucionárias), defendendo o ponto de vista de que esta seria apenas uma forma de representação política tipicamente burguesa, e não

2 O termo original “soviet” provém do russo, e significa “conselho”. No contexto russo, os sovietes despontam pela primeira vez, enquanto forma de representação política dos trabalhadores, às vésperas da primeira Revolução Russa em 1905.

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coincidiria com a democracia proletária, num contexto em que o poder soviético encontrava-se largamente constituído. Nesse ponto, há uma identificação imediata entre sovietes e ditadura do proletariado em oposição ao parlamentarismo. Na obra A ditadura proletária e o renegado Kautsky, escrita um ano após a revolução de outubro, Lenin colocaria a questão da seguinte forma:

(...) na Rússia quebramos completamente o aparelho burocrático, não deixamos dele pedra sobre pedra, afastamos todos os velhos juízes, dissolvemos o parlamento burguês e demos precisamente aos operários e aos camponeses uma representação muito mais acessível, os seus Sovietes substituíram os funcionários, ou os seus Sovietes foram colocados acima dos funcionários, os seus Sovietes tornaram eletivos os juízes. Este simples fato basta para que todas as classes oprimidas reconheçam que o Poder Soviético, isto é, esta forma da ditadura do proletariado, é um milhão de vezes mais democrática que a mais democrática república burguesa (LENIN, 1980, 19).

Adiante, nesse mesmo texto, Lenin defenderia a estatização dos sovietes, baseado numa concepção unicamente instrumental do Estado, em outras palavras, a idéia de que o Estado seria apenas algo de que a classe dominante se serve segundo seus interesses classistas. Logo, a estatização dos sovietes permitiria a instauração imediata de uma organização estatal proletária em detrimento da antiga organização burguesa3 (LENIN, 1980, 28). Na polêmica contra Kautsky, advogaria a tese de que:

Quem compartilhasse seriamente a concepção marxista de que o Estado não é mais do que uma máquina para a repressão duma classe por outra, quem refletisse minimamente nesta verdade, nunca teria podido chegar ao absurdo de que as organizações proletárias, capazes de vencer o capital financeiro, não devem transformar-se em organizações estatais. É precisamente neste ponto que se manifesta o pequeno burguês, para o qual o Estado é, “apesar de tudo”, algo fora das classes ou acima das classes. Com efeito, porque é que seria permitido ao proletariado, “uma só classe”, conduzir uma guerra decisiva contra o capital, que exerce a sua dominação não só sobre o proletariado mas sobre todo o povo, sobre toda a pequena burguesia, sobre todo o campesinato, mas não seria permitido ao proletariado, “uma só classe”, transformar a sua organização em organização estatal? Porque o pequeno burguês teme a luta de classes e não a leva até o fim, até o principal (LENIN, 1980, 28).

Sabemos que o principal problema colocado à transição socialista na União Soviética foi o do fortalecimento de um aparelho de Estado rígido (militarizado e hierárquico) e centralizado. O processo de simbiose entre o

3 Também é importante compreender que em outros momentos Lenin abandonaria a visão de uma identificação imediata entre Estado e classe operária (como na polêmica em relação ao papel dos sindicatos em 1920-1921), teorizando a necessidade de liberdade política dos trabalhadores em relação ao Estado, com vistas a evitar sua autonomização.

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partido (bolchevique) e o Estado, bem como a luta política e teórica de Lenin e de outros dirigentes partidários contra tal tendência, certamente mereceriam um capítulo à parte. Todavia, é forçoso concluir que os conselhos, outrora reconhecidos como pilares do regime nascido em outubro, rapidamente perderam sua significação originária. Com o banimento dos demais partidos políticos, formalizado no X Congresso do Partido Comunista (bolchevique), em março de 1921, consolidava-se uma tendência afirmada durante a guerra civil (1918-1920): os conselhos tornaram-se câmaras de registro, divulgação e assimilação das decisões do partido (REIS FILHO, 2002, 75).

No processo de ascensão ao poder, os bolcheviques teriam cultivado uma maior sensibilidade em relação aos interesses dos movimentos sociais sem deixar, porém, de resguardar sua própria autonomia em relação à sociedade. “No universo de referências por eles cultivados, os bolcheviques se viam menos como expressão da sociedade em movimento do que como intérpretes de uma teoria revolucionária” (ibidem, 80).

O entendimento do partido revolucionário enquanto interprete autorizado de uma realidade, e cujo discernimento teórico seria fundamental para lograr fins concretos constituiu-se em tradição teórica no interior do marxismo. As análises de George Lukács, adiantadas na sua mais importante obra de juventude Historia e Consciência de Classe (1923), nos fornecem um bom exemplo nesse sentido. Na referida obra, o autor opera todo um esforço teórico no sentido de pensar a realidade social enquanto totalidade, o que romperia com visões parcelares de teorias de outros matizes (esse seria o grande diferencial entre o materialismo dialético e a ciência burguesa). Retomando e radicalizando algumas indicações de Lenin, o autor argumenta que “a verdadeira consciência de classe” (a consciência propriamente revolucionária) em oposição à “consciência burguesa reificada” poderia apenas provir do setor mais avançado da classe, do Partido Comunista, sendo que:

(...) a coesão organizacional do partido é essencialmente uma hierarquia entre dirigentes e funcionários, fixada numa divisão mecanizada do trabalho. (A aplicação errada e constante de teorias incorretas leva, inevitavelmente, à destruição do partido, mas isso é uma outra questão). O caráter eminentemente prático da organização comunista, sua essência como partido de luta, pressupõe, por um lado, uma teoria correta, já que, do contrário, tal organização fracassaria rapidamente com as conseqüências de uma teoria errada; por outro, essa forma de organização conduz e reproduz o discernimento teórico correto quando eleva de maneira consciente e em termos organizacionais a sensibilidade da forma de organização para as consequências de uma atitude teórica (LUKÁCS, 2003, 575).

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Nessa perspectiva, a própria questão da emergência de uma forma de divisão do trabalho partidário entre vanguarda (dirigentes) e base (militantes) está colocada. Tal divisão hierárquica, legitimada teoricamente, conduz a um problema central: a operacionalização de uma lógica de tipo essencialmente capitalista, uma separação taylorista entre intelectuais e executores. Ademais, como destacou Pereira:

Lukács oferecia, involuntariamente, a justificação teórica para a substituição da classe operária real por um partido dirigente, formado por operários avançados, mas sobretudo por intelectuais destacados. Por essa operação, o protagonismo do conjunto da classe era transferido, na hipótese mais benigna, para uma parte dela. Sob a influência de Stalin, essa concepção desvirtuada da relação entre a classe proletária e sua representação política acabaria institucionalizando-se na tradição soviética do marxismo (PEREIRA, 2003, 235).

Inegável o fato de que História e consciência de classe exerceria profunda influência teórica e política, e que, pode-se dizer sem exageros, constituiu-se na mais importante obra teórico-filosófica do marxismo nos anos 1920. No que se refere ao debate da transição socialista, o papel das organizações de massa (conselhos de fábrica, sindicatos) estaria reduzido à tomada do poder (revolução). Não obstante, consolidada a revolução, toda a forma de “liberdade democrática” passaria a ser entendida enquanto resquícios de uma ideologia burguesa (parlamentarismo), ou anarquista (conselhos). Em ambos os casos, tais sistemas encarnariam uma contradição fundamental em relação à ditadura revolucionária do proletariado, guiada pelo Partido.

Por uma concepção relacional do poder de Estado

O problema previamente exposto de um “partido vanguarda” cujo lideirismo seria essencial para garantir o curso da revolução, está ligado, essencialmente, a uma visão unilateral de Estado. Aqui, o Estado seria entendido enquanto um bloco monolítico sem fissuras (POULANTZAS, 1983); em outros termos, o Estado capitalista seria considerado como um instrumento ou objeto manipulado ao bel prazer da burguesia da qual o mesmo é um produto acabado, e não como o centro de organização do poder de uma classe, ou fração de classe dominante (certamente), mas que também é, ao mesmo tempo, atravessado pela luta de classes4. Por conseguinte, faltaria uma visão estratégica ampla e a longo prazo de um

4 A concepção de que a luta de classes desenvolve-se no seio do próprio Estado capitalista é formulada pelo autor na obra O Estado, o poder, o socialismo (1978), publicada uma década depois de Poder político e classes sociais (1968), onde Poulantzas defenderia a idéia de que a luta de classes desenvolve-se tão somente no interior das relações de produção. É importante perceber que entre esses dois momentos, a teoria do Estado no pensamento do autor sofre algumas alterações fundamentais.

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processus de transição para o socialismo, ou seja, de uma batalha ininterrupta pela qual as massas absorvem o poder. Segundo Poulantzas, tal perspectiva adianta a insuficiência de uma concepção teórica legada pela III Internacional, potencializada com Stálin, mas também presente em Lenin5 de uma estratégia de “duplo poder”: Estado burguês e regime de liberdades democráticas, versus sovietes (entendidos enquanto órgãos do governo revolucionário).

Os sovietes que devem substituir em bloco o Estado burguês, não são a mesma coisa que a democracia direta na base substituindo a democracia burguesa. Não é meramente o anti-Estado, mas o Estado paralelo calcado no modelo instrumental do Estado existente, um Estado proletário na medida em que fosse controlado-ocupado de cima pelo partido revolucionário “único”, partido que funciona no modelo de Estado. A desconfiança quanto às possibilidades de intervenção das massas populares no seio do Estado burguês torna-se desconfiança em relação ao movimento popular na base simplesmente. Isso se chama fortalecer o Estado-Sovietes com o fim de melhor fazê-lo desaparecer um dia (...) (POULANTZAS, 1981, 292).

Retomando as análises de Rosa Luxemburgo pontuadas na obra A Revolução Russa (1917), Poulantzas defende a estratégia de uma via democrática para o socialismo, capaz de conciliar as instituições da democracia representativa (que deve-se considerar, constituem, em larga medida, uma conquista histórica da classe trabalhadora), com o desenvolvimento da democracia direta na base e de focos autogestores (POULANTZAS, 1981, 293). Todavia, o autor também considera que tal estratégia não estaria imune aos riscos de uma “social-democratização”, ou de formas reformistas (em se tratando de Estado, essa seria uma possibilidade constantemente presente) (ibidem, 297). Entretanto: “Uma transformação do aparelho de Estado no sentido do desaparecimento do Estado só pode apoiar-se numa intervenção ampla das massas populares no Estado, por meio certamente de suas representações sindicais e políticas, mas também pelo desenvolvimento de suas iniciativas próprias no seio mesmo do Estado” (ibidem, 301).

5 “O stalinismo e o modelo legado pela III Internacional para uma transição para o socialismo se distinguem certamente pensamento e da ação de Lenin, porém não são um simples desvio. Os germes do stalinismo estavam inteiramente presentes em Lenin e não apenas em razão das particularidades da situação histórica a que Lenin teve que fazer frente (a Rússia e o Estado czarista): o erro da III Internacional não foi simplesmente ter pretendido, ao desviá-lo, universalizar um modelo de transição para o socialismo que, em sua pureza original, deveria convir à situação concreta da Rússia czarista. Afinal, esses germes não podem ser encontrados em Marx (...) Lenin teve, antes de todos, que resolver a questão da transição para o socialismo e do desaparecimento do Estado, a respeito do qual Marx não deixou mais que algumas vagas indicações, todas no sentido de uma estreita relação entre socialismo e democracia” (POULANTZAS, 1981, 288).

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Evidentemente, não se trata de rechaçar a inegável importância da orientação teórica e superestimar o aspecto “espontâneo” da luta de classes como motor da história. Embora sejam inegáveis as mudanças pelas quais as sociedades capitalistas passaram nas últimas décadas, os partidos constituem, ainda hoje, o principal elo de mediação entre as massas e o Estado. Por outro lado, embora muitas vezes marginalizadas, diversas formas horizontais de associação política dos trabalhadores ainda subsistem hoje, fornecendo focos de resistência ativa à lógica societária do capital.

A criação de instituições igualitárias de representação dos trabalhadores, sejam elas, sovietes, sindicatos, comitês de fábrica e que se coloquem como um contraponto político a um Estado e uma economia regidos segundo a lógica do capital são conditio sine qua non desse processo, pois como bem lembrara Maurício Tragtenberg: “(...) não são as reivindicações – sejam elas econômicas ou políticas – que definem o caráter revolucionário de uma luta, mas sim a associação igualitária dos trabalhadores nesse sentido. As novas relações sociais criadas são a matriz do processo revolucionário” (TRAGTENBERG, 1986, p. 6).

Sabemos que o problema da transição socialista ainda está por ser resolvido na prática, bem como inexistem garantias teóricas ou fórmulas específicas nessa direção. Não há dúvidas de que o capitalismo contemporâneo nos coloca um diverso quadro de problemas: a difícil formação político-ideológica da classe trabalhadora num contexto de acelerada reificação, somada às práticas neoliberais de flexibilização de direitos sociais e privatização da vida pública; as crescentes ondas de violência contra minorias étnicas e sociais em alguns países de capitalismo avançado, revivendo um arcaico nacionalismo de tipo imperialista, impulsionado pelas constantes crises econômico-estruturais do capital; o afloramento das cada vez mais urgentes questões ambientais, etc. Da capacidade de responder a essas e outras questões, parece depender, mais do que nunca, o futuro da esquerda revolucionária. Numa perspectiva socialista, as respostas a serem dadas devem contemplar uma relação dialética entre teoria e práxis.

Bibliografia

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