tópicos de arranjo para violão no estilo da música popular brasileira

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20 Tópicos de Arranjo para Violão no estilo da música popular brasileira Prof. Dr. Luiz Otávio Braga 1 PPGM / IVL / UNIRIO O pressuposto básico para aplicação das idéias seguintes é o trabalho violão – voz ou instrumento solista (por exemplo, violão e canto ou violão e bandolim) onde o violão deverá funcionar como uma “pequena orquestra”. Depois do piano talvez o violão seja o instrumento mais completo para reunir a competência simultânea de melodia e harmonia e, no que tange à música popular, por estar historicamente adequado aos formantes inerentes aos estilos dessa música popular. O trabalho “solista” do violão dentro do arranjo é vastamente enriquecido pelo conhecimento do seu repertório solista popular. Tanto melhor para o arranjo se aquele que o elabora tocou, analisou as obras de um João Pernambuco, Dilermando Reis, Garoto, Baden Powell, Guinga, Armandinho, Nicanor Teixeira – somente para citar alguns; e estendeu sua técnica ao estudo dos compositores que escreveram na área erudita com base na música urbana – como Villa-Lobos, Gnattali. De fato, independente da área de preferência, tocar o repertório do “velho pinho” é crucial, na minha visão, para a inventiva do arranjo. Porque no repertório estão as soluções segundo as quais os compositores conceberam a relação melodia-acompanhamento(realização da harmonia). Do ponto de vista do arranjo nas condições acima citadas, o fator fundamental a ser considerado é: O arranjador deverá conhecer bem o gênero musical a que servirá o arranjo (canção, samba, choro etc), cujo formante de acompanhamento funciona como um ostinato rítmico subjacente a todo o desenvolvimento da peça. As variações de “levadas” e tais, são exceções que confirmam a regra. Por exemplo, subjaz ao Choro-Canção e ao Samba-Canção, em compasso 2/4, o formante em tempo médio ou lento. Mesmo nas variações necessárias ao formante, para evitar certa monotonia inerente aos ostinatos, o formante continua “ativo” (em background ) exigindo o seu pronto retorno para garantir organicidade ao acompanhamento e, portanto, fidelidade ao estilo. As alternativas (variações) ao uso puro e simples do formante - conhecimento importantíssimo para iniciantes em acompanhamento ao violão), conforme descritas no capítulo Acompanhamento de Música Popular ao Violão - compõem um bom número de sugestões para dar variabilidade à “levada” e, pois, à relação melodia/harmonia do acompanhamento 2 Para pensar o arranjo proponho o seguinte enunciado: um violonista é convidado a se apresentar em duo com uma cantora ou cantor. O repertório constitui-se dos gêneros urbanos da música popular brasileira e o violão será empregado como uma pequena orquestra – nesse sentido o violonista não é somente o acompanhador, lato senso, mas um solista estrito senso. Os arranjos – todos eles - serão constituídos de INTRODUÇÃO – ACOMPANHAMENTO VIOLONÍSTICO AO CANTOR (A) – PONTE MODULANTE PARA O SOLO DE UMA SEÇÃO PELO VIOLÃO E NO TOM A ELE MELHOR ADEQUADO– RETORNO AO MESMO TOM OU NOVO TOM DO CANTOR(A) – CODA 1 Estas, são notas de aulas. Têm finalidade didática não podendo ser reproduzidas sem autorização do autor. 2 Observe-se aqui que distingo “levada” - resultado muito particular e que caracteriza o aspecto personalista do executante – de “formante de acompanhamento” – que nada mais é do que um termo rítmico em forma ostinato que caracteriza a execução de determinado gênero. O formante é, por assim dizer, o aspecto mais caracteristicamente marcante de um determinado gênero. A “levada” tem como base o formante, mas ressalta a s idiossincrasias do instrumentista, concorrendo para individualiza-lo, distingui-lo de outros.

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    Tpicos de Arranjo para Violo no estilo da msica popular brasileira Prof. Dr. Luiz Otvio Braga1

    PPGM / IVL / UNIRIO

    O pressuposto bsico para aplicao das idias seguintes o trabalho violo voz ou instrumento solista (por exemplo, violo e canto ou violo e bandolim) onde o violo dever funcionar como uma pequena orquestra. Depois do piano talvez o violo seja o instrumento mais completo para reunir a competncia simultnea de melodia e harmonia e, no que tange msica popular, por estar historicamente adequado aos formantes inerentes aos estilos dessa msica popular. O trabalho solista do violo dentro do arranjo vastamente enriquecido pelo conhecimento do seu repertrio solista popular. Tanto melhor para o arranjo se aquele que o elabora tocou, analisou as obras de um Joo Pernambuco, Dilermando Reis, Garoto, Baden Powell, Guinga, Armandinho, Nicanor Teixeira somente para citar alguns; e estendeu sua tcnica ao estudo dos compositores que escreveram na rea erudita com base na msica urbana como Villa-Lobos, Gnattali. De fato, independente da rea de preferncia, tocar o repertrio do velho pinho crucial, na minha viso, para a inventiva do arranjo. Porque no repertrio esto as solues segundo as quais os compositores conceberam a relao melodia-acompanhamento(realizao da harmonia).

    Do ponto de vista do arranjo nas condies acima citadas, o fator fundamental a ser considerado :

    O arranjador dever conhecer bem o gnero musical a que servir o arranjo (cano, samba, choro etc), cujo formante de acompanhamento funciona como um ostinato rtmico subjacente a todo o desenvolvimento da pea. As variaes de levadas e tais, so excees que confirmam a regra. Por exemplo, subjaz ao Choro-Cano e ao Samba-Cano, em compasso 2/4, o formante

    em tempo mdio ou lento. Mesmo nas variaes necessrias ao formante, para evitar certa monotonia inerente aos ostinatos, o formante continua ativo (em background ) exigindo o seu pronto retorno para garantir organicidade ao acompanhamento e, portanto, fidelidade ao estilo. As alternativas (variaes) ao uso puro e simples do formante - conhecimento importantssimo para iniciantes em acompanhamento ao violo), conforme descritas no captulo Acompanhamento de Msica Popular ao Violo - compem um bom nmero de sugestes para dar variabilidade levada e, pois, relao melodia/harmonia do acompanhamento2

    Para pensar o arranjo proponho o seguinte enunciado: um violonista convidado a se apresentar em duo com uma cantora ou cantor. O repertrio constitui-se dos gneros urbanos da msica popular brasileira e o violo ser empregado como uma pequena orquestra nesse sentido o violonista no somente o acompanhador, lato senso, mas um solista estrito senso. Os arranjos todos eles - sero constitudos de

    INTRODUO ACOMPANHAMENTO VIOLONSTICO AO CANTOR (A) PONTE MODULANTE PARA O SOLO DE UMA SEO PELO VIOLO E NO TOM A ELE MELHOR ADEQUADO RETORNO AO MESMO TOM OU NOVO TOM DO CANTOR(A) CODA

    1 Estas, so notas de aulas. Tm finalidade didtica no podendo ser reproduzidas sem autorizao do autor.

    2 Observe-se aqui que distingo levada - resultado muito particular e que caracteriza o aspecto personalista

    do executante de formante de acompanhamento que nada mais do que um termo rtmico em forma ostinato que caracteriza a execuo de determinado gnero. O formante , por assim dizer, o aspecto mais caracteristicamente marcante de um determinado gnero. A levada tem como base o formante, mas ressalta a s idiossincrasias do instrumentista, concorrendo para individualiza-lo, distingui-lo de outros.

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    Passos

    1. Domine completamente a msica a ser arranjada no que tange a estrutura da melodia (motivos, frases, perodos etc). Isto, em tese, fornece o material (trabalho temtico) a ser desenvolvido no arranjo e lhe garante organicidade. Tome como exemplo a melodia de Carinhoso de Pixinguinha. Observe que a composio dominada, de ponta a ponta pelos motivos seguintes:

    Fig. 1

    2. Escolha o tom do cantor(a). Teoricamente basta saber a que tipo de voz (soprano, mezzo, tenor, bartono?) pertence o cantor(a); mas em msica popular um hbito tirar o tom contando com o mtodo de tentativa/erro na presena do artista;

    Fig.2

    3. Harmonize a melodia ou, se for o caso, rearmonize-a;

    4. Determine a forma3 do arranjo e na seo dedicada ao solo do violo, conforme a situao geral anteriormente determinada:

    i) Escolha o tom adequado para o solo do violo e em seguida;

    3 Nesse sentido, j que o arranjo obedecer ao enunciado anteriormente destacado, a forma significa que

    seo ou sees o violonista solar. Por exemplo, dada uma cano com partes A e B, depois do canto o violonista pode optar em solar uma das duas partes ou at mesmo as duas. Exemplo:

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    ii) Construa a ponte modulante instrumental (de preferncia usando material temtico e podendo inserir novidades harmnicas). Veja o exemplo abaixo em que o instrumental em Fa maior entrega ao cantor em Re. Observe que, na primeira soluo, o acorde de D sugere enganosamente que a regio de R maior j foi alcanada. Na verdade chega-se primeiramente regio de L, via uma das formas do acorde de sexta do segundo grau alterado (no popular, vale dizer, # IV dim). A entrada sbita do A7, logo aps o V46 (A/E), no lugar de E7, faz o restante do servio. No segundo exemplo a idia anloga, pois F/C na verdade V46 seguido de C dim permite a dubiedade (j que C dim = D# dim). Em ambos os exemplos a entrada do canto bastante fluente, sem dificuldades maiores para o cantor.

    Fig. 3a

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    Fig.3b

    iii) Construa o solo do trecho (vide procedimentos logo adiante neste texto);

    iv) Haver, em regra, necessidade de nova ponte, faa-a e devolva a msica ao cantor(a) de tal modo que ele no tenha dificuldades nessa retomada, tudo se passando num tal nvel de fluidez como se a msica jamais houvesse abandonado a tonalidade de origem;

    V) aconselhvel que a Coda e a Introduo4 sejam, respectivamente, o penltimo e ltimo passo do arranjo.

    4 A Introduo deve ter o carter de sumarizar o que vir desenvolvido. uma pequena overture. Na msica

    popular, mormente aps a voracidade da indstria cultural, passou a ser mnima, em funo da durao total das msicas que, em mdia, no ultrapassam os 3 minutos. As codas so pontuaes de finalizao. Pequenas confirmaes cadncia final, habitualmente cadncia perfeita.

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    Alguns procedimentos comuns na relao melodia-harmonia/acompanhamento, para o solo ao Violo

    1. O formante de acompanhamento confere identificao com o gnero, portanto funciona como a coluna vertebral do solo, melodia e harmonia adequando-se a ele;

    2. As variaes ao formante devem ser incentivadas e, portanto, melodia e harmonia adequam-se a elas; o arpejo da harmonia muito usado como variao ao formante;

    3. A melodia pode/deve ser articulada a capella em determinados momentos, conferindo variedade expressiva ao solo;

    4. Use contraponto a duas vozes o violo por no ser um instrumento eminentemente contrapontista raramente pode utilizar tal tcnica a mais de 2 vozes;

    Fig.4 5. Use tcnicas de harmonizao em bloco, isto , cada nota da melodia harmonizada por um acorde

    diferente, caracterizando um tutti. Isto particularmente eficiente na nfase a tutti rtmico; 6. Use tcnicas de aproximao diatnica, cromtica e dominante para harmonizar segmentos

    meldicos nota a nota5

    Fig.5

    Fig. 6

    5 Para situar melhor essas tcnicas de aproximao veja Farias, Nelson. Harmonia Aplicada ao Violo e

    Guitarra. Tcnicas em Chord Melody. Rio:2009, Nelson Farias Produes e tambm Guest, Ian. Arranjo. Mtodo Prtico. Rio de Janeiro: Lumiar Editora (em 3 Volumes).

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    Fig.7

    Nessas tcnicas, uma vez escolhidos os acordes, necessrio, s vezes, mexer na linha do baixo do violo para fluidez dos encadeamentos e, portanto da execuo. Eliminar notas, mesmo sendo tenses, tambm se impe muitas vezes em virtude das competncias prprias do violo. Para uma dada soluo, pode funcionar melhor um subconjunto dela. Veja o exemplo seguinte:

    Fig. 7b.

    7. Via de regra, a melodia encontra-se na extremidade superior da textura. Experimente a melodia no baixo ou no mdio. Observe que muda o procedimento melodia-acorde. Um exemplo de melodia no baixo Odeon, de E. Nazareth. Melodia no mdio, a segunda parte de Lamentos do Morro, de Garoto;

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    Fig. 8. Odeon (E. Nazareth)

    Fig. 9. Lamentos do Morro (Garoto)

    8. Escolha coerentemente os registros onde determinada frase ou segmento meldico ser apresentado. A alternncia de registros enriquece sobremaneira o arranjo;

    9. Use sempre que possvel, movimento contrrio principalmente entre o baixo harmnico e a melodia principal.

    Exemplos

    Eis aqui alguns exemplos da relao melodia harmonia que constitui o solo ao violo.6 A Harmonia realizada em consonncia com as determinaes rtmicas inerentes aos gneros da msica popular. Nesse sentido, o formante de acompanhamento caracterstico de cada um deles, fundamental.

    Sonho de Magia (J. Pernambuco): Valsa

    Fig.10 Neste exemplo bem explcito o formante de acompanhamento da Valsa; e que enfatizado no terceiro compasso.

    Jongo (J. Pernambuco)

    Fig.11

    A posio mtrica da melodia compe, com a distribuio da harmonia em acordes quebrados7, o

    formante rtmico . No 4o. compasso a harmonia tomada em arpejo.

    6 Na UNIRIO os meus estudantes de Violo Popular, ao trabalhar o repertrio solo, fazem como tarefa

    complementar a anlise harmnica e constroem um violo de acompanhamento para a parte a ser estudada na semana. Este um hbito que deve ser estimulado. O msico ao tocar deve dominar a pea completamente no somente nas suas dimenses eminentemente musicais, mas histria e esttica so fundamentais.

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    Sons de Carrilhes (J. Pernambuco)

    Fig.12

    O ritmo da Polca bem explcito na distribuio da harmonia em acordes quebrados.

    Odeon (E. Nazareth)

    Fig.13

    A posio mtrica da harmonia compe com a melodia no baixo o formante de acompanhamento

    Retrato Brasileiro (Baden Powell)

    Fig.14

    Observe o acompanhamento em arpejo da harmonia. O acorde batido E7 d sabor especial naquele ponto, interrompendo a seqncia de acordes arpejados.

    7 Aqui fao diferena didtica na apresentao dos acordes: batido quando ele apresentado de maneira

    completa, num s golpe; quebrado, quando a estrutura apresentada por partes (normalmente, primeiro o baixo do acorde e depois as partes superiores); arpejo, a estrutura vai sendo apresentada nota por nota, sob qualquer frmula arpejada.

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    Jorge do Fusa (Garoto)

    Fig.15 Nesta composio Garoto articula: acordes quebrado e batido no primeiro compasso, arpejo de A7 no segundo, acordes batidos no terceiro e arpejo e quebrado no quarto compasso.

    Lamentos do Morro (Garoto)

    Fig. 17 Os acordes quebrados deste exemplo articulam o ritmo de samba. A melodia ocupa o registro mdio e est no meio da tessitura.

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    Beb (Hermeto Pascoal)

    Fig.18

    O problema aqui manter fluente a rtmica prpria do Baio em presena de uma melodia muito movimentada. H que se ter impresso de que o formante de acompanhamento est sempre presente, isto , o arranjo deve mostrar o Baio em toda a sua completude rtmica. Isto se aplica, evidentemente, a todos os demais gneros.

    Exerccios propostos.

    Componha arranjos para Canto acompanhado de Violo tendo em vista o que se pede:

    INTRODUO ACOMPANHAMENTO VIOLONSTICO AO CANTOR (A) PONTE MODULANTE PARA O SOLO DE UMA SEO PELO VIOLO E NO TOM A ELE MELHOR ADEQUADO RETORNO AO MESMO TOM OU NOVO TOM DO CANTOR(A) CODA

    1. Choro Melanclico (Laurindo de Almeida) 2. Foi noite (A C. Jobim) 3. Duas contas (Garoto) 4. Avarandado (C. Veloso) 5. Samba de Orfeu (Luiz Bonf) 6. Manh de Carnaval (A C.Jobim Luiz Bonf) 7. Asa Branca (Luiz Gonzaga) 8. O Baio (Humberto Teixeira) 9. Carinhoso (Pixinguinha) 10. Samba de uma nota s (A C. Jobim) 11. Retrato em branco e preto (A C. Jobim -Chico Buarque) 12. Valsa de Realejo (Edu Lobo Chico Buarque) 13. Upa, neguinho (Edu Lobo G. Guarnieri) 14. Valsa Brasileira (Edu Lobo C. Buarque) 15. Beb (Hermeto Pascoal)