tolerancia e reconhecimento

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1 A tolerância entre solidariedade e reconhecimento Idéias para repensar o conceito de tolerância Valério Guilherme Schaper 1 Introdução As questões levantadas pelo tema da diferença, da diversidade, da pluralidade apontam para um amálgama gigantesco de motivações religiosas, étnicas, culturais, sexuais, econômicas, políticas que se cruzam num mosaico assustador, cuja imagem se nega terminantemente a entregar-se a qualquer forma superficial de compreensão. Neste cenário de absurdos, um clamor, ora forte ora frágil, ora racional ora emotivo, parece convergir para a idéia da tolerância, como uma espécie de “apanágio” residual da natureza de um mundo que navega sobre incertezas. Tolerância parece circular entre nós como uma espécie de “últimos dos moicanos” conceituais, relicário de valores e direitos inalienáveis. Apresenta-se a tolerância como “tabu”, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, recriar as instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para que dela se possa esperar tanto? Nos fatos que povoam os noticiários ela não se apresenta tão convincente quanto derrotada? Quem pôs e põe a circular este conceito? De onde ele vem? Para onde nos conduz? Trata-se de um tesouro ou mero ouro de tolo? Evidentemente, são mais perguntas do que se pode de responder neste breve texto. Gostaria, contudo, de compartilhar algumas reflexões que talvez nos ajudem a formular uma opinião mais aproximada das virtualidades e limites da tolerância. O objetivo neste breve texto é, inicialmente, apresentar uma rápida indicação do percurso histórico da tolerância, destacando, sobretudo, os limites da aplicação deste conceito para as questões atuais. No esforço de apresentar possibilidades de retomar e ampliar a aplicação deste conceito, ele é, por um lado, aproximado do conceito de solidariedade e, por outro lado, com o conceito de reconhecimento. I – O conceito de tolerância: um retrospecto crítico 1.1 – Um breve histórico do conceito A noção de tolerância foi gestada no contexto dos enfrentamentos entre grupos cristãos na Europa cismática e foi aplicada inicialmente às questões de conflito religioso. Propugnava- se um comportamento tolerante em relação às minorias religiosas e prescrevia-se para Estado – nascente estado moderno – um corpo jurídico que preservasse o direito privado ao exercício de opções religiosas, resguardando-se o espaço público. As justificações filosóficas da tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII lançam as bases da secularização do Estado e da fundamentação secular de sua legitimação. Não sendo possível, operar aqui um retrospecto detalhado das idéias filosóficas deste período, é suficiente para a argumentação a referência sintética aos textos seminais de dois autores: John Locke (1632- 1704), “Carta sobre a tolerância” 2 , e John Stuart Mill (1808-1873), “Sobre a liberdade” 3 . 1 - Doutor em teologia e professor de teologia sistemática e de ética da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo. Membro da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e da Comissão Bilateral Católico-romana e evangélico- luterana, vem se dedicando nos últimos anos a um projeto de pesquisa voltado para o tema da tolerância. 2 - O texto foi escrito na Holanda entre 1685-6 e publicado em 1689 – “Epistola de tolerantia” em latim. Saiu anonimamente em inglês no mesmo ano. LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. In: ID. Segundo tratado sobre o governo civil - e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. Pierre Bayle, filósofo francês de tradição calvinista, publicou no mesmo período um texto igualmente importante sobre a tolerância. Não foi possível contemplá-lo aqui. BAYLE, Pierre. Commentaire philosophique sur ces paroles de Jésus-Christ: contrain-les d'entrer (pt. I-II, 1686; pt. III, 1687). Amsterdam: A. Wolfgang.

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A tolerância entre solidariedade e reconhecimento

Idéias para repensar o conceito de tolerância

Valério Guilherme Schaper1

Introdução As questões levantadas pelo tema da diferença, da diversidade, da pluralidade apontam para um amálgama gigantesco de motivações religiosas, étnicas, culturais, sexuais, econômicas, políticas que se cruzam num mosaico assustador, cuja imagem se nega terminantemente a entregar-se a qualquer forma superficial de compreensão. Neste cenário de absurdos, um clamor, ora forte ora frágil, ora racional ora emotivo, parece convergir para a idéia da tolerância, como uma espécie de “apanágio” residual da natureza de um mundo que navega sobre incertezas. Tolerância parece circular entre nós como uma espécie de “últimos dos moicanos” conceituais, relicário de valores e direitos inalienáveis. Apresenta-se a tolerância como “tabu”, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, recriar as instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para que dela se possa esperar tanto? Nos fatos que povoam os noticiários ela não se apresenta tão convincente quanto derrotada? Quem pôs e põe a circular este conceito? De onde ele vem? Para onde nos conduz? Trata-se de um tesouro ou mero ouro de tolo? Evidentemente, são mais perguntas do que se pode de responder neste breve texto. Gostaria, contudo, de compartilhar algumas reflexões que talvez nos ajudem a formular uma opinião mais aproximada das virtualidades e limites da tolerância. O objetivo neste breve texto é, inicialmente, apresentar uma rápida indicação do percurso histórico da tolerância, destacando, sobretudo, os limites da aplicação deste conceito para as questões atuais. No esforço de apresentar possibilidades de retomar e ampliar a aplicação deste conceito, ele é, por um lado, aproximado do conceito de solidariedade e, por outro lado, com o conceito de reconhecimento.

I – O conceito de tolerância: um retrospecto crítico 1.1 – Um breve histórico do conceito A noção de tolerância foi gestada no contexto dos enfrentamentos entre grupos cristãos na Europa cismática e foi aplicada inicialmente às questões de conflito religioso. Propugnava-se um comportamento tolerante em relação às minorias religiosas e prescrevia-se para Estado – nascente estado moderno – um corpo jurídico que preservasse o direito privado ao exercício de opções religiosas, resguardando-se o espaço público. As justificações filosóficas da tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII lançam as bases da secularização do Estado e da fundamentação secular de sua legitimação. Não sendo possível, operar aqui um retrospecto detalhado das idéias filosóficas deste período, é suficiente para a argumentação a referência sintética aos textos seminais de dois autores: John Locke (1632-1704), “Carta sobre a tolerância”2, e John Stuart Mill (1808-1873), “Sobre a liberdade”3.

1 - Doutor em teologia e professor de teologia sistemática e de ética da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo. Membro da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e da Comissão Bilateral Católico-romana e evangélico-luterana, vem se dedicando nos últimos anos a um projeto de pesquisa voltado para o tema da tolerância. 2 - O texto foi escrito na Holanda entre 1685-6 e publicado em 1689 – “Epistola de tolerantia” em latim. Saiu anonimamente em inglês no mesmo ano. LOCKE, John. Carta sobre a tolerância. In: ID. Segundo tratado sobre o governo civil - e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. Pierre Bayle, filósofo francês de tradição calvinista, publicou no mesmo período um texto igualmente importante sobre a tolerância. Não foi possível contemplá-lo aqui. BAYLE, Pierre. Commentaire philosophique sur ces paroles de Jésus-Christ: contrain-les d'entrer (pt. I-II, 1686; pt. III, 1687). Amsterdam: A. Wolfgang.

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Enquanto em Locke a idéia da proteção dos direitos individuais tem a função de fornecer ao funcionamento da sociedade um ambiente livre do poder destrutivo dos conflitos religiosos, (comportamentos intolerantes), em Stuart Mill esta idéia é o princípio gerador de uma forma de sociedade, em que o livre desenvolvimento destes direitos promove o avanço progressivo das forças individuais (imaginação, criatividade, empreendimento etc.) em direção ao enriquecimento do humano e rumo a formas mais elevadas de vida social. A tolerância torna-se uma estratégia dentro da concepção de progresso histórico. A tolerância supõe o desenvolvimento das potencialidades imanentes dos indivíduos. A idéia de tolerância e o horizonte escatológico da concepção cristã de história são, na compreensão de Stuart Mill, definitivamente secularizados. 1.2 – A tolerância e a democracia liberal

Estes são, de forma geral, os fundamentos do Estado e da democracia liberal burguesa. Desta forma, a tolerância religiosa, neste progressivo processo de secularização, vai se vinculando umbilicalmente ao funcionamento das democracias liberais. Seu arcabouço imaginário inicial, a disputa religiosa que acomodava uma cosmovisão cismática de corte protestante para evitar a ruptura da ordem, é generalizada para toda forma de liberdade de expressão, de manifestação, de associação etc. Este é, sem dúvida, o apogeu teórico-conceitual da idéia de tolerância no pensamento europeu.4 Posta esta consideração, é possível sustentar a tese de que a tolerância é a própria condição de possibilidade do mundo ocidental moderno (lança as bases de uma sociedade com os requisitos mínimos para o funcionamento da democracia liberal e do capitalismo). Admitindo que, em primeira instância, a impostação teórica da tolerância é a disputa religiosa que procura acomodar a cosmovisão cismática do protestantismo, é de se perguntar se não deveremos levantar também a hipótese de que o movimento da reforma, ao desencadear uma atitude de extrema liberdade em relação à produção e circulação dos bens simbólicos religiosos, ensejou igual liberdade em relação à circulação dos bens simbólicos de produção e de consumo. Invertendo a hipótese, a questão é se a gigantesca mudança de modo de produção econômico (mercantilismo, capitalismo) não supunha igual alteração do “imaginário simbólico”, das mentalidades, e, obviamente, das formas de seu intercâmbio. A meu ver, ambas as hipóteses podem ser intuídas da evolução histórica do conceito de tolerância e que contariam, em certa medida, com sinalizações positivas na obra de Markovits e de Habermas.5 Desta forma, as construções políticas, teóricas e práticas, de acomodação do protestantismo cismático redesenharam a geopolítica européia através da criação de novas fronteiras e da fixação da tolerância como nova “moeda” para as trocas simbólicas como contraparte das reais e necessárias trocas materiais, econômicas. A nova ordem admitia a

3 - O livro foi escrito em 1859 e faz uma defesa radical da liberdade do indivíduo diante das forças sociais (estado e sociedade) que buscam sujeita-lo. MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. 2. ed. Petrópolis: Vozes. 1991. 4 - Isto foi claramente percebido e anotado por Voltaire. Veja análise em SCHAPER, Valério G. Emblemas da Intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a tolerância segundo Voltaire. Disponível em http://www3.est.edu.br/nepp/revista/012/index.htm. Acessado em 30.05.08; também em CONYERS, A. J. The Long Truce. How toleration made de World safe for Power and Profit. Dallas: Spence Publishing Company. 2001, p. 147-168. 5 - MARKOVITS, Francine. Entre crer e saber: polêmica em torna da idéia de tolerância nos séculos XVII e XVIII; Philosophica. Revista de Filosofia da História e Modernidade, São Cristóvão, n. 3, p. 31-54, mar. 2002; HABERMAS, Jürgen. Teoria da adaptação. Folha de São Paulo, São Paulo, 05 de Jan. de 2003. Cad. Mais, p. 10-14.

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diferença (postulando uma igualdade anterior e fundamental), circunscrevia os diversos âmbitos (estabelecendo fronteiras) e pautava as relações (criando uma linguagem comum a partir do código simbólico da tolerância). Em última análise, a nova ordem estabelecia os parâmetros da nascente sociedade, ocultando, sob o manto de uma igualdade anterior e fundamental, as reais condicionantes históricas tanto da tolerância como dos nascentes direitos dos indivíduos (direitos civis). Sob o manto do “jusnaturalismo” e sob o véu da racionalidade, a modernidade incipiente supunha, como base, um essencialismo que ignorava a constituição histórica da diferença, da desigualdade, exportando-as para o âmbito privado e criando, através da gramática da tolerância, uma forma de mediação dos possíveis conflitos para que o mundo se tornasse seguro e estável para os intercâmbios econômicos.6 A título de conclusão pode-se dizer que, para os “dispositivos da tolerância”, os “mecanismos de funcionamento” são mais determinantes do que os “processos normativos”. Em outras palavras, a tolerância funciona menos por constituir uma epistemologia e uma forma conseqüente de interdição moral do que por ser uma engrenagem indispensável da nascente democracia liberal e da economia capitalista. Ela constitui, pois, a gramática de todos os intercâmbios. A circulação da mais-valia econômica na forma de mercadorias não pode sofrer qualquer disjunção da circulação da “mais-valia” simbólica, sob pena da restrição desta determinar a interrupção daquela. Não obstante todos os conflitos de superfície, a economia capitalista necessita da tolerância para funcionar. A intolerância, restrita inicialmente à atitude de oposição sistemática a doutrinas e práticas diferentes das do grupo hegemônico, passou a definir uma atitude de oposição intelectual ou militante a toda forma de diferença. Conforme Voltaire7, a “superstição”, espécie de patologia da religião, consiste em odiar o outro por suas opiniões, suas crenças. A superstição pode degenerar-se em fanatismo quando, da oposição sistemática, passa-se a eliminação do diferente. O fanatismo é o motor da intolerância. O fanatismo é irracional. Só os não fanáticos merecem a tolerância, pois todo o fanatismo perturba a sociedade e configura-se como crime passível de punição por parte do estado. Não é possível, então, tolerar o fanático. A batalha fundamental dos pensadores quanto aos pressupostos filosóficos da nascente sociedade moderna girava, em parte, em torno da delimitação precisa da intolerância e a ampliação da idéia de tolerância. A idéia de tolerância, cujo alargamento progressivo já estava suposto na compreensão esboçada no parágrafo anterior, tornou-se um dos princípios das democracias liberais aplicado a vários contextos: religioso, étnico, sexual, etc. Estes desdobramentos recentes da noção de tolerância são marcados pela atenção redobrada às diversas formas de pluralidade e por uma “reticência” diante de toda forma de reducionismo.8 Neste extremo, ela converte-se na moldura da atual sociedade globalizada, pluralista e multicultural (em que formas de vida cultural convivem em pé de igualdade), que tem no discurso acerca da “diferença” uma verdadeira obsessão. A tolerância ampliada, base do multiculturalismo , do pluralismo que caracteriza as sociedades liberais modernas, conduz, no fundo, a uma espécie de “indiferentismo moral”. O indiferentismo moral é uma negação prática da alteridade. Indiferente a tudo e a todos, o indivíduo não reconhece a

6 - Tese também sustentada ao longo da obra de CONYERS, A. J. 2001, passim. 7 - VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância, 2000, passim. A obra foi escrita em 1763. 8 - MARKOVITS, Francine. Entre crer e saber: polêmicas em torno da idéia de tolerância nos séculos XVII e XVII, p. 126ss.

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outra pessoa, a outra idéia, a outra cultura, a outra etnia em seu caráter distintivo, oposto a ele. Como muita acuidade Slavoj Zizek, filósofo esloveno, captou isso. Ele diz que vivemos em uma era de “crenças descafeinadas”, isto é, o indivíduo é capaz de acolher uma “crença” (idéia, causa, religião etc.) desde que ela não configure um modo de vida substancial. É como se houvesse formas substantivas de crer ou com se não fosse possível crer para valer.9 Zizek define isso como “hedonismo envergonhado”, isto é, uma mistura paradoxal de busca do prazer com moderação. O hedonista contemporâneo não consegue viver de forma conseqüente seu desejo, pois insere no próprio objeto de satisfação uma interdição.10 O ascetismo secular do “hedonismo envergonhado” opõe-se a toda forma de desregramento e faz da temperança uma virtude axial.11 Transferindo esta reflexão para o tema que nos interessa aqui, as observações provocantes de Zizek são certeiras quando apontam para o fato de que o multiculturalismo, em sua feição tolerante e liberal de respeito à diferença, constrói um “outro” destituído de sua essencial alteridade. Isso está associado a uma outra constante da tolerância liberal: o não “molestamento”, isto é, o direito da não invasão da privacidade, isto é, não há nenhum problema com o outro desde que sua presença não seja invasiva, intrusiva. Em síntese, é possível tolerar o outro desde que ele não seja, de fato, outro12 no sentido substancial de uma alteridade incontornável e, sobretudo, desde que eu possa me manter a uma distância segura – administrável – dele. Desta forma, no âmbito do multiculturalismo, a noção de tolerância assume a outra face da mesma moeda que, partindo do respeito à diversidade cultural, promove a “unidimensionalização” da sociedade mediante a redução da diferença numa economia que transforma tudo em “commodities”. Não há, pois, mais diferença significativa pois são todas desubstancializadas para serem assimiladas. 1.3 – Os projetos da modernidade e os limites da tolerância Michael Walzer, em seu livro “Da Tolerância” traz uma análise que tem valor explicativo para este fenômeno13. Walzer entende que a forma moderna da tolerância - ainda próxima de sua raiz iluminista - gerou dois projetos de política democrática, que, primeiro, propunha a “assimilação individual” e, segundo, o “reconhecimento do grupo”. A inclusividade democrática de minorias é o primeiro projeto moderno de tolerância. Contudo, as lutas de inclusão introduzem indivíduos na sociedade. A condição de sua entrada é a separação. Dar aos que entraram uma voz, lugar e políticas específicas é o segundo momento, cuja característica é uma luta por fronteiras. Então, a inclusividade democrática e a necessidade de traçar as fronteiras do grupo constituem a dinâmica dentro qual se move o sujeito moderno. A tensão derivada daí, ainda que passível de negociação caso a caso, não pode ser superada em definitivo. Como diz Walzer, a “(...) coexistência de grupos fortes e de indivíduos livres, com todas as suas dificuldades, é característica permanente da modernidade”14.

9 - “A crença atual não ofende, porque politicamente correta, nem supõe um comprometimento total. Daí o espanto do Ocidente com os fundamentalistas: eles ousam levar a sério suas crenças.” ZIZEK, Slavoj. A paixão na era da crença descafeinada. Folha de São Paulo, Mais!, 14 de março de 2004, p. 13. 10 - O “modus operandi” do hedonismo envergonhado é subtrair do objeto da paixão, do prazer, a sua substância nociva, seja a cafeína ou a resistência do islamismo a toda forma de modernização. ZIZEK, S. 2004, p. 13. 11 - “Abundam hoje os produtos privados de seu princípio ativo supostamente nocivo: café sem cafeína, chocolate laxativo, leite desnatado, cerveja sem álcool, etc.” ZIZEK, S. 2004. p. 14. 12 - É fundamental que se considere criticamente aqui os moldes que orientam a construção social das alteridades: o índio vive em harmonia com natureza, o negro tem uma musicalidade rítmica latente, os japoneses são “zen” e comem peixe cru, os americanos são alienados e arrogantes, etc. 13 - WALZER, Michael. Da tolerância, 1999. p. 109-114. 14 - WALZER, M. 1999. p. 114.

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No mais recente modelo da tolerância, o terceiro projeto de uma modernidade tardia distanciada de sua raiz iluminista, começa-se a experimentar uma vida sem “identidade singular ou segura” e “sem fronteiras definidas”. Trata-se de uma mistura de indivíduos de “identidade ambígua”. A tolerância transfere-se, assim, do espaço público para o privado. A tolerância começa em casa. As intolerâncias fundam-se, neste contexto, em uma “nostalgia” de comunidades mais coesas e consciência mais unificada, cujo correlato ideológico é o fundamentalismo. As identidades tornam-se fragmentadas e as associações transformam-se em “alianças temporárias”. Os pronomes “nós”, “eles” não têm referente fixos. Cada um é o estrangeiro de si mesmo.15 A figura do estado-nação desaparece nesta fase da economia capitalista globalizada. Como indica Walzer, os desdobramentos que a tolerância vem sofrendo na modernidade tardia caminham para a dissolução de toda forma de referência, individual ou coletiva, pois as identidades fragmentam-se e os vínculos associativos, rompem-se. Neste sentido, o debilitamento dos vínculos entre povo, riqueza e território, conforme Oneide Bobsin16, cria o novo lastro global para que idéias religiosas e mercadorias circulem de forma irrestrita no movimento convulsivo das efêmeras “desterritorializações” e das “reterritorializações”, traindo todos os laços, todos os vínculos, todas as lealdades. 1.4 - Eu e os outros - nós e eles. O eros da identidade e da diferença

Segundo Walzer, no mais recente (o terceiro) projeto da tolerância, na modernidade tardia, a fragmentação dos indivíduos é tamanha que cada um precisa reconhecer o estrangeiro em si mesmo. Entretanto, dando seqüência ao seu argumento, ele pondera: se todos são estrangeiros, não é possível experimentar nenhuma forma de igualdade vigorosa e não há, então, como “reconhecer a alteridade”. Sem qualquer referência fixa, não há qualquer determinação de alteridade possível. 17 Entretanto, ele argumenta que este modelo tardio não superou o modelo anterior da modernidade (com seus dois projetos), mas se sobrepôs a ele. As identidades divididas da modernidade tardia são parasitárias dos grupos indivisos do qual se originaram. Assim, argumenta Walzer, é preciso reconhecer que o objetivo da tolerância não é abolição do “nós”, “eles” ou “eu”, mas o de “garantir sua coexistência e interação pacífica”. As identidades fragmentadas da modernidade tardia, ainda que compliquem a coexistência, necessitam da identidade para sua própria “criação e auto-entendimento”.18 Gilles Lipovestky19, por sua vez, sugere que há uma espécie de recomposição do consenso social nas democracias liberais quanto ao primeiro projeto moderno da tolerância. Ele, porém, não vê nisso uma oposição ao projeto da modernidade tardia. Pelo contrário, ele entende que há um claro limite neste processo de fragmentação das identidades individuais e de amplo relativismo, pois as sociedades liberais não supõem partilha dos mesmos valores (o pluralismo é a própria condição do estado liberal), mas a aceitação dos valores mínimos da democracia e a hegemonia do “ethos prático da tolerância”.20

15 - WALZER, M. 1999. p. 116. 16 - BOBSIN, Oneide. Correntes religiosas e globalização. 2002. p. 15. 17 - WALZER, M. 1999. p. 116-7. 18 - WALZER, M. 1999. p. 120. 19 - LIPOVESTKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal. 2004. p. 32-7. 20 - “Numa democracia liberal, não está em jogo a regeneração moral dos cidadãos, mas somente a valorização das virtudes políticas necessárias à conservação de uma sociedade pluralista: tolerância, respeito mútuo, civilidade, espírito de cooperação.” LIPOVESTKY, Gilles, 2004. p. 35.

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Considerando tudo isso, é fundamental aqui é a conclusão de Walzer. Ele afirma que, se o projeto da tolerância moderna exige uma tensão entre indivíduo e grupo, cidadão e membro, na modernidade tardia esta tensão se dá entre cidadãos e membros, de um lado, e ser fragmentado e estrangeiro cultural de outro.21 Então, do visto até agora, pode-se sustentar que a idéia de tolerância encerra um estado de irresolução em que os dados ainda estão rolando. Esta irresolução manifesta-se na dinâmica de constituição da diferença entre as fricções que se dão entre indivíduo e grupo, cidadão e membro e entre estes e ser fragmentado e o estrangeiro cultural. Ela tanto pode ser superada em formas mais fecundas de interação como em conflitos improdutivos.22 Neste sentido, é preciso reconhecer que o primeiro modelo de tolerância (com seus dois projetos), em sua versão iluminista, mantinha algo desta irresolução ao apontar para uma tensão permanente, oscilando entre a superação e a tragédia. O terceiro modelo, por sua vez, supõe fazer concessões ao indiferentismo generalizado que destrói todas as referências. Em outras palavras, significa concessão à “cultura fraca e renunciatória” da modernidade tardia “(...) que, com o abandono das seguranças ideológicas, que entraram em crise, rejeita com freqüência a paixão pela verdade23 e o sentido de um horizonte maior, capaz de fundamento e compromisso com a justiça e com o bem e a responsabilidade pelos outros”.24 Para seguir nesta direção indicada por último, fica evidente que é preciso considerar a formação de identidade como uma dimensão fundamental, pois, como dito, não é possível experimentar nenhuma forma de igualdade vigorosa se não há como “reconhecer a alteridade”. Sem qualquer referência fixa, não há qualquer determinação de alteridade possível. Além disso, frise-se, o objetivo da tolerância não é abolição do “nós”, “eles” ou “eu”, mas o de “garantir sua coexistência e interação pacífica” ou, em outras palavras, a convivência num horizonte maior, capaz de prover fundamento e gerar compromisso com a justiça e com o bem e a responsabilidade pelos outros. A tolerância transita, então, da formação da identidade para os vínculos sociais numa dinâmica de interdependência. Para clarear o cenário da reflexão a ser empreendida, cabe aqui o recurso didático a um esquema apresentado por Bernardo Häring e Valentino Salvoldi25 a propósito dos níveis de manifestação da intolerância e que, é claro, devem ser os mesmos níveis em que a tolerância deve se manifestar: nível individual, micro-social, macro-social. Com isto pretende-se evitar aqui o tratamento da tolerância exclusivamente do ponto de vista das virtudes individuais a serem desenvolvidas. Ao mesmo tempo, procura-se recuperar a tolerância como categoria política. 21 - WALZER, M. 1999. p. 120. 22 - Num esforço de compreensão etimológica do termo em português, poderíamos dizer que o substantivo indica uma atitude em que a idéia de “suportar” traz o sentido de sustentar, agüentar ou manter como capacidade de assimilar com sofrimento uma situação ou ação de algo, contrário à própria natureza. De forma mais geral, passou à linguagem corrente como a possibilidade de admitir indulgentemente modos de agir e sentir substantivamente distintos do próprio e, no limite dessa ação refletida, certa indolência quanto às normas, regras. Conceitualmente, pode-se, então, falar de um esforço para manter, elevar, erguer, sustentar algo acima da nossa capacidade natural e que pode conduzir a uma superação, aliviando e mitigando o sofrimento inicial, mas, uma vez interrompido em sua dinâmica, pode se transformar em obstáculo, embaraço, impedimento e conseqüente destruição. Tolerância, se atitude, está sempre no limite entre a superação e a tragédia. Reside nesta compreensão uma evidente ambigüidade do substantivo.Vali-me aqui de Francisco TORINHA, Dicionário latino Português. 2. ed., 1982; cf. também Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Edição Especial, 2002. 23 - O tema da tolerância supõe uma necessária passagem pelo tema da reivindicação do caráter absoluto do cristianismo e, naturalmente, pelo tema da verdade. Estes temas serão tocados apenas levemente aqui. Eles são, porém, irrenunciáveis. 24 - Bruno FORTE. Para onde vai o cristianismo, p. 136 25 - B. HÄRING e V. SALVOLDI, Tolerância. Por uma ética de solidariedade e de paz, 1995. p. 23.

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De saída, indico duas formas de construção de identidade que devem ser evitadas. Uma delas é a construção idealizada do outro que anula, na prática, a real alteridade.26 A outra forma de criação é o recurso à radicalização do discurso da minoria que, na prática, solapa a opção moral ao atribuí-la a certas particularidades, p. ex., físicas.27 Para fechar o cerco das abordagens a serem evitadas, deve-se acolher ainda a de Dorothee Sölle, teóloga alemã. Em seu livro “Fantasia e Obediência”, ela afirma que o registro de toda forma de renúncia - a tolerância mal entendida como uma forma de renúncia -, como uma “virtude habitualizada” é destrutivo e mortal. O “masoquismo psíquico” daquele que se sacrifica retribui com “sadismo”, pois o inconsciente se vinga do que lhe é feito.28 O desapego do eu só é possível quando há o retorno a si do indivíduo. Sölle admite que esta capacidade de operar a suspensão natural do desejo (de ódio, de exclusão, etc), na forma da renúncia e do sacrifício, é intrínseca à humanidade. Entretanto, ela será tanto mais real, tanto mais eficaz quanto mais forte for a identidade real do indivíduo consigo mesmo. Tal sacrifício, tal paciência, afirma ela, alterando sua análise para o registro teológico, não se entende como “produção”. A renúncia, neste caso, é experimentada como dádiva.29 Só assim ela pode se tornar produtiva no nível das relações eu-outro, nós-eles e nas relações do universo micro-social, a saber, organizações, instituições. Somente a partir deste fundamento podemos manter o sentido primário da tolerância, ainda que a este nível elementar acrescente-se todo o aparato político. Para dar seqüência a esta reflexão, investiga-se o conceito de solidariedade e de reconhecimento.

II – A solidariedade como base da tolerância? 2.1 – O fantasma da solidariedade Conforme nos diz José Fernando de Castro Farias, professor da UFF, o termo solidariedade tem uma história e é uma história recente.30 O cume do desenvolvimento da noção de solidariedade foi a emergência de um sistema de proteção de direitos através de seguros sociais. A sociedade seguradora era a expressão autêntica deste pensamento. Inscrito na lógica de solidariedade, o “sistema de seguridade social ocupou um lugar histórico e estratégico de grande importância nas práticas do Estado Providência”.31 Conclui-se facilmente que o “Estado de bem estar social” de corte claramente liberal apropriou-se de elementos da compreensão de solidariedade tomando, assim, uma feição humanitária. Entretanto, segundo o discurso do pensamento solidário, este “reforço” do Estado não podia ser dissociado da emancipação da sociedade civil. Estatização e autonomização do social constituíam-se em vetores essenciais da lógica da solidariedade. Esta especificidade

26 - Este processo já foi refletido anteriormente a propósito da contribuição de ZIZEK, Slavoj. A paixão na era da crença descafeinada. Folha de São Paulo, Mais!, 14 de março de 2004. 27 - A propósito desta crítica, veja a dura reflexão de COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura, 1994. p. 48-50. 28 - “Sacrifícios têm sentido se estiverem numa consonância do indivíduo consigo mesmo”. Dorothee SÖLLE, Fantasia e obediência. Reflexões para uma ética cristã do futuro. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 55. 29 - Dorothee SÖLLE, Fantasia e obediência. Reflexões para uma ética cristã do futuro, p. 53-8. Para uma ampliação da noção de dádiva em registro filosófico e teológico, veja SCHAPER, Valério Guilherme. A vida repousa sobre a dádiva. Uma abordagem teológica da mercantilização das relações. In: TELES, Antonio Carlos et al. (Orgs.). Ecumenismo e Graça. Quando/onde nada é de graça. São Leopoldo: CECA. 2008, p. 22-30. 30 - FARIAS, José Fernando de Castro. Espaço público e solidariedade, p. 2, disponível em http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/online/rev11_josefer.html . O texto foi acessado em 15.04.04. 31 - Ibid.

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de se organizar impediu que o imaginário político da solidariedade fosse reduzido ao imaginário político liberal. No fim do século XIX e início do século XX, a concepção de democracia estava abalada em função da bipolarização entre duas propostas excludentes: o liberalismo e o marxismo. A compreensão de solidariedade representava claramente uma tentativa de ultrapassar esses dois sistemas. A noção de solidariedade era apresentada como uma base positiva que definia a atividade do Estado. Esta base parecia mais sólida do que a velha noção de soberania nacional ou popular.

Pretendia-se, com isso, criar uma nova legitimidade para o Estado. Através da solidariedade com as cidadãs e os cidadãos, a democracia estaria a serviço da sociedade e o Estado encontraria sua missão social. Mas a passagem da soberania à solidariedade, como fundamento do Estado e do direito, não pode ser simplesmente reduzida a uma passagem do político ao social. A solidariedade não se reduzia a um discurso sociológico; ela tinha também uma dimensão política.32 Além disso, é inegável que a solidariedade, à medida que é criação de laços e conseqüente responsabilidade por eles, comporta uma irrenunciável dimensão ética.

Todavia, se a solidariedade nasceu como uma "idéia-força", como um "conjunto ligado a imagens motoras", como uma "representação coletiva mobilizadora", constata-se que a organização da vida social e do Estado sufocou as tentativas de construção de uma democracia social e pluralista, cuja força motora basear-se-ia na liberdade, na solidariedade e num pluralismo da vida social. A solidariedade tornou-se um paradigma perdido. O neoliberalismo tornou-se tão hegemônico que vivemos sob o estigma de uma “sociedade do pensamento único”. O diagnóstico não poderia ser mais triste: a solidariedade tornou um conceito fantasma.33 Assmann e Mo Sung insistem que é preciso recuperar o “espanto” diante desta perda monumental da noção de solidariedade, pois ela indica uma brutal redução do ser humano. A dimensão de solidariedade do desejo humano é sufocada pela idéia de que o desejo se move unicamente em função do interesse próprio.34 São de importância para esta reflexão as duras advertências críticas de André Comte-Sponville.35 Ele nos devolve a clareza do real significado da palavra solidariedade. Ele insiste que, ainda que comporte uma dimensão subjetiva, ela não pode ser reduzida a uma virtude – tentação permanente hoje tanto discurso teológico como na filosofia política. A solidariedade, afirma, é um “estado de fato” e um “estado de alma” antes que seja um “dever” e uma “virtude”. Contudo, esta palavra vem sendo tão mal-interpretada que se tornou, no âmbito sócio-político, “substitutivo prudente” para a igualdade e a generosidade. A solidariedade, ele o diz expressamente, tem a ver com justiça. Em suma, há um esforço contínuo para que a solidariedade continue um discurso fantasma, na mesma medida em que oculta a real dimensão das relações. 2.2 – Da tolerância à solidariedade Dussel, no seu texto “Desconstrução do conceito de tolerância”, afirma que é significativo que a tolerância opere uma passagem da mera possessão da verdade para a pretensão de

32 - Ibid. 33 - “A palavra solidariedade tornou-se uma espécie de fantasma na memória do homem contemporâneo, servindo para dar boa consciência a uns e amenizar a má consciência de outros.” Ibid. 34 - ASSMANN, H.; MO SUNG, JUNG. Competência e sensibilidade solidária. Educar para a esperança. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 168-71. 35 - COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo : Martins Fontes, 1999, cap. 9.

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verdade e desta para a aceitação das razões de dita pretensão pelo outro, rumo a um consenso válido intersubjetiva e racionalmente. Distinta da posse da verdade, a “pretensão ou reivindicação” universal da verdade inaugura uma nova teoria da verdade em que ela se constitui como um acesso parcial (língua, credo, contexto, etc.) ao real. Desta forma, tal pretensão de verdade não impede o reconhecimento de outras legítimas pretensões universais de acesso ao real. Em função deste seu caráter includente, a “pretensão de verdade” dá lugar à “pretensão de validade”, em que a primeira refere-se ao real e constitui um acesso a ele e a segunda refere-se à intersubjetividade, particularmente à aceitabilidade deste acesso. Segundo Dussel, a tolerância preenche justamente o vácuo que se dá entre a pretensão de verdade e a pretensão de validez. Pondo-se imediatamente ao pé da pretensão de validez, a tolerância instaura o direito ao dissenso. O tempo da não aceitação da verdade que reivindica validez é o tempo da tolerância.36 Contudo, a tolerância, entende Dussel37, supõe certa indiferença em relação ao outro, certa passividade que se desentende do destino do outro, sem assumir responsavelmente a impossibilidade que ele pudesse ter em aceitar as razões que lhe são antepostas. Mais do que isso, diz Dussel, se, fora da dinâmica da pretensão de verdade e de validez, introduz-se a noção de uma pretensão de justiça, é indiferente afirmar que tal ação é levada a cabo justamente com ou pelo outro. Esta pretensão de justiça, que supõe também uma pretensão de verdade prática, pode não ser aceita pelo outro. Há aí também uma pretensão de validez prática que exige um tempo que tem outra densidade que o da tolerância. Neste ponto estamos exatamente no limite da possibilidade de universalização da tolerância. Uma tolerância universal seria, é claro, moralmente condenável: porque esqueceria as vítimas, porque as abandonaria à sua sorte, porque permitira que se perpetuasse seu martírio.38 A tolerância só vale contra si mesmo, e a favor do outro. Tolerar o sofrimento dos outros, tolerar a injustiça de que não somos vítimas, tolerar o horror que nos poupa não é mais tolerância: é egoísmo, é indiferença, ou algo pior. Tolerar é, então, responsabilizar-se. A tolerância que atribui responsabilidade ao outro já está fora do marco de uma “pedagogia da tolerância”. Moralmente condenável e politicamente condenada, uma tolerância universal não seria, pois, nem virtuosa nem viável, pois há muita coisa intolerável: o sofrimento do outro, a injustiça, a opressão, a dor do inocente, etc.39 Diante disso, Dussel40 propõe, então, uma atitude que vá além da tolerância: a solidariedade. Nela se dá a responsabilidade pelo outro. Não só tolera, mas assume; põe-

36 - Enrique DUSSEL, Descontrucción del concepto de “tolerancia”. Disponível em http://www.afyl.org/tolerancia-dussel.pdf. Acessado em 27.07.05. 37 - Enrique DUSSEL, Descontrucción del concepto de “tolerancia”. Disponível em http://www.afyl.org/tolerancia-dussel.pdf. Acessado em 27.07.05. 38 - “Con respecto a la víctima ya la tolerancia no tiene sentido. Se puede tolerar al miembro opuesto del mismo sistema, mientras no ponga en cuestión la hegemonía del primero. Pero no tiene sentido tolerar a la víctima del sistema cuyo poder se ejerce. A la víctima no se la tolera; se la ayuda a dejar de ser víctima. La indiferencia negativa de la tolerancia es inapropiada como actitud ante la víctima que sufre los efectos negativos del sistema. Es en este sentido que la solidaridad con las víctimas está más allá de la Ilustración y la Modernidad; pero aún está más allá de la posición de los postmodernos, porque la solidaridad no puede ser meramente fragmentaria, débil, escéptica, esteticista. La solidaridad es universal, en referencia a todas las diferencias (a la alteridad de la mujer violada, de las razas discriminadas, las clases explotadas, los países periféricos poscoloniales oprimidos, la tercera edad excluidas en los asilos, las generaciones futuras que recibirán una tierra exterminada...). La solidaridad con las víctimas es el tema de una filosofía transmoderna, crítica, mundial, de liberación.” Enrique DUSSEL, Descontrucción del concepto de “tolerancia”. Disponível em http://www.afyl.org/tolerancia-dussel.pdf. Acessado em 27.07.05. 39 - André CONTE-SPONVILLE. Pequeno tratado das grandes virtudes, p. 40 - Enrique DUSSEL, Descontrucción del concepto de “tolerancia”. Disponível em http://www.afyl.org/tolerancia-dussel.pdf. Acessado em 27.07.05.

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se no lugar do outro (substituição). É uma responsabilidade pelo outro como outro, que vai além do reconhecimento do outro como igual em uma justiça intra-sistêmica. Isto é muito mais do que a tolerância ante uma vítima impotente para defender seus próprios direitos. A tolerância é subsumida em uma responsabilidade pelo outro. A tolerância é superada quando, por vontade própria, se assume como próprio o cumprimento do desejo, do projeto de vida que o outro não pode realizar. O outro não é mais tolerado passiva ou negativamente (suspenso na espera temporal de se alcançar o consenso da pretensão de validez), mas é respeitado ativa e positivamente em sua alteridade, em sua diferença. Trata-se da exterioridade do outro, de sua vida, de sua racionalidade, de seus direitos negados. Aí estamos além da tolerância da modernidade iluminista.41 Já estamos aqui no terreno da solidariedade. Se, por um lado, a solidariedade introduz na noção de tolerância a idéia de responsabilidade, na que medida em que assumo o projeto do outro de tal forma que se extrapola o âmbito de uma justiça intra-sistêmica, por outro lado, resta saber como as diferenças se constituem e como se passa da diferença à constituição do todo social. Para isso examina-se ainda a noção de reconhecimento.

III – A tolerância e o reconhecimento A noção de reconhecimento foi desenvolvida de forma paradigmática por Hegel, na Fenomenologia do Espírito. Contudo, Axel Honneth anota que se, neste livro, o tema do reconhecimento alcançou notável clareza conceitual, a sua passagem para o registro da filosofia da consciência significou a perda de uma intersubjetividade prévia e forte como forma de interação social. Nos trabalhos de juventude que antecedem a filosofia da consciência apresentada na Fenomenologia e que, a partir de então, passa a ser a sua proposta filosófica mais marcante, Hegel descreve a “luta por reconhecimento” como “processo social que leva a um aumento de comunitarização, no sentido de um descentramento das formas individuais de consciência”.42 É exatamente este elemento da teoria do reconhecimento de Hegel que Honneth que salvaguardar dando-lhe uma inflexão materialista, visto que o conflito, como “médium” das interações, está na base das várias lutas por reconhecimento enquanto “força moral” que desencadeia desenvolvimentos sociais.43 As identidades dos indivíduos só se formam ou são construídas quando reconhecidas intersubjetivamente. Quando este reconhecimento não ocorre ou é não é bem-sucedido desenvolvem-se as lutas por reconhecimento, nas quais os indivíduos se engajam no afã de criar novos padrões de “reconhecimento recíproco”. Há, portanto, uma expectativa de reconhecimento básica de reconhecimento que se dá segundo três dimensões: a) esfera emotiva: relações primárias de amor e amizade; b) esfera jurídico-moral: relações jurídicas baseadas em direitos; c) esfera da estima social: comunidade de valores baseada na solidariedade social. Em cada uma destas dimensões ou esferas o indivíduo desenvolve uma relação positiva consigo mesmo (auto-confiança, auto-respeito e auto-estima) que, uma vez violada, desencadeia formas correspondentes de desrespeito social (maus-tratos e violação, privação de direitos e exclusão, degradação e ofensas), desaguando nas lutas sociais e nos conflitos políticos. As expectativas normativas de reconhecimento nas esferas da vida forjam identidades pessoais. A violação destas expectativas enseja o surgimento de experiências morais marcadas pelo sentimento de “respeito”. Os movimentos sociais

41 - Enrique DUSSEL, Descontrucción del concepto de “tolerancia”. Disponível em http://www.afyl.org/tolerancia-dussel.pdf. Acessado em 27.07.05. 42 - HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. 2003, p. 64. 43 - NOBRE, Marcos apud HONNETH, A. 2003, p. 18.

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coletivos apresentam, então, uma dinâmica que vai do desrespeito, passando pela luta por reconhecimento e desembocando na mudança social.44 Desta forma, a noção de reconhecimento enriquece a compreensão de tolerância ao propor não somente descrever o todo social, mas oferecer também elementos normativos as situações de conflito. Hugo Assmann critica o paradigma do reconhecimento, pois o considera centrado na mesma idéia de conflito, de competição, que caracteriza toda modernidade liberal. O outro, diz Assmann, emerge com meu possível “anulador”, possibilitando-me anulá-lo. A minha identidade repousa sob a derrota ou escravização do outro. Contudo, a proposta de Honneth parece superar estes estreitamentos, na medida em que busca novos referencias para fundamento da individualização e da constituição os vínculos sociais. Na elaboração de sua “gramática” para os conflitos sociais, Honneth descreve e propõe as formas de solidariedade como um nível elevado de reconhecimento.45 Além da crítica de Assmann, deve-se mencionar a crítica de N. Fraser. Ela propõe uma distinção analítica entre injustiça cultural e injustiça econômica. A esta distinção corresponde igual distinção dos remédios. Em geral o termo reconhecimento, afirma ela, vem sendo acionado sem considerar devidamente estas distinções. No seu entender a dissociação permite perceber os múltiplos cruzamentos entre as reivindicações de reconhecimento (injustiças culturais) e as de caráter redistributivo (injustiças econômicas).46 Ela supõe haver um déficit no conceito de reconhecimento e por isso propõe a manutenção do dilema redistribuição-reconhecimento. Seguramente, após este breve percurso, a noção de tolerância chega ao final substancialmente modificada e enriquecida.

44 - HONNETH, A. 2003, p. 155-211, 213-24, 253-268. 45 - ASSMANN, H.; MO SUNG, JUNG. Competência e sensibilidade solidária. Educar para a esperança. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 175-8. 46 - FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento. Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje. Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. 2001. p. 245-82.