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Timoneiros

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Page 1: Timoneiros

TTimoneirosimoneiros

Page 2: Timoneiros

Universidade Estadual de Campinas

Reitor

Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade

Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial

Presidente

Paulo Franchetti

Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno

José A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago

Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

Page 3: Timoneiros

Felipe Charbel TeixeiraFelipe Charbel Teixeira

TTimoneirosimoneirosretórica, prudência e históriaretórica, prudência e história

em maquiavel e guicciardiniem maquiavel e guicciardini

Page 4: Timoneiros

Índices para catálogo sistemático:

1. Maquiavel, Niccolo, 1469-1527 320.01

2. Teoria social 320.01

3. Retórica 808

4. Prudência 179.9

5. Historiografia 907.2

Copyright © by Felipe Charbel Teixeira

Copyright © 2010 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em

sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0916-1

T235tTeixeira, Felipe Charbel

Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. –

Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010.

1. Maquiavel, Niccolo, 1469-1527. 2. Guicciardini, Francesco, 1483-1540.

3. Retórica. 4. Prudência. 5. Historiografia. I. Título.

cdd 320.01

808

179.9

907.2

ficha catalográfica elaborada pelo

sistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

Editora da Unicamp

Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp

cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil

Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

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Para José Antonio Teixeira

(1949-2008)

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Agradecimentos

Esta é uma versão um pouco modifi cada da tese de doutorado defendida

em junho de 2008 no Programa de Pós-Graduação em História Social da

Cultura da PUC-Rio. Agradeço a Marcelo Gantus Jasmin pela orientação,

pelas críticas e sugestões, mas sobretudo pela amizade, e a Ricardo Benza-

quen de Araújo, Andrea Daher, Bernardo Medeiros Ferreira da Silva e

Monica Grin, que compuseram a banca examinadora. A Andrea, agradeço

também pelo apoio, amizade e sugestões valiosas, e a Ricardo, pelos muitos

caminhos indicados em seus brilhantes cursos. A João Adolfo Hansen e

Luiz Costa Lima, exemplos de conduta e vigor intelectual. A Manoel Luiz

Salgado Guimarães, mestre inesquecível. A Antonio Edmilson Martins

Rodrigues, Ilmar Rohloff de Mattos, Margarida de Souza Neves, Maria

Elisa Sá Mader, João Masao Kamita, Luiz Resnik e Berenice Cavalcante.

Aos meus colegas do Instituto de História e PPGHIS. A Carla, pela com-

preensão ao longo do processo de construção da tese, pela presença nas

horas de insegurança e principalmente por tudo o que signifi ca em minha

vida. Aos meus familiares, especialmente minha mãe, Nádia, minhas irmãs,

Daniela e Helena Karyme, e minhas avós, Yvonne e Bertha, pelo apoio e

paciência. Aos amigos e interlocutores de todas as horas, sem os quais não

seria possível o trabalho intelectual: Danrlei de Freitas Azevedo, Sérgio

Xavier Gomes de Araújo, Gustavo Naves Franco, Pedro Spinola Pereira

Caldas, Marcelo de Mello Rangel, Renata Schittino, Aff onso Celso Th omaz

Pereira, Maria Eugenia Bertarelli, Fabrina Magalhães Pinto, Bernardo

Borges Buarque de Hollanda e muitos outros. Finalmente, aos irmãos de

sempre Jorge Roberto, Alípio Carmo e Wander Paulus.

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Eu estivera ao leme na noite escura, a lanterna

ardendo fr aca sobre minha cabeça.

(Franz Kafk a, “O timoneiro”)

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Sumário

Introdução: Navegando num mar agitado pelos ventos ............................ 13

A prudência em Maquiavel e Guicciardini .................................................. 23O homem e o corpo político ...................................................................... 23O princípio da analogia ............................................................................... 50Breve excurso: da phronesis à prudentia .................................................. 56Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens” .................... 70Uma retórica prudencial ............................................................................. 101

Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardinicomo homens de letras .............................................................................. 109Exílio, ócio e melancolia ............................................................................. 109Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel–Vettori e aConsolatoria de Guicciardini ...................................................................... 121O homem de letras na escala da glória .................................................... 147

A história como arte da prudência ............................................................... 159Uma construção de fatos e palavras ......................................................... 159Concepções humanistas da história .......................................................... 177Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias .......................................... 189Guicciardini e os limites da prudência .................................................... 202

Considerações finais ......................................................................................... 211

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Referências bibliográficas ................................................................................ 215Fontes impressas ......................................................................................... 215Bibliografia complementar ...................................................................... 218

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Introdução Navegando num mar agitado pelos ventos

O conceito de prudência possui centralidade nos escritos políticos e his-

tóricos de Maquiavel e Guicciardini, sendo empregado para qualifi car o

bom juízo, a celeridade decisória e a aguçada capacidade de avaliar as

transformações e as sutilezas da realidade — ou coisas do mundo, como

diziam os fl orentinos do século XVI. Atentos à dinâmica entre diversidades

substanciais, aspectos estáveis ou recorrentes das coisas humanas em tempos

diversos, e acidentes, eventos fortuitos e casuais associados à Providência

ou à Fortuna, os prudentes, além de reunirem em si as qualidades citadas,

devem ser capazes de articular os produtos do cálculo cuidadoso da reali-

dade na forma de textos ou orações de retórica deliberativa e/ou epidítica,

regrados segundo preceitos estabelecidos em tratados da Antiguidade como

a Retórica a Herênio, os textos ciceronianos De inventione e De oratore e o

Institutio oratoria, de Quintiliano.

Não existe prudência sem reconhecimento público: apenas os homens

reputados dignos e honestos por seus pares podem almejar glória e distin-

ção. Para que a reputação de prudente seja alcançada, faz-se necessário

dominar as várias convenções ético-retóricas prescritas para o tratamento

hierárquico entre iguais, superiores e inferiores. Um homem incapaz de se

expressar eloquentemente em cerimônias públicas ou instâncias delibera-

tivas de uma República; inábil na forma de tratar o príncipe ou condottie-

ro de um regime stretto; inepto na composição de histórias e tratados se-

gundo o decoro letrado (regras de conveniência previstas e aguardadas por

leitores e ouvintes) e sem qualidades visíveis e bem defi nidas jamais será

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apontado como prudente, mesmo que demonstre impressionante argúcia

analítica (isoladamente, ela passaria despercebida).

Abrem-se, assim, dois horizontes distintos, porém mutuamente depen-

dentes, em torno da tópica da prudência. De um lado, a ênfase no cálculo

e medida das coisas do mundo, com destaque para a questão dos efeitos,

ou seja, os possíveis resultados das ações dos governantes e demais agentes

envolvidos nos processos de tomada de decisões em Repúblicas, principa-

dos, reinos ou estados papais. De outro, a representação de uma perfor mance

letrada da prudência em textos compostos segundo preceitos ético-retóri-

cos-poéticos defi nidos e examinados pelas autoridades antigas e humanis-

tas: dramatizações (nos diálogos e parcialmente nas histórias) de processos

orais de deliberação pública — caso do Dialogo del reggimento di Firenze,

de Guicciardini, da Arte da guerra e da Vita di Castruccio Castracani, de

Maquiavel, e das obras históricas compostas por ambos — ou exposições

de argumentos na forma de tratados, comentários ou máximas, como O

príncipe e os Discorsi, redigidos pelo secretário, e o Discorso di Logrogno, as

Considerazioni e os Ricordi, de Guicciardini. Essas duas dimensões são

indissociáveis; porém, para efeito analítico, será preciso muitas vezes tratá-

las isoladamente, sem perder de vista sua articulação necessária.

O conhecimento prudencial assenta-se em critérios de uma racionali-

dade não cartesiana, em que a experiência e os costumes arraigados são

enormemente valorizados, e a palavra das autoridades — sejam elas Escritu-

ras, livros de cabala, astros (cujas vozes se revelam nos mapas astrológicos)

ou autores venerados da Antiguidade, como Aristóteles, Cícero, Sêneca,

Quin tiliano, Salústio, Tito Lívio, Lucrécio, Tácito, entre muitos outros —

possui o poder de Lei, mesmo para aqueles reverenciados pela posteridade

como inovadores em certos campos, como é o caso de Maquiavel e Guic-

ciardini. A prudência consiste, nesse sentido, no dispositivo responsável

por fl exibilizar de algum modo essas Leis, interpretando-as segundo os

princípios da contingência, da necessidade e da “qualidade dos tempos”;

ela permite a delimitação de regras provisórias de validação, estabelecidas

segundo o critério da probabilidade e articuladas analogicamente, mos-

trando-se capaz, assim, de lançar luz sobre a realidade sempre cambiante.

Em analogia recorrente, a prudência é vista como o leme que permite

a navegação com alguma segurança em mares incertos1. O timoneiro com-

1 Trata-se da metáfora náutica do “rei piloto”, recorrente na literatura política ao menos desde Platão, e que pode ser identifi cada, por exemplo, na seguinte passagem do De regno, de Tomás de Aquino:

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introduçãointrodução

petente é precisamente aquele capacitado a agir segundo o bom juízo; a

tomar decisões adequadas após analisar e interpretar devidamente os mo-

vimentos das “coisas do mundo”; a agir no tempo certo, prevendo com al-

guma segurança, por meio do exame da situação presente em comparação

com momentos passados — isso pela experiência no trato público e pela

leitura atenta das histórias antigas e modernas —, os movimentos imedia-

tos e futuros dos agentes políticos; a reconhecer os limites de toda ação,

atendo-se exclusivamente ao que é possível realizar; fi nalmente, a garantir,

com um mínimo de segurança, a consecução dos fi ns últimos desejados e

adequados à saúde da res publica — fi ns honestos, como argumentarei.

No primeiro capítulo, situo a produção letrada de Maquiavel e Guic-

ciardini em relação a um corpo de ideias comuns aos fl orentinos do século

XVI: cosmologia, teoria dos humores, experiência do tempo e natureza

humana, aspectos de um sistema de representações coletivas distinto do

moderno. Enfatizo, ainda, o tratamento dado a questões como: a singulari-

dade de uma forma de experiência temporal irredutível a metáforas geomé-

tricas como “tempo circular” ou “tempo linear”; a associação entre a ideia

de “diversidades substanciais” e os princípios de estabilidade da natureza

humana e recorrência circular-assimétrica de padrões gerais, como costumes

e formas de governo; a teoria hipocrático-galênica dos humores, aplicada

ao exame do corpo político; a centralidade do princípio da analo gia para

o cálculo prudencial e urdidura de juízos fundamentados no recur so à

experiência e às “histórias antigas e modernas”, entre outros aspectos.

Desnecessário dizer que não se trata de uma dedução do “particular dos

textos” do “geral da cultura” — o texto não é pensado como registro alheio

às práticas culturais, tampouco a cultura é concebida estaticamente, como

se fosse sempre igual a si mesma —, mas da tentativa de compreender alguns

mecanismos de circulação e “negociação” de “energia social” nos textos

políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini, o que implica, entre

outras coisas, partir das seguintes premissas, elencadas por Stephen Gre-

enblatt (1988, p. 12) em Shakesperean negotiations:

1. Não pode haver apelo à ideia de gênio como origem das energias da grande

arte.

“Governar um ser é conduzi-lo como convém ao fi m requerido. Assim, diz-se que um navio é gover-nado quando a habilidade do piloto o conduz sem danos ao porto pelo caminho certo” (apud Michel Senellart, 2006, p. 21).

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2. Não pode haver criação sem motivo.

3. Não pode haver representação transcendente, atemporal ou imutável.

4. Não pode haver artefatos autônomos.

5. Não pode haver expressão sem uma origem e um objeto, um de e um para.

6. Não pode haver arte sem energia social.

7. Não pode haver geração espontânea de energia social.

Como argumenta Greenblatt, a “energia social” circula no contínuo

comércio simbólico de valores culturais. Ao analisar o conceito de prudên-

cia em Maquiavel e Guicciardini, procuro destrinchar diversos fi os, ele-

mentos peculiares aos seus escritos que não dizem respeito a “visões de

mundo” rigidamente conformadas, mas a processos dinâmicos em que

interagem práticas e costumes ético-retóricos e valores culturais enraizados

entre os fl orentinos, acerca do tempo, do cosmo, do corpo humano e po-

lítico e da natureza de homens e cidades, não só compartilhados em deter-

minado “contexto intelectual” como também suscetíveis a “negociações”

de toda espécie: releituras, adequações, interpretações etc. Como pretendo

mostrar, as apropriações das mais diversas referências antigas e humanistas,

assim como as maneiras particulares com que Maquiavel e Guicciardini

lidavam com muitas das concepções circulantes entre os fl orentinos sobre

o homem, o tempo e a natureza — especialmente a relação entre diversi-

dades substanciais e acidentes —, alicerçam uma redefi nição do conceito

de prudência calcada tanto na valorização da argúcia do olhar para a di-

nâmica complexa das coisas do mundo quanto no deslocamento da pru-

dência do quadro convencional das virtudes cardeais, especialmente no

que diz respeito à sua subsunção à justiça — sem que por isso ela deixe de

ser considerada uma virtude. Tal redefi nição não deve ser tomada, contu-

do, como o produto de intencionalidades transformadoras, visando rup-

turas conscientes com os costumes e preceitos ético-retóricos antigos e

humanistas. Ela é o resultado de movimentos sutis, ajustes conceituais

efetuados na própria mobilização e emprego da categoria em situações

particulares, em função da ênfase atribuída ao critério dos bons efeitos, ou

da efetivi dade analítica, como fundamento para o exame das contínuas

transformações da realidade.

Em seguida, após analisar brevemente o princípio da analogia como modo

particular de inferência do juízo prudencial — compreendida como

dispo sição calculadora da “alma racional”, para falar como Aristóteles, a

prudência opera com dados contingentes da realidade, mobilizando-os

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introduçãointrodução

analogicamente numa busca incessante de semelhanças entre elementos

díspares do mundo —, discuto alguns vieses interpretativos acerca da

prudência, com destaque para a fi losofi a prática aristotélica, para a discus-

são da indissociabilidade entre prudência e retórica em Cícero, para o

tratamento tomista e para as considerações dos humanistas Matteo Pal-

mieri e Gio vanni Pontano sobre a questão. A maneira com que Maquiavel

e Guicciardini concebiam a prudência é ao mesmo tempo devedora de

aspectos signifi cativos dessas refl exões, e inovadora em sua ênfase no exame

dos efeitos das ações e na antecipação das possíveis deliberações dos agen-

tes envolvidos nos processos decisórios de Repúblicas, principados, mo-

narquias e estados papais. Não que esse aspecto da prudência fosse estranho

aos tratadistas gregos, latinos, medievais e humanistas; a redefi nição do

conceito não constitui, nesse sentido, uma ruptura completa com as prá-

ticas ético-retóricas consolidadas ao longo de muitos séculos. Por meio da

análise da mobilização, nos textos políticos e históricos de Maquiavel e

Guicciardini, de certos lugares-comuns da retórica deliberativa — como

as tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da necessidade —,

argumento que a ênfase do secretário na verità eff etualle della cosa não re-

presenta, como defende John Najemy (1995, p. 91), uma “intenção de esta-

belecer um discurso da política independente da retórica e da eloquência”2.

Tampouco compartilho da posição de Athanasios Moulakis (1998) de que

as recorrentes assertivas do personagem Bernardo del Nero no Dialogo del

reggimento di Firenze, de Guicciardini (1994, p. 146), prescrevendo a ati-

nência do analista político aos “efeitos” e à “natureza das coisas”, no lugar

da investigação de “um governo immaginato, que seja mais fácil de aparecer

nos livros que na prática”3, sejam indícios de um “constitucionalismo rea-

lista avant le mot”, efetivo corte em relação ao “republicanismo clássico”

decorrente da descaracterização do vir bonus dicendi peritus4. Defendo, em

concordância com Victoria Kahn (1994, p. 8), que Maquiavel — assim

2 As traduções de passagens de textos indicados na bibliografi a em língua estrangeira são de responsa-bilidade do autor.

3 “E però non abbiamo a cercare di uno governo immaginato e che sia più facile a apparire in su’ libri che in pratica, come fu forse la republica di Platone [...]”.

4 Conferir Athanasios Moulakis (1998, p. 22). Diz o autor: “Realist constitutionalism is used here to describe this innovating complex of ideas; a constitutionalism avant le mot […]. What at fi rst sight appears as a revival of classical republicanism is in fact a departure from it, as well as a departure from medieval ecumenic order. Th e exemplary statesman is not Cicero’s ideal of the vir bonus dicendi peri-tus, ‘the good man expert in speech’. He is instead the savvio, the prudent man […]”.

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como Guicciardini, acrescentaria — “não suplanta a retórica com uma

visão mais realista da política; ao contrário, faz a política mais profun-

damente retórica do que havia sido até então”. Nesse sentido, a redefi nição

do conceito de prudência corresponderia a uma mudança de foco analí tico

cujo sentido fundamental seria não o de operar uma crítica destrutiva

do humanismo, e sim a tentativa de aperfeiçoar seus mecanismos cogniti-

vos, eles mesmos retóricos, segundo o critério da adaptação às condições

dos tempos.

Como percebe Alcir Pécora (2001, pp. 11-2), “o exame de procedimen-

tos previstos e aplicados pelas convenções letradas” estabelecidas nos tra-

tados antigos de retórica — como mobilização de lugares-comuns, medidas

dispositivas e fi guras da elocução — torna possível demarcar “determinações

convencionais e históricas constitutivas dos sentidos verossímeis” de textos

complexos, anteriores ao período romântico. Nesse sentido, o exame da

mobilização de lugares-comuns da retórica deliberativa e epidítica permi-

te a delimitação de uma certa convencionalidade dos escritos de Maquiavel

e Guicciardini, o que inclusive torna possível verifi car a convergência, em

tais textos, de tópicas recorrentes nos debates realizados em muitas das

instâncias deliberativas da República fl orentina.

Pode-se citar, nesse sentido, a retórica típica das pratiche, reuniões dos

fl orentinos ilustres para aconselhamento das magistraturas citadinas5, regis-

tradas por redatores ofi ciais, um dos quais Maquiavel, quando foi secretá-

rio da República. Percebe-se, nos discursos dos oradores, tanto uma ênfase

nas tópicas tradicionais da retórica deliberativa, como a honestidade, a

utilidade, a segurança e a necessidade, quanto a valorização do critério dos

“efeitos” — ou seja, a tentativa de antecipar as possíveis deliberações e ações

dos agentes envolvidos nos diversos processos decisórios atrelados à vida

política. Também as chancelarias e magistraturas da República possuíam

formas particulares de debate não muito vinculadas ao tratamento huma-

nista acerca do bom governo e da concórdia. Trata-se do que Maurizio

Viroli (1992, p. 180) denominou “arte do estado” — conjunto de preceitos

empíricos associados à condução da res publica ou de um stato principesco,

os quais visavam a manutenção e ampliação dos seus domínios.

A maneira com que Maquiavel e Guicciardini compreendem os fenô-

menos políticos é em grande medida devedora desses debates. O que há

5 Sobre as pratiche da República fl orentina, conferir Felix Gilbert (1984, p. 29).

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introduçãointrodução

de específi co na forma de abordagem das “coisas do mundo” apresentada

nos escritos políticos e históricos de ambos — e ao mesmo tempo constitui

o elemento-chave para a compreensão das signifi cativas divergências exis-

tentes entre os dois acerca de questões como a imitação dos romanos, a

concórdia e as possibilidades de reabilitação da antiga virtus — é a singu-

laridade adquirida pela categoria de prudência. Não se trata mais da phro-

nesis aristotélica ou da prudentia de Cícero e dos humanistas, e sim de uma

prudenzia distanciada do quadro das virtudes cardeais e dos imperativos

éticos que a atrelavam à justiça e às demais virtudes morais. Nesse sentido,

a redefi nição da prudência está diretamente associada às mudanças no

tratamento da virtù — em Maquiavel pela vinculação do conceito ao cri-

tério da necessidade, e em Guicciardini como efeito da pouca importância

atribuída à virtù, como notam, respectivamente, Quentin Skinner (1988,

p. 65) e John Pocock (1975, p. 238).

Concebida como disposição calculativa retoricamente vinculada ao

decoro letrado dos gêneros discursivos, a prudência adquire um novo es-

tatuto nos escritos de Maquiavel e Guicciardini precisamente por estar no

cerne de um olhar para os fenômenos políticos orientado pela valorização

do exame das minúcias da realidade, das condições dos tempos e das mudan-

ças da Fortuna; em suma, um olhar mais atento à dinâmica das “coisas do

mundo” que a possíveis adequações da conduta particular a padrões estáveis

de normatização. Nesse sentido, como afi rmei anteriormente, a ênfase

atribuída por Maquiavel e Guicciardini à efetividade analítica não opera

uma separação entre retórica e política; ao contrário, a ideia de verità eff e-

tualle, compartilhada por ambos, realça a importância tanto do cálculo

cuidadoso da dinâmica da realidade como da produção, pelo orador e pelo

homem de letras, de efeitos persuasivos, sem os quais o ajuizamento, ele

próprio condicionado por preceitos ético-retóricos convencionais, não será

reconhecido como prudente. Daí ser possível atestar uma indisso ciabilidade

entre retórica, prudência e decoro letrado, cuja unidade conforma uma

efetiva retórica prudencial: somente um discurso copioso tanto em suas

fi guras e ornato quanto no conhecimento da matéria (rerum cognitione)

pode ser capaz de produzir bons efeitos, incitando os ouvintes ou lei to res

à ação. Discurso copioso que é o produto do engenho de homens pru dentes,

simultaneamente dedicados à vita negotiosa e às práticas letra das — ou, no

caso de Maquiavel e Guicciardini, forçosamente apartados da vita nego tiosa.

Daí a discussão, no segundo capítulo, do lento e descontínuo processo de

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formação de uma representação letrada — a imagem de homem de letras

(litterati) — nos escritos post res perditas de ambos.

Tanto Maquiavel quanto Guicicardini construíram importantes traje-

tórias públicas, atuando como agentes da vida fl orentina e italiana nos

primeiros decênios do século XVI. Maquiavel foi segundo chanceler da

República e secretário dos Dez entre 1498 e 1512, quando precisou aban-

donar seus cargos e a cidade por força do retorno dos Medici a Florença.

Guicciardini iniciou sua atuação pouco antes da queda da República — exa-

tamente o momento em que Maquiavel é obrigado a se afastar da vita ne-

gotiosa — como embaixador junto à corte de Fernando de Aragão, rei de

Espanha, tendo posteriormente servido aos Medici como governador

de importantes províncias e lugar-tenente papal até 1527, ano do saque de

Roma e prisão do papa Clemente VII, seu protetor. Embora tenham oca-

sionalmente se dedicado à escrita em momentos de otium inter negotium,

em conformidade com a noção ciceroniana de “ócio com dignidade” — po-

dem-se mencionar nesse sentido os versos maquiavelianos da primeira

Decenal (elaborada entre 1504 e 1506), além de opúsculos diversos redigi-

dos pelo secretário durante missões ofi ciais, e, no caso de Guicciardini,

importantes registros como o Discorso di Logrogno (1512), o Dialogo del

Reggimento di Firenze (1521-1524), as primeiras versões do Ricordi, além de

alguns textos inacabados, sem contar as juvenis Storie fi orentine, compostas

antes de 1512 —, a situação de exílio forçado e afastamento compulsório

dos negócios públicos foi decisiva para que viessem a conceber para si

mesmos um lugar como homens de letras, se não tão digno e glorioso em

comparação com a participação ativa na condução dos assuntos fl orentinos

e italianos, certamente não destituído de importância.

Argumento que a construção de tal representação letrada — que jamais

chega a se afi rmar plenamente como um entendimento estável acerca da

relação entre ócio e negócio, destituído de tensões e ambiguidades —

permite a Maquiavel e Guicciardini se manterem atrelados às discussões

políticas de seu tempo de modo visto por eles como “honroso”, isso porque,

na composição de tratados, comentários, diálogos, vidas e histórias, subgê-

neros da retórica deliberativa e epidítica, eles apresentam o produto do

cálculo cuidadoso e medido das coisas do mundo (com base nos critérios

da experiência, da leitura atenta das “histórias legadas pelos antigos e pelos

modernos”, da ragione e da discrezione), segundo preceitos ético-retóricos

que não apenas “enformam” o que será dito, mas que efetivamente parti-