tikopia e noçao de casa

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   R e v is t a  AN T  H ROPOLÓGICAS, ano 9, volume 16(1): 53-86 (2005)  A noç ã o de 'c a sa': C onsi der ações a par ti r de R. F irth e d os T ikop ia 1  Marcos Lanna 2  Resumo  O artigo aprese nta a specto s da etno g raf ia da o rg anização so ci al da ilha de Tikopia feita por Raymond Firth, etnografia esta reconhecida por co me ntadores clássicos dentro e fora da I ng laterr a (Geertz, Lévi-Strauss, etc.) como das mais importantes realizações da disci- plina antro pol ógica . A lém de contra star comentadores des ta e tno- g raf ia, o artigo d emonstra ser T ik o pi a um a so ci edade aca sa s’, assim co mo a import ância de ste conceito de Claude L é v i- Strauss para um a a ntro po lo g ia do pa re ntesco que nã o des considere outro s aspectos (políticos, econômicos, religiosos, míticos, cosmológicos, etc.) da  v ida socia l . Ten t a a i n da artic u lar es t e concei t o co m a q ue l e de h i e r a r - quia, de Louis Dumont. Dado isto, o artigo fornece subsídios para co mpa rações entre T i ko pi a e outras soci eda des m ais f reqüe nte- mente interpretadas como ‘a casas’, tanto no contexto polinésio (por exemplo, os Maori) como fora dele (por exemplo, os Kwa- kiutl). 1  Uma versã o deste trabalho foi a pres enta da no GT Família e S oci eda de”, no XXIII Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa e m Ciências S o ciai s), Caxam bu, o utubro de 199 8. 2  Professor do Depa rtamento de A ntro po lo g ia, Universidade Fede ra l do Par aná . E-mail: [email protected]  

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  • Revista ANTHROPOLGICAS, ano 9, volume 16(1): 53-86 (2005)

    A noo de 'casa':

    Consideraes a partir de R. Firth e dos Tikopia1

    Marcos Lanna2

    Resumo O artigo apresenta aspectos da etnografia da organizao social da ilha de Tikopia feita por Raymond Firth, etnografia esta reconhecida por comentadores clssicos dentro e fora da Inglaterra (Geertz, Lvi-Strauss, etc.) como das mais importantes realizaes da disci-plina antropolgica. Alm de contrastar comentadores desta etno-grafia, o artigo demonstra ser Tikopia uma sociedade a casas, assim como a importncia deste conceito de Claude Lvi-Strauss para uma antropologia do parentesco que no desconsidere outros aspectos (polticos, econmicos, religiosos, mticos, cosmolgicos, etc.) da vida social. Tenta ainda articular este conceito com aquele de hierar-quia, de Louis Dumont. Dado isto, o artigo fornece subsdios para comparaes entre Tikopia e outras sociedades mais freqente-mente interpretadas como a casas, tanto no contexto polinsio (por exemplo, os Maori) como fora dele (por exemplo, os Kwa-kiutl).

    1 Uma verso deste trabalho foi apresentada no GT Famlia e Sociedade, no

    XXIII Encontro Anual da ANPOCS (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais), Caxambu, outubro de 1998.

    2 Professor do Departamento de Antropologia, Universidade Federal do Paran. E-mail: [email protected]

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    Palavras-chave: Raymond Firth, Claude Lvi-Strauss, Tikopia, sociedades a casas. Abstract This article presents some features of Raymond Firth's well know ethnography of the Tikopia island, an ethnography that has been recognized by several commentators (Geertz, Lvi-Strauss) as one of the most important contributions to the anthropological disci-pline. Besides contrasting several commentators of this ethnogra-phy, the article demonstrates that Tikopia is a house society, as well as the importance of this Lvi-straussian concept for an anthro-pology of kinship that considers all spheres of social life (economic, political, religious, mythical, cosmological, etc.). It also attempts to articulate the concept of the house with Louis Dumont's notion of hierarchy. Given all this, the article offers subsidies for compari-sons between Tikopia and other societies more commonly inter-preted as house societies, both in the Polynesian context (Maori) as well as outside it (Kwakiutl). Key words: Raymond Firth, Claude Lvi-Strauss, Tikopia, house societies.

    Num texto clssico de 1951, Raymond Firth ops a estrutura social de jure organizao social de facto (as expresses so de Sahlins 1985:xiv), associando esta ltima prtica individual e histria. Um ano depois Lvi-Strauss (1958:314) distingue modelos mecnicos e estatsticos, re-conhecendo estar apenas refinando a distino de Firth. Nos dois casos, tenta-se conciliar princpios estruturais (seja l como estes sejam defini-dos, certamente de modo diferente em Lvi-Strauss e em Firth) e a nego-ciao desta ordem tal como ela experimentada na vida cotidiana, tema ainda hoje atual. Busco aqui retomar o dilogo entre estes autores, inter-

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    pretando a etnografia tikopia de Firth luz do conceito lvi-straussiano de casa. Este um conceito tardio na obra de Lvi-Strauss, aparecendo pela primeira vez em seus cursos de 1976. Como a distino entre modelos mecnicos e estatsticos, o conceito de socits maison de Lvi-Strauss tambm busca conciliar estrutura, por um lado, e de outro a histria, as escolhas individuais e as estratgias (ou a organizao social, diria Firth). Presentes nos cinco continentes, a maior parte das sociedades conhecidas so sociedades de casas. Ao contrrio das sociedades com estruturas elementares do parentesco, elas no se definem pelos casa-mentos entre primos cruzados. Nelas, a escolha do cnjuge no pres-crita, talvez nem mesmo preferencial. Entende-se por casa uma pessoa moral, uma figura que transcende noes clssicas da antropologia do parentesco, como famlia, cl e linhagem. A casa se caracteriza ainda pela capacidade de articular princpios contraditrios, como endogamia e exogamia, patrilinearidade e matrilinearidade, aliana e filiao, hiper e hipogamia, residncia e descendncia, direito divino e direito ao voto, etc. Trata-se assim de uma estrutura que articularia modelos mecnicos e estatsticos. Mas a colaborao entre Firth e Lvi-Strauss anterior dcada de 50. As descries das estruturas elementares do parentesco feitas nos anos 40 devem muito etnografia tikopia de Firth, que auxiliaram Lvi-Strauss a demonstrar como as estruturas elementares se fundam na troca. assim curioso que as descries de Firth das trocas econmicas em uma sociedade com estrutura complexa de parentesco (os tikopia) fun-damentam a teoria das trocas de mulheres de Lvi-Strauss em sociedades com estruturas elementares do parentesco. Ao revisitar este tema, buscarei dar indicaes, a partir da etnografia tikopia de Firth, a respeito da possibilidade de uma teoria da troca tam-bm poder fundamentar uma teoria da casa. Trata-se assim de articular

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    trs momentos fundamentais da antropologia clssica: a descrio de Firth da sociedade tikopia, a teoria da troca iniciada por Marcel Mauss e a noo de casa de Lvi-Strauss, mais recente, do final da dcada de 1970 e inicio da de 1980. At que ponto uma casa se constitui pela circulao de ddivas? Lembro que estas ddivas no incluem apenas bens e mulhe-res, mas tambm nomes, ttulos, prerrogativas, ou, como prefere Lvi-Strauss, bens imateriais. Alis, uma questo relacionada, a ser abordada futuramente, seria at que ponto a mulher pode ou no ser uma ddiva numa sociedade de casas. Inmeras anlises comparativas vm sendo fundamentadas pela noo de casa, seja no mundo mediterrneo (Bonte 1994) seja na frica, na sia, na Oceania ou na Amrica (Carsten & Hugh-Jones 1995). Mesmo os crticos da noo lvi-straussiana de casa reconhecem-na como ponto de partida fundamental. Ora, no seria tambm este o caso da compreenso da casa brasileira, ou ao menos para uma possvel releitura futura de autores como Gilberto Freyre e Roberto Da Matta? Se este define a casa de modo bastante diverso do que o faz Lvi-Strauss, e, alis, o faz simultnea e independentemente, o fato que para ambos a casa tem a capacidade de articular princpios antagnicos. Os trabalhos de Freyre e Da Matta so ainda importantes por pensa-rem a casa a partir de um prisma mais englobante do que o da teoria do parentesco. Eles podem assim contribuir para futuras respostas questo lvi-straussiana de como, e at que ponto, em casos distintos, a prpria esfera do parentesco pode, numa estrutura complexa, vir a depender ou ser funo de fatores polticos, econmicos e religiosos. Para Lvi-Strauss, as sociedades a casa apresentam um enfraquecimento do idioma do parentesco, um desenvolvimento das estruturas elementares em dire-o s estruturas complexas. Esta evoluo implicaria uma crescente de-pendncia das estruturas de parentesco em relao a determinaes pol-tico-econmicas. H evidentemente um aspecto evolutivo na proposio

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    de Lvi-Strauss desta passagem (lgica, no histrica). Devo notar ainda que minha leitura de Firth no parte apenas da antropologia de Lvi-Strauss, mas inclui tambm a de Dumont assim como um cruzamento de perspectivas entre os paradigmas francs e britnico da disciplina. Meu objetivo ser mostrar, no final deste artigo, como os trs autores mencionados neste pargrafo nos conduzem su-perao de questes caractersticas destes novos tempos pos modernos. A presena de Dumont fundamental por inmeros motivos. Em pri-meiro lugar, a possibilidade de uma hierarquia entre as casas em diversas sociedades (da brasileira tikopia) um tema que ainda espera anlise. Em segundo lugar, Firth foi um autor preterido por Dumont e seus dis-cpulos, que escolheram Hocart com intrprete privilegiado da realidade polinsia. Contrastando com as freqentes e sempre elogiosas menes de Lvi-Strauss a Firth, Dumont e seus discpulos como Serge Tcherke-zoff desconsideram Firth, adotando Hocart como intrprete privile-giado das sociedades polinsias. Irei, entretanto, aventar a hiptese de que a etnografia de Firth pode contribuir para a teoria da hierarquia. Tentarei ainda explicitar a seguir os motivos desta ausncia de dilogo entre Firth e Dumont, seguindo uma proposta anterior (Lanna 1996) de promover um dilogo entre a teoria da hierarquia, a lvi-straussiana e a etnografia britnica. Na concluso, irei relacionar a indiferena de Du-mont a Firth aos elogios de Lvi-Strauss e s crticas de Geertz (1988). Se a noo de estrutura de Firth permite aproximar seus trabalhos dos de Lvi-Strauss, sua noo de organizao social, englobando esco-lhas, estratgias e normas estatsticas, no deixa de se relacionar noo de hierarquia de Dumont. Isto porque [...] a realizao do modelo hie-rrquico no plano dos fatos [...] repousa nas escolhas particulares [...] que constituem as formas sociais empiricamente observveis que, por sua vez, fornecem uma referncia contextual importante para a determinao

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    de escolhas ulteriores (Houseman 1984:313). Este modelo hierrquico, dando conta da existncia de normas estatsticas de organizao, assim como da elaborao de modelos indgenas ideais [ou mecnicos, para usar o termo de Lvi-Strauss], permite integrar aos comportamentos reais [...] normas e modelos [...] e assim resolver o (falso) problema da disjuno entre ideologia e fatos empricos, alm de superar [...] a noo pouco satisfatria de sociedades frouxamente estruturadas (id.:314). Assim, ainda que no seja redutvel prescries unilaterais [...] o modelo hierrquico ... estruturante (id.,ib.). Se Lvi-Strauss torna rgida a distino de Firth entre estrutura e organizao social, reproduzindo-a atravs da distino entre modelos mecnicos e estatsticos, Houseman a flexibiliza. Isto do ponto de vista das escolhas. Do ponto de vista da histria, o mesmo tipo de crtica noo lvi-straussiana de estrutura foi feita por Sahlins (1981). Conclui-se assim que a estrutura no pode ser rigidamente contrastada a quais-quer aspectos da organizao social, seja o das escolhas e estratgias seja o histrico. Neste sentido, a crtica deve ser dirigida no s a Lvi-Strauss, mas tambm a Firth. Isto porque sua noo de organizao social, ao contrrio da noo de hierarquia de Dumont, postula uma ex-terioridade entre o modelo estrutural e as prticas, os comportamentos e at mesmo o que ele denomina os valores. Em outras palavras, os fatos de organizao social no so para Firth estruturantes. No proponho assim adotar a noo de organizao social de Firth, mas, ao contrrio, incorporar escolhas, estratgias e normas estatsticas a um modelo estruturante, e no a um modelo a parte, oposto ao estrutural. Outro aspecto significativo da anlise de Firth para meus objetivos aqui sua contribuio para o estudo da inter-relao entre economia e parentesco. Firth estudou em profundidade vrias sociedades malaia, maori e tikopia em que a esfera do parentesco resulta de determinaes poltico-econmicas, ao contrrio do que ocorre nas estruturas elemen-

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    tares, onde a esfera do parentesco seria, por definio, mais determi-nante. Como Firth entendeu as determinaes poltico-econmicas da esfera do parentesco? Em primeiro lugar, Firth caracteriza as economias no capitalistas pela ausncia de mecanismos de preo e de [...] qual-quer desejo de buscar lucros tanto na produo como na troca; trata-se assim de economias que desapontariam qualquer economista (Firth 1939:10). Neste contexto, cabe ao antroplogo desvendar o [...] esquema de valores que as pessoas utilizam para tomar suas decises (Firth 1939:5). Mas para Firth, como vimos, no seriam estes valores elementos da estrutura. Ora, o contrrio ocorre no modelo dumontiano. As anlises de Firth e Dumont apontam para o estudo dos valores, mas h diferenas importantes entre eles. Em primeiro lugar, Firth sem dvida um autor individualista, exemplo do paradigma que Sahlins (1976) denominou razo prtica. Isto se evidencia na sua definio de organizao social como um conceito que enfoca aqueles aspectos dinmicos ou proces-suais nos quais a escolha exercida num campo de alternativas dispon-veis, recursos so mobilizados e decises feitas luz dos provveis custos e benefcios sociais; segundo Firth, a escolha faz parte da orga-nizao social (cf. Firth 1951). Outro exemplo de individualismo metodolgico na obra de Firth a suposio, em Primitive Polynesian Economics, de uma coerncia universal entre meios e fins. Para Firth, os tikopia difeririam dos civilizados no pela inexistncia de uma economia ou de um controle racional do am-biente, mas sim pelos diferentes tipos de fins, entendidos, ao modo de Malinowski, como mobilizaes dos desejos humanos. Pressupe-se como universal uma muito particular relao instrumental entre meios e fins. H em Firth este paradoxo: ao mesmo tempo em que, ao modo da teoria econmica liberal, generaliza aspectos da sociedade ocidental, o que me parece criticvel, por outro lado no deixa de evidenciar as espe-

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    cificidades e os valores das sociedades que estudou, o que o torna o grande discpulo de Malinowski. Por incluir nos valores os princpios na-tivos, seu procedimento no implica desconsiderar as regras sociais parti-culares. Menciono outro exemplo deste aspecto paradoxal da antropologia de Firth. Ele distingue a ddiva das foras impessoais da oferta e de-manda (Firth 1983:91), da troca de mercadorias no interior do mercado; entretanto, seu esforo no no sentido maussiano de pensar a troca, em si mesma, como estruturante. Ao contrrio, Firth privilegia um aspecto psicolgico, o clculo implcito em qualquer troca. Por vezes Firth pres-supe este clculo, por vezes o descreve, apreendendo-o enquanto pen-samento nativo. Firth percebe a diferena entre a solidariedade gestada no interior do mercado e aquela criada atravs das relaes de ddiva ou endividamento, mas acaba obscurecendo esta distino em nome da con-jectura de que mesmo na ddiva se chega a algo prximo a um preo, uma estrutura derivada da negociao e dos clculos individuais. Em toda a Oceania, a troca de objetos se caracterizaria pela existncia de complexos clculos qualitativos, redundando em equivalncias mais ou menos fixas. Estas no exprimiriam um sistema de preos, mas sim esfe-ras de trocas hierarquizadas. Firth chega ento a uma noo de valor derivada da negociao competitiva de estimativas pessoais de valor luz de interesses individuais (Appadurai 1986:19). Firth se afasta de Hocart em sua concepo do valor, da ddiva e do prprio lugar da economia nas sociedades polinsias. Para Hocart, escre-ver um tratado de economia polinsia seria deixar de lado o essencial. Note-se que a postura de Firth em relao a Hocart no s de diver-gncia, mas de afastamento. Por exemplo, ainda que em vrios momen-tos de sua obra Firth compare Tikopia com outros grupos e ilhas poli-nsias, suas divergncias com Hocart e Rivers, prximo a este o levam a no considerar sociedades estudadas por Hocart, Hava e Ilhas

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    Fiji. A comparao entre Tikopia e Fiji feita por Sahlins (1972) e com o Hava por Valerio Valeri (1985), que, alis, v semelhanas entre o en-tendimento de Firth do mana tikopia e de Hocart do mana fijiano. Apesar desta indicao de Valeri, no seria exagero pensar na rela-o entre Hocart e Firth como de oposio. Dumont e os dumontianos parecem, corretamente a meu ver, tomar esta oposio entre Hocart e Firth como uma manifestao da oposio entre holismo e individua-lismo. Entretanto, h que se ressalvar que em Ns, os Tikopias, Firth no adota a mesma postura abertamente individualista de obras posteriores. Neste livro, Firth se aproxima de Mauss, relacionando o parentesco ddiva, histria (ou dinmica ou organizao social), poltica, religio e aos rituais. Nele, o psiquismo individual, no forma previa-mente o grupo, mas o completa (Lvi-Strauss 1950:xxiii). Em Ns, os Tikopias, Firth revela-se um autor que melhor talvez do que qualquer outro soube explorar as possibilidades abertas pelo mtodo [maussiano] (Lvi-Strauss 1950:xxxiv). Em resumo, h uma tenso na obra de Firth entre uma perspectiva prxima das de M. Mauss [...] uma viso do social reduzido a um sistema de transaes e clculos individuais (Da Matta 1983:44). Lvi-Strauss salienta o primeiro aspecto, os dumontia-nos, o segundo (caso tambm de Roberto Da Matta 1983). Esta tenso se expressa na prpria distino entre estrutura e organi-zao social. Firth fez contribuies decisivas para a anlise de ambas, mas concordo com Da Matta que esta tenso se resolve por um englo-bamento da estrutura pela organizao social. No busco aqui explicitar nem resolver esta tenso. Por outro lado, devemos, antes de condenar a obra de Firth ao individualismo, como faz Da Matta, distinguir, em Ns os Tikopias, a perspectiva metodolgica de Firth do fato de o parentesco tikopia estruturar-se em torno de escolhas e estratgias. Isto porque se trata de uma estrutura complexa: Tikopia no conhece graus preferidos, e o casamento entre primos a proibido (Lvi-Strauss 1949:82). Tiko-

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    pia assim uma sociedade que praticamente conduz, ou obriga mesmo o analista a pensar a questo da estratgia e relacion-la escolha dos cn-juges. Ora, esta questo das escolhas individuais um tema central da escola britnica assim como da filosofia liberal. Ela estrutura tanto a antropologia de Malinowski ou de Radcliffe-Brown, como, de um modo mais amplo, o pensamento de filsofos como Hobbes e Locke, ou fil-sofos-economistas como Adam Smith e John Stuart Mill. Firth se viu ento duplamente constrangido, pelos tikopias e pela sua formao, a refletir sobre isto. Se no chegou, em 1936, a [...] incorporar o conceito de estratgia ao conceito de estrutura, possibilitando um funcionamento no-transcendental deste ltimo (Viveiros de Castro 1995:9), ao menos realizou uma importante reflexo a respeito desta questo. A principal crtica que poderia ser feita a Firth, tanto em Ns, os Tikopias como no posterior Elementos de Organizao Social, seria ento a de justamente separar estrutura e estratgia. Associadas organizao social, as estratgias so opostas estrutura. Por outro lado, no se pode negar que, de um ponto de vista etnogrfico, estrutura e organizao esto sempre presentes na sua obra, na qual h sempre a preocupao em tra-duzir ambos os aspectos da realidade social. Eu dizia que a noo de casa de Lvi-Strauss pode ser aproximada da de hierarquia de Dumont por ambas permitirem uma sntese entre estrutura e estratgia. Se lembrarmos que a oposio de Firth entre estrutura e organizao social de 1951, aceitaremos que ela no orienta sua clssica etnografia de 1936, Ns os Tikopias (para uma comprovao deste ponto, cf. Lanna 1998). Ora, em 1936 Firth traduzia a noo tiko-pia de paito por casa (house). Posteriormente, Firth (1957, 1963b) recusa esta sua traduo inicial. No seria exatamente porque a noo tikopia de paito, como a casa de Lvi-Strauss, englobar coisas que Firth pretendia distinguir, estrutura e estratgia?

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    A resposta a esta questo implica analisarmos a especificidades do caso Tikopia. Trata-se de um caso particular de estrutura complexa de parentesco. Por um lado, como caracterstico das estruturas complexas, as relaes de reciprocidade inerentes s relaes de parentesco, pre-sentes em qualquer casamento, no estruturam outras esferas sociais. Como mostrara Marx, a infra-estrutura se define pelas trocas econ-micas, no naquelas dos casamentos; as trocas que importam so as das coisas, no a circulao de pessoas. Voltando a Tikopia, trata-se de uma sociedade onde h, ou houve, quando Firth a visitou, o rapto de mulheres. O casamento por captura no estabelece reciprocidade plena entre os diferentes grupos patrilate-rais, embora este tipo de casamento no s no o nico como no exclui a possibilidade de uma reciprocidade mais ou menos violenta (isto , o grupo a rouba mulheres do grupo b que posteriormente roubar de a). Entretanto, a reciprocidade entre os grupos patrilaterais (Firth fala em ramage, Lvi-Strauss em lignes) ocorre antes de tudo na esfera econmica. Em seus comentrios sobre o casamento tikopia, Lvi-Strauss no se atm ao roubo da esposa. No se atm ainda ao fato de que aps estes raptos que se celebram as festas e se trocam as ddivas. Tikopia representaria ento, aparentemente, mais um caso de passagem da guerra paz atravs da troca, uma passagem de um modo violento de circulao de mulheres a um modo pacfico e festivo de troca de bens. No pri-meiro, as retribuies so infreqentes e inesperadas. No segundo, as retribuies so imediatas e prescritas. A reciprocidade na troca de mulheres assim potencial, no sentido de que a retribuio por outra mulher pode ou no ocorrer. Como eu disse, trata-se de uma estrutura complexa exatamente por que exclui prescrio ou preferncia nas trocas de mulheres. Lvi-Strauss e Firth nos mostram, porm, que o contrrio ocorre na troca econmica. So as

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    festas, e no o casamento tikopia, o lcus das trocas que tanto im-pressionaram Lvi-Strauss, celebrando o fim de uma violncia instituda no ou rapto, mas que poderia estar presente, em maior ou menor grau e de modo mais ou menos explcito, tambm nos casamentos sem raptos. Tudo se passa como se a troca de bens fosse uma seqncia tempo-ral e estrutural da passagem das mulheres de um grupo a outro. Nela, a reciprocidade atingida de modo mais direto do que na esfera do pa-rentesco. Por outro lado, e simultaneamente, a troca de bens tikopia uma derivada das transferncias de mulheres, realizando na prtica uma reciprocidade apenas implcita nestas ltimas. Por isto mesmo, na esfera do parentesco, a troca no algo passageiro, mas, ao contrrio, funda as relaes, marcando-as, de modo indelvel, com a possibilidade de uma reciprocidade, possibilidade esta que s se realiza plenamente na prtica econmica e ritual. A economia uma derivada do parentesco, mas no chega a ser um epifenmeno deste; ao contrrio, ela surge em Tikopia como um valor quase infra-estrutural por que atualiza na prtica a reci-procidade potencial estabelecida nas trocas e raptos de mulheres. exa-tamente por isto que Firth pode, de modo semelhante ao que Mali-nowski havia feito nas Ilhas Trobriand, fazer uma estupenda etnografia das atividades econmicas por trs das festas (produo e coco de inhames, fabricao de canos e inmeros outros objetos a serem troca-dos, etc.), Mais ainda, em Tikopia, como nas Trobriand, h, alm de uma economia ritual (uma economia por trs das festas ou para as festas) tambm uma economia das festas (a troca de festas, a rgida especifi-cao da participao de grupos e indivduos nas festas, etc.). A etnografia tikopia de Firth nos conduz ainda a refletir sobre outras questes fundamentais relativas ao parentesco, como a da posio da mulher em relao aos homens e a da relao poltica entre os grupos tomadores e doadores de mulheres. Firth mostra como o casamento pode envolver escolhas individuais em maior ou menor grau (Firth

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    1936:537-538, 550). Salienta que as mulheres podem ter a iniciativa da unio formal, at mesmo de serem roubadas: o casamento concebido como emancipao, porque ele permite mulher exercer autoridade em uma esfera prpria, dela mesma (Firth 1936:531). Firth (1936) nota ainda que, entre o casamento (com ou sem rapto) e as festas h uma srie de visitas dos parentes do noivo aos parentes da noiva. Em uma destas, os tomadores da mulher aparecem abruptamente no meio da noite e se desculpam formalmente pelo rapto. Para tanto, entram engatinhando na casa do pai da noiva e de parentes importantes dela e colocam seus narizes no joelho destes (o que tambm aparece em Firth 1970:200). Este fato aponta para uma superioridade, ao menos momentnea, dos doadores: os parentes do noivo realizam o cumpri-mento tikopia que representa submisso. Na relao entre tama tapu (sobrinho materno) e tuatina (irmo da me) se inverteria esta superioridade dos doadores de mulheres. Na relao pessoal que tem com seu tuatina, o tama tapu carrega consigo uma superioridade, mesmo se sua patrilinhagem, tomadora da mulher, for inferior do tio materno. Para evitar esta inferioridade momentnea, em relao ao filho de sua irm, um chefe sempre delega um parente, re-presentando-o, para preencher suas responsabilidades. O chefe evita assim um constrangimento, mas no o cumprimento das obrigaes que tem para com seu tama tapu. As anlises comparativas de Firth (1936, cap. XVI) sugerem ser a superioridade dos doadores de mulheres, a hipogamia, geral na Polinsia. A superioridade do sobrinho materno seria ento um momento de inver-so da estrutura hierrquica. Isto contradiz a hiptese de Hage e Harary (1996:120) para os casos de Tonga e do Hava, mas repete a configurao do chefe fijiano de Sahlins (1985) como um estrangeiro tomador de mulheres e usurpador da terra, mas que se submeteria em ltima anlise aos sacerdotes autctones. Como um tama tapu no caso tikopia, a supe-

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    rioridade do stranger-king fijiano de Sahlins momentnea. Ela seria apenas poltica e econmica; os doadores da princesa sendo englo-bantes, a sociedade levando a melhor contra o estado, os sacerdotes sobre os guerreiros. Seria esta hiptese vlida para Fiji e Tikopia e no para Tonga e o Hava? Parece-me que sim. As descries de Firth podem aproximar Fiji de Tikopia, mas no revelam a teoria polinsia do poder advogada por Sahlins (1985:74). Ora, este paradigma fijiano de um casamento entre um conquistador divino e uma autctone, gerador da estrutura social, no existe em Tonga (Lvi-Strauss 1984:219). Voltando a Tikopia, nesta ilha expressamente proibido o casa-mento entre primos de primeiro grau (Firth 1936:330), cruzados ou paralelos, matrilaterais ou patrilaterais. So estigmatizados como in-cestuosos os rarssimos casamentos entre primos (id.:331) e por vezes at mesmo entre primos de segundo grau pois primos so como irmos em Tikopia (id.:332) , ainda que, neste ltimo caso, a estigmatizao seja bem menos intensa (id.:333). J em Fiji, ao contrrio, h a regra de casa-mento entre primos cruzados. Lvi-Strauss (1984:213) e Sahlins (1985: 27) notam, para o caso de Fiji, que se duas pessoas se casam, sem serem efetivamente primos entre si, passam a s-lo, ou a se considerar como tal aps o casamento; as famlias dos noivos passam a ser aparentadas, e no apenas afins. Esta inter-relao entre estrutura e prtica no parentesco fijiano re-vela caractersticas mais gerais das estruturas polinsias. De modo equi-valente, mas relativo descendncia, a noo de fetii dos camponeses taitianos modernos significa consideravelmente mais do que um grupo de parentesco, representando uma comunidade moral mais ampla (Hooper 1970:318-319). O significado da categoria fetii, como a de primos cruzados em Fiji, prescrito estruturalmente ao mesmo tempo em que recriado pela prtica. Nos dois casos, vale a observao de Hooper de que na Polinsia, em geral, deveramos falar em ascen-

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    dncia e no em descendncia (Hooper 1970:314). Haveria uma rele-vncia estrutural da ascendncia, mesmo quando inventada ou auto imputada, atravs da prtica. O mesmo vlido para o caso do hap maori, definido por Firth (1963a) como grupo de descendncia opta-tivo: assim como no Taiti moderno como em Fiji, l tambm o indi-vduo pode vir a escolher seu grupo de ascendentes note-se que, neste ltimo caso, atravs do casamento. H assim um debate importante a respeito de como entender as uni-dades bsicas do parentesco polinsio. Que tipo de grupo seriam o hapu maori, do fetii taitiano, h o aiga de Samoa, o kopu de Mangaia (Hooper 1970:306-7), e vrios outros? Famlias, cls? E o tipo de descendncia? Bilateral, no-unilinear ou indiferenciada, como sugere Lvi-Strauss? Quanto diversidade das anlises antropolgicas sobre estas questes, Firth (1963a:22) comenta que cada um imps sua iluso de ordem. A meu ver, a questo se resolve com a noo de casa de Lvi-Strauss. Antes de descrever o caso tikopia, valeria a pena mostrar qual a ilu-so de ordem do prprio Firth. Antroplogos norte-americanos ligados a Geertz gostam de salientar as divergncias entre antroplogos ingleses, de tal modo a dissolver a identidade deste grupo. Meu esforo (cf. Lanna 1998) no sentido contrrio. Assim, atravs de um dilogo com os africanistas que Firth desenvolve suas anlises do parentesco a partir da dcada de 1940, posteriores a Ns os Tikopias, e tenta adaptar a teoria da linhagem aos casos polinsios. Posteriormente, tambm Lvi-Strauss (1984:215) ir percorrer um caminho da Polinsia frica ao analisar questes relativas casa, mas, ao contrrio de Firth, assumir uma postura crtica em relao teorias da linhagem. Em todo caso, estes autores concordam haver uma impossibilidade de se explicar as estru-turas polinsias unicamente a partir das relaes de aliana. Em 1936, Firth explicitava as diferenas entre as linhagens africanas e as polinsias denominando estas ltimas ramages. Mas em 1957 Firth

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    abandona este termo, preferindo o de linhagens polinsias. Na terceira edio de Ns, os Tikopias, Firth (1963b) comenta que se pudesse modi-ficar o original mudaria, antes de tudo, a traduo da noo tikopia de paito, que aparecia, de modo feliz, a meu ver, como casa. Firth usa house, entre aspas no original, para marcar a noo de casa como uni-dade moral, diferenciando-a fortemente, ento, da house e da household (sem aspas no original), expresses indicativas da casa enquanto constru-o e morada comum, respectivamente por vezes Firth usa ainda dwelling para a moradia. Ao posteriormente adotar o termo linhagem para traduzir paito, Firth no apenas se aproxima dos africanistas, mas tambm se afasta novamente de Hocart, que, como lembra Lvi-Strauss (1984:213), j em-pregava o termo casa para grupos fijianos semelhantes paito tikopia. independncia de Hocart quanto ao mainstream da antropologia inglesa de sua poca parece corresponder a atitude oposta de Firth. Se a paito tikopia uma unidade moral que pde ser descrita como casa, como entender o patricl tikopia, localmente denominado kainanja? A antropologia aceita hoje o uso do termo cl para qualquer grupo de unifiliao definido a partir de uma idia de ancestralidade, freqentemente mtica, fundando uma perpetuidade presumida; o critrio territorial e a exogamia no so mais considerados pertinentes (Copet-Rougier 1992b:152). Entendendo o kainanja como um cl, Firth antecipa, em 1936, o sentido contemporneo do termo, adotando-o para um grupo no exgamo. Mas o cl tikopia se define tambm pelo critrio territorial tradi-cional, ainda que se trate de casas espalhadas pelos vrios distritos (o termo de Firth) da ilha. O territrio da casa assim descontnuo, mas definido a partir do cl, pois a posse da terra de cada casa se baseia numa ocupao ancestral (Firth 1936:59). Se o cl um grupo de uni-filiao, no devemos entender por isto que ele seja linhagem. Em

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    resumo, os cls so unidades constitudas por vrias casas espalhadas pela ilha (Firth 1936:67). H quatro deles em Tikopia. Quanto patrilinearidade tikopia, Firth no a especifica. Sua postura acrtica em relao teoria da linhagem sugere ser sua nfase na patri-linearidade ideologia do antroplogo. Teria sido Firth influenciado pelos temas africanos a ponto de acentuar exageradamente o aspecto agntico da paito? Se isto pode ser verdadeiro, por outro lado Firth no deixa de apontar certa flexibilidade do parentesco tikopia, aquilo que, a meu ver, faz desta ilha uma socit maison. Como vimos, no h impedi-mento para casamentos dentro do cl e freqentemente um homem pertence ao mesmo kainanja que sua me (Firth 1936:361). Em outras palavras, no h rgida patrilinearidade. Novamente de acordo com desenvolvimentos posteriores da teoria antropolgica, tambm para Firth a noo de residncia, [...] ainda que referida ao sistema de paren-tesco, lhe ao mesmo tempo exterior por suas implicaes polticas, econmicas ou rituais (Copet-Rougier 1992a:629). Talvez porque a cognao no especialmente desenvolvida em Tikopia, Lvi-Strauss (1984) no incluiu esta ilha em suas reflexes sobre a maison polinsia. Evidentemente, h diferenas fundamentais entre a casa e o cl tikopia e as casas de outras regies do planeta, como os numaym kwakiutl, os tikopia sendo mais claramente patrilaterais. Mas, como vimos, h momentos em que a etnografia de Firth revela certa indiferenciao ou para usar um termo seu, flexibilidade. Firth mostra, por exemplo, que em alguns casos, tipicamente o dos chefes tikopia, os parentes maternos podem ser substitudos pelos paternos e vice-versa. Este fato, aliado ao que foi dito at aqui, parece ser suficiente para de-monstrar a necessidade de se incluir Tikopia entre as socits maison poli-nsias. Havia aproximadamente trinta casas, na poca da visita de Firth (1936:369). H exogamia entre as casas de um mesmo cl; s nos

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    casamentos dos chefes so os cls as unidades que trocam mulheres entre si. As casas, por sua vez e conseqentemente, de modo deri-vado, tambm o cl se constituem assim a partir de relaes de troca entre grupos patrilaterais, mas estas relaes envolvem simultaneamente relaes de aliana e de descendncia, pois, no sendo os cls exgamos, um homem casa-se com uma parente. Alis, outra indicao de ser Tikopia uma sociedade de casas o fato de s os chefes de cls casarem-se regularmente fora de seu cl. Isto , os chefes tm o privilgio da exogamia. Mais ainda, como nas casas reais da Idade Mdia (Lvi-Strauss 1979), os casamentos dos lderes de cl tikopia so ora excepcionalmente endogmicos (Firth 1936:329-331, 349, 435-437), ora excepcionalmente exogmicos (Firth 1936:338-340, entre outras passagens). Se a maioria dos comuns casa dentro de seu cl, a vrias geraes os chefes de cada cl casam entre si (Firth 1936:363-364). Mas no h apenas descontinuidade entre chefe e comuns. A capacidade de centralizao dos chefes, caracterstica da Polinsia, tam-bm aparece em Tikopia. As afiliaes de parentesco que constituem uma casa [...] envolvem um constante fluxo de dons e servios, parti-cularmente em relao ao chefe, em volta de quem [os Tikopia] se agru-pam em ocasies importantes ritual e socialmente (Firth 1936:91). Deste modo, o chefe estabelece uma continuidade entre casa e cl: [...] o kainanja um agregado da paito (Firth 1936:361), isto , como vimos, o cl se compe pela unio de vrias casas. Tambm fundamental notar que tanto o kainanja como as paito tm associaes totmicas com pssaros, vegetais, rpteis, peixes e mesmo artefatos (cf. Firth 1966:12) , as do cl englobando as das casas. Vimos acima que para Firth a casa tikopia se constitui por um constante fluxo de dons e servios. Firth certamente privilegia anlise das trocas econmicas. Leach (1961:21) lembra uma passagem de Ns os

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    Tikopias em que Firth relega a um segundo plano as relaes de afinidade para privilegiar a funo da herana do patrimnio da casa na relao entre tio materno e sobrinho uterino. A colocao de Leach correta para a passagem por ele escolhida, mas no vale para todo o livro. Neste, a relao entre tama tapu e seu tio materno no jamais reduzida questo herana. Mais ainda, Firth j explicitava a tese advogada por Leach de que os prprios tikopias entendem a relao entre tio materno e sobrinho como uma relao de afinidade entre linhagens e no um simples elo entre indivduos (ib.). De todo modo, aps as anlises de Lvi-Strauss sobre as sociedades a casas, sabemos melhor a importncia de relacionarmos herana, afinidade e descendncia ora paterna, ora materna na constituio dos laos de casamento destas sociedades. Isto , a abordagem de Lvi-Strauss, aliada etnografia de Firth, conduz a anlise alm da teoria da aliana. Podemos ainda ir alm da teoria de Leach (1961), que postula uma oposio ideolgica fundamental entre [...] relaes de incorporao e relaes de aliana, supostamente universal. Leach fazia sua Mali-nowski Memorial Lecture e associa Firth, discpulo dileto de Mali-nowski, a dois autores mais prximos de Radcliffe-Brown, Meyer Fortes e Jack Goody, afirmando que nenhum deles daria a devida ateno s relaes de afinidade. Leach no deixa de reconhecer, entretanto que os detalhes excepcionais do material etnogrfico de Firth permitem re-interpretaes, especialmente sobre as relaes de afinidade (Leach 1961:21). Eu diria que no se trata apenas de uma questo de reinter-pretao; por mais que a teoria e a prtica acadmico-intitucional brit-nica da poca com excees, como as de Leach e Hocart , no desse a devida relevncia s relaes de afinidade, este no o caso de Ns, os Tikopias, ainda que possa ser o de trabalhos de Firth posteriores a este livro, como disse, influenciados pela produo britnica a partir de mate-rial africano.

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    Alm da aliana, Firth dava, em 1936, relevncia a questes funda-mentais do estudo do parentesco que vm sendo retomadas apenas mais recentemente, como a onomstica e a poliginia. Talvez exatamente por-que transcendem as vrias provncias etnogrficas, estes temas no tm sido devidamente estudados. No caso brasileiro, eles foram recuperados por Viveiros de Castro (1986). Em Tikopia, como em outras partes, a poliginia se associa chefia e cada uma das vrias esposas tem seu estatuto diferenciado. A poliginia, como a onomstica, no so tratadas de modo mais aprofundado por Firth, mas so brilhantemente relacionadas por ele ao contexto mais amplo. Por exemplo, Firth mostra como o nome das pessoas casadas o nome de uma casa, precedido de Pa para os homens e Nau para as mulheres. Este geralmente um nome ancestral (Firth 1936:81), o que confirma a hiptese de haver continuidade entre casa e cl. Em alguns casos, estes nomes podem no ter relao, ao menos aparente, com a estrutura social (nomes de riachos, rvores, etc.; cf. tambm Firth 1957). A casa pode tomar o nome de uma das casas principais do cl. Esta representa ento, hierarquicamente, todo um agrupamento de casas. Isto , um termo especfico de uma srie, a casa principal, representa-a como um todo. O nome de uma casa pode gerar hierarquicamente uma srie ainda mais ampla, o nome de uma aldeia ou de um cl (cf. Firth 1936:57-59, para o caso da aldeia de Matautu; 61-62, para o caso de Motuanji). Ligada onomstica est assim a questo da hierarquia. Como disse, importa recuperar possveis contribuies de Ns, os Tikopias para a teoria da hierarquia. conhecida a definio de hierarquia de Dumont (1967) como o englobamento de contrrios, engloba-mento que se define pela capacidade de um dos termos gerar ou repre-sentar um todo do qual ele parte. Citei o exemplo de uma casa dar o nome da casa, da aldeia e/ou do cl, representando-os. Outros exem-plos povoam a obra de Firth. Mais ainda: Firth chega a uma quase-for-

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    malizao do princpio de hierarquia ao notar que, [...] como o hbito tikopia, o termo genrico termo tambm tem uma conotao especfica (Firth 1936:551). Deste ponto de vista, Firth no est distante da teoria da hierarquia, nem pode realmente ser entendido apenas como representante do indi-vidualismo metodolgico ou da razo prtica. Mais ainda, podemos, atravs de Firth, aproximar a teoria da hierarquia das idias de Lvi-Strauss, pois a etnografia de Firth de algumas sociedades a casas, espe-cialmente a tikopia e a maori, explicitam-nas como sociedades hierr-quicas. Por exemplo, Firth (1936:59, 373-374, 385) nota a importncia da hierarquia para a compreenso dos direitos em relao terra. Mesmo em seus primeiros trabalhos, nos anos 20, Firth j mostrava como a de-terminao destes direitos uma questo central para os maori. Firth antecipa, para os casos maori e tikopia, uma questo cuja relevncia te-rica geral foi posteriormente demonstrada por Lvi-Strauss, a da relao entre o uso ou posse da terra e o parentesco. Lvi-Strauss (1984:225-226) demonstra como a dualidade entre nomes de raa e nomes de terra, tpica das sociedades a casas, perpassa o caso maori, de modo incrivel-mente semelhante, alis, ao das instituies reais indonsias (Bali) e afri-canas (Camares), assim como da Europa medieval e de vrios grupos de Madagascar: [...] tanto em Tonga como em Samoa as casas portam nomes de raa e nomes de terra, estes tendendo a progressivamente levar a melhor sobre aqueles (Lvi-Strauss 1984:218). Na ltima pgina de Ns, os Tikopias, Firth nota como importante relacionar a flexibilidade do parentesco tikopia chefia, ou ao que chamo aqui representatividade hierrquica dos chefes. Refiro-me, por exemplo, aos fatos como o de que os chefes tikopia no vo nunca pessoalmente a quaisquer cerimnias promovidas por pessoas comuns, mas mandam os seus filhos (Firth 1936:550-51). H inmeros outros momentos em que os chefes se fazem representar, ora enviando emiss-

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    rios diplomticos, ora transferindo privilgios. A pessoa do chefe en-globa, soma o reino, mas tambm capaz de se partir, dividir, ao modo de que fala Marilyn Strathern para os chefes melansios. Assim, no s a flexibilidade que faz da paito uma maison, mas a associao entre a indiferenciao na esfera do parentesco a uma certa autonomizao da esfera poltica, isto , nas palavras de Lvi-Strauss, ao fato de os nomes de terra tenderem a levar a melhor sobre os nomes de raa. Para aprofundar este ponto haveramos que recuperar com mais detalhes as anlises de Firth e outros sobre os direitos sobre a terra em grupos polinsios. Voltando representatividade hierrquica, se as casas dos chefes podem representar ao mesmo tempo todas as casas do cl, houve um tempo em que os templos dos cls eram tambm moradias dos chefes (Firth 1936:385). Isto significaria que a hierarquia tikopia apresentaria certa autonomizao da esfera poltica, mas ao mesmo tempo, esta teria um fundamento religioso. Neste sentido, a hierarquia tikopia seria semelhante ao caso indiano, analisado por Dumont. Mas, em artigo comparando a hierarquia poltico-religiosa tikopia e a nuer, Firth (1966:9) parece sugerir o oposto, a saber, ser a primeira fundada na realidade poltica e a segunda na religio. Isto porque autoridade poltica central tikopia corresponderia um sistema religioso baseado em espritos indi-viduais, personalizados; os tikopia [...] no tm um conceito holista de uma entidade espiritual nica que poderia ser denominada Deus (ib.), [...] enquanto no caso nuer a uma ordem social segmentada correspon-deria uma concepo unitria do Esprito 3. 3 A anlise de Firth dos Nuer se complementa pela de Evens (1984). Para Evens, a

    agnao nuer engloba a territorialidade, produzindo-a e contendo-a como o seu prprio complemento. Alis, Evens relativiza justamente indicaes de Evans-Pritchard que aproximariam os nuer das socits maisons, a saber: para este ltimo, a territorialidade nuer participa da ordem genealgica, a comunidade resi-dencial suplanta a comunidade de sangue e o grupo de parentesco tendencial-

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    Ainda quanto ao aspecto poltico-religioso da hierarquia, h no de-correr de Ns, os Tikopias inmeras descries do que Sahlins chamou estrutura herica polinsia. Um dos exemplos preferidos de Sahlins (1985:37) a converso do chefe fijiano Thakombau ao cristianismo: com ele se converteu todo o seu grupo, mais de oito mil pessoas. Uma das manifestaes da estrutura herica da Tikopia do incio do sculo se explicita na descrio de Firth da presena dos missionrios. Neste caso, apenas metade do grupo que se converte, mas isto tambm estava inscrito na estrutura: no h unificao da chefia na ilha, dividida em quatro cls. Como posteriormente tambm fez Sahlins para o caso fijiano, Firth evidencia ainda o sentido da converso, simultaneamente superficial e transformadora de certos hbitos tradicionais. Firth nos oferece inmeros outros exemplos deste tipo de estrutura, nela ressal-

    mente assume a forma de uma associao cogntica. Evens lamenta ter Evans-Pritchard se impressionado tanto com o fato de as linhagens nuer funcionarem atravs do sistema poltico e no serem na prtica, corporadas [...] s operando no campo restrito do cerimonial e sendo assim apenas ocasionalmente um deter-minante do comportamento. Para Evens, a territorialidade, associada pelos Nuer cognao, no um princpio essencial. J a agnao indicaria como a autoridade nuer [...] significa uma ordem criativa e no um direito poltico (Evens 1984:326), o pai, o av e os ancestrais paternos sendo associados ao deus. Sem abordar a religio nuer, Evens conclui que Evans-Pritchard no deu a devida relevncia associao entre linhagem agntica e ordem cerimonial, suge-rindo nela estar o fundamento da hierarquia e da sociedade nuer.

    As consideraes sobre as maisons africanas de Paroles Donnes omitem os nuer. Mas estes esto implicitamente presentes quando Lvi-Strauss (1984:238) se soli-dariza com a incapacidade de Evans-Pritchard para nomear linhagens agnticas transformadas em grupos de cognatos. Relevo aqui a interpretao de Evens para este fato que desconcertou ambos os grandes mestres. Meu objetivo no discutir a existncia ou no de uma casa nuer, mas sim indicar que esta questo poderia ser lida por uma perspectiva dumontiana tanto no caso de esta casa existir (e a territorialidade e a cognao suplantarem a agnao) como no (e a agnao englobar a cognao, como sugere Evens). Esta perspectiva parece frtil, inclusive, se lembrarmos que a discusso de Lvi-Strauss (1984) sobre a casa africana tambm uma discusso sobre a realeza africana.

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    tando o que me parece fundamental, o fato de que [...] o nascimento ou morte de uma pessoa cria ou dissolve todo um grupo (Firth 1936:368). Como eu disse, a noo de hierarquia de Dumont como engloba-mento de contrrios pressupe um nvel de complementaridade asso-ciado a outro de contrariedade entre seus termos (por exemplo, homem engloba mulher em um nvel, mas em outro o termo homem se dife-rencia daquela mulher). Firth retrata a complementaridade entre os parentes maternos e paternos em Tikopia. Mais ainda, toma esta comple-mentaridade como universal, ainda que sempre se manifestando de maneira diferente em cada sistema de parentesco. Referindo-se frica e Melansia, nota como cada grupo de descendncia pode ocupar posi-es contrrias em diferentes casos, mas h sempre complementari-dade, cada grupo sempre formando uma parte integrante necessria do mecanismo social (cf. Firth 1936:344). Em outras palavras, o fenmeno das linhas de descendncia sempre, em si mesmo, um fato hierrquico: ora a linha paterna englobante, como o caso de Tikopia, ora a materna, mas a existncia de uma linha pressupe a da outra, ao menos potencialmente. A etnografia tikopia nos d muitos outros exemplos de complemen-taridade hierrquica. Por exemplo, Firth (1966:12) aborda as diferentes funes masculinas e femininas na esfera religiosa. As mulheres tm papeis definidos e fortemente ativos em vrios rituais, mas por outro lado so excludas das funes sacerdotais. Firth dedica um texto a Lvi-Strauss em que faz um excelente resumo das categorias atravs das quais os tikopia constroem o plano da sua moradia, sua noo de espao e o prprio corpo. Neste texto, Firth (1970) se aproxima novamente de uma definio formal de pelo menos um aspecto importante do fato hierr-quico. Firth percebe que, para um termo da hierarquia englobar outro, ele deve tambm ser englobado em um momento ou nvel hierarquica-mente inferior da relao. Eu diria que se trata no apenas de inverso

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    nas relaes de englobamento, como nota Tcherkezoff (1983) em funda-mental contribuio teoria da hierarquia; trata-se tambm de reciproci-dade nas relaes de englobamento. Numa seo daquele texto, Espao e status social, Firth nota que importa menos as relaes espaciais em si, mas o controle destas, en-tendendo este controle no necessariamente como precedncia fsica, mas sim como um indicador de precedncia social. Ao descrever a posio dos chefes tikopia, fala em inverso da pressuposio do con-trole (Firth 1970:195). Assim, se um tikopia pede desculpas a seu chefe colocando o nariz em seu joelho, o chefe retribui com o cumprimento entre iguais, que seria nariz com nariz. A relao se constitui nestes dois momentos, ou nveis, como diriam Dumont e Tcherkezoff. Firth intui a universalidade do fato destas inverses com uma de suas freqentes analogias europias: [...] quando um anfitrio conduz um hspede a passar pela porta primeiro, seu exerccio de cortesia no tira seu status superior (ib.), muito pelo contrrio, eu complementaria. Tentarei a seguir relacionar, atravs de Firth, a teoria da hierarquia, verdadeiro horror da antropologia norte-americana, aos problemas de interpretao que a fascinam. Por exemplo, quando o antroplogo per-gunta de quem esta terra?, receber respostas diferentes, a terra po-dendo ser, simultaneamente, do cl, do chefe do cl, da casa ou de um dado indivduo. Estas respostas so todas corretas, pois cada uma de-pende do ponto de vista de quem pergunta e do informante que resposta dada (Firth 1936:376). Talvez se possa sugerir que a relao entre hierarquia e interpretao mais direta do que se costuma supor. Afinal, no se trata de refletir sobre a posio do antroplogo no campo e a teoria da hierarquia no tambm uma topologia? Barraud, De Coppet, Iteanu e Jamous (1984: 425) j haviam mostrado que uma hierarquia de valores rege a relao sujeito-objeto. Alm disto, a prpria noo de sujeito contm em si

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    mesmo uma hierarquia, em sua duplicidade: sou o sujeito de uma ao assim como estou sujeito a ela. Esta duplicidade do sujeito claramente expressa na palavra inglesa subject e na francesa sujet, ambas tendo o duplo sentido de sdito e sujeito e nas quais sujeito engloba sdito, sendo aquele o termo capaz de gerar o todo da relao. Torna-se evidente ento que o antroplogo no s interpreta, mas tambm interpretado, mas no s por sujeitos individuais nativos, mas muito mais por relaes inconscientes. Assim, a questo da relao entre observador e observado se sobre-pe do lugar ocupado na cosmologia nativa pelo antroplogo. Estas questes poderiam ento ser lidas como englobadas pela relao entre estrutura e histria, tal como analisada por Sahlins: isto , neste caso o novo evento a presena do antroplogo. Assim, ao invs do desco-bridor, Capito Cook, temos, menos de dois sculos depois, este outro visitante, tambm descobrindo coisas: o antroplogo. Estas questes se evidenciam, por exemplo, no esforo contnuo de Firth (1970:197, entre outros) para indicar o lugar que o antroplogo ocupa na estrutura e na cosmologia tradicional. Firth declara explicitamente, inclusive, que, ocu-par um lugar no significa, no seu caso, ser como um tikopia. Desta perspectiva, no apenas o antroplogo deve ser situado, mas tambm o deus-cristo. Foi o que fez Firth. Tendo sempre revisitado a ilha, pde analisar as transformaes da crena e prtica crists em diferentes momentos da histria tikopia. Firth se debrua sobre o desen-rolar de sries histricas num prazo mais longo nisto se aproximando inclusive das anlises da Birmnia de Leach. J as anlises histricas de Sahlins, tanto de Fiji como da presena do capito Cook no Hava, pri-vilegiam, ao contrrio, apenas o final do sculo XVIII. Em todo caso, como hoje moda na antropologia, Firth j se preo-cupava em evidenciar as circunstncias em que obtinha suas informa-es, as gafes que cometeu (Firth 1936:316), onde morou, a diferena de

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    perspectiva que tinha pelo fato de ter morado em pontos diversos da ilha, como os tikopia valorizavam seus presentes, etc. Firth no pretendia reconstruir a vida tikopia, mas sim apresentar fatias de vida (Firth 1936:89). Firth (1959) faz reflexes importantes sobre a diferena entre seu ponto de vista e o do antroplogo que o acompanhou em uma de suas revisitas ilha, J. Spillius, como esta diferena ora se devia s dife-rentes posies em que se sentaram ao assistir a um ritual, ora ao fato de Firth j conhecer a lngua, e assim por diante. Firth reflete ainda sobre a escrita da antropologia, sem, entretanto, associar o antroplogo ao escri-tor por uma suposta capacidade artstico-literria, como ambiciosamente colocam alguns escritores-antroplogos americanos. O que Firth j indicava ser fundamental um pouco mais de clareza do pensamento (Firth 1936:10). Em resumo, Firth no reagiu ingenuamente s afirmaes dos nati-vos de que era como um tikopia ou de que tinha sido aceito pelos nativos como um deles; para ele, a maior parte dos antroplogos tem conscincia de seu pertencimento sociedade ocidental (Firth 1936:11). Firth tambm refletiu sobre a influncia do comportamento do etn-grafo nos dados que coleta, como nas vezes em que fazia as perguntas erradas (Firth 1936:398). Se Hocart tido por Sahlins como um estrutu-ralista avant la lettre e Firth como um maussiano por Lvi-Strauss, h em Firth tambm algo de interpretativista avant la lettre. Mas ele no apenas um interpretativista. Assim, se critica a rigidez com que Rivers definia as fronteiras territoriais dos cls tikopia (Firth 1936:369), por outro lado Firth no deixou de identificar limites e fronteiras l onde eles existiam, como na noo tikopia de fenua, traduzida por ele, de modo consciente-mente imperfeito, como terra, no sentido de um territrio circun-scrito (Firth 1936:236). Firth se revela tambm perfeitamente ciente do modo como certas noes antropolgicas, ou mesmo sries histricas inteiras, podem ser projees da mente do analista no fenmeno anali-

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    sado (Firth 1967:176), mas concorda, com Hocart, inclusive, que sempre aos nativos que devemos recorrer em questes de interpretao (Firth 1967:115). Firth retoma o que qualifica de proftico insight de um etngrafo modesto, H.C. Jackson, de que [...] a antropologia um mosaico em que qualquer um, no importa quo ignorante, pode colocar uma pedra. Resta ao artista colocar estas pedras no lugar, mold-las, colori-las (citado em Firth 1966:8). A bvia implicao disto seria que, [...] se devemos estudar idias, crenas e valores em si, devemos faz-lo de tal modo que nosso mosaico no seja apenas nossa construo. Isto , podemos e devemos buscar evidncias (enfatizado por Firth) de que construmos um mosaico com os nativos. Isto no nos faz artistas, mas nos aproxima deles. Ainda que as anlises sejam modelos ou abstra-es, no podemos deixar de nos perguntar em que os nuer realmente acreditavam? (Firth 1966:8). Firth , assim, simultaneamente um inter-pretativista avant la lettre, um antroplogo prximo a Mauss e um ex-poente da tradio britnica. Talvez por isto mesmo, ele tem sido um dos alvos preferidos dos interpretativistas. com ironia que Geertz (1988) reproduz os quatro primeiros pargrafos de Ns, os Tikopias, mas, sintomaticamente, omite o quinto, no qual Firth praticamente antecipa o projeto interpretativista, relativizando-o, entendendo-o como tarefa relevante, condio necess-ria, mas no suficiente, do trabalho antropolgico. Naquele pargrafo, Firth afirma haver consenso entre etngrafos modernos (e logo, no somente entre os ps modernos) a respeito da necessidade de (...) algu-ma descrio dos mtodos pelos quais a informao foi obtida. Isto est de acordo com a posio lgica reconhecida de que mesmo o mais simples registro do que supostamente so os fatos de uma cultura nativa envolveu considervel grau de interpretao e cada generalizao sobre o que as pessoas fazem significou uma seleo no campo imensu-

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    ravelmente amplo de sua atividade (Firth 1936:3). E o que diz Geertz? Elogia exageradamente supostos dotes literrios de Firth, uma exuberncia dickensiana e fatalidade conradiana (Geertz 1988:13). Ora, se Firth um bom escritor, comparar sua prosa s de Dickens ou Conrad e isto com base em alguns pargrafos no mnimo uma concluso precipitada. Geertz prova, ao contrrio, que melhor para a antropologia permanecer antropologia do que vir a ser crtica literria. Outrossim, a prosa de Firth revela que no necessrio ser um Dickens, um Conrad ou um Balzac para escrever boa etnografia. Geertz (1988:13) v ainda ansiedade na narrativa de Firth. Mas o tom de sua prosa me parece ser de serenidade, a mesma com que, em uma entrevista filmada (IWF 1993), recorda sues dias e noites em Tiko-pia. Ora, sentir-se vontade sozinho numa ilha desconhecida (um navio passava uma vez por ano, deixou-o em julho de 1928 e pegou-o em julho de 1929) pode ser associado a uma vocao (individual) para explo-rador (o duplo sentido da palavra talvez fosse adequado), tpica da ati-tude colonizadora. Mas s uma tentativa, frustrada a meu ver, para em-pobrecer a escola antropolgica britnica justifica a sugesto de que os seus grandes mestres apenas tm em comum, alm da rivalidade, o tom (Geertz 1988:59), isto , o modo de escrever. Note-se ainda que, apesar de associar a moderna antropologia inglesa ao colonialismo, Geertz deixa de considerar o contexto poltico mais amplo de sua pr-tica. Ao contrrio de Geertz, M.L. Pratt (1986) nota que a etnografia de Firth, como a de Malinowski, j inclua a presena do antroplogo da o ns, os tikopia. Isto permite a Pratt diferenciar dois pares mestre-pupilo: Malinowski e Firth de um lado, Evans-Pritchard e David May-bury-Lewis, de outro. Ao modo de Geertz, Pratt privilegia o tom da narrativa, otimista no caso dos primeiros, frustrado e deprimido nos segundos. Pratt associa a narrativa de Firth de Malinowski como exem-

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    plos paradigmticos de autoridade etnogrfica, pois, ao no separarem rigidamente os aspectos objetivos e subjetivos, possibilitariam a totali-zao confivel. J Evans-Pritchard, se era por um lado herdeiro da etnografia cientfica e profissional inventada por Malinowski, por outro teria revelado os limites deste tipo de etnografia, justamente por separar rigidamente narrativa objetiva e subjetiva. Pratt conclui que Evans-Pritchard teria falhado em sua tentativa de uma viso totaliza-dora dos nuer, centrada no gado 4. Para Pratt, Maybury-Lewis tentaria retomar uma viso totalizadora para o caso xavante, mas teria sido le-vado, pela prpria perspectiva de seu mestre, a reconhecer um impasse. Ao modo de Geertz, Pratt analisa antes de tudo o modo de escrever, o tom dos textos destes autores. Escrevendo em apoio ao projeto esboado por Geertz, Pratt retoma a longa citao dos pargrafos iniciais de Ns, os Tikopias e novamente omite justamente o pargrafo cuja importncia enfatizei. Seu propsito interpretar Ns, os Tikopias como prximo s narrativas de viagem. O prprio Firth reconhece a influncia destas narrativas em sua juventude (IWF 1993). Pratt sugere ainda que Firth se coloca como um rei-benevolente e cientista do sculo dezoito, enquanto Evans-Pritchard seria o explorador-aventureiro vitoriano (Pratt 1986:39). Ora, uma sociologia da prtica acadmica que enfatizasse a origem social dos antroplogos britnicos, revelaria que Firth, como Fortes, Gluckman e Radcliffe-Brown, representa uma classe mdia, cujo deslumbramento com a prtica acadmica teria sido apontado por Leach, socialmente superior queles (Sigaud 1996:43). Como notei, falta ao projeto interpretativista este tipo de anlise do contexto poltico mais

    4 Esta uma questo complexa e polmica; muitos podem discordar da caracteri-

    zao de Pratt de Evans-Pritchard como frustrado. Vimos, entretanto, com Evens (1984), que falar em uma hierarquia nuer, isto , ter-se uma viso totali-zadora dos nuer implica uma reviso crtica de interpretaes de Evans-Pritchard. A mesma idia exposta, de modo alternativo, por Firth (1966).

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    amplo da prtica da antropologia. Discordo ainda de Pratt em que, se a etnografia de Firth pode dar uma contribuio importante para a teoria da hierarquia, por outro lado parece-me difcil associar sua postura a de um rei. Ela estaria mais pr-xima postura de um representante do rei, fiel a uma causa e uma moral que estariam acima dele mesmo. Firth nunca negou sua condio de s-dito de Sua Majestade, e muito do que ele viu em Tikopia pode real-mente ser um reflexo deste fato. Mas vimos que tambm em Tikopia os chefes poltico-religiosos tm seus representantes. Pode ser que Firth tenha podido ver este fato por ter vivido experincias semelhantes ante-riormente. Mas no se poderia deduzir da que tais fatos existiriam ape-nas na mente do antroplogo. Por outro lado, o que talvez marque a car-reira de Firth seja menos a condio de sdito e sim uma vitalidade quase operria. O contraste que fiz aqui entre a antropologia de Firth e a de Geertz parece revelar a possibilidade de crticas mtuas. Se importar associar a tradio etnogrfica britnica ao colonialismo, igualmente fundamental associar a tradio norte-americana, mesmo a mais recente, ao imperia-lismo. Neste sentido, outra diferena entre Firth e Geertz o primeiro [...] desmistificar o [suposto] igualitarismo na relao com os nativos, reconhecendo tacitamente seu prprio projeto como uma assero de poder e a linguagem antropolgica como uma linguagem de con-quista (Pratt 1986:37). Em resumo, para conhecer Firth, no basta ape-nas associ-lo a Malinowski, como tantos fizeram, entre eles o prprio Geertz. Por isto busquei aqui associ-lo a Lvi-Strauss e a Dumont.

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    Recebido em outubro de 2005 Aprovado para publicao em dezembro de 2005