Ética e polÍtica no pensamento de hannah...
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIA POLTICA
TICA E POLTICA NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT
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Autor: Francisco Rogrio Madeira Pinto
Braslia
2006
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIA POLTICA
TICA E POLTICA NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT
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Autor: Francisco Rogrio Madeira Pinto
Dissertao apresentada em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica na Universidade de Braslia.
Braslia, Junho de de 2006
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FICHA CATALOGRFICA PINTO, FRANCISCO ROGRIO MADEIRA PINTO tica e Poltica no Pensamento de Hannah Arendt
Dissertao (Mestrado em Cincia Poltica) Programa de Mestrado em Cincia Poltica, Instituto de Cincia Poltica, Universidade de Braslia, Braslia, 2006.
1. Hannah Arendt 2. Teoria Poltica 3. Filosofia Poltica 4. tica
Referncia Bibliogrfica
PINTO, Francisco Rogrio Madeira Pinto. tica e Filosofia no Pensamento de Hannah Arendt. Dissertao(Mestrado em Cincia Poltica) Programa de Mestrado em Cincia Poltica, Instituto de Cincia Poltica, Universidade de Braslia, Braslia, 2006.
CESSO DE DIREITOS
NOME DO AUTOR : FRANCISCO ROGRIO MADEIRA PINTO
TTULO DA DISSERTAAO DE MESTRADO: tica e Poltica no Pensamento de
Hannah Arendt.
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIA POLTICA
DISSERTAO DE MESTRADO
TICA E POLTICA NO PENSAMENTO DE HANNAH
ARENDT
Autor: Francisco Rogrio Madeira Pinto
Orientador: Profa. Dra. Marilde Loiola de Menezes (UnB)
Banca: Profa. Doutora:Bethnia de Albuquerque Assy (UERJ)
Prof. Doutor: Paulo Csar Nascimento (UnB) Prof. Doutor Carlos Marcos Batista ( Suplente - UnB)
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Para Francisca Rodrigues Madeiro (in memorian)
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SUMRIO
Resumo.......................................................................................................................7
Agradecimentos..........................................................................................................8
Siglas das obras de Hannah Arendt............................................................................9
Introduo.................................................................................................................10
Metodologia..............................................................................................................14
CAPTULO UM: Prxis tica..................................................................................16
CAPTULO DOIS: Elementos Hericos da Prxis...................................................35
2.1 Virtudes e Princpios..........................................................................................35
2.2 A Virtude Herica.............................................................................................38
2.3 As Virtudes Polticas: coragem, honra, liberdade, perspiccia e amizade........52
CAPTULO TRS: Prxis e Tragdia no Pensamento de Hannah Arendt...............71
3.1 O privilgio do mundo sobre a subjetividade...................................................75
3.2 O esboo da vontade: proareses......................................................................80
3.3 A impossibilidade do novo no contexto grego.................................................85
3.4- A supremacia da ao sobre o agente.................................................................99
3.5- A ambigidade da ao.....................................................................................102
Consideraes Finais...............................................................................................109
Bibliografia..............................................................................................................114
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo discutir o conceito de tica de
Hannah Arendt. Contudo, no partimos dos textos usuais sobre o tema contidos nos
trabalhos de Arendt a partir de sua observao do julgamento de Eichmann (1963). Em
obras como Entre o Passado e o Futuro (1954) e A Condio Humana (1958),
elaboradas antes deste acontecimento, possvel se vislumbrar uma perspectiva tica do
conceito de ao arendtiano. A construo desta tica tem como pressuposto a ao.
Deste modo, uma tica pautada na prtica (prxis) e visibilidade de atos criados pelos
homens em sua pluralidade. Destacamos que o conceito de ao poltica de Hannah
Arendt, por se construir pela participao dos homens, fundamenta-se nesses prprios
homens, neles residindo seu contedo tico na forma de um cuidado pelo mundo. A
tica arendtiana possui tambm influncias clssicas em sua construo. O modelo tico
herico grego e os textos trgicos se apresentam como elementos constitutivos da tica
arendtiana. Ao se ressaltar estas duas inspiraes da antigidade, se pretende afastar
uma perspectiva interpretativa que aponta um carter esttico para a ao poltica de
Arendt. Mais do que esttico, o conceito de ao poltico arendtiano tico.
PALAVRAS CHAVES: Hannah Arendt tica Prxis Herico - Trgico.
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AGRADECIMENTOS
Terminado o perodo das aulas, das disciplinas obrigatrias, o que se
ouve comumente que, a partir daquele momento, ir se iniciar o solitrio trabalho de
escrita da dissertao. Ledo engano. Para se chegar ao resultado final, h todo um
processo de convvio, dilogos, trocas, crticas e direcionamentos de caminhos que se
faz antes, durante e mesmo depois do texto j escrito. Quero agradecer a maioria dos
velhos e novos amigos que tiveram a pacincia de me ouvir ao longo desse caminho,
tomado por Hannah Arendt, a ponto de ouvir a cmica sentena: Rogrio, Hannah
Arendt teu pastor e nada te faltar!. A lista grande, mas quero destacar as seguintes
pessoas: minha me, sempre; meu princpio herico, exemplo maior de luta, fora e
coragem s contingncias desta vida; aos meus irmos, pelo constante apoio; Mona,
minha querida companheira, fonte de carinho e pela profunda pacincia; minha
orientadora, Marilde, nova grande amiga, por sua fora serena e orientao precisa; ao
professor Paulo Nascimento, companheiro arendtiano, pelas conversas, interesse e
auxlio bibliogrfico; Bethnia Assy, pela generosidade e ateno, verdadeira
biblioteca de Alexandria arendtiana, um osis bibliogrfico em meio ao deserto de
nossas bibliotecas, obrigado pelos livros; ao professor Miroslav Milovic, figura mpar e
intelectual generoso; ao NEC - Ncleo de Estudos Clssicos do Departamento de
Histria, representado pelos abnegados professores Snia Lacerda e Jos Otvio,
minhas luzes trgicas; minha querida amiga-irm Maria, pelo sentido da urgncia;
Valria, pela leitura atenta e sugestes ao texto; aos meus amigos do mestrado: Cynthia,
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Leonardo (autor da frase...), Regina, Alexandre (s), Fabrcia, Ana Paula (s), Cludio,
Fernanda, Gabriel, Roberto.... Enfim, a todos os meus amigos, meus afetos. Obrigado.
SIGLAS DAS OBRAS DE HANNAH ARENDT
CH - A Condio Humana.
DP A dignidade da Poltica - Ensaios e Conferncias.
CR Crises da Repblica
EJ Eichmann em Jerusalm
EPF Entre o Passado e o Futuro
DR Da Revoluo
RJ Responsabilidade e Julgamento - Ensaios
VE A Vida do Esprito: o pensar, o querer, o julgar.
OQP O que Poltica
LFK Lies Sobre a Filosofia Poltica de Kant
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INTRODUO
Dentre as vrias crticas feitas ao pensamento de Hannah Arendt,
destaca-se a que afirma que seu conceito de poltica esvaziado de qualquer contedo
tico. Que poltica esta calcada somente na prtica (prxis) e apario? Afirma-se que
seria um conceito de poltica sem essncias, fundamentado na performance esttica do
agir e caracterizado tanto por sua autonomia em relao s questes de ordem moral,
estratgicas ou finalsticas. (Villa, 1996:80 e 1999:205; Kateb, 1999:133-154 e
2002:130).
Contrariamente a esses posicionamentos, entendemos que o conceito
de poltica de Arendt possui um contedo tico. Pode-se vislumbrar dois momentos da
construo dessa tica: o primeiro momento expresso pelo conjunto de obras que
gravita em torno de A Condio Humana. O segundo, tem como referncia a obra A
Vida do Esprito1. Nesta ltima, a perspectiva tica de Arendt passa a incluir em suas
reflexes questes ligadas interioridade e suas respectivas manifestaes invisveis
_ pensar, querer e julgar.
Este trabalho privilegia a primeira Arendt de A Condio Humana.
Contudo, no deixamos de fazer referncias s reflexes arendtianas contidas em A Vida
1 O livro A Vida do Esprito teve sua primeira edio americana no ano de 1978. Trata-se de uma obra editada aps o falecimento de H. Arendt em 1975. Com esta obra Arendt pretendia analisar as atividades do esprito: o pensar, o querer e o julgar. Das trs atividades a nica que chegou a finalizar para que fosse impressa foi O Pensar, apresentado pela primeira vez em 1973 nas Gifford Lectures na Universidade de Aberdeen. A segunda parte O Querer foi apresentado em sua parte inicial em 1974, tambm em Aberdeen e posteriormente, juntamente com o O Pensar, em cursos regulares na New School for Social Research entre os perodos de 1974-5. Da terceira parte O Julgar somente se tem as anotaes de Arendt de suas aulas expositivas sobre a filosofia poltica de Kant apresentadas em 1970 na New School. Os demais ensaios sobre questes morais, responsabilidade e tica foram coligidos em Responsibility and Judgment organizados por Jerome Kohn. No Brasil: Responsabilidade e Julgamento como edio e introduo de Bethnia Assy. Companhia das Letras, 2004.
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do Esprito na explicao complementar dos conceitos fundamentais para perfeita
compreenso de seu pensamento.
Ao designar aqui a primeira Arendt, no se pretende afirmar uma
profunda ciso de seu pensamento, o antes ou o depois de A Condio Humana. De
fato, observa-se que nesta obra as atividades que se do no mundo das aparncias so o
foco principal de seu estudo. Contudo, a autora, perplexa, ao assistir ao julgamento do
criminoso nazista Adolf Eichmann, observou que ele no passava de um homem banal,
mas que fora capaz de perpetrar um mal sem precedentes aos seus semelhantes. A partir
da, as questes do esprito passaram a se constituir como fonte privilegiada de
questionamentos para Arendt.
Porm, mesmo na passagem da vita activa para a vita contemplativa, o
mundo, e no a interioridade a preocupao de Arendt. A vida do esprito e suas
atividades - pensar, querer e julgar so analisadas fenomenologicamente por sua
apario no mundo (VE, 19).
A partir da ligao entre a visibilidade dos fenmenos da vita activa
com as atividades prprias da interioridade que at um determinado momento da
teoria arendtiana no estavam no mbito do poltico , se constri uma perspectiva tica
arendtiana que passa a considerar a responsabilidade individual como um de seus
pressupostos.
Pretende-se destacar neste trabalho que a perspectiva tica de Hannah
Arendt pode ser encontrada antes dessa imbricao entre as atividades da vita activa
com as atividades do esprito, pensar, querer e julgar. Na ao que se d exclusivamente
no mundo fenomnico, na forma de atos visveis, j seria possvel encontrar uma
perspectiva tica para a poltica. Tal aspecto pode ser identificado como uma tica
pautada na prtica (prxis) e na apario dos atos. H sempre o predomnio desta ltima
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sobre a primeira. De maneira recorrente, as atividades visveis sero privilegiadas nas
anlises de Arendt sobre o fenmeno poltico, mesmo quando considera questes
prprias da interioridade.
Destaca-se em Arendt uma suspeita quanto s questes morais, pelo
fato de nascerem da subjetividade. Suspeita que, em obras como A Condio Humana,
se dava na simples desconsiderao da moralidade como elemento de anlise da ao
poltica. De fato, ao se analisar o perfil do agente da ao nas obras A Condio
Humana e Entre o Passado e o Futuro, pode-se observar que ele no influenciado por
qualquer questo de foro ntimo. No se trata de um agente que seja atingido ou que
deflagre suas aes a partir de conflitos de ordem interna. Como identificamos em tal
agente um carter trgico, constatamos que neste perfil o indivduo nunca se olha por
dentro. Como bem ressalta Vernant em sua anlise sobre o sujeito trgico, ele um
homem voltado para fora, um sujeito extrovertido, que se olha de fora e no tem uma
conscincia reflexiva para elaborar um mundo ntimo, o mundo do Eu (Vernant, Mito
e Poltica, s/ano, p. 84). esta exterioridade que tambm pretendemos destacar neste
trabalho, mostrando como o conceito de prxis arendtiano referenciado pelo mundo.
Para o conceito de tica tambm utilizaremos como sinnimo a
palavra virtude, pois este era o termo mais comum utilizado na antigidade (Arendt, RJ,
114), quando a tica era fundamentalmente uma vida virtuosa dirigida comunidade,
definindo a conduta do homem na qualidade de cidado (RJ, 128), como nos
apresenta Aristteles ao longo de sua tica a Nicmacos. Ao destacarmos este ponto,
afirmamos a proximidade da tica arendtiana com o modelo da antigidade, pois a
prtica dos grandes feitos e discursos a prpria realizao da excelncia ou virtude
para os antigos. Alm disso, a concretizao dessas virtudes no se dava para satisfao
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do esprito do ator poltico, mas era voltada para o mundo que o circundava, na forma
de atos dignos de serem vistos e louvados.
No estudo dos elementos virtuosos que compem a tica arendtiana,
pretendemos demonstrar a sua aproximao com os modelos hericos gregos, mais
especificamente, com o modelo de bases homricas, o qual ir influenciar toda a
tradio cultural grega, seja nas artes, na poltica e at mesmo na filosofia. Deste modo,
destacamos algumas virtudes que Arendt identifica como polticas, tais como: coragem,
ausncia de critrios morais para a ao, honra, liberdade, astcia e amizade, que so
fundamentalmente excelncias de matrizes hericas.
Ainda no contexto da cultura grega tambm destacamos alguns
aspectos trgicos da prxis arendtiana, novamente ressaltando a preocupao com o
mundo, como fundamento da tica de H. Arendt. Para isso, a tragdia se mostra
exemplar, pois apresenta um tipo de ao que prescinde de qualquer motivao de base
subjetiva. Para ressaltarmos este ponto, e utilizando-nos das anlises de J. P. Vernant e
Vidal Naquet sobre o sujeito trgico, apontaremos um paralelo entre o agente trgico e o
ator poltico arendtiano, a fim de fundamentar o argumento de que a prxis arendtiana
est voltada para o mundo e no para a interioridade. Algumas consideraes sero
feitas acerca dessa questo. Uma delas diz respeito vontade, faculdade interior ausente
no sujeito trgico. Assim, como realizar uma ao sem esse elemento volitivo? Alm
desses, outros aspectos trgicos do conceito de ao sero destacados, dentre eles a
supremacia da ao sobre o agente e a ambigidade da ao.
A dissertao est dividida em trs captulos. No primeiro captulo,
intitulado Prxis tica, apresentamos a discusso sobre o conceito de prxis em H.
Arendt, destacando que a ao no poderia ser entendida exclusivamente por seu carter
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esttico, apesar de se reconhecer que este um de seus elementos essenciais, e ainda, a
prxis possui tambm um contedo tico, por estar voltada ao mundo.
No segundo captulo, Elementos Hericos da Prxis, ressaltamos
um dos elementos do contedo tico arendtiano: o carter herico da ao. Neste
sentido, apontamos a influncia do conceito de tica antigo, pautado no modelo herico
de origens homricas, como uma inspirao para a ao poltica. Esse modelo, pode
tambm ser encontrado na obra de Aristteles tica a Nicmacos e repercute no
entendimento de Arendt sobre a prxis.
No terceiro captulo, Prxis e Tragdia no Pensamento de Hannah
Arendt, discutimos os fundamentos trgicos da ao poltica segundo a autora. A
perspectiva trgica apresenta uma forma de ao que no encontra na subjetividade do
agente a sua fonte. Novamente, a referncia para o agir o mundo e no o Eu. Nesse
sentido, enfatizamos como esse modelo pode ser identificado no conceito de ao
arendtiano, o qual ainda aproxima-se do trgico por sua ambigidade e supremacia da
ao sobre o agente.
Na ltima parte, Consideraes Finais, procuramos elaborar uma
sntese das questes propostas ao longo da pesquisa, ao mesmo tempo oferecendo ao
leitor uma viso geral das concluses do trabalho.
Metodologia
De acordo com os objetivos do trabalho, isto , destacar o contedo
tico da ao poltica no pensamento de H. Arendt, utilizamos como fonte privilegiada
de anlise as seguintes obras: A Condio Humana, Entre o Passado e o Futuro, O que
Poltica, A Dignidade da Poltica, Responsabilidade de Julgamento, A Vida do
Esprito: o pensar, o querer, o julgar e Da Revoluo e Crises da Repblica.
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Como fonte suplementar, utilizamos tambm obras de autores que se
especializaram no pensamento da autora, com destaque para: Dana Villa, tienne
Tassin, George Kateb, Seyla Benhabib, Bethnia Assy, Andr Duarte, entre outros
citados ao longo da dissertao.
Como suporte para a anlise da tradio helnica no pensamento de H.
Arendt, lanamos mo dos trabalhos de Jacqueline de Romilly, Claude Mouss, Michel
Austin, Vidal-Naquet, Werner Jaeger, Finley Moses, Simon Goldhill, e especialmente,
J. P Vernant. Recorremos tambm aos clssicos da antiguidade, com especial destaque
para Aristteles, mas tambm s obras de Plato. Por fim, como auxlio para nossa
anlise a respeito da tica herica, utilizamos o trabalho de Alasdair Macintyre, o qual
foi escolhido por ter em Aristteles a sua principal referncia para a discusso sobre
tica.
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1- PRXIS TICA
Ao o conceito fundamental da teoria poltica de H. Arendt. Pode-
se mesmo dizer que poltica ao para esta pensadora. Deste modo, Arendt
compreende que a poltica no poderia estar submetida s questes que nascem a partir
da subjetividade: A ao, na medida que livre, no se encontra sob a direo do
intelecto, nem de baixo das ditames da vontade embora necessite de ambos para a
execuo de um objetivo qualquer (EPF, 198).
Que poltica esta voltada somente para a prxis? Pode o poltico
prescindir das questes que nascem da interioridade? Estes so os questionamentos
centrais deste captulo, o qual tem como objetivo discutir como se constri em Arendt a
noo de poltica baseada exclusivamente na prxis. A referncia principal para esta
discusso a obra A Condio Humana e demais textos que gravitam em torno deste
trabalho, especialmente os contidos em Entre o Passado e o Futuro.
Discutir a noo de prxis apresenta-se como fundamental para se
compreender o que denominamos de tica Arendtiana. Esta tica tem como pressuposto
o cuidado com o mundo, cuidado com o espao das relaes entre os homens, com o
lugar que possibilita a vida e a singularidade humana.
Pretende-se tambm mostrar que esta prxis no destituda de
contedo. Ela possui sua fonte e inspirao nos princpios que formam a tica herica e
tambm portadora de elementos trgicos. Contudo, estas duas vertentes da prxis
sero trabalhadas nos captulos seguintes.
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O mundo o interesse da tica arendtiana. Desta forma, o elemento
externo ao homem a sua preocupao2. Sempre que era indagada sobre esta questo,
Arendt afirmava que se o critrio a glria o brilho no espao de aparncias ou se
o critrio a justia, no algo decisivo. O que decisivo se nossa prpria motivao
clara: para o mundo ou para ns mesmos, ou seja, para nossa alma (Arendt in Hill,
1979: 311)3. Sua escolha ntida: o mundo. E ele constitui seu grande interesse, muito
maior que qualquer inquietao com o Eu (myself), com o corpo ou mesmo com a alma
(Arendt in Hill, 1979:311).
Deste modo, Arendt no procura na subjetividade a fonte de sua
tica4. Ela privilegia a poltica, e no centro das questes polticas, est o cuidado com o
mundo, no com o homem. Isto poderia se configurar como um distanciamento tico;
contudo, a crtica de Arendt contra a consagrao do sujeito moderno e seu processo
de alienao do mundo, a ponto de transform-lo em mais um objeto passvel de
destruio. Mais do que o homem, o contedo de sua tica a preocupao com os
homens em sua pluralidade. Assim, Arendt afirma a dimenso pblica e no privada
desta relao (Courtine-Denamy, 2004:93).
Para Arendt o mundo no qual transcorre a vita activa consiste em
coisas produzidas pelas atividades humanas (CH, 17). Quando ela se refere a coisas,
no est a aludir somente a objetos tangveis como casas, mesas ou cadeiras produtos
resultantes da atividade da fabricao (poeisis) feitas pelo homem (homo faber) para
2 Para uma discusso fenomenolgica sobre o conceito de mundo em Arendt cf. TASSIN, tienne. Le Tresor Perdu - Hannah Arendt: lintelligence de laction politique. Paris: ditions Payot &Rivages, 1999, especialmente o captulo VI- Le Monde 3 Traduo livre. No original: wheter the criterion is glory the shining out in the space of appearences or wheter the criterion is justice, that is not the decisive thing. The decisive thing is wheter your own motivation is clear for the world or, for yourself, by which I mean for your soul 4 Sobre o contedo tico de Arendt baseado no somente a partir do conceito de mundo, mas tendo como perspectiva as questes da interioridade que nascem da vida do esprito cf. o artigo de ASSY, Bethnia Faces privadas em espaos pblicos: por uma tica da responsabilidade, escrito como introduo edio brasileira de ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. So Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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o mundo em que vive. Existem resultados de atividades humanas intangveis, que no
podem ser apreendidas por meio da reificao de um modelo previamente dado. Trata-
se das coisas produzidas pela atividade prtica(prxis), e consiste nos atos e falas
produzidos pelo homem. Tais produtos somente podem ser apreendidos por meio de
uma narrativa que os encerre numa histria ou por meio da imitao (mimeses) destes
mesmos atos e falas (CH, 199).
Assim, o mundo o espao onde o homem, por meio de determinadas
atividades, poeises e prxis, condiciona a sua prpria existncia. Constitui o lugar onde
esto os objetos que possibilitam o seu viver: tudo o que espontaneamente adentra o
mundo humano, ou por ele trazido pelo esforo humano, torna-se parte da condio
humana (CH, 17). Como o mundo condio de existncia humana, requer que se
tenha cuidado com ele.
Mundo, para Arendt, no significa, portanto, o espao limitado para o
movimento e condio da vida orgnica:
Antes tem a ver com o artefato humano, com o produto de mos humanas, com os negcios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interpostos entre os que nele habitam em comum, (...); pois, como todo intermedirio, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relao entre os homens (CH, 62).
O mundo este lugar entre (between space) que relaciona coisas e
homens (objective in-between space) e homens e homens (subjective in-between space)
(Assy, 2004:32). o lugar que vincula as diferenas, e por isso mesmo, tambm se
constitui como um locus necessrio para realar e marcar estas mesmas diferenas e
evitar que se constitua uma identidade geral destruidora de toda a diversidade prpria
poltica. O mundo o prprio espao material entre os homens, onde se localiza o
universo das relaes humanas e se realizam os eventos polticos (DR, 68). o terreno
das atividades humanas, no qual as coisas se tornam pblicas, e por isso pressuposto
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da poltica. Como diz Arendt: (...) o mundo ao qual viemos no existiria sem a
atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida,
como no caso das terras de cultivo; ou que estabeleceu atravs da organizao como no
caso do corpo poltico (CH, 31, grifos nossos).
Este cuidado com o mundo, com o espao entre homens, o cuidado
com a prpria possibilidade da singularidade humana. No caso da esfera poltica, o seu
cuidado o que garante a grandiosidade humana, seu lugar de liberdade, criatividade e
distino.
A atividade que possibilita esta dignidade do mundo a ao (prxis).
A faculdade de agir significa responder pelo mundo, o qual deve ser um lugar com uma
face decente, tanto para os que nele esto como para os recm-chegados, os neoi
(Courtine-Denamy, 2004:98).
Arendt nos apresenta uma perspectiva tica que no tem um modelo
definido. Trata-se de um cuidado com os homens que no est baseado em nenhuma
idia de bem previamente definida, mas que criada em concerto por meio da ao.
Uma tica ativa, em que o prprio movimento constitui-se na referncia de como se agir
novamente. Como esta ao realizada pelos homens, estes se estabelecem como o
modelo para a ao tica produzida por homens e para os homens, distante de qualquer
revelao ou do imperativo universal criado por um homem s.
A prxis o que revela o contedo tico de Arendt. Pelo fato de
possibilitar, por meio de sua atividade, uma forma de alar grandiosidade ou mesmo
imortalidade aos homens, elementos que existem somente se puderem ser visveis a
outros homens, nenhuma ao poderia ter como finalidade destruir estes agentes, os
espectadores-atores de todas as aes. Cuidar da prxis cuidar dos prprios homens;
preservar sua possibilidade de se constituir como um ser singular. Deste modo, a prxis
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a prpria energia desprendida pelos homens, no tendo como finalidade outra coisa
seno eles prprios.
Arendt inspira-se em Aristteles para afirmar a dignidade deste tipo de
ao5. A prxis , portanto, a atividade que se realiza em si mesma. No h uma
motivao fora dela mesma: um fim em si. Ela no produz nada, nem termina ou se
realiza numa obra que lhe seja exterior, pois no estabelece qualquer tipo de reificao.
pura performance e energia (energeia) que vai se exaurindo medida que est sendo
executada. Assim, a prxis toda a atividade que ao ser executada, um fim em si
mesma.
Para Arendt a prxis corresponde fala (lexis) e plural interao dos
homens (ao) (CH, 34). Deste modo, a prxis no se apia em nenhuma tcnica.
Concerne aos negcios humanos ou vida dos agentes, do ponto de vista do bios
politikos, da maneira de se exercer a singularidade humana no seio de uma comunidade
(Tassin, 1999: 292).
Diferente da prxis, existe a poiesis, uma atividade como a praxis,
porm instrumental, determinada pela categoria de meios e fins, representando a
atividade da fabricao, do homo faber, da produo de instrumentos utilitrios e
durveis para facilitar a vida dos homens. Na poiesis, a finalidade do objeto produzido
dupla. De um lado, o processo de faz-lo consumido ao fim deste mesmo, mas ao ser
finalizado, o objeto se torna um novo meio para a produo de outro produto. A
atividade do homo faber, poiesis, apresenta-se ento como um processo, no sentido de
5 Este trabalho no tem como objetivo apresentar a genealogia do conceito de prxis em Arendt. Pretende apenas realar o modo como a pensadora se apropriou de maneira criativa de um conceito tradicional existente na filosofia aristotlica e o modo como ele utilizado para fundamentar o seu conceito de poltica. Tambm no objetiva adentrar na discusso se o conceito de prxis arendtiano fundamentalmente aristotlico ou se o resultado da leitura Heideggeriana de Aristteles em Arendt. Todas estas discusses j esto muito bem trabalhadas na obra de TAMINIAUX, Jacques. The Thracian Maid and the Professional Thinker Arendt and Heidegger. Albany: State University of New York Press, 1997. Sobre a influncia da leitura de Heiddeger do conceito de praxis em Aristteles, ver especialmente a introduo: The History of an Irony e o captulo 1: The Phenomenologists of Action and Plurality.
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que instaura um ciclo de meios e fins interminvel, que no possibilita o surgimento de
qualquer novidade. (Moreault, 2002:40).
Ademais, poiesis tem um fim distinto de si mesma. O seu fim a obra,
isto , um produto que exterior sua atividade. O seu resultado obtido graas a uma
techn, uma habilidade especfica de um homem apenas, que isolado do mundo, ao
fazer o seu ofcio, se entrega ao projeto de algo previamente definido (CH, 153). Em
razo dessa previsibilidade contida na noo de poeisis, e pelo fato dela se dar no
isolamento, ela no poderia se apresentar como uma atividade poltica, pois o que faz
apenas reificar por meio de uma tcnica, uma idia previamente concebida.
Ao contrrio de uma atividade que se realiza num processo cclico,
que impede qualquer inovao, Arendt prope a criatividade da prxis em sua relao
de constante ruptura com as estruturas dadas do mundo. A relao da prxis a que se
d entre homens e mundo de homens no mundo diferente da perspectiva solitria do
trabalho do arteso ou mesmo do artista que se isola para fazer sua obra.
Assim, os homens, e no o homem so o fundamento da prxis.
Arendt retira qualquer privilgio do homem entendido em sua pura individualidade. Um
s homem no criativo a ponto de mudar o mundo. Ele pode at se constituir como
arch, o princpio e o primeiro impulso para o agir, encarnando o comeo da ao que
realizada por uma s pessoa. Mas a ao em si somente pode se dar mediante uma
realizao levada a cabo por muitos que aderem ao empreendimento (CH, 202).
Este privilgio da pluralidade e a conseqente desconsiderao das
questes advindas da interioridade fez com que se definisse a prxis arendtiana como
destituda de contedo. As crticas a este modelo de ao apontam que Arendt, ao
prescindir da subjetividade como um dos elementos da ao poltica, estaria
estabelecendo um conceito de poltica esttica.
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Autores como George Kateb (1999) chegam a afirmar que, o elemento
esttico da poltica de Arendt seria to dominante que chegaria a suplantar qualquer
carter prtico existente na ao. Segundo Kateb, nessa perspectiva esttica, a poltica
seria entendida negativamente. Tal como os trabalhos artsticos, a poltica contrasta ao
que prtico, moral ou ao que aspira se constituir como verdade universalizvel: os
envolvimentos polticos, quando comprometidos no esprito correto ( e esta condio
de fundamental importncia) no so primariamente prticos ou morais, ou, tampouco
orientam-se de verdades abstratas e universais"6. Para ele, Arendt estabelece que o
poltico um fenmeno parte, em um grau decisivo, do prtico, do moral e da verdade
universalizvel (1999:134, grifos nossos. )7.
Para o autor, Arendt tambm conceitua a poltica de forma positiva,
mas o que ganharia destaque em seu conceito seriam as negatividades. O ponto mais
importante da estetizao de Arendt seria a no submisso do poltico s questes
morais. A moralidade ameaaria o esttico, impedindo o compromisso da poltica com o
esprito correto8. Este esprito correto se apresentaria quando o ator poltico agisse
tendo como referncia um modelo, ou princpio, na terminologia de Arendt; atuasse
para demonstrar uma habilidade poltica, algo como a virt de Maquiavel; agisse por
uma euforia do agir, especialmente quando o agente inicia algo novo e requer a
interrupo de um processo necessrio ou transgresso de uma prtica estvel e, por
fim, quando suas aes se fizerem em razo do objetivo de ganhar a excelncia num
contexto poltico (Kateb, 1999:134)9.
6Traduo livre. No original: political involvements, when undertaken in the right spirit (and this proviso is of fundamental importance) are not primarily practical or moral, or, nor do the take their bearings from abstract and universal truth. 7Traduo livre. No original: makes to set political phenomena apart, do a decisive degree, from the practical, the moral, and the universally truthful 8 Este termo Kateb (1999:134) retirou do texto de Arendt O que Liberdade? 9 What is the right spirit? (...) we can say that for Arendt political actors show the right spirit when they act for the sake of exemplifying a passion (Arendt calls it a principle); or for the sake of displaying
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Ao apresentar estes elementos, Kateb afirma que a poltica esttica de
Arendt se d por meio da purificao da poltica, tanto da ansiedade moral (moral
anxiety) quanto de objetivos morais (moral goals), como somente os fenmenos
estticos podem ser (1999:135).
Dos pontos levantados por Kateb destacamos que, de fato, encontra-se
em Arendt uma desconsiderao das questes morais quando tratadas no mbito
poltico. Contudo, o que mais chama a ateno em sua anlise a retirada do elemento
prtico do conceito de poltica arendtiano. Para o autor, a recusa de Arendt na utilizao
da poltica como um meio para obteno de determinados fins, sejam estes sociais ou
morais, retiraria todo o contedo prtico de seu conceito de poltica (Kateb,
1999:135)10.
A razo pela qual Kateb identifica a ausncia da prxis em Arendt
porque relaciona a no instrumentalidade da ao poltica arendtiana com a no-
praticabilidade. Para Arendt, e Kateb reala este ponto, a ao poltica no poderia ser
um meio para atingir um determinado objetivo, ou seja, ela no guiada pela categoria
de meios e fins, e no se fundamenta, portanto, na instrumentalidade. Porm, para Kateb
afirma que se a poltica no for orientada por algum objetivo, no ser prtica. Deste
modo, trata o instrumentalismo como se fosse praticidade (1999:135), ou poiesis como
prxis. Como j foi dito, a poiesis prpria da fabricao, em que se define um objeto e
se estabelecem os meios para atingi-lo (CH, 208). Enquanto a prxis reside na prpria
atividade, em que a obra no sucede e extingue o processo, mas est contida nele
(CH, 218). ones political skills (Arendt follows Machiavelli in calling this disposition virtu); or for the sake of the exhilaration of acting, especially when action starts something new and requires interruption of a seemingly necessary process or the transgression of a settled practice; or for the sake of winning or excelling in political contests, quite apart from the tangible gains of victory (1999:134). 10Traduo livre. No original: Next, a concern for using political action as a means to attain concrete social goals, even-non-moral or immoral goals, disfigures or denatures it. Just as practibility is not in general compatible with aesthetic considerations, so practibility in politics, if it becomes the sole or preponderant mentality, diminishes or prevents political phenomena from becoming aesthetic ones
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Afirmar que a poltica no est guiada pela lgica instrumental de
meios e fins no negar a sua praticidade. Instrumentalidade e praticidade no so a
mesma coisa para Arendt. Caso desconsiderasse a praticidade, no seria possvel se criar
nada com a poltica, ela no passaria de uma espcie de idia essencial distanciada do
mundo, da vida cotidiana dos homens, entendimento que Arendt critica fortemente.
Ademais, o agir nunca poderia ser chamado deste modo, se no tivesse como uma de
suas partes constitutivas a interveno prtica sobre o mundo. Seria uma contradio
chamarmos de ao algo que no se realiza praticamente.
A instrumentalidade guiada pela categoria de meios e fins. Se fao
algo, o fao com o objetivo de alcanar um determinado objetivo. Este fazer figura
apenas como um meio para algo que est previamente determinado. J a praticidade no
est necessariamente ligada a uma finalidade. Posso estar agindo sem algo previamente
determinado: praticare do latim, que quer dizer pr em prtica uma ao que se
vivencia no momento mesmo da execuo. A prtica ou o verbo praticar, deste modo,
est fundamentado numa experincia que se exaure medida em que desempenhada.
A prtica diz respeito ao. A instrumentalidade, diferentemente, no est marcada
por este desempenhar que se exaure no prprio ato, mas sim, pelo intuito de
previsibilidade de um objetivo, de modo que, primeiro defino um alvo, depois
determino qual seria a melhor forma de conquist-lo, utilizando os meios que me so
disponveis. Se a praticidade o agir, a instrumentalidade quase uma teoria, pois a
formalizao de uma pr-ao, controlada e dirigida.
Ademais, a afirmao de Kateb que a poltica de Arendt esttica, por
ter compromisso com um esprito correto, se afasta do entendimento desta pensadora
em que a poltica seria algo em si mesmo (CH 218). Deste modo, j que algo que se
define por si, no tem qualquer teleologia. um princpio no contexto aristotlico e, por
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isso, no est guiada ou submetida a qualquer fim, por mais que seja correto como
afirma Kateb.
A poltica em Arendt no segue nenhum esprito ou natureza para
afirmar a existncia de qualquer projeto que diga o que correto. Isso j seria criar
amarras para o fenmeno poltico, colocando-o contra a idia do novo. Seria desfigurar
o conceito de Arendt tentar submet-lo a qualquer objetivo ou persecuo com faz
Kateb. Para a autora, a poltica de Arendt no tem objetivos e seu fundamento a
liberdade uma poltica sem propsito, influncia de Kant da Crtica do Juzo, de quem
Arendt retira a afirmao de que a poltica propsito sem propsitos 11(Apud Kateb,
1999:44).
Habermas (1993), em seu texto O Conceito de Poder de H. Arendt,
tambm critica em Arendt o conceito de poltica pouco objetivo, fundamentado na
idia de prxis aristotlica, em que a ao tem um fim em si mesma. Mas,
diferentemente de Kateb, no trata a prxis como poiesis. Contudo, mesmo
considerando a diferena entre os dois conceitos, Habermas pretende que a prxis
absorva os elementos da poiesis. Para ele, o conceito de poltica arendtiano, pautado na
prxis aristotlica, ao estabelecer uma rgida fronteira com relao s atividades no
polticas do trabalho e do labor (poeisis), e tambm em relao ao bios theortikos
(filosofia), - que Habermas denomina como pensamento(1993:110)12, enquanto
Arendt chamaria de contemplao no tem condies de responder aos desafios
contemporneos.
Apesar de reconhecer que o conceito de poltica arendtiano
importante para ilustrar a situao atual, caracterizada pela eliminao de contedos
11 No original: purposiveness without purpose 12 No texto original em alemo termo utilizado Denkens (pensamento). Cf. HABERMAS, Jrgen. Hannah Arendts Begriff der Macht in Philosophisch Politisch Profile. Frankfurt: Suhrkamp Verlog Frankfurt am Main 1981/Drite Auflage 1984, p. 240.
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essencialmente prticos do processo poltico, Habermas ressalta que o preo que se paga
por tal entendimento do poltico de: a) excluir da esfera poltica todos o elementos
estratgicos, definindo-os como violncia; b) isolar a poltica dos contextos econmicos
e sociais em que est embutida atravs do sistema administrativo; c) no poder
compreender as manifestaes da violncia estrutural (1993:110-111- verso brasileira
e 1994:220, verso americana).
O que prope instrumentalizar a prxis, estabelecendo que ela
deveria possuir elementos estratgicos: no podemos excluir do conceito do poltico o
elemento da ao estratgica (Habermas, 1993:112) como forma para lidar com os
problemas contemporneos. Ao insistir nessa ao estratgia, Habermas recai naquilo
que Arendt criticou de maneira veemente: trazer para a poltica a lgica do homo faber;
pretender que a ao humana seja pautada pela lgica da fabricao, pela qual o homem
define um modelo e, a partir da, toda a sua atividade subseqente orientada pelo
objetivo de construir um objeto segundo este fim (CH, 153). A categoria de meios e fins
que rege este tipo de relao (CH, 156). Deste modo, a coisa fabricada tem um
comeo definido e um fim tambm definido e previsvel.
Trazer para as aes polticas este tipo de previsibilidade tem vrias
conseqncias. Inicialmente, esta perspectiva se volta contra o carter contingencial e
espontneo de toda ao humana, retirando o potencial criativo inerente a cada homem,
pois estabelece a valorizao de uma estabilidade que somente pode ser obtida ao se
instituir a repetio e, sobretudo, pela mecanizao dos atos. Ao negar a
imprevisibilidade, a lgica do homo faber apoiada por Habermas, favorece que nossas
aes se tornem hbitos, os quais podem at nos proporcionar uma sensao de
segurana que somente as coisas previsveis possibilitam, mas nos despreparam para
lidar com situaes inusitadas (Assy, 2004:41).
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Ademais, para Arendt pela ao poltica que se d a distino
particular de cada homem. por seus feitos e discursos que o homem estabelece a sua
singularidade e revela quem ele , meio multiplicidade de outras pessoas. Caso o
homem renuncie ao poltica e passe a adotar a ao finalstica prpria do homo
faber, ele deixa de apresentar quem ele para mostrar apenas o que ele se
transformou (HC, 180). Para Arendt, a instrumentalizao do agir tem como
conseqncia a perda desta capacidade de revelao do agente. Ao se apresentar apenas
como o que ele , o homem se assume como coisa, um meio para determinado fim,
que pode ser substitudo ao longo do processo por qualquer outra pea ou mesmo ser
descartado, ao se atingir o objetivo pretendido. Ao renunciar sua singularidade e
adotar a lgica da fabricao, o homem torna-se descartvel.
Arendt entende que a ao poltica desembaraada de qualquer
funcionalismo ou determinao de qualquer tipo, seja de carter econmico ou social. A
poltica tem uma dignidade prpria, a qual no deve estar submetida satisfao
utilitria do mercado ou das necessidades. A ao sempre uma causa, nunca um efeito.
Contudo, ela causa dela prpria, causa sui (Tassin, 1999:269) e seu sentido especfico
est na sua praticidade.
No se pode negar a influncia da concepo aristotlica de prxis na
construo do conceito de ao de Arendt (Habermas, 1993:110). De fato, ela retira da
expresso vita activa, que a traduo latina do bios politikos de Aristteles (CH, 20), a
exemplificao de um tipo de vida voltada exclusivamente para a ao (CH, 21). Arendt
faz muitas referncias Poltica de Aristteles para apresentar o entendimento grego da
vida poltica como um modo de viver autnomo, livre das necessidades e privaes
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humanas (CH, 21), e que tem sua finalidade em si mesma13: a ao boa o seu prprio
fim (EN, 1140 b, 10).
Apesar de se reconhecer que o conceito de ao arendtiano tem a
influncia de Aristteles, Arendt no fica restrita idia aristotlica de prxis. O seu
conceito vai alm e traz uma gama muito maior de possibilidades, pois est baseado na
potencialidade ilimitada de agir, algo muito distante da noo teleolgica da prxis
aristotlica, baseada na idia de se atingir um fim: o Bem.
Villa destaca o distanciamento arendtiano ao aspecto teleolgico da
prxis aristotlica: Genericamente falando, ns podemos dizer que o modelo
teleolgico [de Aristteles] subsume toda atividade, a prxis includa, ou como a
realizao de um bem, ou como a execuo de uma funo. Se de uma perspectiva a
prxis intrinsecamente valiosa, de outra sempre subserviente a um objetivo, com seu
valor estando em funo da natureza peculiar do mais alto bem, o trabalho do homem
(Villa, 1996:46)14. O objetivo de Aristteles e de sua tica a formao do carter do
cidado para que se torne bom e disposto a engendrar aes nobres para a realizao de
um propsito: o bem comum, o bem final do estado (Villa, 1996: 46).
Ao contrrio dessa perspectiva, Arendt no se apia em teleologias de
qualquer tipo, em referncias a absolutos tais como natureza, metafsica ou histria, ou
ainda em qualquer tentativa de submisso da poltica ordem do privado, moralidade
ou ao racionalismo instrumental habermasiano.
Em razo dessa autonomia da poltica, o seu conceito de ao e seu
lugar filosfico so totalmente originais. Alguns autores como Etienne Tassin (1999),
13 Cf Aristteles, Poltica, I, 1253a. Sobre bios politikos cf. tambm tica a Nicmacos 1095 b5, obra a identificaremos pela sigla EN. 14 No original: Generally speaking, we can say that the theological model subsumes all activity, praxis included, as either the achievement of a good or the fulfillment of a function. While from one perspective praxis is intrinsically valuable, from an other it is always subservient to a goal, with its value being a function of the peculiar nature of the highest good, the work of man (Villa, 1996:46)
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chegam a afirmar que no se poderia inscrever Arendt em qualquer tipo de tradio, seja
ela aristotlica ou mesmo maquiavlica (1999:264)15. Mas, como j se disse acima,
apesar de se reconhecer essa originalidade, no se pode afastar uma inspirao
aristotlica em Arendt. De fato, o estudo da tica aristotlica e o seu entendimento da
prxis um canal importante e valioso para se compreender essa idia arendtiana da
prtica poltica voltada para si mesma e sem qualquer outro tipo de finalidade.
Apesar de Aristteles partir de uma perspectiva teleolgica da ao,
ele traz para Arendt a idia de que determinados tipos de ao tm sua finalidade em sua
prpria atividade. Na tica a Nicmacos16 Aristteles afirma que toda arte e toda
indagao, assim como toda ao e todo propsito, visam a algum bem; mas existem
atividades que a finalidade reside em si mesma: no haver diferena alguma no caso
de as prprias atividades serem as finalidades das aes ou serem algo distinto delas
(EN, 1094 a1, grifos nossos). Deste modo, em Aristteles se observa uma valorizao
da prxis, uma nfase na ao como forma de obteno do bem: se h portanto um fim
visado em tudo que fazemos, este fim o bem atingvel pela atividade, e se h mais de
um, estes so os bens atingveis pela atividade (EN,1097 a7).
Porm, Aristteles retoma o argumento finalstico e afirma que toda
ao visa um objetivo que, no caso, a idia de bem: se h, ento, para as aes que
praticamos, alguma finalidade que desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado
15 Sobre a influncia de Maquiavel em Arendt, cf. KATEB. George. Political action: its nature and advantages in VILLA, Dana (Ed.) The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 136 e 137. 16 Utilizou-se duas tradues para esta obra de Aristteles. A primeira de Mrio da Gama Kury. tica a Nicmacos. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1992. A segunda de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. tica a Nicmaco (Col. Os pensadores). So Paulo: Abril Cultural, 1979. Contudo, utilizamos a traduo de Mrio da Gama Kury somente para as referncias do Livro I da tica a Nicmacos que vai de 1094 a at 1098 b8. As demais referncias obra seguem a segunda traduo. A mudana de uma traduo pela outra se deu pela opo de Kury traduzir arete por excelncia moral no lugar de virtude e excelncia intelectual em vez de virtude intelectual ressaltada em sua Introduo, p. 12. Esta traduo se mostrou problemtica para os objetivos deste trabalho em razo de conceber que h virtudes morais no contexto do pensamento grego, entendimento este que contrastaria com os pressupostos aqui apresentados, em que a ao se pauta por princpios ticos que so inspirados pelo mundo e no na subjetividade da moral. As referncias que no contradizem esses objetivos foram mantidas.
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por causa dela, e se no escolhemos tudo por causa de algo mais (...), evidentemente tal
finalidade deve ser o bem e o melhor de todos os bens (EN, 1094 a2). Deste modo,
para cada atividade h bem e um fim especfico a ser atingido, mas existe um bem
maior que todos: o bem em si, o mais final de todos os bens, que Aristteles identifica
na idia de felicidade que se encontra na vida teortica.
O uso das faculdades racionais tambm para Aristteles uma
atividade: atividade vital do elemento racional (1098 a7 e 1098 b8). Assim,
Aristteles insere na vita activa o modo de vida do filsofo pautado na contemplao.
Arendt aponta esta aparente contradio, em que se estabelece a identificao da
quietude do pensamento como uma forma de atividade. Segundo a autora, a chave para
se compreender essa questo est na noo de askholia grega, palavra que designa
ocupao ou desassossego, e que Aristteles utilizava para todo tipo de atividade.
Assim, para o filsofo, a contemplao tambm seria uma atividade. (CH, 23).
O que Arendt retira de Aristteles que toda ao tem como
fundamento a prxis, e que esta prtica no pode ser considerada esvaziada de
contedo. Mas poder-se-ia perguntar como uma ao que encontra seu fundamento em
si mesma, que no tem qualquer tipo de finalidade, pode ser tica ? Aqui o que se
chama de tica tem como fundamento o cuidado com a pluralidade humana constitutiva
do mundo, e este cuidado feito por meio de uma realizao (prxis), que se renova
medida que est sendo executada. neste ponto que se encontra a contribuio da tica
aristotlica para Arendt, pois para o estagirita a tica entendida como a prtica de
hbitos virtuosos: aos hbitos dignos de louvor chamamos virtudes(Aristteles, EN,
1103a 10). A virtude ou aret a busca pela excelncia que se faz pela ao. No
contexto arendtiano essa prtica o prprio horizonte da experincia em que se do
os problemas ticos centrais (Curtius, 1997:33).
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A tica, por se constituir como uma resposta s questes que surgem
da experincia cotidiana, do inesperado e do contingente que atuam em nossas vidas,
no poderia ter um sentido unvoco; nem se constituir a partir de uma essncia
invarivel, definidora do modo como se deve agir, ou ainda afirmar a idia de Bem
essencial e exigir que toda ao seguisse necessariamente para este fim. No h Bem,
portanto, mas bens que surgem e se mostram medida que os homens se movimentam
em seu espao mundano.
A virtude, portanto, surge da experincia e no de uma idia
preconcebida. Aristteles, ao definir que a virtude de duas espcies, a intelectual e a
moral, assinala que tanto uma como a outra so geradas de forma prtica. A virtude
intelectual se d graas ao ensino, atividade que exige experincia e tempo; e a virtude
moral adquirida pelo hbito: por tudo isso, evidencia-se tambm que nenhuma das
virtudes morais surge em ns por natureza (EN, 1103 a 15).
Tambm influenciado por Aristteles, Macintyre ressalta o valor da
prtica para a construo das virtudes: E grande parte dos nossos conhecimentos acerca
das virtudes so, deste modo, empricos; aprendemos que tipo de qualidade a
sinceridade ou a coragem, o que acarreta sua prtica, quais obstculos gera e quais
evitar, e assim por diante, em grande parte somente observando sua prtica em outrem e
em ns mesmos (Macintyre, 2001: 301).
A tica varia de acordo com o espao poltico. Assim, em
determinadas sociedades pode ser considerada como tico a prtica da bondade ou a
renncia a qualquer tipo de ao, tal como estabelecido pelos modelos cristos; em
outras, a tica pode se estabelecer por meio de virtudes contrrias, tais como a ao e a
sua indiferena ao que denominaramos de piedade, como nas sociedades hericas.
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Ciente dessa diversidade de princpios ou valores ticos Arendt
afirma que: pode ser a grandeza e a fama como na Grcia pr-socrtica; pode ser a
permanncia da cidad como na virtude romana; pode ser a sade da alma nesta vida ou
a salvao da alma na vida aps a morte; pode ser a liberdade ou a justia, ou muitas
outras dessas coisas (RJ, 115). E mesmo se isolarmos o contexto grego e filtr-lo mais
ainda encontramos em uma polis especfica, como Atenas, vrias noes de virtudes:
dos sofistas, de Plato, de Aristteles, dos polticos e dos poetas picos ou trgicos.
Deste modo, as virtudes so entendidas pela sua diversidade e variedade, e refletem a
especificidade do ambiente em que so forjadas. neste sentido a afirmao de
Macyntire (2001) que toda tica, at certo grau, est ligada ao socialmente local e
particular, e que toda a aspirao de uma tica universal, liberta desta particularidade,
uma iluso (2001:218).
Mas como uma determinada prtica pode tornar-se um modelo de
virtude a ser copiado, ou dito de outra forma, como a prtica torna-se virtude? Primeiro,
deve ser visvel para existir a possibilidade da imitao; segundo, para alar o posto de
algo a ser imitado, deve ter dignidade que somente tm as coisas ou prticas que so
algo em si, que no so originadas de nada alm delas mesmas, ou seja, quando so um
princpio no sentido aristotlico do termo17.
Para se compreender o conceito tico de ao arendtiano encerrado em
sua pura autonomia como algo em si mesmo, preciso considerarmos os ensinamentos
aristotlicos. Arendt, ao afirmar que o agir livre de qualquer forma de determinao,
17 Aristteles, Potica, 42 Todo aquilo que tem princpio, meio e fim. Princpio o que no contm em si mesmo o que quer que siga necessariamente outra coisa, e que, pelo contrrio, tem depois de si algo com que est ou estar necessariamente unido. Fim, ao invs, o que naturalmente sucede a outra coisa, por necessidade ou porque assim acontece na maioria dos casos, e que, depois de si, nada tem. Meio o que est depois de alguma coisa e tem outra depois de si. Observe-se, contudo, que o Todo de Aristteles, o Uno, tem um fim. O que na ao arendtiana no existe. H, enfim, um componente teleolgico na ao de Aristteles.
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estabelece que a ao um princpio. A ao no nasce de qualquer determinao
anterior, como se fosse a conseqncia imediata de algo que lhe vem anteriormente.
Arendt recusa a idia de que toda ao segue uma causalidade, porque assim a poltica
perderia sua imprevisibilidade intrnseca, pois ao se conhecer a causa de todas as coisas,
poder-se-ia ter a previsibilidade do efeitos de todas elas (EPF, 189).
Tambm se deve matizar a afirmao de que a ao poltica de Arendt
e toda a novidade que ela representa, seria fruto de uma pura e simples apario
fenomenolgica, como se a luz que brilha do tesouro da liberdade surgisse do nada e
aparecesse de forma puramente espontnea. O conceito de ao de Arendt no segue de
maneira to inequvoca e estrita o que Tassin (1999) denomina de uma inteligncia
propriamente fenomenolgica (1999:269)18. De fato, a ao, como assinala o autor
como liberdade comeo19; mas h que se relativizar um pouco a sua afirmao de
que este comeo se d por meio de pura espontaneidade: como comeo ela
espontaneidade (1999:269)20. O aspecto fenomenolgico da ao, o seu carter de
apario, conseqncia do percurso especfico da ao, de sua performance j
iniciada. E isto se d porque a atividade da prxis , por meio da energia (energeia) que
utiliza, produz a luminosidade para sua prpria apario. Assim, esta energia utilizada
tambm liberada como fenmeno visvel, o qual contm em si o seu contedo na forma
de pura prtica.
Deste modo, o carter fenomenolgico surge porque o agir se iniciou
anteriormente; ele sua conseqncia, o que afasta a idia de que a ao, por ser uma
novidade, possa surgir sem uma referncia, pois de acordo com Arendt, uma das
caractersticas da ao humana a de sempre iniciar algo novo, o que no significa que
possa sempre partir ab ovo, criar ex nihilo (CR, 15).
18 No original: dune intelligence proprement phnomenologique 19 No original: comme libert est commencement, 20 No original: comme commencement elle est spontaneit
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Outros fenmenos tambm aparecem no mundo, e nem por isso so
polticos. Quando Arendt diz que ser e aparecer coincidem (VE, 17), ela est a
reafirmar um critrio de realidade. E realidades podem ser meramente fticas, podem j
estar disponveis para uma simples apresentao de sua existncia. Quando se diz: isto
uma pedra, oferece-se visibilidade para um objeto que j estava dado, mas que a partir
do momento em que se chama a ateno de outros para sua existncia, ele passa a
constituir-se como algo presente e com certa relevncia, mesmo que antes j estivesse
presente.
J a visibilidade poltica no se d por sua pura e simples fatualidade.
Ela necessita ser impulsionada por um ato humano, a arch, que apenas o incio, e
depois garantir sua expanso com a participao de outros por meio da prxis. Deste
modo, a sua visibilidade garantida pelo elemento irruptor (arch) e prtico (prxis) da
ao, que ao serem inseridos num mundo que segue seu ritmo normal, chamam a
ateno e ganham visibilidade pelo simples e grandioso fato de interromperem a
linearidade da vida.
Esta ao, que no se d por nenhum tipo de causalidade intrnseca, ou
seja, por nada que se constitua como sua causa necessria determinando seu
direcionamento, tem seu incio especfico. A ao surge de algo que lhe externo: os
modelos ou princpios gerados em um espao pblico especfico, que se tornam a
referncia do que virtuoso. Arendt ento estabelece que a ao tem como referncia a
virtude ou a excelncia, a arete, dos gregos. (EPF, 199). A prxis arendtiana encontraria
nos modelos da tica herica, fundamentada na perspectiva de um ato virtuoso, uma de
suas fontes inspiradoras. esta a discusso que faremos a seguir.
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2- ELEMENTOS HERICOS DA PRXIS
O conceito de ao de Arendt tem a excelncia como um de seus
fundamentos, pois somente pelos seus feitos e discursos que o homem pode distinguir-
se dos demais e tornar-se um ser singular (CH, 189). Deste modo, o conceito de prxis
arendtiano retoma elementos da tica herica grega em que a arete, a excelncia ou a
virtude, alcanada somente por meio de atos que possibilitam a distino de um agente
sobre os demais. Contudo, isso no quer dizer que Arendt privilegie a ao individual.
Ao contrrio, o carter revelador da ao herica depende essencialmente da
mobilizao de uma rede de atores que age juntamente com o heri da ao (Duarte,
2000:233). neste sentido as palavras de Arendt: para a excelncia, por definio, h
sempre a necessidade da presena de outros, e essa presena requer um pblico formal,
constitudo pelos pares do indivduo (CH, 58).
O presente captulo busca analisar esta noo de excelncia ou virtude
em Arendt. A partir da identificamos um predomnio de virtudes ligadas tica herica
grega, as quais fundamentam o conceito de tica arendtiana que se constri pela prxis.
2.1-Virtudes e Princpios
A excelncia um dos elementos da tica Arendtiana. Neste sentido,
ethos expressa a prtica (prxis) de hbitos virtuosos em meio a uma pluralidade. tica
, portanto, o conjunto de prticas virtuosas que so executadas como forma de se
realizar o Bem em determinada comunidade. Contudo, esta idia de Bem no se refere a
um padro ou valor fixo, mas construda medida que responde s mudanas geradas
na esfera poltica. H, portanto, uma via de mo dupla em que ethos expressa uma
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prtica influenciada por princpios j existentes, mas medida que os efetua, tambm os
modifica, renovando-os.
Deste modo, quando se fala da tica Arendtina, pode-se destacar que
esta tica influenciada pela maneira como a antigidade concebia agir eticamente.
Trata-se, portanto, de uma tica guiada por valores coletivos, por um compromisso com
a comunidade que a constri. A sua referncia so as virtudes e os princpios que
expressam a psicologia e os valores de uma comunidade, os quais so formados ao
longo do tempo e ganham existncia concreta, a partir do momento em que se
manifestam em cada ato realizado. Uma tica guiada por uma luminosidade antiga que
v na prtica constante o seu referencial de realizao e cuja perspectiva distancia-se de
uma noo de tica pautada em valores pr-determinados por algum tipo de autoridade,
seja ela religiosa ou laica, ou mesmo por algum imperativo construdo na subjetividade.
Diferente de toda anlise que busca entender o conceito de prxis
arendtiano exclusivamente por seu carter esttico, portanto, destitudo de todo e
qualquer contedo que no seja a sua prpria apario21, o entendimento de tica que
estamos a ressaltar fundamenta-se tambm na noo arendtiana de princpios.
Como a ao entendida como um fenmeno autnomo, os princpios
no devem ser entendidos neste contexto como leis prescritivas ou imperativas. Como
destaca Arendt, funcionam como fontes inspiradoras, semelhantes idia de Esprito
que, para Montesquieu, deveriam guiar a feitura das leis (EPF, 199). So valores gerais
de determinada comunidade, que se tornam a referncia do modo mais prestigioso de se
agir. Esses princpios modelam uma diversidade de prticas, as quais, quando tomadas
conjuntamente, formam aquilo que Aristteles denominou de tica ou prtica das
Virtudes (EN 1103 a 10).
21Sobre esta discusso cf. DUARTE, Andr. O pensamento Sombra da Ruptura: Poltica e Filosofia em Hannah Arendt. So Paulo: Editora Paz e Terra, 2000, pp. 218-233.
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Quando afirma que a ao brota dos princpios, Arendt exemplifica
que tais princpios so a honra ou a glria, o amor igualdade, que Montesquieu
chamou de virtude, ou a distino, ou ainda a excelncia do grego ai aristeein
(ambicionar sempre fazer o melhor que puder e ser o melhor de todos), mas tambm o
medo, a desconfiana ou o dio (EPF, 199). Apesar de tambm fazer referncia a
princpios como medo, desconfiana e dio, o que se destaca na relao de Arendt so
as virtudes mais ligadas a uma tica de carter herico grego: honra, glria, distino e
excelncia.
Ademais, como bem ressalta Kateb, a relao de princpios
consternadores como medo, desconfiana e dio contribuem para a perspectiva trgica
do conceito de poltica de Arendt, medida que enriquecem e completam o drama da
poltica: eles contribuem para o fracasso da autntica poltica22 (2000:138-9), pois
toda queda representa tambm a possibilidade de soerguimento, a possibilidade de
novos comeos.
22 Traduo livre. No original: they contribute to the failure of authentic politics
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2.2 - A Virtude Herica
A tica arendtiana reflete o esprito herico antigo. O modelo para
Arendt aquele que se apia na pica homrica e seus heris como Ulisses23 (EPF, 74)
ou Aquiles24 (CH, 206), homens que agem tendo com referncia o mundo externo e no
seus conflitos e valores pessoais.
Arendt destaca constantemente a permanncia e a influncia dos
valores homricos nas origens do fenmeno poltico. Em seu esforo para compreender
com que condies fundamentais da existncia humana a poltica tinha a ver, encontra
nas prticas e virtudes existentes na pica homrica uma de suas fontes essenciais: essa
estreita unio do poltico com o homrico de grande importncia para a compreenso
de nosso conceito de liberdade poltica tal como aparece em sua origem na polis grega
(OQP, 54). Para a pensadora, alguns dos elementos fundamentais para a compreenso
da poltica podem ser encontrados na tica herica contida no homrico: e isso pela
simples razo de que nunca, seja antes ou depois, os homens tiveram em to alta
considerao a atividade poltica e atriburam tamanha dignidade a seu mbito (EPF,
201).
23 Quando se refere a Ulisses, Arendt destaca que o heri est a seguir os princpios que pautam a tica de sua comunidade. Ele estaria a tentar realizar os grandes feitos que se tornaram a referncia da ao. Contudo, ao perseguir estes grandes feitos Ulisses no est simplesmente a repeti-los. Ao agir de acordo com os princpios, suas aes acabam por se tornarem inditas, num ciclo de imitao criativa prpria de toda tica que no se baseia em padres rgidos e imutveis. Como seus atos se tornam novos ao serem executados, ele no tem conscincia da grandeza de seus feitos. Faz-se necessrio que um narrador apresente estas aes para que o heri perceba o valor de sua prpria figura e de suas realizaes. Este processo de narrao, para Arendt, constitui-se a fundao mais profunda da Histria: A Histria como uma categoria de existncia humana , obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Herdoto, mais antiga mesmo que Homero. No historicamente falando, mas poeticamente, seu incio se encontra, antes, no momento em que Ulisses, na corte dos Fecios, escutou a estria de seus prprios feitos e sofrimentos, a estria de sua vida, agora algo fora dele prprio, um objeto para todos verem e ouvirem. O que fora pura ocorrncia tornou-se Histria. Mas a transformao dos eventos e ocorrncias singulares em Histria era, em essncia, a mesma imitao da ao em palavras mais tarde empregadas na tragdia grega, (...) (EPF, 74, aspas da autora). 24 De acordo com Arendt em A Condio Humana: O que d histria de Aquiles sua importncia como paradigma que ela mostra, em breves palavras, que o preo da eudaimonia [condio duradoura de uma boa vida] a prpria vida; que ela s pode ser garantida quando renunciamos continuidade da existncia ao longo da qual nos revelamos aos poucos, quando condensamos toda a existncia num nico feito, de sorte que a histria do ato termina ao mesmo tempo que a vida, p. 206.
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De fato, os gregos estabeleceram em seu passado histrico uma idade
herica. Que tal idade houvesse existido, nenhum grego ousava duvidar. Sabia-se muito
deste passado onde a terra era habitada por esses semi-deuses: seus nomes, genealogias
e feitos. Homero e Hesodo eram as fontes de informao mais autorizada sobre este
tempo e homens25 (Finley, 1982:26).
Se Homero nos relata uma srie de feitos fantsticos produzidos pelos
heris, Hesodo nos apresenta como se deu a origem dessa raa26. Inicialmente eram
cinco as raas: ouro, prata, bronze, heris e a de ferro. Numa narrativa que apresenta a
melhor raa para a mais simples, h o destaque para a raa de ouro e para a raa dos
heris. As demais tiveram ou lhes foram destinado um triste fim, como no caso da raa
frrea. A raa de ouro a dos deuses que ocupam o Olimpo (v. 111). A de prata,
acometida pelo Excesso e Desmedida (Hbris), foi ocultada por Zeus sob a terra (v.
136). A brnzea, influenciada por Ares, era terrvel por sua brutalidade e violncia. Por
essa razo morreu e passou a ter morada na escurido do glido palcio de Hades (v.
152-3). Surge a quarta raa, a qual Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa,/raa
divina de homens heris e so chamados/semideuses, gerao anterior nossa na terra
sem fim (v. 158-60). A estes Zeus confinou nos confins da terra, na Ilha dos Bem-
Aventurados, junto ao oceano profundo (v. 170). Por fim, a raa de ferro, a raa dos
atuais homens, condenados s penas da labuta diria para sobreviverem numa vida onde
males e bens estaro misturados (v. 179), e dominada pelos piores exemplares da
raa.
25 Ilada e Odissia teriam sido escritas por volta de 740 e 600 a. C. Os Trabalhos e os Dias de Hesodo entre os sculos VIII e VII a. C. Cf. FINLEY, Moses. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presena, 1982, p. 14. 26 Sobre o mito das cinco raas de Hesodo utiliza-se aqui Hesodo - Os Trabalhos e os Dias (Primeira Parte) - Introduo, traduo e comentrios Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Iluminuras, 1991.
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A raa mais justa e corajosa a dos heris. ela que vai se constituir
como a referncia da virtude para o homem grego. Estes valores hericos, como
assinala Jaeger, refletem o ethos da cultura e da moral aristocrtica e encontram na
Odissia o poema de sua vida (Jaeger ,1989:46).
A comunidade dos chamados sculos obscuros gregos, que produziu
forma de vida herica, desapareceu, mas a sua representao ideal, expressada na poesia
de Homero, converteu-se no fundamento da cultura helnica como destaca Jaeger
(1986: 46) e a prpria Arendt: Homero foi o educador da Hlade (CH, 51, nota 33,
aspas da autora) 27. A pica homrica teve o papel especial de se constituir como fonte
para a preservao e transmisso de todo o sistema de valores ticos gregos (Goldhill,
2003:140-1).
A poesia homrica celebra a tradio do passado e exalta a glria, o
conhecimento do que magnfico e nobre, e recusa qualquer acontecimento que no
busque alcanar o extraordinrio. Deste modo, os mitos e as lendas hericas constituem
um tesouro inesgotvel de exemplos e modelos de ao, e intimamente ligada origem
da poesia nos cantos hericos, existe a idia da glria, do louvor e da imitao dos
heris (Jaeger: 1989:48).
Como bem ressalta Finley, para os heris homricos tudo gira volta
de um nico elemento de honra e de virtude: a fora, a bravura, a coragem fsica, a
valentia. E, ao invs, nenhuma fraqueza, nenhum trao negativo alm de um s: a
covardia, com a conseqente incapacidade de prosseguir os objectivos hericos
(1982:27). Veja-se este ilustrativo trecho da Ilada: Zeus e vs todos, deuses! rogava
Heitor, permiti que meu filho com eu se distinga entre os Troianos, que ele mostre uma
27 Os poemas homricos seriam testemunhas de seu prprio tempo, o sculo VIII. Contudo, descrevem um perodo intermedirio entre dois mundos, que no seria nem o mundo micnico, nem a sua prpria poca. Descreve a sociedade da chamada idade obscura dos sculos X e IX, posterior ao perodo micnico, mas anterior ao desenvolvimento da polis no sculo VIII. Cf. AUSTIN, Michel e VIDAL-NAQUET, Pierre. Economia e Sociedade na Grcia Antiga. Lisboa: Ed.70, 1986, p.47.
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coragem e valentia iguais s minhas e reine pela fora em lion . E que um dia se diga
dele: ainda mais valente que seu pai, quando regressar do combate. E que dele traga
os despojos ensangentados dos inimigos mortos e que o corao de sua me rejubile!.
(Apud Finley, 1982:27).
Por essa citao observa-se que o ethos herico destacava a
valorizao de prticas guerreiras que exaltavam a grandeza da ao como um fim em si
mesmo. A vitria, por mais que fosse desejada, no era o objetivo especfico do heri. O
mais importante era a prpria ao como forma de revelao de sua coragem e valentia,
sendo irrelevante a forma como ela foi empreendida. Da Finley afirmar que no se
pode entrever nenhum vestgio de Declogo nessas palavras ou nenhuma
responsabilidade social alm da familiar; nenhuma obrigao por nada nem ningum,
apenas a afirmao da valentia e a marcha para a vitria e o poder (1982:27).
A idade dos heris, tal como concebida por Homero, era uma poca
onde havia homens que excediam de maneira espetacular as normas usuais referentes a
um grupo delimitado e bem definido de virtudes. Os heris tm somente olhos para as
aes grandiosas e isso os afasta de qualquer perspectiva que leve em conta os atuais
padres morais de bem e mal. Ulisses na casa de Alcnoo, comea assim o relato das
suas viagens desde Tria: De lio levaram-me os ventos terra habitada por
Cconos,/onde a cidade de Ismaro saqueei e matei seus homens;/mas da cidade as
mulheres e o grande tesouro amontoado foi dividido, porque nenhum homem sem lote
ficasse(Odissia, IX, 39-49). Observe-se que na Odissia o relato dessas aes tem o
objetivo de descrever os grandes feitos do heri. No so levados em conta os meios
como estes atos se deram. Deste modo, nessas aes e no universo em que estavam
inseridas, no se vislumbrava qualquer perspectiva de ordem moral.
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Atentando-se para as grandes diferenas que separam e distanciam a
sociedade homrica do sculo IX-VIII e da polis clssica do sculo V, no se pode
deixar de salientar certas continuidades e semelhanas do mundo homrico com sua
tica e sistema de valores, sobre os sculos que lhe seguem. (Austin e Vidal-Naquet,
1986:56). Deste modo, esse comportamento de Odisseu e os valores que eles
representam na busca de uma glria imorredoura, ainda influenciam de maneira decisiva
a tica da polis, observando-se, contudo, que sofrera uma alterao do sentido
individual do guerreiro, possuindo, a partir de ento, uma orientao cvica prpria
vida na cidade.
Os valores dessa tica herica constituem a paidia grega, uma
verdadeira educao para os helnicos, pelos menos quanto a um princpio ou exemplo
a ser seguido. Da Arendt afirmar que no importa quanto pode ter-se modificado,
atravs dessa constncia no futuro, o contedo da polis permanece ligado ao homrico
em sua origem (OQP, 55).
As fontes de tal percepo podem ser localizadas numa tradio que
se inicia na poesia e epopia, Homero e Hesodo; nos historiadores, Herdoto e
Tucdides; nos polticos, Pricles; e magistralmente representada de forma esttica por
meio da dramaturgia trgica e seus maiores representantes: squilo, Sfocles e
Eurpedes. E dentro dessa extensa contribuio cultural grega, no poderia faltar um
lugar reservado para a filosofia. Ao longo do livro IV da Repblica, Plato lista a
coragem como uma das quatro virtudes cardeais da cidade, juntamente com a sabedoria,
a temperana e a justia (Repblica, IV, 427e). Apesar de ser uma coragem de tintas
filosficas, moldada pela educao e guiada pela razo para saber discernir o que temer
e o que no temer (430b), verifica-se ainda a referncia coragem como virtude
essencial para a vida poltica.
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A filosofia de Aristteles tambm no foge a esta paidia, ao listar
entre as virtudes algumas que refletem de maneira clara o ethos herico: a coragem e
seu desafio morte (EN, 1115a 10) e a honra (EN, 1115b 10). Contudo, no se pode
deixar de destacar que, mesmo refletindo estes valores hericos, a filosofia instaura um
novo tipo de virtude relacionada razo e a prpria vida do filsofo: a vida
contemplativa. Como bem destaca Arendt (CH, 22), se antes do advento da filosofia
socrtica as virtudes par excellence eram as advindas da vita activa, com o
desenvolvimento posterior desta filosofia houve uma inverso. Aristteles chega a
construir uma gradao das virtudes estabelecendo a teortica como superior activa
(EN, 1177b 15).
Como virtude se entende a excelncia produzida em qualquer
atividade, as virtudes polticas eram identificadas como as mais elevadas que se poderia
alcanar. A coragem, a nobreza, a grandeza e a honra se estabeleceram como virtudes
porque era o mximo que um mortal poderia atingir, para de alguma forma se
assemelhar a um deus. E isto ele obtinha por meio de uma ao prtica sobre o mundo.
Neste ponto, Arendt se afasta de Aristteles, pois no lugar do privilgio contemplao
como virtude principal, ela reala as virtudes pr-filosficas em que se baseavam a vida
poltica. Ao contrrio da virtude recndita da razo, que tem sua atividade na
privacidade da mente do filsofo, Arendt elege as virtudes que podem ser motivo de
admirao pblica, porque estas aparecem ao mundo e, por conseguinte, so as que
oferecem maior segurana, pois esto vista e ao escrutnio de todos, maneira das
atividades artsticas.
Neste sentido, o teatro um dos melhores expoentes destas virtudes
que expressam os valores hericos. Mas, por meio da tragdia, h no somente a
apresentao destes valores como a sua discusso e problematizao. Os atos de
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violncia, morte e sacrifcios em nome da honra herica passam a ser questionados na
polis por meio do teatro. Contudo, a prpria consumao trgica consubstancializada
pela ao dos homens revela, alm da humanidade do heri, tambm a sua grandeza.
Da Aristteles afirmar, na Potica, que a tragdia procura imitar os melhores homens
enquanto a comdia, os piores28. Aristteles faz meno ao sentido grego clssico
formulado a partir de Homero, em que os homens de elevada ndole (1448a) s
podem ser os heris, e os de baixa ndole, a multido (Souza, 1979: 275, nota ao 7).
Os atos, para alcanarem a medida do herosmo, no poderiam ser
medocres. O elemento constituinte do heri a sua distino, a qual se faz por grandes
feitos. E o que so estes grandes feitos? No contexto da tragdia e da cultura grega, os
grandes feitos no so aqueles que modernamente seguem os atuais padres de
moralidade. So atos grandiosos em si e no encerram um julgamento de ordem moral.
A grandeza o seu critrio. Mesmo quando abatido pela vontade de um deus, ao heri
reservada uma maneira de s-lo com grandeza, de modo a preservar-lhe uma parte da
honra. (Romilly, 1998:154).
Na poltica, os ecos desses valores hericos podem ser vislumbrados
na clebre orao fnebre de Pricles e nas guerras travadas no interior do mundo
helnico. A teoria da ao de Arendt est imbuda desta tica herica e a utilizao do
discurso de Pricles pela pensadora exemplificativo dessa postura.
A poltica, entendida no contexto da teoria arendtiana como ao, tem
como critrio a grandeza. Deste modo, coloca-se acima dos padres morais doe bem e
do mal. E esses padres, diferentes da tica e sua perspectiva de mundo, esto fora do
mbito poltico, pois so construdos a partir da subjetividade. Neste sentido, a ao
28 Por este comentrio de Aristteles, certamente Scrates ficaria em m situao quanto sua grandiosidade, pois, apesar de ser considerado por todos menos por ele prprio um grande sbio, portanto, um grande homem, foi vtima da chacota de seus opositores, dentre eles Aristfanes, que o fez personagem de sua comdia As Nuvens Cf. a traduo de Mario da Gama Kury: Aristfanes. As Nuvens. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, pp. 11-107.
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como algo em si, busca alcanar o extraordinrio. No est imbuda de qualquer
teleologia e, por isso, no tem a preocupao se o resultado final ter conseqncias
boas ou ms. Arendt encontra no discurso de Pricles, citado por Tucdides II 4129, a
expresso de um tipo de poltica que no considera questes de ordem moral. Diz a
autora:
Nas formulaes de Pricles e alis, tambm nos poemas de Homero fica eminentemente claro que o significado mais profundo do ato praticado e da palavra enunciada independe de vitria ou derrota, e no deve ser afetado pelo resultado final, por suas conseqncias boas ou ms. Ao contrrio do comportamento humano, (...), a ao s pode ser julgada pelo critrio de grandeza, porque de sua natureza violar os padres consagrados e galgar o plano do extraordinrio, onde as verdades da vida cotidiana perdem sua validade, uma vez que tudo o que existe nico e sui generis (CH, 217).
Neste ponto o pensamento de Arendt se aproxima de Nietzsche30 que,
em sua crtica moral, considera que os valores de bem e mal so relevantes apenas
para aqueles que esto destitudos da capacidade para agir. Estes so movidos pelo
ressentimento aos homens de ao, o heri ou o aristocrata na genealogia de Nietzsche,
e geram assim valores onde estes no existiam, j que no mundo dos homens ativos no
h valorao ou adjetivao para um igual, pois todos so homens em si. O nobre
algum que , que tem realidade, que real, verdadeiro (Nietzsche, 1998:22). Desta
forma, existe uma esfera, seja a da poltica ou da aristocracia, onde os homens no
podem fazer qualquer meno a valores de bem/mau em relao aos seus atos porque
estes valores, simplesmente, no tm qualquer referncia nesta realidade. A valorao
somente pode ser feita por quem est de fora, o excludo, o escravo, que com seu
ressentimento estabelece padres para se afirmar.
29 Algumas tradues da declarao de Pricles so apresentadas por Paulo Csar de Souza em sua traduo da Genealogia da Moral: uma polmica, So Paulo: Companhia das Letras, 1998, primeira dissertao, nota 13. Em nosso trabalho utilizamos a traduo de Mrio da Gama Kury para a obra de Tucdides, A guerra do Peloponeso, Braslia: Editora da Universidade de Braslia/HUCITE, 1982, p. 100, verso tambm trazida por pelo tradutor de Nietzsche: compelimos todo o mar e toda a Terra a dar passagem nossa audcia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizemos. 30 Cf. NIETZSHE, F. Genealogia da Moral: uma polmica, principalmente a primeira e segunda dissertaes.
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Segundo Nietzsche houve uma mutao dos valores que se reflete na
desvalorizao da ao: a impotncia tomou a roupagem pomposa da virtude
(Nietzsche, 1998:37). Da o homem dispostamente negar seu esprito ativo para ser
tornar bom no sentido servil do termo da palavra. A interpretao moral da ao
revelaria a hostilidade com as grandes aes. Adequar as aes moralidade ensejaria o
que Nietzsche chama de ajuste ao comportamento da manada, uma passividade, uma
renncia ao (Villa, 1996:88).
O que o excludo valora como bem/mau algo inerente aos fortes, e
estes movem-se de acordo com um cdigo prprio, o qual no pode ser considerado
como uma moral, que tem por objetivo a glria31. Assim, para Nietzsche, a idia de
moral no foi gestada num mundo que tenha como referncia a grandeza e a glria,
estruturas que, para Arendt, so os nicos critrios pelos quais se pode julgar a poltica
(CH, 217), mas no defini-la. A sua definio, com j dito, somente se d pela prxis, e
seu contedo pela tica, e no na moral.
Observa-se, portanto, que Arendt se aproxima da crtica Nietzschiana
da moralizao do agir. Arendt compartilharia com Nietzsche a profunda suspeita de
que a epistemologia moral parece conduzir formao de sujeitos dceis e que
sistematicamente desvalorizam a ao (Villa, 1996:89). Alm disso, para Arendt,
inserir a moralidade na esfera poltica, alm dos perigos inerentes de algo que
construdo na subjetividade e, portanto, no colocado vista de todos, seria uma
forma de instrumentalizar a ao. Quando se define o que o Bem e se busca alcan-
lo, o risco para a poltica o modo como se chegou a tal idia. Que Bem este? Quem o
definiu? E isto se torna mais dramtico se pensarmos nas sociedades contemporneas,
31 Nas palavras de Nietzsche: perguntemo-nos quem propriamente mau, no sentido da moral do ressentimento. A resposta, com todo o rigor: precisamente o bom da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento in Genealogia da Moral: uma polmica, p. 32, aspas do autor.
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onde o poder transferido dos cidados para alguns poucos que os representam. Deste
modo, a idia de Bem passa ser o que decidido e definido por esta minoria, e todo o
esforo e sacrifcio para alcan-lo passa a ser funo da maioria.
Arendt traz ainda a lio de Maquiavel e seu distanciamento dos
padres morais para a vida poltica. Em O Prncipe, ao ensinar que os governantes no
devem ser bons (Prncipe, XVII), ele no pretendia dizer que deveriam ser ensinados a
serem ruins e cruis, mas deveriam evitar as duas inclinaes para agirem, no por
critrios morais ou religiosos, mas sim por princpios polticos, em muito distinto
daqueles: Para Maquiavel, o padro pelo qual julgamos no o eu, mas o mundo,
exclusivamente poltico, e isso o que o torna to importante para a filosofia moral
(RJ, 145).
O modelo para Arendt a perspectiva herica grega da virtuosidade
da ao. Esta virtuosidade est primeiramente relacionada realizao, no sentido que a
excelncia de uma ao se d com o prprio desempenho e no pelo resultado final da
atividade. Arendt nos lembra que os gregos, para expressarem metaforicamente a
poltica, utilizavam-se de atividades em que a excelncia e o virtuosismo somente
poderiam ser auferidos enquanto estavam sendo desempenhadas, como tocar flauta,
danar, pilotar e navegar (EPF, 200). Inspirada em Aristteles (EN, 1103 b)32, diz a
autora: como todo agir contm um elemento de virtude, e o virtuosismo a excelncia
que atribumos prtica das artes, a poltica tem sido com freqncia definida como
uma arte (EPF, 200). Esta relao entre arte e poltica possibilitou que se interpretasse
a recorrncia de Arendt a estes princpios como um dos elementos teatrais de sua obra.
32 Diz Aristteles em relao s virtudes: adquirimo-las pelo exerccio, como tambm sucede com as artes. Com efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder faz-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo este instrumento (EN, 1103b).
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A imitao promovida pelo ator poltico faz com que ele vista uma espcie de
mscara que lhe fornece o seu papel como ator no meio pblico (Kateb, 2000:138).
importante salientar que os princpios ticos, estando relacionados
com algo externo, que se torna uma fonte de inspirao para os atos, perderiam
completamen