thomas merton: contemplação no tempo e na história

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THOMAS MERTON contemplação no tempo e na história

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Espiritualidade moderna

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  • Thomas merTon contemplao no tempo e na histria

  • Coleo AmAntes do mistrioCoordenada por maria Clara Lucchetti Bingemer

    Msticadeolhosabertos, Johann Baptist metzThomasMertoncontemplaonotempoenahistria,SibliusCefasPereira

  • SibliusCefasPereira

    thomAs mertonContemplAo

    no tempo e nA histriA

  • Direo editorial: Claudiano Avelino dos SantosAssistente editorial: Jacqueline Mendes FontesReviso: Tiago Jos Risi Leme Tarsila DonDiagramao: Ana Lcia PerfoncioCapa: Marcelo CampanhImpresso e acabamento: PAULUS

    1 edio, 2014

    PAULUS 2014

    Rua Francisco Cruz, 22904117-091 So Paulo (Brasil)Tel.: (11) 5087-3700 Fax: (11) [email protected]

    ISBN 978-85-349-3932-4

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Pereira, Siblius CefasThomas Merton contemplao no tempo e na histria / Siblius Cefas Pereira. So Paulo : Paulus, 2014. (Coleo amantes do mistrio)

    ISBN 978-85-349-3932-41. Contemplao 2. Espiritualidade 3. Merton, Thomas, 1915-1968 4. Mstica 5. Vida espiritualI. Ttulo. II. Srie.

    14-02979 CDD-291.422

    ndices para catlogo sistemtico:1. Thomas Merton: Histria: Religio comparada 291.422

  • 5sumrio

    agradecimentos ....................................................................................................... 9

    Listadeabreviaturas ................................................................................................. 11

    ThomasMertonouquandoamsticaabraaomundo .................................. 13

    Captaromistrionocoraodarealidade ....................................................... 17

    Introduo ................................................................................................................. 21

    parte iA ContemplAo: vidA plenA em deus

    Captulo 1Contemplao, esCrita e vida ................................................................................. 471.1 sentidos da contemplao ........................................................................... 491.2 Equvocoseimpedimentosnacontemplao ......................................... 631.3 Umavidaentretextos ..................................................................................... 721.4 OtrabalhodecelaDiantedarealidadecruadascoisas ................... 85

    Captulo 2mediaes da Contemplao ................................................................................1012.1 Atradio(msticaemonstica) ..................................................................1022.2 OfundamentoescondidodoamorOdilogo ..................................1402.3 Umapoticadacontemplao ...................................................................1582.4 Naturezaatenoeescuta ..........................................................................179

    Captulo 3lugares privilegiados da Contemplao ..............................................................2073.1 Naliberdadedasolido ................................................................................2083.2 Naprofundidadedosilncio .......................................................................2313.3 Napurezadocoraoaorao ...............................................................2563.4 no desprendimento da simplicidade .........................................................286

  • 6Sibl ius Cef as Pereir a

    parte iiA ContemplAo no tempo e nA histriA

    Captulo 4o tempo de merton..................................................................................................3194.1 Tempoehistriaconcepesecategorias ............................................3194.2 Odilogocomasociedadeeaculturadeseutempo .........................3294.3 Odilogocomateologiadeseutempo..................................................354

    Captulo 5Contemplao e Compaixo ..................................................................................3835.1 Contemplaoparaoamoreacompaixo .............................................3845.2 Contemplao para o encontro e a comunho ......................................4125.3 Mstica,dilogoeao:interlocutoresprivilegiados .............................435

    Captulo 6Contemplao e ao proftiCa ...........................................................................4716.1 Crticasocialeresponsabilidade ................................................................4736.2 Abuscapelapazeadefesadanoviolncia ...........................................4926.3 Osdireitosciviseaquestoracial ..............................................................517

    CONSIDERAESFINAIS ..................................................................................547

    REFERNCIAS ...........................................................................................................559

  • A minha esposa Miriane a meus filhos Gabriela e Rafael

  • 9AGrAdeCimentos

    Este livro originou-se da tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio do Instituto de Cincias Humanas da Univerdade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Agradeo em especial ao meu orientador, Prof. Dr. Faustino Luiz Couto Teixeira, bem como aos demais membros da banca, Prof. Dr. Volney Jos Berkenbrock, Prof. Dr. Antonio Henrique Campolina Martins, Profa. Dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer, Prof. Dr. Eduardo Guerreiro Brito Losso. Agradeo ainda Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC Minas), que, por meio do Programa Permanente de Capacitao Docente (PPCD), possibilitou que esta pesquisa fosse realizada. E toda a minha gratido, tambm, famlia, aos amigos e irmos de f, cujos incentivos e carinho foram fundamentais na construo do texto.

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    listA de ABreviAturAs1

    AS guas de SiloAsV Ascenso para a VerdadeAV Amor e VidaBC Bernardo de ClaravalCE Cartas a EscritoresCF Cassian and the FathersCM O Clima da MisericrdiaCMA Contemplao num Mundo de AoCP The Collected PoemsCT The Courage for Truth LettersDA Dirio da siaDE Dirio de un ErmitaoDEM Direo Espiritual e MeditaoDS Dilogos com o SilncioDSA Dos Semanas en AlaskaDWL Dancing in the Water of Life Journal VECP Espiritualidade Contemplao PazEI A Experincia InteriorES Entering the Silence Journal IIFV Faith and ViolenceGNV Gandhi e a No-Violncia

    1 Na primeira citao de cada obra de Merton, apresentaremos os dados bibliogrfi-cos completos, com indicao da abreviatura adotada. A partir da segunda citao de cada obra, adotaremos o critrio de referncia por meio das abreviaturas, o que vale tambm para a obra The Thomas Merton Encyclopedia. Esclarecemos ainda que, em alguns trechos, quando a anlise estiver focada em uma obra especfica, com citaes intermitentes, indicaremos a referncia no corpo do prprio texto, no sentido de per-mitir uma leitura mais fluente. Nesses casos, a sequncia ser a abreviatura seguida do nmero da pgina (por exemplo, NSC, p. 10, referindo-se a Novas sementes de contemplao, p. 10).

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    HGL The Hidden Ground of Love LettersHI Homem algum uma IlhaHN O Homem NovoICM An Introduction to Christian MysticismIMD A Igreja e o Mundo sem DeusLE The Literary Essays of Thomas MertonLL Learning to Love Journal VILS Na Liberdade da SolidoMI Merton na Intimidade Sua Vida em Seus DiriosMML Marta, Maria e LzaroMMZ Msticos e Mestres ZenMO Monastic ObservancesMSP A Montanha dos Sete PatamaresNA The Nonviolent AlternativeNSC Novas Sementes de ContemplaoOP Ofensiva da PazOSM The Other Side of Mountain Journal VIIPBM Pre-Benedictine MonasticismPC Poesia e ContemplaoPD Po no DesertoPEP Paz na Era Ps-CristPP Passion for Peace The Social EssaysPS Praying the PsalmsPV O Po VivoQA Questes AbertasQL Que Livro Este?REC Reflexes de um Espectador CulpadoRJ The Road to Joy LettersRM Run to the Mountain Journal IRSB The Rule of Saint BenedictRT Redeeming the TimeRU Raids on the UnspeakableRW Reflections on my WorkSC Sementes de ContemplaoSCh The School of Charity LettersSeD Sementes de DestruioSJ O Signo de JonasSD A Sabedoria do DesertoSS A Search for Solitude Journal IIITL Tempo e LiturgiaTME The Thomas Merton EncyclopediaTTW Turning Toward the World Journal IVVCT A Via de Chuang TzuVS A Vida SilenciosaVSt Vida e SantidadeWF Witness Freedom Letters ZAR Zen e as Aves de Rapina

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    thomAs merton ou QuAndo A mstiCA ABrAA o mundo

    Maria Clara BingemerPUC-RJ

    Introduzir o leitor ao livro de Siblius Cefas Pereira at onde me corresponde implica situ-lo dentro do conjunto da coleo Amantes do Mistrio, inaugurada pela Editora Paulus com a belssima obra de J. B. Metz Mstica de olhos abertos.

    A presente coleo tem como objetivo coordenar publicaes sobre a mstica na contemporaneidade. Com ela, pretende-se chegar aos homens e mulheres de hoje, que sentem dentro de si uma imensa sede do mistrio de Deus, mas no se identificam com as instituies eclesisticas ou religiosas; ou no detm mais os cdigos que lhes permitam decifrar a experincia e os escritos das grandes tradies espirituais, muito especialmente a tradio judaico-crist; ou no sabem onde buscar aquilo de que sentem falta para dar sentido a sua vida.

    A coleo se dirige igualmente a pesquisadores e estudiosos de mstica que sentem que, nos escritos dos msticos de ontem e de hoje, est uma profunda fonte de conhecimento que deve ser sempre mais trazida luz e seriamente refletida. As vrias disciplinas das cincias humanas e sociais (Teologia, Filosofia, Literatura, Antropologia etc.) tero muito a se beneficiar com pesquisas srias e atentas feitas sobre a mstica. Por isso, a co-leo se dirige igualmente a esse pblico.

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    Podem integr-la tanto textos originais de msticos de ontem e de hoje que sejam pouco conhecidos desse pblico, como comentrios e reflexes sobre esses escritos. Assim, tambm se buscaro autores de preferncia nacionais, mas tambm estrangeiros, que tenham feito reflexes frteis e pertinentes sobre o tema da mstica hoje.

    A presente obra, sobre a contemplao mertoniana situada no tempo e na histria, no poderia ser mais adequada para figurar como a primeira obra de autor nacional a integrar a coleo. Alm de ser uma figura gigantesca da mstica contempornea e um brilhante escritor, Merton harmoniza, em sua riqussima personalidade, os dois extremos de ser um monge trapista de estrita observncia e uma das testemunhas mais eloquentes e engajadas do sculo passado.

    Sua obra encarna, portanto, tudo aquilo que se pode pre-tender da mstica contempornea, em termos de profundidade de conhecimento amoroso do mistrio de Deus, ascese que se harmoniza com essa contemplao o chamado trabalho de cela e o olhar transfigurado para o mundo real e seus desafios mais candentes.

    O texto impecvel de Siblius Cefas Pereira vai desdobrando diante dos olhos e do corao do leitor a figura e a alma do grande Merton, permitindo uma percepo cada vez mais acu-rada de como toda experincia de Deus deve desembocar na compaixo e no servio ao outro. No caso de Merton, o dom da escrita e seu admirvel talento literrio conseguem uma sntese nica e rara daquilo que hoje a viso do mistrio de Deus revelado dentro do mundo.

    Esperemos que a coleo Amantes do mistrio, to feliz-mente inaugurada com estas duas obras a de Metz e a de Merton , possa evoluir trazendo aos leitores de nosso pas mais informao sobre o que a experincia mstica represen - ta dentro da aventura humana. E tambm despertar-lhes

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    o desejo de saborear por eles mesmos essa paixo que faz com que todas as outras empalideam: a paixo pelo mistrio divino que se coloca ao alcance do ser humano dentro da histria.

    ThomasMertonouquandoamst icaabraaomundo

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    CAptAr o mistrio no CorAo dA reAlidAde

    Faustino TeixeiraPPCIR - UFJF

    com grande alegria que fao a apresentao deste precioso trabalho realizado por Siblius Pereira. Trata-se de uma obra que foi resultado de tese doutoral, defendida sob minha orientao em 2012, no Programa de Ps-Graduao em Cin-cia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora. Talvez tenha sido uma das teses mais brilhantes e cuidadosas que pude orientar ao longo de minha carreira acadmica. uma pesquisa que d continuidade aos trabalhos que vm sendo realizados em nosso programa de ps-graduao na rea de mstica compa-rada das religies. Uma reflexo que tambm chama a ateno da academia para a importncia dos estudos realizados nesse campo nem sempre privilegiado, mas que tambm funda-mental para entender a dinmica religiosa e sua relao com a vida social. Como indicou Siblius, a obra de Merton pode ser tomada como paradigma tambm no mbito acadmico.

    O trabalho busca apresentar o tema da contemplao em Thomas Merton, tendo como base seu particular itinerrio espiritual. Para a sua abordagem, Siblius fez recurso ao im-portante instrumental dos dirios e cartas do monge trapista, grande parte inditos no Brasil. Indica que essa incluso no corpo da pesquisa traduz um elemento inovador nas incurses feitas sobre esse autor no contexto brasileiro, favorecendo aqui-

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    sies e intuies novidadeiras sobre a insero contemplativa de Merton.

    A obra apresentada traduz no apenas uma reflexo sobre Merton, mas tambm o vigoroso esforo de falar a partir de Merton, abrindo espaos importantes para a palavra do monge contemplativo. E so vrios Mertons que vo se revelando na teia da reflexo interdisciplinar de Siblius, mostrando a riqueza e complexidade de um dos mais argutos e criativos pensadores cristos do sculo XX.

    Considero muito feliz a inteno do autor de debruar-se sobre o tema da vida contemplativa de Merton. Atravs dessa porta de entrada, desvendar a singularidade da visada que o mstico trapista oferece sobre essa questo to candente. No se trata de uma contemplao desligada do mundo, mas, ao con-trrio, inserida de forma viva nas malhas do real e na tessitura do tempo. Como to bem mostrou Merton em seus dirios, o trabalho de cela envolve delicadeza, ateno e escuta ao canto do tempo, aos pequenos e vivos sinais que se apresentam no cotidiano. Um trabalho que envolve todos os sentidos e coloca o contemplativo em estado permanente de ateno e escuta. Ao refletir sobre isso em seu dirio, no ano de 1965, Merton sublinha que tudo se faz presente neste trabalho de cela, que envolve sintonia fina do corao com a voz de Deus. No siln-cio dessa presena, o foco da ateno que no deixa escapar nenhum dos sons dessa Voz que se faz presente atravs das mediaes do tempo.

    no corao da realidade que Merton busca captar o enigma convidativo do Mistrio que tudo envolve. No faz recursos a abstraes diferenciadas para captar esse segredo inefvel que se encontra em toda parte. Indica apenas a importncia de estar presente, de forma sensvel e atenta, ao precioso canto das coisas. Dizia ele para seus novios, entre os quais Ernesto Cardenal, que a vida contemplativa no podia estar separada

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    da vida concreta, de seus desafios e apelos. E ao contemplativo bastava estar ali e simplesmente viver, com as veias abertas para os sinais dos tempos. Um ensinamento que aprendeu ao longo de sua vida com os grandes mestres zen, entre os quais Suzuki.

    Outra singularidade do itinerrio de Merton, to bem captada por Siblius nesta obra, a ntima relao entre vida contemplativa e ao no mundo, entre kenosis e compaixo. Curioso observar que, quanto mais Merton adentrava na vida eremtica e solitria, mais dilatava sua percepo da bondade de todas as coisas, sendo tocado pela provocao de viver o desafio da alteridade. O aprofundamento da sua vocao contemplativa intensificava e ampliava sua experincia de Deus, cada vez mais envolvida por dimenses inusitadas. Mantinha-se viva sua ideia de que a verdadeira solido no implica ensimesmamento, mas abraa tudo, justamente por ser animada pelo amor. De forma magnfica, a expe-rincia contemplativa joga o mstico novamente no mundo, com um olhar diferenciado, mas num mundo transfigura- do pelo itinerrio interior. Siblius busca mostrar como Merton reinaugura uma perspectiva mstica novidadeira, de encon- tro com Deus na histria: Quanto mais aprofundava sua busca pela transcendncia, mais encontrava o seu tempo, com suas dores e angstias. E, inversamente, quanto mais descobria a seus semelhantes, num abrao cada vez mais amplo tanto na perspectiva inter-religiosa como na perspectiva humana , mais encontrava o divino.

    Vale ainda assinalar o trao dialogal de Merton, tambm acentuado com preciso por Siblius. Ao apelo da contempla-o soma-se a convocao compaixo e a abertura dialogal. Sobretudo nos ltimos anos de sua vida esse apelo ao mundo do outro firmou-se nele com intensidade. De forma particular, sua experincia na sia, no ltimo ano de sua vida (1968),

    Captar omistrionocoraoda real idade

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    abriu horizontes maravilhosos de um dilogo em profundidade e de um ecumenismo transconfessional: Serei melhor catlico se puder afirmar a verdade que existe no catolicismo e ir ainda alm. Vinha movido por uma sede de comunicao em pro-fundidade com o outro. Uma comunicao que no significava ruptura com a tradio, mas o apelo de ampliar as cordas da identidade para se aproximar da dignidade da diferena, e isso implicava a utilizao dos recursos da prpria tradio, mas tambm o empenho de ultrapass-la, na direo do precioso patrimnio e enigma do outro.

    O trabalho de Siblius vem enriquecido com sua ocular multidisciplinar. Algum que vem do mundo das Letras, mas bebe tambm nas guas da Teologia, e consegue navegar com destreza nesses dois mundos. A peculiaridade do itinerrio de Siblius favorece uma ocular singular na captao do especial caminho de Merton: o ritmo de sua converso, sua vinculao ao mundo das Letras, sua abertura esttica, seu flerte com as vanguardas, sua liberdade diante do catolicismo e da Ordem Trapista, sua rica experincia amorosa etc. uma obra que nos favorece acessar esses vrios Mertons desenhados por facetas singulares que no se excluem, mas se somam.

    o leitor que vem presenteado com a riqueza de um tra-balho acadmico tecido com tanta delicadeza e esmero, numa linguagem acessvel e sedutora. Estamos, sem dvida, diante de uma das melhores introdues ao pensamento de Thomas Merton publicadas no Brasil.

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    introduo

    A vida e a obra de Merton, embora bem conhecidas, so ainda pouco estudadas entre ns. Sua experincia e tra-jetria religiosas, bem como seu rico pensamento, no mbito dos estudos acadmicos, ainda hoje esto bastante restritos ao ambiente norte-americano. Felizmente, grande parte de sua obra j foi traduzida para o portugus, e vem sendo reedita-da, o que permite que essa lacuna, entre ns, seja superada. E, nesse sentido, importante estabelecer alguns parmetros hermenuticos diante do desafio de ler Merton nas riquezas e dificuldades que a linguagem da mstica num sentido geral in-terpe ao leitor, bem como as dificuldades e riquezas peculiares aos textos de Merton.

    Thomas Merton nasceu em 31 de janeiro de 1915, no sul da Frana. Se suas memrias da infncia esto permeadas por certa melancolia pelas constantes mudanas de domiclio exigidas pelo estilo de vida dos pais artistas (pintores) e, mais ainda, por ter ficado rfo ainda adolescente, expressam, por outro lado, um trajeto incomum de um garoto cosmopolita, que, ainda menino, vivera na Frana, Inglaterra e EUA. Poste-riormente passou por Cambridge, acabando por se graduar na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Depois de uma busca intensa, consumada na inadivel converso, ingressou

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    na Igreja Catlica em 1938. Trs anos depois, em 1941, en-trou para a comunidade monstica da Abadia Getsmani, em Kentucky, EUA, mosteiro trapista da Ordem Cisterciense da Estrita Observncia (OCSO). Imortalizou essa fase e expe - rincia de sua vida, revelando o grande escritor que se tornaria, em sua conhecida autobiografia A montanha dos sete patamares, publicada em 1948 e hoje reconhecida como um clssico da literatura crist.1 Se continua sendo um livro decisivo na vida de Merton, cujo estrondoso sucesso abriu-lhe um mundo de leitores e recolocou-o na cena da escrita, por outro lado pode ser a rvore cuja imensa copa esconde a floresta, tal foi seu im-pacto e fama, no sabendo muitas vezes, o leitor comum, dos inmeros outros livros de Merton, mais maduros e consistentes. Escrever, ao longo de sua vida monstica, alm de seus tex-tos mais densos sobre espiritualidade, dirios e cartas, hoje j totalmente editados e disponibilizados para o leitor, e que tm se revelado um tesouro para quem pretenda aprofundar sobre seu pensamento. No conjunto da obra, possvel recompor um retrato expressivo e cativante de sua vida, marcada por uma busca intensa de Deus. Sendo um monge contemplativo, recolhido ao dilogo silencioso da orao e da meditao, no se furtou ao dilogo com o mundo, abrindo sua alma e corao com rara franqueza e honestidade. Como mestre espiritual que foi, uma referncia incontornvel nos estudos da espirituali-dade crist e da experincia religiosa num sentido mais geral.

    1 Thomas MERTON, A montanha dos sete patamares, Petrpolis, Vozes, 2005 (abre-viado MSP). Como se perceber da leitura, o objetivo deste tpico no oferecer um roteiro biogrfico detalhado da vida de Merton. Objetiva-se mais levantar alguns elementos de sua existncia, quase sempre registrada em textos, que permitam ao leitor o vislumbre da riqueza e complexidade de sua vida, em suas variadas dimen-ses. Para um estudo aprofundado de sua vida e obra, sugerimos, dentre outros, dois estudos bastante qualificados e reconhecidos na bibliografia mertoniana: Michael MOTT, The Seven Mountains of Thomas Merton, Boston, Houghton Mifflin Company, 1984; e tambm: William H. SHANNON, Silent Lamp: The Thomas Merton Story, New York, Crossroad, 1992.

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    Pode-se mesmo afirmar que sua decisiva contribuio para o cristianismo contemporneo foi promover uma renovao e redimensionamento da vida contemplativa nesta nova cidade dos homens, na conhecida expresso agostiniana retomada por Harvey Cox. Ideia presente de forma explcita no ttulo de um dos livros de Merton: Contemplao num mundo de ao.2 Assim, se por um lado havia um movimento de contemporanizao, como uma possvel resposta aos abalos sofridos pela f, ao qual Merton, no esprito do Vaticano II sinaliza seu apoio em textos bastante incisivos, por outro havia e Merton um dos seus protagonistas , um movimento oposto de renovao da espiritualidade e da contemplao, de reconhecimento do religioso no sentido forte do termo, as esferas do sagrado e do numinoso. Merton dialoga com o mundo, assim como dialoga com uma teologia que naquele momento lanava as pontes para esse dilogo. Debatendo com as ideias de telogos do porte de um Bonhoeffer e de um Rahner, Merton se esfora, em um texto de 1964, por diferenciar uma autntica teologia apoftica de outras expresses como o atesmo ou o secularismo. Ques-tiona a o que ele denomina o mito da contemporaneidade.3 Nesse debate, apropria-se da viso kentica de Deus desen-volvida por Bonhoeffer, e de Rahner incorporar a catego-ria de dispora, como novas possibilidades de se pensar a presena e o sentido da eklesia no mundo contemporneo.

    Uma obra que se estendeu generosamente por dezenas de livros comporta e mesmo exige mltiplas e diversificadas lei-turas. H um Merton escritor, poeta e refinado crtico literrio. H um Merton historiador, basta pensar em sua importante obra guas de Silo, que recompe com qualidade a histria

    2 Thomas MERTON, Contemplao num mundo de ao, Petrpolis, Vozes, 1975 (abreviado CMA).3 Thomas MERTON, A Igreja e o mundo sem Deus, Petrpolis, Vozes, 1970, p. 31-32 (abreviado IMD).

    Introduo

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    dos Cistercienses, desde suas origens a partir do monaquismo de So Bento.4 H um Merton telogo, que revisita alguns te-mas clssicos da teologia. H um Merton figura pblica, cujo alcance e influncia extrapolaram em muito os limites da vida monstica. E h, sobretudo, o Merton da mstica propriamen-te dita, que convida a sensibilidade do leitor a um mergulho profundo e impactante nos grandes temas da espiritualidade: a solido, o silncio e a contemplao; o amor e a compaixo; o desprendimento e a simplicidade; a vida e a morte, o humano e o divino.

    Neste trabalho, busca-se este ltimo: o Merton da mstica, da vida contemplativa, da vida interior. Mas, como se ver, e esta a principal hiptese do estudo, a contemplao em Merton no aquela que levaria a uma negao do mundo, alis, para ele, no h como a vida contemplativa, no seu sentido mais autntico, sequer supor a indiferena. Pois a vida contempla-tiva que plena e autntica aquela que, no encontro com o divino, encontra o humano. O mergulho vertical da alma em Deus amplia os horizontes, alarga o olhar amoroso que vislum-bra o outro em seu desamparo, tanto no que esse desamparo traduz como condio existencial do humano, quanto naquilo que ele aponta como necessidade bsica de sua contingncia corporal, o que implica, naturalmente, enfrentar as grandes questes sociais. Temos a o Merton em busca da solidariedade humana, que assumiu corajosamente o dilogo franco e aberto com o seu tempo, tanto em suas expresses filosficas como nos grandes temas e desafios da cultura, tais como os impactos dos meios de comunicao e da tecnologia, a efervescncia da contracultura, como tambm as questes mais pungentes e conflituosas de seu momento histrico, como a Guerra Fria e a

    4 Thomas MERTON, guas de Silo, Belo Horizonte, Itatiaia, s/d. A edio original de 1949 (abreviado AS).

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    corrida armamentista, a luta pelos direitos civis e a luta contra a violncia, enfim, o Merton da compaixo, da busca pela paz e do compromisso com a histria.

    Nessa trajetria, encontramos um Merton leitor, leitor incansvel da grande literatura Blake, Eliot, Joyce, Kafka, Rilke, Lawrence, Faulkner, Pasternak, Camus e tantos mais, ocupando a um lugar especial os poetas latino-americanos , com a qual dialoga e se debate. E, nessa mesma direo de leitor, encontramos o monge que, em suas leituras, revisita e resgata o dilogo com certa tradio do cristianismo negligen-ciada pela ortodoxia: os padres do deserto, a patrstica grega e latina, o monaquismo antigo, os msticos alemes e espanhis. E nessa fonte que ir buscar os fundamentos teolgicos, bem como a riqueza e diversidade das experincias religiosas cujos pontos de convergncia e afinidades lhe permitiro redimen-sionar a espiritualidade e a contemplao em pleno sculo XX, num gesto por um lado inovador, e por outro representado pela redescoberta e releitura de uma rica tradio que esteve sempre disponvel, mas nem sempre reconhecida em seu justo valor. E nesse mesmo movimento, encontramos o Merton do dilogo ecumnico com msticos ingleses, com a espiritualidade russa, com as comunidades monsticas protestantes. Suas obras dedicadas a esses temas so importantes, pois nesse resgate da rica tradio crist, o monge formula vigorosas intuies. Na mesma direo, hoje se pode reconhecer tambm e recuperar sua extraordinria dimenso da busca inter-religiosa, especial-mente com a tradio oriental do zen-budismo, mas tambm com o taosmo, o sufismo e o judasmo.

    Pode-se tambm falar em termos das diferentes fases da vida de Merton, por exemplo um Merton recm-converso, o Merton diretor espiritual de novios, o Merton eremita, o Merton ati-vista, lembrando, contudo, que essas divises cronolgicas so sempre simplificadoras, pois as temticas so recorrentes, e, seja

    Introduo

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    qual for o momento, ali est o Merton contemplativo, inquieto e buscador. Mas no se pode negar um amadurecimento em seu percurso, e o seu leitor deve estar atento aos movimentos do pensamento de Merton, sobretudo em relao aos sentidos e efeitos de suas novas e mais definitivas experincias. Confor-me se avana, vai-se encontrando um Merton mais sereno, no sentido de intensificar ainda mais a experincia contemplativa que por fim o leva opo radical pela vida eremtica mas, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, encontra-se um Merton mais incisivo em suas opes e intervenes pblicas.

    Tal diversidade traz inevitavelmente tona a questo da leitu-ra de Merton. Para quem se prope mergulhar na sua obra, logo se impe uma questo incontornvel: como ler Thomas Merton? Ler, aqui, no apenas no sentido propedutico, instrumental ou metodolgico, mas naquele sentido mais amplo e profundo de uma atitude hermenutica, a saber, a compreenso de um texto no ato de ler, correspondendo em seu sentido mais pleno a um compreender-se diante da obra. Um dispor-se ao texto, um expor-se ao ganho, mas tambm ao risco da leitura de uma obra sempre provocativa e envolvente. Um dilogo entre leitor e autor, mediado pela obra, marcado pelo trao generoso da troca dadivosa de sentidos.

    Sendo assim, conveniente estar atento s posies enun-ciadas pelo prprio Merton. No poucas vezes ressalta em seus textos um posicionamento de no-telogo. Em outras ocasies, se mostra muito severo em relao a seus prprios escritos. Percebe-se em cada texto tal intensidade, um lanar-se despre-ocupado quanto aos possveis riscos, na atitude mesma daquilo que um ato de f, bem distante ou, melhor ainda, alm de um possvel projeto intelectual que busca a coerncia racional de uma obra, ou a coerncia a todo custo de uma existncia. H sim uma busca, mas muito mais a busca intensa de Deus e o aprofundamento da experincia religiosa. H vibraes, in-

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    tensidades, paradoxos, incoerncias, at contradies. O louco amor de Deus que inunda o monge no silncio eloquente da vida contemplativa muitas vezes ultrapassa e dissolve os limites cognitivos da coerncia e da lgica. O topos outro, as categorias so outras, a lgica outra. Talvez se possa afirmar que, mais do que um logos, o que se tem a uma sabedoria, um saber, a mesma sabedoria que tantas vezes buscou nos padres do de-serto e nos msticos da Antiguidade. Um texto particularmente ilustrativo dessa atitude Ascenso para a Verdade, de 1951.5 Ele dir posteriormente, em carta a Jean Leclercq, que foi um livro no-natural. Acrescenta que estava tentando ser acadmico ou um telogo, e arremata: e isso que no sou.6 O mes-mo dir em relao a outros textos. Parece que a intensidade de seu trabalho interior e o ritmo igualmente intenso de sua escrita concretizada em inmeros textos levavam-no a sempre estar revendo e reelaborando suas posies, muitas vezes num exagerado e, aos olhos do leitor, at mesmo desnecessrio grau de autoexigncia.

    Apontamentos cronolgicos se faro ento presentes, no no intuito de costurar uma forada coerncia, mas muito mais no sentido de acompanhar sua experincia e o movimento de suas reflexes. O traado no linear e evolutivo. Est mais para o movimento circular e verticalizante (em caracol), como a metfora dos sete patamares, de ntida inspirao aligheriana, faz ver. Os dirios, notoriamente, parecem perfazer esse per-curso. H algo de no resolvido, de sempre reelaborado em sua obra. Advertem os organizadores da Enciclopdia Thomas Merton: Nem sempre ele concordava consigo mesmo sobre o que ele escreveu a respeito de algumas questes de importn-

    5 Thomas MERTON, Ascenso para a verdade, Belo Horizonte, Itatiaia, 1958 (abre-viado AsV).6 Thomas MERTON, The School of Charity: Letters on religious renewal and spiritual direction, New York, Farrar/Straus/Giroux, 1990, p. 352 (abreviado SCh).

    Introduo

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    cia, pois ele estava continuamente repensando suas ideias em reas particulares.7 Um exemplo particularmente expressivo desse movimento de reelaborao de um pensamento e de uma experincia a segunda redao que Merton faz de um de seus mais ricos textos sobre a contemplao. Referimo-nos a Sementes da contemplao, escrito em 1949. Doze anos depois, em 1961, Merton publica Novas sementes de contemplao. Diz Merton no prefcio da segunda redao: Esta no apenas uma nova edio de um livro antigo. Em muitos modos um livro inteiramente novo.8 Diz ainda: A segunda redao foi feita numa soledade to grande quanto a primeira. Contudo, a solido do autor modificara-se pelo contato com outras solides; com o sentimento de soledade, a simplicidade, a perplexidade dos novios e dos estudantes de teologia de sua comunidade monstica; com o sentimento de solido de pessoas que no vivem em mosteiros. Com a solido de pessoas fora do seio da Igreja.9 Mas a grande mudana se dar exatamente no prprio emprego da palavra contemplao; diz a esse propsito: A primeira verso [...] confundiu alguns leitores. Um dos fatores de confuso foi que a obra parecia ensinar como tornar-se con-templativo. No foi essa a inteno do autor, pois impossvel ensinar a outro tornar-se contemplativo.10

    H tambm, nas dezenas de livros publicados por Merton, uma impressionante diversidade temtica. Caleidoscpica nos temas e nos estilos: reflexes, artigos, ensaios, poemas (lricos,

    7 William H. SHANNON, Christine M. BOCHEN e Patrick F. OCONNELL, The Thomas Merton Encyclopedia, Maryknoll, Orbis Books, 2002, p. xvii (abreviado TME). Em todo o trabalho, sempre que houver citao de obras indicadas no ingls, ou por no haver traduo em lngua portuguesa ou por se optar pela edio original que no as tradues disponveis, a traduo nossa.8 Thomas MERTON, Novas sementes de contemplao, 2 ed., Rio de Janeiro, Fissus, 2001, p. 1 (abreviado NSC).9 Thomas MERTON, NSC, p. 1.10 Thomas MERTON, NSC, p. 2.

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    narrativos e experimentais), desenhos, dirios, memrias, in-tervenes pblicas. Se alguns de seus textos podem ser carac-terizados como estudos, no o que predomina no conjunto. Essa caracterstica , inclusive, apontada pelos organizadores da Enciclopdia Thomas Merton como a maior dificuldade na tarefa de identificar os temas-chave nos escritos de Merton. Ressaltam os autores: Merton raramente escrevia sistemati-camente a respeito de algum tpico. O que ele tinha a dizer a respeito de alguma questo encontra expresso em muitos lugares diferentes.11 Dentre muitas outras razes, , tambm nesse aspecto, um legtimo representante de seu tempo, um autor que olha sua volta e se dirige ao homem contempor-neo com suas dores e ansiedades, numa linguagem que esse mesmo homem possa entender. Ainda nessa direo, diramos que um tanto quanto incongruente, na perspectiva desse tipo de obra, falar de algum como um possvel mertoniano, um discpulo de seu pensamento ou um continuador de sua obra. Seus textos e seu estilo no o permitem. Nesse sentido, por volta dos anos 1963-64, no auge da projeo pblica de Merton, quando ocorria quase que um culto a Merton, nas palavras de seu bigrafo, o que j ia se tornando um embarao, so inequvocas as palavras do prprio Merton:

    Se existe tal coisa como um Mertonismo, eu suponho

    que sou aquele que deveria estar consciente disso. As

    pessoas que creem nesse termo evidentemente no sa-

    bem quo relutante eu estaria em ter algum repetindo

    em sua prpria vida as misrias da minha. Isso seria vazio,

    um pecado mortal contra a caridade. Eu penso que nunca

    fiz nada para encobrir qualquer falta de um monge para

    conceb-la como uma qualidade desejvel. Certamente

    11 William H. SHANNON, Christine M. BOCHEN e Patrick F. OCONNELL, TME, p. xvii.

    Introduo

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    essa falta de pblico conhecimento, e qualquer um que

    me imita o faz por seu prprio risco. Eu posso lhe prometer

    alguns bons momentos de nu desespero.12

    Merton, pois, no s recusa qualquer atitude nessa direo, como o faz com humor. Alis, um humor caracterstico de seus textos e que merece ser levado em conta ao se refletir sobre a leitura de Merton. um aspecto que se perceber, sobretudo nas citaes literais do prprio Merton. Diria at que a leveza de seu humor evitava o risco de uma sisudez e mesmo os cacoetes de uma piedade afetada, sobretudo em suas meditaes espiri-tuais. Voltando, contudo, questo central aqui, arriscaramos dizer que talvez, no mximo, poder-se-ia falar em ser um ps--mertoniano, expresso que pode sinalizar uma postura mais adequada daquele que no simplesmente repete ou reproduz Merton, mas atualiza seu pensamento e produz novos frutos a partir das sementes por ele lanadas. Assim como ele retomou e redimensionou as tradies que o precederam com as questes abertas de seu tempo, assim seus leitores psteros talvez devam fazer. Pensar e meditar a partir de Merton, com Merton, para alm de Merton.

    Entendemos que o melhor parmetro para acompanhar o percurso existencial de Thomas Merton, bem como seu itine-rrio espiritual, so seus prprios textos, tendo como pano de fundo seus dirios pessoais, densos Journals, editados a partir de 1996. O primeiro volume foi editado por Patrick Hart, con-frade e ltimo secretrio de Merton, que vem editando muitas outras de suas obras e cartas, e hoje reconhecido como um dos maiores estudiosos e conhecedores da obra e do legado de Merton. Como expressa Hart no prefcio desse volume: No h como negar que Thomas Merton foi um inveterado diarista.

    12 MERTON apud Michael MOTT, The Seven Mountains of Thomas Merton, p. 393.

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    Ele aclarava suas ideias ao escrever, especialmente ao manter um dirio. Talvez sua melhor escrita possa ser encontrada em seus dirios, onde expressava o que era mais profundo em seu corao, sem se preocupar com a censura.13 A edio dos Journals, iniciada por Hart e prosseguida por outros especia-listas na obra de Merton, organiza-se em volumes separados por anos e em ordem cronolgica. A cada volume os editores propem um ttulo que de alguma forma represente aquele momento na trajetria de Merton: vol. 1 (1939-1941): Run to the Mountain: The story of a vocation; vol. 2 (1941-1952): Entering the Silence: Becoming a monk & writer; vol. 3 (1952-1960): A Search for Solitude: Pursuing the monks life; vol. 4 (1960-1963): Turning Toward the World: The pivotal years; vol. 5 (1963-1965): Dancing in the Water of Life: Seeking peace in the hermitage; vol. 6 (1966-1967): Learning to Love: Exploring solitude and freedom; vol. 7 (1967-1968): The Other Side of the Mountain: The end of the journey.14 O que se vislumbra a, nesses ttulos, uma percepo global dos vrios momentos de Merton, como se fossem eixos em torno dos quais girava, predominantemente, a preocupao do monge naquele deter-minado momento.

    13 Patrick HART, em Thomas MERTON, Run to the Mountain: The story of a vocation. The Journals of Thomas Merton, volume one 1939-1941, San Francisco, HarperCollins, 1996, p. xii (abreviado RM).14 Alm do vol. 1, mencionado na nota anterior, as referncias dos demais volumes so: Thomas MERTON, Entering the Silence: Becoming a monk and writer. The journals of Thomas Merton, volume two 1941-1952, New York, HarperCollins, 1997 (abreviado ES); Idem, A Search for Solitude: Pursuing the monks life. The journals of Thomas Mer-ton, volume three 1952-1960, San Francisco, HarperCollins, 1996 (abreviado SS); Idem, Turning Toward the World: The pivotal years. The journals of Thomas Merton, volume four 1960-1963. San Francisco: HarperCollins, 1996 (abreviado TTW); Idem, Dancing in the Water of Life: Seeking peace in the hermitage. The journals of Thomas Merton, volume five 1963-1965, New York, HarperOne, 1997 (abreviado DWL); Idem, Learning to Love: Exploring solitude and freedom. The journals of Thomas Merton, volume six 1966-1967, San Francisco, Harper Collins, 1997 (abreviado LL); Idem, The Other Side of the Mountain: The end of the journey. The journals of Thomas Merton, volume seven 1967-1968, New York, HarperOne, 1998 (abreviado OSM).

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    Alm dos dirios, outro importante conjunto de escritos de Merton so suas cartas, grande parte delas j editadas e dispo-nveis ao seu pblico leitor. Edies especficas e pessoais das cartas de Merton com alguns de seus renomados interlocutores j vinham sendo publicadas, mas a edio acima mencionada, disponvel em cinco volumes, tem permitido aos pesquisadores uma compreenso bem mais completa desse aspecto da vida de Merton. Os volumes so: The Hidden Ground of Love, cartas sobre experincia religiosa e preocupaes sociais; The Road to Joy, cartas para novos e velhos amigos; The School of Charity, cartas sobre a renovao religiosa e direo espiritual; The Courage for Truth, cartas para escritores; e, por fim, Witness to Freedom, cartas em tempos de crise.15 Tanto os dirios como as cartas sero retomados e aprofundados frente em tpico especfico.

    possvel, num olhar mais geral, tanto a partir dos dirios e cartas, como do conjunto de suas obras, perceber ao menos trs grandes momentos em Merton: o Merton anterior con-verso; o Merton convertido, da dcada de 1940 e ao longo da dcada de 1950; e, por fim, o Merton da dcada de 1960, de fato uma ltima fase iniciada em 1958. H, no entanto, outras maneiras de dividir os vrios momentos de sua trajetria. O prprio Merton props uma diviso em quatro perodos, no prefcio que fez para a edio de uma coletnea de seus textos, publicada aos moldes americanos com o ttulo de A Thomas Merton Reader, em 1962.16 O primeiro perodo de sua

    15 Thomas MERTON, The Hidden Ground of Love: Letters on religious experience and social concerns, New York, Farrar/Straus/Giroux, 1985 (abreviado HGL); Idem, The Road to Joy: Letters to new and old friends, New York, Farrar/Straus/Giroux, 1989 (abreviado RJ); Idem, The School of Charity: Letters on religious renewal and spiritual direction, New York, Farrar/Straus/Giroux, 1990 (abreviado SCh); Idem, The Courage for Truth: Letters to writers, New York, Farrar/Straus/Giroux, 1993 (abreviado CT); Idem, Witness to Freedom: Letters in times of crisis, New York, Harcourt Brace & Company, 1995 (abreviado WF).16 Thomas P. McDONNEL, A Thomas Merton Reader: Revised Edition, New York, Image Books/Doubleday, 1974, p. 14-15.

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    vida monstica seria o de seu noviciado, entre 1942-1944, um perodo de ajustes e de aprendizado. O segundo perodo teria se iniciado em 1944, quando fez seus primeiros votos, e finalizado em 1949, quando foi ordenado. Nesse perodo, es-creveu algumas de suas importantes obras, como A montanha dos sete patamares (em 1946), Sementes de contemplao (em 1947) e guas de Silo (em 1948). J nesse perodo Merton foi hospitalizado, demonstrando a uma frgil sade, que o acom-panhar por toda a vida monstica. O terceiro perodo teria se iniciado, segundo Merton, em 1949, quando fora ordenado, e se estenderia at 1955, quando se tornou mestre de novios, ressaltando que, j desde 1951, fora indicado para a funo de mestre dos escolsticos . Outras obras importantes foram sendo escritas nesse momento, como Ascenso para a Verdade e Po no deserto (ambas em 1951), e tambm a finalizao de Signo de Jonas (em 1952). Livros como O Po Vivo, Homem algum uma Ilha, Vida silenciosa e Na liberdade da solido (Thoughts in Solitu-de) so do fim desse perodo. O quarto perodo se iniciaria em 1955, quando se tornara mestre dos novios, at o momento em que escrevia o referido prefcio. Nesse perodo, outras obras importantes foram escritas, tais como A sabedoria do deserto, O comportamento dos Titans, Questes abertas e Novas sementes de contemplao. Na esteira dessa diviso proposta por Merton, alguns autores sugerem 1965 como o fim do quarto perodo, iniciando-se, portanto, um quinto perodo, que iria de 1965 a 1968.17 No fim do quarto perodo, outras obras fundamentais vo ser escritas e publicadas, tanto com temticas sociais (como Sementes de destruio e Gandhi e a no-violncia), como textos que antecipavam a nfase inter-religiosa da ltima fase, como Zen e as aves de rapina, tambm textos mesclados, como Reflexes

    17 Por exemplo: James Thomas BAKER, Thomas Merton Social Critic, Lexington, The University Press of Kentucky, 1971, p. 24-25.

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    de um espectador culpado, composto de trechos de seu dirio, e ainda reflexes poticas, tais como Raids on the Unspeakable. O quinto e ltimo perodo continua marcado pela nfase social, quando editar obras como Faith and Violence, composta de ensaios de crtica social; mas, no clima da experincia eremtica que finalmente lhe foi permitida, sobressai sobretudo sua aber-tura cada vez maior para o dilogo inter-religioso que, por fim, o levaria ao Oriente, e algumas experincias radicais e inovadoras com a linguagem literria, como o longo e revolucionrio poema publicado com o ttulo de Cables to Ace.

    Outra diviso possvel aquela adotada pelas biografias a ele dedicadas, como a de Shannon e tambm de Mott. A os bigrafos, no estilo prprio das biografias, elaboram divises cronolgicas mais detalhadas.

    Quanto ao perodo de sua converso, o que se percebe um Merton que mergulha na sua tradio, como que seguindo o conselho de Bramachari, o monge hindu que, como relatado em sua autobiografia, lhe sugerira em 1938: Existem muitos e belos livros msticos escritos por cristos. Voc deveria ler As confisses, de Santo Agostinho, e A imitao de Cristo.18 O que temos nesse perodo (dcadas de 1940 e 1950) so textos bastante situados na linguagem da teologia crist. Ao contrrio do que se poderia imaginar ou esperar, esse recolhimento e o voltar-se para a prpria tradio, na solido da cela e na par-tilha da vida cenobtica, no o levou a um fechamento em seu prprio ethos, em estruturas eclesiais hierrquicas de segurana. Esse recolher-se debater desde cedo com tenses que acaba-ro por direcion-lo para uma postura cada vez mais aberta, consumando um reencontro com o mundo, quando ento assumir atitudes cada vez mais ousadas. Neste momento, sua busca pelo outro provoca uma ntida mudana nas categorias

    18 Thomas MERTON, MSP, p. 180.

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    de pensamento. Comea a transitar por outros territrios, de outro universo e de uma visada mais ampla, inovando no lxico e nas posturas mais arriscadas. A propsito desta fase da vida de Merton, pouco tempo depois de ter recebido, em 1960, autorizao de seus superiores para passar o dia todo sozinho na cabana que ser seu eremitrio, escreve em seu dirio, no dia 25 de novembro de 1961: Ontem tarde, no eremitrio, certamente se instalou uma clareza decisiva. A de que eu devo definitivamente me comprometer com a no cooperao e a oposio guerra.19 Exatamente esse momento tem sido iden-tificado como uma guinada de Merton em direo ao mundo. No h dvida de que estamos diante de um momento decisivo e divisor de guas. Tudo leva a crer que ele est vivendo um momento de agudas crises interiores e de redefinio da ma-neira como cumprir sua vocao. H inclusive uma obra que tem sido indicada como uma espcie de despedida de Merton, tanto dos temas como do estilo de sua escrita desta primeira fase, que The Behavior of Titans.

    Diante de tantas possibilidades de datao, para delimitar com clareza a abordagem desta pesquisa, priorizaremos a vida e obra de Merton de 1948 a 1968. Identificaremos o Merton de 1948, quando publica sua autobiografia, at 1958, quando teve uma experincia transformadora em Louisville, como primeiro Merton. E a partir dessa experincia, em 1958, at 1968, ano de sua morte, referiremo-nos como o segundo Merton. Se bem que, ao propormos uma pesquisa temtica de doutorado, a da contemplao em Merton, essas divises cronolgicas pouco importaro em si mesmas, mas apenas medida que ajudem a compreender como o tema proposto foi sendo formulado e amadurecido ao longo de seu itinerrio espiritual, inseparvel de sua intensa e convicta experincia monstica.

    19 Thomas MERTON, TTW, p. 182.

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    Alm da motivao acadmica da pesquisa, que reconhece seus textos como os mais autorizados, acima de qualquer co-mentrio ou estudo, para melhor compreend-lo, h tambm uma motivao subjetiva, que trazer, para o presente estudo, o mximo possvel da linguagem e do estilo do prprio Mer-ton. Um estudo sobre Merton tambm o momento de se criarem situaes de leitura que permitam um contato direto com seus textos, um exerccio fruitivo que em alguma medida possa evocar a sua presena. Mais do que refletir sobre Merton, refletir a partir de Merton. , inclusive, o que explica a insero em abundncia das palavras do prprio Merton, com citaes intermitentes e, por consequncia, o recurso ao uso das abre-viaturas das obras citadas.

    Outros aspectos chamam a ateno em seus textos. Por exem-plo, a permanente presena da censura e dos censores na sua vida e obra.20 Outro aspecto o da ateno para com as fontes de Merton. Referimo-nos no apenas s fontes diretas que de qualquer forma so percursos obrigatrios para quem vai estudar seus textos, mas tambm a outras possveis influncias, presentes de forma mais implcita. Uma rpida folheada em seus dirios permite detectar um nmero extenso de livros e autores que Merton estava permanentemente lendo, e ele sempre pontua, nos dirios, algum comentrio, algum aprofundamento, algu-

    20 A presena da censura em ortodoxias religiosas bastante comum, e ela tem esta-do particularmente bem presente na milenar histria do cristianismo, seja atravs de um aparelhamento formal, como tem sido, e ainda , corrente no catolicismo, seja atravs de outros mecanismos mais sutis e pouco visveis, como nas tradies protes-tantes. No caso de Merton, dada sua projeo e consequente potencial de influncia sobre seus milhares de leitores, acentuada pela coragem que teve de enfrentar temas polmicos, tanto religiosos como, sobretudo, polticos e sociais, a interveno da censura foi ainda mais presente. O bigrafo Michael Mott informa que os seus traba-lhos passavam por vrios nveis de autorizao, antes de finalmente receberem um ltimo imprimatur, informando ainda que, muito frequentemente, o prprio abade geral da Ordem no liberava a autorizao (cf. Michael MOTT, The Seven Mountains of Thomas Merton, p. 77).

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    ma analogia em relao quele texto ou autor em questo, seja Berdyaev, Kierkegaard, Heschel, Danilou, Evdokmov, Barth, Chardin, os poetas sempre presentes e assim por diante. As referncias que Merton faz em seu dirio a Rosemary Radford Ruether uma scholar e ativista com a qual se correspondeu,21 deixam claro o quanto Merton valorizava a honestidade crist e intelectual, mesmo quando esta expressava alguma discordncia com o seu pensamento, como era o caso dessa interlocutora que o questionara quanto ao modo de compreender a contemplao e a opo pela vida monstica. Dos inmeros autores que Merton l e comenta em seus dirios, percebe-se com nitidez que ele est em busca dessa honestidade no autor, desse pensamento autntico e no superficial, no necessariamente coincidente com o seu. essa mesma exigncia que o leva a dialogar franca-mente com os escritores de seu tempo, cujas crticas a um certo cristianismo institucional Merton no s est disposto a ouvir, como tem a ousadia de acolher. o caso do dilogo que trava com Albert Camus, de cujas leituras Merton nos legou afirmaes como esta: Camus, a conscincia de sua gerao e, de fato, de uma gerao que se segue, uma pedra no sapato dos cristos. Ele deliberadamente o pretendeu ser. Ele um tpico pensador ps-cristo, no sentido de que combina um obscuro senso de certos valores cristos a lucidez e solidariedade dos homens em sua luta contra o mal com uma anlise acusatria e satrica do cristianismo estabelecido e da f.22 O mesmo far com ou-tros escritores. Ao invs da postura cmoda e, em certo sentido covarde, da apologia dos que se apegam de forma intransigente a suas verdades, Merton sempre preferiu o dilogo corajoso e aberto com o seu tempo.

    21 Thomas MERTON, LL, p. 194-197.22 Thomas MERTON, The Literary Essays of Thomas Merton, New York, New Direc-tions, 1985, p. 211 (abreviado LE).

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    Tambm, ao se recorrer possibilidade at de uma herme-nutica para se ler Merton, diferentes categorias das teorias sobre leitura podem ser acionadas, se necessrio, como a bem conhecida no meio da crtica literria, que a categoria da re-cepo. uma categoria que nos ajuda a pensar sobre como os textos so recebidos e apropriados por uma cultura, por uma comunidade de leitores. No caso do Brasil, por exemplo, reconheo pelo menos duas vias e dois modos bem distintos na recepo da obra de Merton. Uma aquela que passa pela apresentao e mesmo mediao de religiosos, em especial das ordens monsticas, incluindo-se a figuras laicas notrias como, por exemplo, Alceu Amoroso Lima. E aqui, preciso dar um realce ao papel que Ir. Maria Emmanuel de Souza e Silva, OSB, teve na recepo de sua obra no Brasil.23 No s pelo fato de ter sido a sua principal tradutora para a lngua portuguesa, mas por ter se tornado uma amiga de Thomas Merton, pertencente a um crculo ntimo de amizade e interlocutores, em diferentes pases, inclusive em momentos mais difceis. O mrito dessa primeira comunidade receptiva inestimvel, inclusive porque, no fora esse grupo, a acessibilidade aos textos de Merton pelo pblico brasileiro talvez tivesse demorado bem mais. No entanto, no de forma proposital, mas pelas prprias circunstncias do campo religioso brasileiro, a recepo a pode ter demarcado uma certa leitura de Merton, mais intraeclesial, por exemplo. Isso pode ter acarretado um confinamento da figura e da obra de Merton apenas ao universo religioso e, mais restritamente, ao das ordens monsticas. Esse no o caso na sociedade norte-americana, onde Merton ocupa a posio de uma figura pblica, de um escritor e poeta reconhecido e que sempre teve um universo bastante amplo de leitores.

    23 Ir. Maria Emmanuel de Souza e SILVA, Thomas Merton: um homem feliz, 2 ed., Petrpolis, Vozes, 2003.

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    esse Merton percebido em sua maior amplitude que, re-centemente, tem chegado a ns. O arco de seus leitores tem se ampliado, tanto no horizonte de uma perspectiva do dilogo inter-religioso, como no horizonte ainda maior do dilogo com a sociedade e com a cultura. Sociedade contempornea, como se tem destacado, marcada no pelo fim do religioso, e sim pelo seu retorno ou sua humanizao. A pessoa de Merton e seus livros possuem uma notvel atualidade com este campo mais amplo e aberto de uma espiritualidade ou religiosidade menos institucionalizada. Para usar a expresso de Umberto Eco, poder-se-ia afirmar que os textos de Merton se apresentam ao leitor como uma obra aberta, dirigidos a todos e voltados para uma espiritualidade no tempo.

    Somado aos aspectos ressaltados acima, preciso ainda lembrar que se est falando de textos que procuram refletir e adensar as experincias e intuies de um verdadeiro mstico, no obstante ele mesmo nunca tenha se colocado explicita-mente nessa posio, o que nos exige o enfrentamento de uma questo j bastante consagrada nos estudos de mstica, e que aqui tambm se faz necessrio ser revisitada, que a questo da linguagem mstica.24 Nesse sentido, e numa visada hermenutica, propomos reconhecer seus textos numa tipologia discursiva, a qual denominaremos discurso mstico, exigindo, pois, uma atitude de leitura compatvel com essa discursividade. Para ler Merton, um autntico mstico do sculo XX, preciso se colocar sensivelmente diante das difceis relaes entre linguagem e experincia religiosa. Como afirma Ricoeur, em outro contex-to e a propsito da interpretao em uma fenomenologia da

    24 Cf., por exemplo: Raimon PANIKKAR, cones do mistrio: A experincia de Deus, So Paulo, Paulinas, 2007, p. 29-48. Tambm: Faustino TEIXEIRA (org.), No limiar do mistrio: mstica e religio, So Paulo, Paulinas, 2004. Idem, Nas teias da delicadeza: Itinerrios msticos, So Paulo, Paulinas, 2006. E ainda: Raymond BAILEY, Thomas Merton on Mysticism, New York, Doubleday & Company, 1975.

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    religio, mas cuja observao aqui nos parece vlida: Todas as interpretaes so igualmente vlidas nos limites da teoria que funda as regras de leitura em questo.25 Transpondo para este projeto, entende-se que pertinente, seno recomendvel, situar nossa leitura de Merton no quadro de certos parmetros de leitura, no interior de uma arquitetura do sentido nos textos msticos. Como tem sido apontado, o discurso mstico coloca o leitor perante a delicada questo da inefabilidade. Estamos a no temerrio terreno daquela ordem de experincia que ul-trapassa os limites do dizer, que toca as margens do sentido, as fronteiras de um inapreensvel. O numinoso, o inefvel, o que transcende. Pode-se pensar aqui em algumas formas do dizer que tentaram tocar nas bordas disto que transcende e escapa. Contornando essa inefabilidade do sublime, configuram-se discursos que possibilitariam falar do divino, tais como o mito, as narrativas e a poesia. E aqui merece considerao especial o caso notvel e, em certo sentido, desconcertante, da chamada teologia negativa, uma linguagem que esbarra no inominvel. A teologia negativa postula que Deus invisvel, incognoscvel e no pode ser nomeado. O paradoxo que ela tem conscincia de que no pode falar de Deus, no entanto fala. A incognoscibilidade de Deus tem profundas repercusses na linguagem. A comear pelo fato de que Deus no pode ser nomeado, mas preciso falar, na medida do possvel. Recorre-se a a uma linguagem que faz uso do superlativo e do oximoro, das hiprboles, metforas e paradoxos. A impossibilidade de alcanar Deus, combinada com o esforo constantemente reite-rado para alcan-lo, leva a linguagem a diferentes movimentos e ao recurso a um pensamento metafrico. A teologia negativa vivencia intensamente os limites da linguagem. Linguagem

    25 Paul RICOEUR, O Conflito das Interpretaes: ensaios de hermenutica, Rio de Janeiro, Imago, 1978, p. 23.

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    paralela, repetio, o reconhecimento da impotncia. Uma luta constante com esses limites. Deus nada e tudo. A revelao como ocultamento. O xtase como noite escura. O gozo como sofrimento. A linguagem, em ltima instncia, se encaminha para o silncio. Nessa fronteira pode-se lembrar o clssico A nuvem do no saber, bem como msticos bem reconhecidos pela tradio crist, como Gregrio de Nissa, Mestre Eckhart e Angelus Silesius, So Joo da Cruz, Santa Teresa de vila e mais outros extraordinrios. No h como no dizer, nem que seja para lidar com essa falta. No mergulho para o nada, os balbucios extticos acabaram por afogar-se num dizer infind-vel. Para lidar com os limites do sentido, da compreenso e da expresso, a sada no partir para o irracional, para o nonsense, ainda que, como se expressava Santa Teresa de vila, as pala-vras em deriva, no xtase da experincia mstica, muitas vezes soem como disparates. No h alternativas seno recorrer e refazer, pela linguagem, o percurso existencial da experincia e insistir nesse encontro com a palavra. A experincia religiosa est sempre lidando com esse possvel excesso de sentido, j que a ideia mesma de transcendncia toca nisso que ultrapassa o humano, embora se volte para iluminar esse mesmo humano, cercar-lhe de sentido. Thomas Merton, de forma explcita, bebe nessa preciosa fonte da tradio espiritual crist, dialoga com ela e a atualiza. No prefcio da edio de Sementes da contemplao, no incio dos anos 1950, Merton j alertava para a necessidade de se levar em conta que a linguagem daquela obra no a da dogmtica, nem da cincia, mas a da experincia mstica que explora as figuras de linguagem no limite.

    Difceis, mas fascinantes, questes para as quais o leitor de Merton precisa estar atento. Em uma obra como Ascenso para a Verdade, de 1951, ao mergulhar na experincia mstica de So Joo da Cruz, Merton vai longe na reflexo sobre esses temas, deixando para o leitor a ntida certeza do quo familiarizado

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    Sibl ius Cef as Pereir a

    estava com os desafios da teologia negativa. Ser possvel, por exemplo, distinguir o falar de Deus mesmo que de forma apoftica , do relacionar-se com Deus, que seria a experincia da contemplao? Em um mundo marcado pelo secularismo e atesmo, poder-se-ia falar de um Deus algumas vezes experien-ciado misteriosamente como ausncia?

    Enfim, em Merton, a profundidade penetrante do contempla-tivo se une voz do poeta, legando-nos uma linguagem mstica inaugural, contempornea, mas ao mesmo tempo deitando fundas razes nos sulcos de uma longa tradio.

    Ainda uma observao introdutria. O trabalho est estru-turado em duas partes, possuindo cada parte trs captulos: Parte I A contemplao: vida plena em Deus; Parte II A con-templao no tempo e na histria. Contudo, no necessariamente a primeira parte representa, exclusivamente, um voltar-se para si, para s ento e depois voltar-se para o mundo. Tambm no contemplativo que mergulha no absoluto j est presente o monge inquieto, sempre atento s dores do mundo. De fato, h uma simultaneidade, ou ao menos uma permanente presena, dos dois movimentos. Evidncia mais clara disso talvez seja o fato de que o trabalho de cela, abordado nesta primeira parte da pesquisa e que talvez seja a melhor expresso do exerccio contemplativo como vivncia interior, ocorrer mais plena-mente, factualmente falando, no perodo posterior da vida de Merton, quando ento se engaja na luta social, abordado pelo estudo na Parte II.

    Sendo assim, a concluso que se impe de que, em Merton, a oposio transcendncia/imanncia um falso dilema.