thomas mann - a montanha mágica

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A Montanha Mágica Tradução de HERBERT CARO ThomasMann 3a impressão Áá EDITORA NOVA FRONTEIRA Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EmTORI. NOVA FRONTEIRA S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. M246m 2.ed. Titulo original: DER ZALJBERIBERG © 1924 by S. Fischer Verlag, Berlin © renewed 1952 by Thomas Mann EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo CEP: 22251-050 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. (21) 537-8770 - Fax: (21) 537-2659 http://www.novafronteira.com.br e-mail: [email protected] Equipe de produção Leila Name Regina Marques Sofia Sousa e Silva Michelle Chao Izabel Aleixo Marcio Araujo Revisão Angela Nogueira Pessôa Marfo Luis Grangeia Ramos Alexandre Rodrigues Jorge Nilo Martins Fernandez Diagramação Cálamo Produçdo Editorial Capa e projeto gráfico PI1DI Design CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Mann, Thomas, 1875-1955 A montanha mágica / Thomas Mann ; tradução de Herbert Caro. - 2.ed. - Rio de janeiro : Nova Fronteira, 2000 992 p. - (Coleção Thomas Mann) Tradução de: Der Zauberberg ISBN 85-209-1096-3 1. Romance alemão. I. Caro, Herbert. II. Título. III. Série. CDD 833 CDU 830-3 SUMAR10 PROPOSIT0.................................................. .............................................7 PRIMEIRO CAPÍTULO

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O Irmão

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A Montanha Mgica Traduo de

HERBERT CARO ThomasMann

3a impresso

EDITORA

NOVA FRONTEIRA

Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela EmTORI. NOVA FRONTEIRA S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode

ser apropriada

e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor

do copirraite.

M246m 2.ed.

Titulo original: DER ZALJBERIBERG 1924 by S. Fischer Verlag, Berlin renewed 1952 by Thomas Mann

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Bambina, 25 - Botafogo CEP: 22251-050 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. (21) 537-8770 - Fax: (21) 537-2659 http://www.novafronteira.com.br

e-mail: [email protected]

Equipe de produo Leila Name Regina Marques Sofia Sousa e Silva Michelle Chao Izabel Aleixo Marcio Araujo

Reviso Angela Nogueira Pessa Marfo Luis Grangeia Ramos Alexandre Rodrigues Jorge Nilo Martins Fernandez

Diagramao Clamo Produdo Editorial

Capa e projeto grfico PI1DI Design

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Mann, Thomas, 1875-1955

A montanha mgica / Thomas Mann ; traduo de Herbert Caro. - 2.ed. - Rio de janeiro : Nova Fronteira, 2000

992 p. - (Coleo Thomas Mann)

Traduo de: Der Zauberberg ISBN 85-209-1096-3

1. Romance alemo. I. Caro, Herbert. II. Ttulo. III. Srie.

CDD 833 CDU 830-3

SUMAR10

PROPOSIT0...............................................................................................7

PRIMEIRO CAPTULO

A chegada ................................................................................................. 9 Nmero 34 ............................................................

................................ 1 8 No restaurante ........................................................................................ 2 2

SEGUNDO CAPTULO

Da pia batismal e dos dois aspectos do av ................................................ 3 ODa casa dos Tienappels e do estado moral de Hans Castorp .......................

43

TERCEIRO CAPITULO

Ensombramento pudico .......................................................................... 5 5 O caf da manh............. ............,......................................

,.................. 58 Brincadeira de mau gosto. Vitico. Hilaridade interrompida ...................... 68 Sat ...-...............................................................

................................... 7 9 Sutileza do pensamento ........................................................................... 91 Uma palavra de mais

............................................................................... 9 9 Uma femea, naturalmente! ....................................................................

104 O sr. Albin ........................................................................................... 110 Sat faz propostas desonrosas ......................................

............................ 114

QUARTO CAPITULO

Compra necessria .....................................,.......................................... 129 Excurso sobre o sentido do tempo ............................................

............. 141 Hans Castorp faz uma tentativa de conversao em francs ...................... 146

6

ThomasMann

Politicamente suspeita! .......................................................................... 152 Hippe .......................................................................

........................... 159 Anlise ................................................................................................. 171 Dvidas e ponderaes

.......................................................................... 180 Conversas mesa ..................................................................................

185

Temor nascente. Dos dois avs e do passeio de barca ao crepsculo ......... 194 O termmetro.' 221

A Montanha Mgica

PROPSITO

QUINTO CAPTULO

Sopa eterna e clareza repentina .............................................................. 251 "Deus meu, eu veio!" ............................................................

............... 279 Liberdade ................................................................................................... 301 Caprichos de Mercrio ........................

....................................................... 309 Enciclopdia ...............................................................................................

323 Hurnaniora ................................................................................................... 343 Pesquisas ...................................................

.................................................. 365 Dana macabra ...........................................................................................

392 Noite de Walpurgis ....................................................................................440

SEXTO CAPTULO

Transformaes .......................................................................................... 470 Mais algum ..........................................................

..................................... 502 Da cidade de Deus e da redeno pelo mal ................................................. 528 Irascibilidade e mais uma

coisa sumamente chocante .................................. 562 Assalto rechaado ........................................................................................

580 Operationes spirituales ................................................................................... 600 Neve ...........................................................

............................................... 638 Como um soldado, como um valente ......................................................... 680

STIMO CAPTULO

Passeio pela praia ........................................................................................ 739 Mynheer Peeperkorn..................................................

................................749 Vingt et un...................................................................................................760 Mynheer Peeperkom

(continuao) .......................................................... 786 Mynheer Peeperkom(fim).....................................................................

842 O grande tdio ........................................................................................... 859 Abundncia de harmonia ..........................................

.................................. 874 Coisas muito problemticas ........................................................................ 899 A grande irritao

....................................................................................... 939 Otrovo ...............................................................................

...................... 972

Queremos narrar a vida de Hans Castorp no por ele, a quem o leitor em breve conhecer como um jovem singelo, ainda que simptico, mas por amor a esta narrativa,

que nos parece em alto grau digna de ser relatada. A favor de Hans Castorp convm, entretanto, mencionar que esta a sua histria, e que h histrias que no acontecem

a qualquer um. Os fatos aqui referidos passaram-se h muitos anos j. Esto, por assim dizer, recobertos pela ptina do tempo, e em absoluto no podem ser narrados

seno na forma de um remoto passado.

Isso talvez no seja um inconveniente para uma obra deste gnero, mas antes uma vantagem; necessrio que as histrias j se tenham passado. Poderamos at dizer

que, quanto mais se distanciam do presente, melhor correspondero sua qualidade essencial e mais adequadas sero ao narrador, este mago que evoca o pretrito.

Acontece, porm, com a histria o que hoje em dia tambm acontece com os homens, e entre eles, no em ltimo lugar, com os narradores de histrias: ela muito mais

velha que seus anos; sua vetustez no pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa, por revolues em torno do Sol. Numa palavra, no propriamente

ao tempo que a histria deve o seu grau de antiguidade e com esta observao feita de passagem queremos aludir ao carter problemtico e peculiar duplicidade

desse elemento misterioso.

Mas, para no se obscurecer artificialmente um estudo de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avanada de nossa hist-

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ThomasMann

ria provm do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripcia e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa conscincia... Desenrola-se

ou para evitarmos propositadamente qualquer forma de presente desenrolou-se numa poca transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande

Guerra, cujo deflagrar marcou o comeo de tantas coisas que ainda mal deixaram de comear. Passa-se, pois, antes desse perodo, se bem que no muito antes. No entanto,

no ser o carter de antiguidade de uma histria tanto mais profundo, perfeito e lendrio, quanto mais prxima do presente ela se passar? Alm disso, poderia ser

que tambm sob outros aspectos a nossa histria, pela sua natureza ntima, tenha isto e aquilo em comum com a lenda.

Narr-la-emos pormenorizadamente, com exatido e mincia, j que a sua natureza cativante ou enfadonha jamais depende do espao ou do tempo que ela exige. Sem medo

de sermos acusados de meticulosidade, inclinamo-nos, pelo contrrio, a opinar que realmente interessante s aquilo que tem bases slidas.

No ser, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminar a histria de Hans Castorp. No lhe bastaro para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco

sete meses. Melhor ser que ele desista de computar o tempo que decorrer sobre a Terra, enquanto esta tarefa o mantiver enredado. Decerto no chegar - Deus me

livre a sete anos.

Dito isto, comecemos.

A CHEGADA

Um jovem singelo viajava, em pleno vero, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no canto dos Grises. Ia de visita, por trs semanas. Mas de Hamburgo at

essas alturas a viagem e longa, demasiado longa, na verdade, para uma estada to curta. preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da

Alemanha meridional at a beira do lago de Constana, cujas ondas saltitantes so transpostas de navio, por sobre abismos outrora considerados insondveis. A partir

dali torna-se demorada a viagem que at esse ponto se realizava rapidamente, em linha quase reta. H delongas e complicaes. Na localidade de Rorschach, j em territrio

suo, voltamos a confiar-nos viao frrea; mas, por enquanto no se progride alm de Landquart, pequena estao alpina, onde se precisa fazer baldeao. um

trem de bitola estreita o que ali tomamos depois de prolongada espera numa paisagem varrida pelo vento e desprovida de encantos. No momento em que se pe em movimento

a locomotiva de pequeno porte, mas evidentemente de extraordinria fora de trao, comea a parte deveras aventurosa da viagem, uma escalada brusca e penosa que

parece no ter fim. A estao de Landquart acha-se situada a uma altura relativamente moderada. A partir dela, porm, entra-se na prpria montanha, por uma estrada

rochosa, spera, angustiante.

Hans Castorp eis o nome do referido jovem estava sozinho num pequeno compartimento forrado de cinza, onde tambm se

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encontravam sua maleta de couro de crocodilo (presente de seu tio e pai de criao, o cnsul Tienappel, cujo nome convm mencionar desde j), bem como o casaco de

inverno, a balouar suspenso num gancho, e o cobertor de viagem enrolado. Estava sentado junto janela aberta, e como a tarde se vinha tornando cada vez mais fresca,

levantara rapaz mimado e franzino que era a gola do sobretudo de vero, forrado de seda e de corte amplo e moderno. A seu lado, no assento, jazia uma brochura

intitulada Ocean Steamships, na qual Hans Castorp, durante as primeiras horas de viagem, de vez em quando lanara um olhar; agora, porm, o livro permanecia ali

abandonado, enquanto o hlito da locomotiva arquejante, ao entrar pela janela, salpicava-lhe a capa de partculas de carvo.

Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um jovem que ainda no criou razes firmes na vida do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar

seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava, enquanto um fiacre o levava estao. O espao que, girando e

fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela foras que geralmente se julgam privilgio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses

ntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espao gera o olvido; porm o faz, desligando

o indivduo das suas relaes e pondo-o num estado livre, primitivo; chega at mesmo a transformar, num s golpe, um pedante ou um burguesote numa espcie de vagabundo.

Dizem que o tempo como o rio Lete; mas tambm o ar de paragens longnquas representa uma poo semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, no deixa de

ser mais rpido.

Hans Castorp ia passando por experincias anlogas. No tivera a inteno de levar essa viagem muito a srio e de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquid-la

depressa, porque tinha que ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar a sua vida anterior exatamente no ponto em que a abandonara por um instante.

ThomasMann

A Montanha Mgica

Ainda ontem se movimentara dentro do costumeiro crculo de idias; ocupara-se com os acontecimentos mais recentes o seu exame final e com o futuro imediato -

sua entrada na vida prtica, como funcionrio da firma Tunder & Wilms (Estaleiros, Fbrica de Mquinas e Caldeiras). Com o mximo de impacincia que seu temperamento

lhe permitia, procurara olhar para alm das semanas vindouras. Nesse momento, porm, parecia-lhe que as circunstncias exigiam dele plena ateno, no lhe sendo

licito menosprez-las. Essa sensao de ser alado a regies cujos ares nunca respirara, e onde, como sabia, reinavam condies de vida particularmente rarefeitas

e reduzidas, a que em absoluto no estava acostumado essa sensao comeava a excit-lo, a ench-lo de certa angstia. O torro natal e a rotina de sempre haviam

ficado no somente para trs, muito para trs, mas sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascenso continuava a afast-los mais ainda. Pairando entre eles

e o desconhecido, Hans Castorp perguntava-se como passaria l em cima. Talvez fosse imprudente e prejudicial para ele, que nascera a poucos metros acima do mar e

se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar to subitamente a esses stios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude mdia.

Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez l em cima pensava -, devia-se viver como em toda parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante

a escalada, as esferas imprprias em que se encontrava. Hans Castorp olhou pela janela. O trem serpenteava, sinuoso, atravs de um desfiladeiro estreito. Viam-se

os primeiros vages, via-se a locomotiva voinitando, no seu esforo, golfadas de fumaa parda, esverdeada e negra que logo se dissipavam. Nas profundidades, direita,

murmuravam cursos d'gua; esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um cu cinzento como pedra. Tneis tenebrosos iam desfilando,

e quando reaparecia a luz, rasgavam-se dilatados abismos com povoados no seu fundo. Logo se fechavam os abismos, seguidos por novos desfiladeiros com restos de neve

nas gretas e fendas. Havia paradas diante das casinhas miserveis de estaes peque-

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ThomasMann

A Montanha Mgica

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nas; surgiam desvios onde o trem dava marcha r, o que produzia um efeito desnorteante, j que era dificil saber em que direo se ia e recordar os pontos cardeais.

Abriam-se grandiosos panoramas do universo de cumes alpinos, um amontoado solene e fantasmagrico, que o trem procurava alcanar e galgar; e logo no prximo meandro

da estrada voltavam a subtrair-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trs a zona das rvores frondosas e, se no se enganava, tambm a dos pssaros

canoros. Esta idia de cessao e empobrecimento fez com que ele, acometido de um ligeiro acesso de vertigem e mal-estar, cobrisse por dois segundos os olhos com

a mo. Mas isso passou. Viu ento que terminara a ascenso; estava vencido o ponto culminante do passo. O trem corria confortavelmente no fundo plano de um vale.

Eram aproximadamente oito horas. Ainda havia luz. Na paisagem longnqua apareceu um lago de guas cinzentas. Das suas margens subiam pinheirais negros pelas encostas

das montanhas adjacentes, tornando-os mais ralos a maior altura, acabando-se aos poucos e dando lugar rocha calva, envolta em brumas. O trem parou numa estaozinha;

era Davos-Dorf, segundo Hans Castorp ouviu gritar. Dentro em pouco chegaria ao seu destino. De repente, porm, ressoou a seu lado a voz de Joachim Ziemssen, a voz

displicente, liamburguesa, de seu primo, que dizia:

- Boa tarde! Pode descer, vamos. - Olhando pela janela, viu na plataforma Joachim em pessoa, trajando um sobretudo marrom, sem chapu, e de um aspecto to sadio

como nunca lhe vira. Joachim riuse e tornou: - Vamos, pode sair, no faa cerimnia.

- Mas se ainda nem cheguei! exclamou Hans Castorp estupefato e permanecendo sentado.

- No, senhor, j chegou. Estamos na aldeia. Daqui, o sanatrio fica muito mais perto. Tomei um carro. Passe-me a bagagem. Rindo, um tanto confuso pelo imprevisto

da chegada e do encontro com o primo, Hans Castorp entregou-lhe a maleta e o casaco de inverno, o cobertor enrolado em volta da bengala e do guarda-chuva,

e finalmente o Ocean Steamships. A seguir percorreu o estreito corredor do vago e saltou para a plataforma, a fim de trocar com o primo saudaes propriamente ditas,

de carter mais ntimo, que, entretanto, se efetuaram sem exuberncia, como convm a pessoas de maneiras frias e reservadas. Parece estranho, mas desde cedo ambos

haviam evitado chamar-se pelos prenomes, exclusivamente porque temiam uma cordialidade excessiva. Como, porm, no ficava bem trataremse pelo nome de famlia, limitavam-se

ao voc, e esse hbito se arraigara em ambos os primos.

Um homem de libr e bon agaloado observou como eles se apertavam as mos o jovem Ziemssen em atitude militar depressa e com algum acanhamento. Aproximou-se

ento para pedir o certificado da bagagem de Hans Castorp. Era o porteiro do Sanatrio Internacional Berghof Prontificou-se a buscar na estao de Davos-Platz a

mala do hspede, enquanto os dois senhores com o carro se dirigissem diretamente ao sanatrio, para jantar. O homem coxeava fortemente, de modo que a primeira pergunta

que Hans Castorp fez a Joachim Ziemssen foi esta:

- um veterano de guerra? Por que coxeia assim?

- o que voc pensa retrucou Joachim com certa amargura. - Um veterano de guerra! O homem tem, ou pelo menos teve, o mal no joelho. Foi por isso que lhe extraram

a rtula.

Hans Castorp procurou refletir o mais rpido possvel.

- Ah, sim disse. Enquanto prosseguia no caminho, ergueu a cabea e lanou um rpido olhar para trs. - Mas acrescentou voc no me far acreditar que ainda

sofre daquela coisa. At parece que j usa gales e acaba de voltar das manobras. - E olhou o primo de soslaio.

Joaquim era mais alto e mais espadado do que ele, um modelo de fora juvenil e como que talhado para a farda. Representava aquele tipo bem trigueiro que sua loura

ptria no raro produz. Sua tez, j por natureza bastante morena, estava tostada pelo sol e adquirira uma cor quase brnzea. Com os grandes olhos negros e o bigodinho

escu-

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ro sobre os lbios cheios, bem conformados, seria positivamente belo, no fossem as orelhas muito despegadas. Essas orelhas haviam sido seu nico desgosto, a grande

dor da sua vida at certo momento. Agora tinha outras preocupaes. Hans Castorp continuou:

- Voc vai regressar comigo, no ? No vejo nada que o possa impedir.

- Regressar com voc? perguntou o primo, fitando-o com os olhos grandes que sempre haviam sido suaves, mas durante esses cinco meses tinham assumido uma expresso

um tanto cansada, quase melanclica. - Com voc? Quando?

- Ora, daqui a trs semanas.

- Compreendo, voc j pensa em regressar respondeu Joachim. - Espere um pouco; mal acaba de chegar. Trs semanas representam quase nada para ns aqui em cima,

mas para voc que vem de visita e tenciona demorar-se s trs semanas, uma poro de tempo. Trate de se aclimatar primeiro. No tardar a notar que no assim

to fcil. E o clima no a nica coisa estranha que existe aqui. Voc encontrar muita coisa nova, sabe? Comigo, isso no vai to depressa como voc imagina. "Regressar

daqui a trs semanas" uma idia l de baixo. Tenho a pele tostada, sim senhor, mas isto vem principalmente do sol refletido pela neve e no significa grande coisa,

como Behrens sempre afirma. No ltimo exame geral, ele disse ter quase certeza que eu teria de ficar ainda uns seis meses.

- Seis meses? Est louco? gritou Hans Castorp. Diante da estao que no era muito mais que uma espcie de telheiro, instalaram-se no cabriol amarelo que os esperava

numa praa pedregosa. Enquanto os dois baios se punham em movimento, Hans Castorp remexia-se, cheio de indignao, no assento mal estofado. - Seis meses? Mas j

faz quase seis meses que voc est aqui. No se tem tanto tempo assim...

- Pois , o tempo... disse Joachim, olhando para a frente e meneando a cabea repetidas vezes, sem se preocupar com o sincero agastamento do primo. - Aqui no

fazem muita cerimnia com o

ThomasMann

A Montanha Mgica

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tempo da gente. Voc no tem idia. Trs semanas so para eles como um dia, vai ver. Tudo isso se aprende e... acrescentou - ...aqui se modificam todas as nossas

concepes.

Hans Castorp no cessava de contemplar-lhe o perfil.

- Mas voc se restabeleceu maravilhosamente disse, dando de ombros.

- Acha? respondeu Joachim. - No mesmo? Tambm o creio continuou, encostando-se no espaldar, para logo voltar posio anterior. - Vou melhor sim explicou

-, mas ainda no estou bem. esquerda, em cima, onde antes se ouviam estalidos, nota-se agora apenas uma respirao um pouco rude, que no inspira cuidados. Mas

aqui, mais para baixo, percebe-se um ronco muito forte, e no segundo espao intercostal h tambm rudos.

- Que grande cientista se tornou voc! disse Hans Castorp. - Pois . Sabe Deus que uma triste cincia. Quem me dera tla esquecido no servio militar replicou

Joachim. - Mas, por enquanto ainda expectoro esputo acrescentou, dando de ombros, com um gesto ao mesmo tempo resignado e veemente que no lhe ficava bem. A seguir

mostrou ao primo um objeto que tirou pela metade do bolso interior do sobretudo, para logo guard-lo novamente; era um frasco chato, bojudo, de vidro azul, com um

fecho de metal. - A maioria de ns, aqui em cima, usa isto. Batizaram-no at com um nome especial, um apelido bem engraado. Est olhando a paisagem?

Era o que Hans Castorp fazia. Deu sua opinio: - Magnfica.

- Acha? perguntou Joachim.

Haviam seguido na direo do eixo do vale, por um trecho de caminho espaadamente ladeado de habitaes e paralelo ao leito da via frrea. Depois, dobrando esquerda,

tinham cruzado os trilhos de bitola estreita e atravessado um curso d'gua. Nesse instante subiam a trote um atalho pouco ngreme, rumo a uma encosta coberta de

bosques. Ali, numa meseta um tanto proeminente, de pouca altura, destaca-

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va-se um edificio comprido, encimado por uma torre em cpula, com a fachada dirigida para sudeste. Numerosas varandas davam-lhe de longe um aspecto esburacado, poroso

como uma esponja. As primeiras luzes acabavam de ser acesas, enquanto o crepsculo avanava rapidamente. J se esvara um suave arrebol, que durante algum tempo

animara o cu toldado. Reinava na natureza aquele estado de transio, descolorido, melanclico, desprovido de vida, que precede imediatamente o anoitecer definitivo.

O vale povoado, extenso e levemente sinuoso, iluminava-se em toda parte, tanto no fundo como nas bordas, sobretudo na direita que formava uma salincia, com os terraos

da encosta salpicados de construes. A esquerda, algumas veredas subiam atravs dos prados, para se perderem na baa negrura dos pinheirais. Os bastidores mais

distantes das montanhas, prximos da sada do vale, que ali se estreitava, exibiam-se num frio azul de ardsia. Com o vento que acabava de levantar-se, o frescor

da noite comeava a se fazer sentir.

- No! Para falar com franqueza, no acho a paisagem assim to formidvel disse Hans Castorp. - Onde esto as geleiras, os picos brancos e as cordilheiras gigantescas?

No me parece que essas montanhas a sejam muito altas.

- Pelo contrrio, so bem altas retrucou Joachim. - Voc nota quase em toda parte o limite das rvores. Ele se delineia com absoluta nitidez. Terminam os pinheiros,

e com isso acaba-se toda a vegetao. Como voc v, pura rocha. Por ali, direita desse pico que o Schwarzhorn, aparece at uma geleira. Voc enxerga uma coisa

azul? No l muito grande, mas uma geleira em regra, a Scaleta. O Pic, o Michel e o Tinzenhorn, naquela abertura (no se pode vlos daqui), tambm ficam cobertos

de neve durante o ano inteiro.

- De neve eterna disse Hans Castorp.zzz

- Pois , neve eterna, se assim o quer. No se pode negar que tudo isso bastante alto. E no se esquea que ns mesmos nos achamos a uma altura espantosa. Mil

e seiscentos metros acima do nvel do mar. Assim, as elevaes no nos impressionam tanto.

ThomasMann

A Montanha Mgica

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- Sim senhor, que ascenso! Fiquei com uma angstia, que lhe conto! Mil e seiscentos metros! So mais ou menos cinco mil ps, se no me engano. Nunca na vida estive

a tal altura. - E cheio de curiosidade, Hans Castorp aspirou profundamente aquele ar estranho, como que para prov-lo. Era fresco, e nada mais. Carecia de aroma,

de sabor, de umidade. Tragava-se facilmente e nada dizia alma.

- timo! exclamou Hans Castorp cortesmente.

- Sim, esse ar tem grande fama. De resto, a paisagem no se apresenta, esta noite, sob o seu aspecto mais favorvel. s vezes est muito mais bonita, sobretudo com

neve. Mas a gente acaba por se cansar dela. Ns todos, aqui em cima, pode acreditar, estamos fartos dela, indizivelmente fartos disse Joachim, e sua boca torceu-se

numa expresso de nojo, que parecia exagerada e violenta, e novamente no lhe ficava bem.

- Voc tem um jeito to esquisito de falar! disse Hans Castorp. - Esquisito? perguntou Joachim com certa apreenso, voltando-se para o primo.

- No, no! Desculpe! Tive essa impresso so por um momento apressou-se Hans Castorp a dizer. Ele se referira expresso "Ns, aqui em cima", que Joachim j empregara

umas quatro ou cinco vezes, e que de certa forma lhe causava impresso deprimente e chocante.

- Como ve, o nosso sanatrio est situado ainda mais alto que a aldeia continuou Joachim. - Cinqenta metros. O prospecto diz "cem", mas so apenas cinqenta.

O sanatrio que fica mais alto o Schatzalp, l do outro lado. No se v daqui. No inverno, eles tm de transportar os cadveres em trens, porque os caminhos se

tornam impraticveis...

- Os cadveres? Ah sim!... Vejam s! exclamou Hans Castorp, e de repente rebentou em riso, um riso violento, irreprimvel, que lhe sacudia o peito e fez com que

o rosto enrijecido pelo vento frio se contrasse num trejeito dolorido. - Em trens? E voc me conta essas coisas assim, sem mais nem menos? Parece que se tornou

muito cnico nesses cinco meses.

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- Qual cnico! replicou Joachim, dando de ombros. - Que que voc quer? Os cadveres pouco se importam com isso... De resto, pode ser que a gente chegue mesmo

a ficar cnico, neste nosso meio. O prprio Behrens tambm um velho cnico; um sujeito de classe, seja dito de passagem; na universidade pertencia a uma corporao

das mais finas; e dizem que timo cirurgio. Acho que ele vai agradar a voc. Alm dele h o Krokowski, seu assistente, um tipo muito capaz. No prospecto fala-se

especialmente da sua atividade. E que ele pratica a dissecao psquica dos pacientes.

- O qu? A dissecao psquica? Que coisa nojenta! gritou Hans Castorp, e com isso, a hilaridade tomou conta dele. J no conseguia domin-la. Depois de tudo quanto

ouvira, a dissecao psquica lhe encheu as medidas. Riu-se tanto, que as lgrimas lhe brotavam por entre a mo, com a qual, inclinando-se para a frente, cobria

os olhos. Tambm Joachim riu de todo corao, o que parecia fazer-lhe bem. Assim, o humor dos dois jovens era excelente, ao descerem do carro, que terminara por

conduzi-los lentamente atravs de uma rampa ngreme e serpeante at o portal do Sanatrio Internacional Berghof

NMERO 34

Logo direita, entre o porto e o guarda-vento, achava-se a guarita do porteiro. Um criado de tipo francs, vestido com libr cinzenta igual do homem coxo da

estao, estava ali sentado em frente do telefone, lendo jomais. Saiu ao encontro dos recm-chegados e os conduziu atravs do vestbulo bem iluminado, a cuja direita

ficavam os sales. Ao passar, Hans Castorp lanou um olhar para dentro e notou que estavam vazios. Perguntou ao primo onde se encontravam os hspedes.

- Esto fazendo repouso respondeu o primo. - Eu bem estou de licena, porque queria receber voc. Normalmente tambm me deito na sacada, depois do jantar.

ThomasMann

A Montanha Mgica

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Pouco faltou para que Hans Castorp voltasse a estourar de riso. - Como? Em plena escurido, vocs ainda se deitam na sacada? indagou com voz vacilante.

- Sim senhor. Isso faz parte do regulamento. Das oito s dez. Mas venha agora ver seu quarto e lavar as mos.

Entraram no elevador, cujo mecanismo eltrico foi posto em ao pelo criado francs. Enquanto subiam, Hans Castorp enxugou os olhos. - Estou todo modo e exausto

de tanto rir disse, respirando pela boca. - Voc me contou mil coisas estranhas... Aquela histria da dissecao psquica o cmulo; por esta no esperava. Estou

alis um pouco cansado pela viagem. Voc sofre tambm de ps frios? Ao mesmo tempo sinto que me arde o rosto. E bem desagradvel. A gente jantar logo, no ? Tenho

a impresso de que estou com fome. Comese bem aqui em cima, entre vocs?

A passo silencioso, andavam pela passadeira de fibra de coqueiro, que cobria o estreito corredor. Globos de vidro fosco difundiam uma luz plida. As paredes resplandeciam,

brancas e duras, revestidas de uma tinta a leo com aparncia de verniz. Surgiu uma enfermeira de touca branca, trazendo no nariz um pnce-nez, cujo cordo lhe passava

por trs da orelha. Era evidentemente uma irm protestante, sem verdadeira dedicao ao oficio, curiosa e irritada de tanto tdio que pesava sobre ela. Em dois pontos

do corredor, em frente das alvas portas numeradas, viam-se no cho uns recipientes grandes, bojudos, de gargalo curto, sobre cuja finalidade Hans Castorp se esqueceu

de pedir explicaes.

- Aqui est o seu quarto disse Joachim. - Nmero 34. direita fica o meu, e esquerda mora um casal russo; gente um pouco relaxada e barulhenta, no posso neg-lo,

mas no houve jeito de evitar isso. Bem! Que tal lhe parece?

Havia portas duplas, com cabides no espao entre elas. Joachim acendera a lmpada do teto, e sua luz trmula o quarto se apresentava alegre e quieto, com os mveis

brancos e prticos, os papis de parede igualmente brancos, resistentes e lavveis, o linleo limpo,

zo

cobrindo o soalho, e as cortinas de linho, bordadas de maneira simples e graciosa, conforme o gosto moderno. A porta da sacada estava aberta. Enxergavam-se as luzes

do vale e ouvia-se ao longe uma msica de baile. O atencioso Joachim colocara algumas flores num pequeno vaso sobre a cmoda o que a poca oferecia, aqilgias

e umas poucas campnulas, que ele mesmo colhera na encosta.

- Muito amvel da sua parte disse Hans Castorp. - Que quarto simptico! Num lugar destes d prazer passar algumas semanas. - Anteontem morreu aqui uma americana

disse Joachim. - Behrens achou logo que a coisa se acabaria antes da sua chegada, e que ento voc poderia ficar com o quarto. O noivo estava ao lado dela. Embora

fosse oficial da marinha inglesa, no demonstrou muito valor. A cada instante saa ao corredor, para chorar que nem um menino. E depois esfregava as faces com cold

cream, porque estava escanhoado e as lgrimas lhe ardiam na pele. Na noite de anteontem, a americana teve duas hemoptises de primeira, e com isso acabou-se a festa.

Mas ela j se foi ontem de manh. Claro que depois desinfetaram tudo a fundo, com formalina; no sabe? Dizem que excelente nesses casos. Hans Castorp ouviu essa

histria numa distrao nervosa. Estava de mangas arregaadas, frente da ampla pia, cujas torneiras niqueladas cintilavam luz eltrica. Mal lanou um olhar fugidio

para a cama de metal branco, coberta de roupa limpa.

- Desinfetaram ento? Est timo disse ele, com certa loquacidade e sem muito propsito, enquanto lavava e enxugava as mos. - Pois , aldedo metlico; no h

micrbio que resista a isso. H,CO, sim senhor! Mas tem um cheiro picante, no ? Naturalmente, amais rigorosa limpeza indispensvel... - Sua pronncia era mais

acentuadamente hamburguesa do que a do primo, que desde os seus tempos de estudante perdera os vestgios do dialeto da sua terra. Hans Castorp continuou conversando

com grande desembarao: - Que queria eu dizer?... O oficial de marinha provavelmente se barbeava com aparelho de gilete, achou eu; esses troos esfolam a pele mais

facilmente do que uma navalha bem afiada. Eu, pelo menos, fiz essa

ThomasMann

A Montanha Mgica

zi

experincia, e por isso uso alternadamente uma e outra coisa... Ora, lgico que a gua salgada di na pele irritada. E no servio militar, quem sabe se o homem

no se acostumou ao uso do cold cream; nisso no vejo nada de surpreendente... - E prosseguindo, acrescentou que tinha na maleta duzentos Maria Mancini, seu charuto

preferido. A inspeo alfandegria fora muito condescendente. A seguir transmitiu as saudaes de diversas pessoas de sua cidade natal. - Ser que no aquecem os

quartos? exclamou de repente, e correu aos radiadores, a fim de apalpa-los.

- No, eles costumam manter-nos a uma temperatura fresca respondeu Joachim. - preciso um frio muito mais intenso, para que acendam a calefao central j em

agosto.

- Agosto, qual agosto! disse Hans Castorp. - Mas se estou com frio, um frio horroroso, ao menos no corpo, pois o resto me arde! Olhe, experimente, estou com o

rosto em brasa.

Essa idia de que algum lhe tocasse o rosto absolutamente no condizia com a mentalidade de Hans Castorp, e a ele mesmo causou impresso penosa. Ademais, Joachim

no correspondeu ao convite, limitando-se a dizer:

- do ar. No quer dizer nada. O prprio Behrens anda o dia inteiro com as faces azuladas. H pessoas que nunca se habituam. Ento, go on, seno ns no encontraremos

mais nada para comer.

Quando saram, a enfermeira voltou a aparecer, para examina-los com olhares mopes e curiosos. No primeiro andar, Hans Castorp deteve-se de repente, imobilizado

por um rudo simplesmente atroz, que se ouvia a pouca distncia, por trs de uma volta do corredor; um rudo no muito forte, mas de som to lgubre, que o jovem

fez uma careta e mirou o primo com os olhos arregalados. Era evidentemente uma tosse, a tosse de um homem, mas uma tosse em nada parecida com nenhuma outra que Hans

Castorp jamais ouvira; sim, uma tosse em comparao com a qual todas as demais pareciam sinais de magnfica e sadia vitalidade; uma tosse inteiramente despida de

prazer e alivio, que

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no se efetuava num acesso regular, mas que soava como se algum chafurdasse dbil e horripilantemente no lamaal da podrido orgnica. - Pois disse Joachim.

- Este um caso srio. Um aristocrata austraco, homem elegante, como que feito para andar a cavalo. E agora vai desse jeito. Mas por enquanto ainda passeia.

Continuavam no caminho. Hans Castorp falou pormenorizadamente da tosse do cavaleiro.

- Voc deve considerar disse ele que nunca ouvi coisa semelhante; tudo aqui completamente novo para mim. natural que me impressione com isso. H muitas espcies

de tosse, tosses secas e tosses soltas. Diz-se geralmente que as soltas so mais benignas do que aquelas que fazem a gente ladrar. Em minha juventude ele disse

mesmo "em minha juventude" quando tive o crupe, ladrava como um lobo, e todo o mundo sentiu-se aliviado quando a tosse se tornou mais solta. Lembro-me ainda muito

bem. Mas uma tosse como esta nunca se viu, pelo menos eu no tinha idia de que existia uma coisa dessas. J no uma tosse viva. No seca, mas tambm no se

pode chamar de solta. No encontro, nem de longe, a palavra adequada. como se se descortinasse o interior do homem, e tudo fosse lodo e pntano...

- Ora veja disse Joachim -, ouo essas coisas todos os dias. Para mim, pode dispensar a descrio.

Mas Hans Castorp no conseguiu dominar-se. Afirmou repetidas vezes que para ele era como se tivesse lanado um olhar no interior do aristocrata. Quando entraram

no restaurante, seus olhos fatigados da viagem mostravam um brilho exaltado.

NO RESTAURANTE

A sala do restaurante era clara, elegante e confortvel. Estava situada logo direita do vestbulo, frente dos sales, e conforme explicou Joachim, era freqentada

principalmente pelos hspedes recm-chegados ou por quem tinha visitas. Mas tambm aniversrios e partidas

ThomasMann

A Montanha Mgica

23

iminentes eram festejados ali, assim como os resultados favorveis de exames gerais. Em certas ocasies, o ambiente era de franca alegria no restaurante, dizia Joachim,

e at se servia champanhe. Mas nesse momento apenas se achava ali uma senhora de aproximadamente trinta anos, que lia um livro e ao mesmo tempo cantarolava baixinho,

tamborilando na toalha com o dedo mdio da mo esquerda. Quando os dois jovens se sentaram, mudou de lugar, a fim de dar-lhes as costas. Era misantropa explicou

Joachim, abafando a voz -, comia sempre no restaurante lendo um livro. Afirmava-se que desde muito jovem passava a vida em sanatrios para doenas pulmonares e nunca

mais convivera com o mundo de fora.

- Ora, comparado com ela, voc apenas um principiante, com seus cinco meses, e ainda o ser quando tiver cumprido um ano disse Hans Castorp ao primo. Joachim

tomou o cardpio, dando de ombros com um gesto que antes no lhe era peculiar.

Haviam escolhido a mesa mais prxima da janela, e que ficava elevada sobre um estrado. Era o lugar mais agradvel da sala. Achavam-se sentados junto cortina creme,

frente a frente, com os rostos abrasados pela luz da pequena lmpada de mesa, de quebra-luz vermelho. Hans Castorp juntou as mos recm-lavadas e esfregou-as uma

na outra com uma sensao de conforto e expectativa, como era seu hbito ao sentar-se mesa, talvez porque seus antepassados costumassem rezar antes de tomar a

sopa. Servia-os uma criada amvel, de fala gutural, que trajava vestido preto com avental branco e tinha um amplo rosto de cores sumamente sadias. Com grande hilaridade,

Hans Castorp aprendeu que as criadas na Sua se chamavam Saal-tochter, filhas de sala. Pediram uma garrafa de Gruaud Larose, que Hans Castorp devolveu porque estava

fria demais. A comida era excelente. O cardpio constava de sopa de aspargos, tomates recheados, um assado com diversos legumes e saladas, uma sobremesa particularmente

bem preparada, queijos variados e frutas. Hans Castorp comeu muito, se bem que o seu apetite se evidenciasse menos intenso do que lhe parecera.

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Mas uma espcie de considerao por si prprio fazia-o comer fartamente, mesmo no sentindo fome.

Joachim no fez muita honra aos quitutes.

- Estou cansado dessa cozinha disse e isto se d com todos aqui em cima; costume resmungar contra a comida, pois quem se acha amarrado neste lugar por toda

uma eternidade... - Em com pensao, bebeu o vinho com prazer e mesmo com certa paixo. Evitando cuidadosamente qualquer frase por demais sentimental, manifestou

vrias vezes a sua satisfao por ter com quem trocar palavras sensatas.

- Sim, senhor, voc veio mesmo a calhar disse ele, e sua voz pausada revelava emoo. - Posso lhe afirmar que para mim a sua chegada um grande acontecimento.

pelo menos uma variao... Quero dizer que ela representa um marco, uma subdiviso, nesta eterna e infinita monotonia...

- Mas o tempo deve passar depressa para vocs aqui opinou Hans Castorp.

- Depressa ou devagar, como quiser respondeu Joachim. - Propriamente no passa de modo algum; sabe? Aqui no h tempo nem vida; no senhor, no h nada disso -

acrescentou meneando a cabea. E novamente levantou a taa.

Tambm Hans Castorp voltou a beber, embora o rosto lhe ardesse como fogo. Mas o seu corpo continuava frio, e nos seus membros havia um desassossego todo especial,

ao mesmo tempo eufrico e um tanto penoso. Suas palavras precipitavam-se; freqentemente se confundia, mas com um gesto displicente da mo passava por cima de tais

incidentes. O prprio Joachim tornara-se mais animado tambm, e a conversa prosseguia ainda mais desembaraada e alegre, quando a senhora da mesa vizinha, cessando

subitamente de cantarolar e tamborilar, levantou-se e saiu. Comiam gesticulando com os garfos; davam-se ares de importncia, com as bochechas tmidas de comida;

riam-se, sacudiam a cabea, encolhiam os ombros, e ainda com a boca cheia

ThomasMann

A Montanha Mgica

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voltavam a palestrar. Joachim queria saber o que se passava em Hamburgo, e levou a conversa para o projeto da canalizao do Elba.

- Fenomenal! disse Hans Castorp. - formidvel para o desenvolvimento da nossa navegao. de uma importncia incalculvel. No nosso oramento, destinamos a

essa obra cinqenta milhes para as despesas mais imediatas, e voc pode ter certeza de que sabemos o que estamos fazendo.

Apesar da importncia que atribua canalizao do Elba, abandonou, porm, imediatamente o assunto, para pedir que Joachim lhe contasse mais pormenores da vida

"aqui em cima" e dos hspedes. Este lhe fez a vontade com grande prazer, j que se sentia feliz por ter uma oportunidade de desafogar-se e abrir-se. Teve de repetir

a histria dos cadveres que eram transportados pela pista de tren, e de assegurar mais uma vez que se tratava da mais estrita verdade. Como Hans Castorp mais uma

vez desatasse a rir, o primo riu-se tambm, parecendo gozar de todo o corao. Depois relatou outras coisas divertidas, a fim de manter vivo o bom humor reinante.

Falou de uma senhora que se sentava mesma mesa que ele, uma tal sra. Sthr, mulher bastante doente, alis, casada com um msico de Cannstatt, e que era a criatura

mais inculta que j encontrara. Dizia ela "desinfecar", com toda a seriedade. E ao assistente Krokowski intitulava de "fmulo". Era preciso ouvir tudo isso, sem

pestanejar. Ademais, era mexeriqueira, como de resto a maioria dos hspedes ali em cima, e costumava contar que uma companheira, a sra. Iltis, trazia consigo um

"esterilete".

- Imagine, chama aquilo de "esterilete"! No impagvel? - E semideitados, recostando-se no espaldar das cadeiras, riram-se tanto, que o corpo lhes estremecia e

ambos terminaram por ser acometidos de soluo.

No meio dessas conversas, Joachim se entristeceu ao pensar no seu infortnio.

- Pois e, aqui estamos e nos divertimos disse com uma expresso dolorosa, ainda interrompido, de vez em vez, pelas trepidaes de seu diafragma e no entanto

no posso prever, nem de longe, quan-

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do poderei sair daqui. Pois, quando o Behrens me diz: "Mais meio ano", sei que preciso preparar-me para um prazo maior. bem duro isso. Voc deve compreender como

triste para mim. J me haviam aceitado no exrcito, e no ms que vem poderia fazer exames para oficial. Agora vivo aqui vadiando, com o termmetro na boca, conte

os erros dessa ignorantona da sra. Sthr e perco meu tempo. Um ano tem tanta importncia na nossa idade, traz tantas alteraes e tantos progressos na vida l de

baixo! E eu obrigado a estagnar aqui como uma poa d'gua, sim senhor, como um charco apodrecido. No h exagero nenhum nessa comparao...

Ao invs de responder, Hans Castorp limitou-se a perguntar se havia um jeito de se obter porter nesse sanatrio. O primo olhou-o com certa surpresa e verificou que

estava a ponto de adormecer ou at j cochilava.

- Mas voc est com sono! disse Joachim. - Vamos, est na hora da gente ir para a cama.

- No! No est na hora disse Hans Castorp com a lngua trpega. Mesmo assim seguiu Joachim, caminhando um pouco curvado, com as pernas duras, como um homem literalmente

prostrado

de cansao. Fez, porm, um violento esforo para se dominar quando, no vestbulo fracamente iluminado, ouviu o primo dizer:

- A est Krokowski. Acho que temos de parar um instante, para que eu possa apresentar voc.

Diante da lareira de uma das salas de recepo, ao lado da escancarada porta corredia, o dr. Krokowski estava sentado junto fonte de luz e lia um jornal. Ps-se

de p, quando os dois jovens se aproximaram dele, e Joachim, em atitude militar, disse:

- Permita-me, doutor, que lhe apresente meu primo Castorp, de Hamburgo, que acaba de chegar.

O dr. Krokowski cumprimentou o novo pensionista com uma certa cordialidade jovial, robusta e confortante, como se quisesse dar a entender que no contato com ele

todo acanhamento era suprfluo e somente deveria reinar a mais risonha confiana. Tinha aproximada

A Montanha Mgica

mente trinta e cinco anos; era espadado, obeso e muito mais baixo do que os dois, de maneira que, para encar-los, via-se obrigado a deitar a cabea para trs.

Alm disso era extremamente plido, de uma palidez translcida e mesmo fosforescente, que ainda mais se intensificava pelo sombrio fulgor dos olhos, pela negrura

das sobrancelhas e da barba comprida, que terminava em duas pontas e j mostrava alguns fios brancos. Trajava uma fatiota preta, um tanto surrada, bem como sapatos

pretos, perfurados como sandlias, grossas meias de l cinzenta e um amplo colarinho mole, de um tipo que Hans Castorp s conhecia num fotgrafo de Dantzig, e que

de fato dava ao dr. Krokowski um ar de artista. Com um sorriso afetuoso, que fez com que os dentes amarelos apontassem por entre a barba, apertou a mo do jovem

e disse numa arrastada voz de bartono, com algum sotaque estrangeiro:

- Seja bem-vindo, sr. Castorp! Espero que o senhor se aclimate rapidamente e se sinta bem no nosso meio. Permita-me a pergunta: veio como paciente?

Era comovente ver como Hans Castorp se esforava por mostrarse corts e dominar a sonolncia. Sentia-se irritado pelo fato de estar to pouco apresentvel, e com

a desconfiada soberba peculiar aos jovens, via no sorriso e na atitude confortante do mdico apenas sinais de ironia indulgente. Respondeu que passaria trs semanas

ali, mencionou o seu exame e acrescentou que, graas a Deus, gozava a mais perfeita sade.

- Ser? perguntou o dr. Krokowski, avanando a cabea obliquamente, como para caoar, enquanto o seu sorriso se acentuava. - Nesse caso o senhor um fenmeno

digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda no encontrei um homem de perfeita sade. Posso perguntar qual o exame que prestou?

- Sou engenheiro, doutor comunicou Hans Castorp com dignidade e modstia.

- Ah, engenheiro! - E o sorriso do dr. Krokowski por assim dizer se retraiu, diminuindo momentaneamente em fora e cordialidade. - Uma profisso excelente! De maneira

que o senhor no

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pretende receber aqui nenhuma assistncia mdica, nem de ordem fisica nem psquica?

- No, muito obrigado disse Hans Castorp, a ponto de dar um passo para trs.

Eis que o sorriso do dr. Krokowski reapareceu vitoriosamente, e enquanto tornava a apertar a mo do jovem, exclamou com nfase: - Pois ento, durma bem, sr. Castorp,

na plena convico de sua sade inatacvel! Durma bem e at amanh! - Com essas palavras despediu-se dos jovens e voltou ao seu jornal.

No havendo mais ascensorista, quela hora, subiram a p pela escada, silenciosos e um tanto perturbados pelo encontro com o dr. Krokowski. Joachim acompanhou Hans

Castorp at o nmero 34, onde o criado coxo j depositara a bagagem do recm-chegado. Continuaram a conversar durante um quarto de hora, enquanto Hans Castorp tirava

da mala o pijama e os objetos de toucador, fumando um charuto grosso, mas leve. Essa noite ainda no tivera oportunidade para fumar um charuto, o que lhe parecia

estranho e extraordinrio.

- Ele d a impresso de ter muita personalidade disse, expelindo a fumaa. - Mas plido como cera. E o calado que usa! Que coisa horrorosa! Imaginem, meias

de l cinzenta e ainda aquelas sandlias! Voc acha que no fim ele se ofendeu?

- Ele um pouco suscetvel admitiu Joachim. - Voc no deveria ter rejeitado to bruscamente a assistncia mdica, pelo menos o tratamento psquico. Ele no gosta

que algum se esquive a isso. Comigo tambm antipatiza, porque no me abro bastante. Mas, de vez em quando, conto-lhe um sonho, para que tenha alguma coisa que analisar.

- Pois ento escandalizei-o? Que vou fazer? disse Hans Castorp, agastado; estava pouco satisfeito consigo prprio, por ter melindrado algum. Ao mesmo tempo o

cansao acometia-o com fora redobrada. - Boa noite disse. - Estou caindo de sono.

- s oito virei buscar voc para o cafe da manh prometeu Joachim ao sair.

A Montanha mgica

Hans Castorp aprontou-se apenas ligeiramente para a noite. Foi dominado pelo sono, apenas apagada a lmpada de cabeceira. Mas sobressaltou-se mais uma vez, ao recordar-se

de que na antevspera algum morrera nessa mesma cama.

- Sem dvida no foi a primeira vez disse de si para si, como se isso pudesse tranqiliz-lo. - Afinal de contas, um leito de morte, um simples leito de morte.

- E adormeceu.

Logo, porm, comeou a sonhar. Sonhou quase sem interrupo at a manh do dia seguinte. Em primeiro lugar, apareceu-lhe Joachim Ziemssen, numa posio estranhamente

desengonada, a descer num tren por uma pista inclinada. Era de um palor to fosforescente quanto o do dr. Krokowski, e sua frente achava-se sentado o aristocrata

austraco, cuja imagem era um tanto vaga, como a de algum que apenas ouvimos tossir. "Pouco se nos d, aqui em cima", disse o desengonado Joachim, e logo era ele,

e no o aristocrata, quem tossia daquela maneira horripilante e lamacenta. Ao ouvi-lo, Hans Castorp verteu lgrimas amargas e verificou que era preciso correr

farmcia para comprar cold cream. Mas beira do caminho estava sentada a sra. Iltis, de focinho pontiagudo, segurando na mo alguma coisa, que devia representar

o seu "estenlete", mas na realidade era apenas um aparelho de gilete. Essa viso, por sua vez, fez com que Hans Castorp desatasse a rir, e dessa forma passou pelas

mais diferentes emoes, at que o despertou a manh, despontando atravs da porta semi-aberta da sacada.

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A Montanha Mgica

DA PIA BATISMAL E DOS DOIS ASPECTOS DO AV

Hans Castorp conservava apenas plidas recordaes da casa paterna. Mal chegara a conhecer o pai e a me. Morreram ambos no curto intervalo entre o seu quinto e

stimo ano de vida. Primeiro faleceu a me, de forma absolutamente inesperada, em vsperas de um parto, por causa de uma obstruo de vasos sanguneos, conseqncia

de uma neurite; segundo o diagnstico do dr. Heidekind, foi uma embolia que paralisou instantaneamente o corao: a me acabava de rir-se, sentada na cama, e parecia

cair para trs de tanto riso, mas na realidade isso se deu porque morrera. O pai, Hans Hermann Castorp, era incapaz de compreender essas coisas; visto ter tido grande

apego esposa e no ser ele prprio de compleio muito robusta, no pde conformar-se com o golpe. Seu esprito, desde aquele dia, tornou-se confuso e apoucado.

Presa de uma espcie de torpor, cometeu uma srie de erros nos negcios, de maneira que a firma Castorp & Filho sofreu prejuzos sensveis. Na segunda primavera

depois da morte da mulher, contraiu uma pneumonia durante uma inspeo dos depsitos do porto varrido pela ventania, e como o corao fatigado no resistiu febre

alta, faleceu ao cabo de cinco dias, no obstante todos os cuidados do dr. Heidekind. Acompanhado de numeroso cortejo de concidados, foi unir-se esposa no jazigo

dos Castorps, muito bem situado no cemitrio de Santa Catarina, com vista para o jardim Botnico.

A Montanha Mgica

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O av paterno, o senador, sobreviveu apenas pouco tempo ao pai; morreu tambm de uma pneumonia, porm depois de muita luta e longo sofrimento, pois, ao contrrio

de seu filho, era Hans Lorenz Castorp uma personalidade que dificilmente se deixava abater, e se arraigava com grande tenacidade na vida. Durante o breve perodo

entre aqueles outros dois falecimentos no ultrapassou um ano e meio morava o rfo Hans Castorp na casa do av, manso ao gosto do Classicismo nrdico, edificada

em princpios do sculo passado, sobre um terreno estreito, rua da Esplanada. Era pintada numa cor que lembrava um cu nublado. No meio do andar trreo, cinco

degraus acima do cho, achava-se o porto de entrada, flanqueado por meias colunas. Existiam ainda dois pavimentos superiores, alm do primeiro cujas janelas desciam

at o cho e estavam defendidas por grades de ferro fundido.

Ali havia apenas as salas de recepo, inclusive a de jantar, clara, decorada com estuque e cujas trs janelas guarnecidas de cortinas escarlates davam para o pequeno

quintal. Era nesse aposento que, durante os referidos dezoito meses, o av e o neto almoavam todos os dias s quatro horas, servidos pelo velho Fiete, que trazia

brincos nas orelhas, botes de prata na casaca e uma gravata de cambraia igual quela do patro, do qual tambm imitava o hbito de esconder na laada o queixo escanhoado.

O av tratava-o por "tu" e falava com ele em dialeto baixo-alemo, no para pilheriar, pois que no tinham nenhum senso de humor, mas com toda a seriedade, e porque

sempre o fazia no contato com gente do povo estivadores, carteiros, carroceiros e criados. Hans Castorp escutava-o com gosto, e com o mesmo prazer escutava as

respostas que dava Fiete, igualmente em baixoalemo, quando servia o dono da casa e se curvava para falar-lhe junto orelha direita, com a qual o senador ouvia

muito melhor do que com a outra. O ancio compreendia, fazia que sim e continuava comendo, muito ereto entre a mesa e o alto espaldar da poltrona de acaju, e quase

que sem se inclinar para o prato. O neto, sentado sua frente, contemplava em silncio, com ateno inconsciente e profun-

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A Montanha Mgica

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da, os gestos precisos e bem cuidados, mediante os quais as belas mos alvas, magras e idosas do av, com as unhas convexas, aparadas em ponta, e com o anel sinete

de pedra verde no indicador direito, arranjavam na ponta do garfo um bocado de carne, legumes e batatas, e os conduziam boca, enquanto a cabea, levemente, ia

a seu encontro. Hans Castorp olhava ento suas prprias mos, ainda desajeitadas, e sentia que nelas se preparava a capacidade de manejar mais tarde a faca e o garfo

com a mesma perfeio do av.

Mais problemtica era, porm, a questo de saber se um dia chegaria a acomodar o queixo numa gravata como aquela que enchia a ampla abertura do colarinho singular

do av, cujas pontas afiadas ro

avam as bochechas. Ora, para isso, era preciso ter a idade dele, pois, j naqueles dias, ningum, com exceo do av e do velho Fiete, usava tais colarinhos e gravatas.

Era uma lstima, porquanto o pequeno Hans Castorp gostava imensamente de contemplar o queixo do av, apoiado no alto n da gravata branca como neve; ainda quando

adulto, causava-lhe prazer essa reminiscncia, que encerrava algo que ele aprovava no fundo de seu corao.

Terminada a refeio, os guardanapos eram dobrados, enrolados e enfiados nas argolas de prata uma tarefa da qual Hans Castorp naquela poca se desincumbia com

grande dificuldade, visto esses

guardanapos serem to grandes como pequenas toalhas. A seguir, o senador levantava-se da poltrona, que Fiete puxava para trs, e ia, de passo arrastado, ao "gabinete",

em busca de um charuto. s vezes, o neto o seguia ali.

Esse gabinete devia sua origem ao fato de a sala de jantar ocupar toda a largura da casa e ter trs janelas, de modo que no restara espao suficiente para trs

salas de recepo, como se costuma encontrar nas

casas desse tipo, seno apenas duas, uma das quais formava um ngulo reto com a sala de jantar e tinha somente uma janela. Para evitar que essa sala ficasse excessivamente

ampla, haviam feito uma subdiviso por meio de um tabique, aproximadamente na quarta parte do seu comprimento, formando-se assim o dito "gabinete", uma pea estrei

ta, que de uma clarabia recebia uma luz crepuscular e continha apenas poucos mveis: uma estante, na qual se achavam as caixas de charutos do senador; uma mesa

de jogo cuja gaveta abrigava objetos atraentes, como naipes de uste, fichas, tabuletas de dentes mveis para marcar pontos, uma .lousa com lpis de pedra, boquilhas

de papel, e outras coisas; e finalmente no canto havia um armrio de vidro, estilo rococ, de madeira de mogno, atrs de cujas vidraas se achavam cortinas de seda

amarela.

Quando o pequeno Hans Castorp estava nesse gabinete, acontecia s vezes que se punha nas pontas dos ps, para aproximar-se do ouvido do ancio e pedir:

- Vov, mostre-me, por favor, a pia batismal.

E o av, que j afastara para trs a aba comprida da sobrecasaca de casimira macia e tirara do bolso da cala um molho de chaves, abria ento o armrio, de cujo

interior emanava um aroma singularmente misterioso e agradvel ao menino. Ali estava guardada toda espcie de objetos pouco usados e justamente por isso fascinantes:

um par de candelabros de prata, um barmetro quebrado com figuras talhadas em madeira, um lbum de daguerreotipias, um licoreiro de madeira de cedro, um pequeno

turco, duro ao tato, sob a roupagem de seda, e que tinha na barriga um mecanismo engenhoso, que outrora lhe permitira caminhar sobre a mesa, mas j no funcionava

havia muito tempo, um modelo de navio antigo; e bem no fundo havia at uma ratoeira. O velho, porm, retirava da prateleira do centro uma bacia redonda de prata

muito oxidada, que se encontrava sobre uma bandeja igualmente de prata, e mostrava ao menino ambos esses objetos, tirando um de cima do outro e exibindo-os de todos

os lados, enquanto mais uma vez lhe dava as explicaes j muitas vezes prestadas.

A bacia e a bandeja primitivamente no formavam um jogo, como se podia ver, e como o pequeno voltava a aprender; mas haviam sido usados como tal dizia o av -

fazia uns cem anos, isto , desde a compra da bacia. Esta era formosa, de linhas simples e nobres, com a marca do gosto austero que reinava em princpios do sculo

passado.

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Polida e macia, repousava sobre um p redondo e era dourada no seu interior; mas desse ouro sobrara com o tempo somente um reflexo de amarelo plido. Como nico

adorno, uma coroa de rosas e folhas denteadas, lavrada em relevo, cobria a borda superior. Quanto bandeja, podia-se ler a data que lhe conferia uma antiguidade

muito maior: "1650", em nmeros enfeitados de arabescos, emoldurados de toda espcie de desenhos distribudos desordenadamente, "maneira moderna" daquela poca,

mistura exuberante e arbitrria de escudos e rabiscos, metade flores metade estrelas. No reverso da bandeja, porm, estavam inscritos os nomes dos chefes de famlia

que no decorrer dos anos a tinham possudo. J havia ali sete nomes, cada qual com o ano da transmisso do objeto, e o ancio, com a ponta do dedo ornado de anel,

recitava-os um a um, ao neto. Estava ali o nome do pai, assim como o do prprio av, o do bisav, e depois se dobrava, triplicava, quadruplicava o prefixo na boca

do narrador. O menino, com a cabea inclinada para o lado, ouvia tudo isso, cravando na bacia um olhar pensativo, sonhador ou abstrato, e abrindo a boca infantil,

numa expresso entre respeitosa e sonolenta; ouvia esses "bis, tris, tetra", sons obscuros de tumba e de tempos soterrados, que todavia expressavam uma ligao piedosamente

mantida entre o presente a sua prpria vida e aquele mundo submerso. Esses sons exerciam sobre ele um efeito esquisito, que se refletia no seu rosto. Ao ouvi-los,

tinha a impresso de respirar um ar frio, bolorento, o ar da igreja de Santa Catarina ou da cripta de So Miguel; parecia-lhe sentir o sopro daqueles lugares onde

as pessoas tiram os chapus e avanam num andar reverente, cadenciado, na ponta dos ps; julgava ouvir at mesmo o silncio remoto, pacato, desses lugares ecoantes;

sensaes devotas mesclavam-se com a idia da morte e da histria, ao som dessas slabas surdas, e tudo isso impressionava o garoto simpaticamente; quem sabe se

no era para ouvi-las e repeti-las mais uma vez, que ele gostava tanto de contemplar a pia batismal?

Depois, o av repunha a bacia na bandeja e mostrava ao menino a concavidade lisa, levemente dourada, que resplandecia sob a luz vinda do teto.

A Montanha Mgica

-j faz quase oito anos dizia que te levantamos sobre esta bacia, e que a gua com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristo Lassen da parquia de So

Jac verteu-a na concha da mo do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabea at a bacia. A gua tinha sido amornada, para que no te assustasses

e chorasses. E de fato no choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermo. Mas quando sentiste

a gua, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu

o batismo, e a gua que escorreu da cabea dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho

pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor tambm j faz muito que

est junto de Deus. E h setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi tambm nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabea por cima da bacia, exatamente como a vs

agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a gua morna e lmpida escorreu da mesma forma dos

meus cabelos (no tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada.

O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabea do ancio, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento j longnquo a que se referia.

E se apoderava do menino uma sensao ia muitas vezes experimentada, a impresso estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que

se mudava e contudo permanecia, algo que era reiterao tanto como vertiginosa monotonia impresso que ele conhecia de outras ocasies, e cuja volta esperara e

desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao av que lhe mostrasse a relquia da famlia, na sua imutvel progresso.

Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do av se lhe gravara na memria com muito maior

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nitidez, intensidade e significao do que a de seus prprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade fisica particular, pois o neto se parecia

com o av, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhana com um septuagenrio encanecido e esclertico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor

do ancio, que incontestavelmente fora a figura mais caracterstica, a personalidade pitoresca da famlia. No que se refere aos assuntos pblicos, o tempo, j muito

antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristo, membro da Igreja Reformista,

e de opinies rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de p a restrio aristocrtica da nica classe social capaz de produzir os futuros governantes,

e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no sculo XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniada resistncia do patriciado livre, conquistara o direito

de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovaes. Sua vida coincidia com uma poca de rpido desenvolvimento

e mltiplas revolues, com decnios de progresso em marcha forada, que haviam

exigido muita audcia e grande abnegao nos negcios pblicos. Mas Deus sabe que no era culpa do velho Castorp que o esprito moderno obtivesse seus conhecidos

e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importncia s tradies ancestrais e s instituies antigas do que s arriscadas ampliaes do porto e outros arremedos

mpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possvel, e se fosse por ele, a administrao seria ainda hoje to idlica e antiquada como

o seu prprio escritrio.

Era assim que o ancio, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidados, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos

pblicos, os olhares silen

ciosos e contemplativos da criana faziam pouco mais ou menos as mesmas observaes; observaes mudas, despidas de crtica, porm cheias de vida, e que mais tarde,

como reminiscncia consciente, conservavam o seu carter de irrestrita aprovao, hostil a qualquer anli

se verbal. Como j dissemos, havia nisso um qu de simpatia, aquele lao ntimo, aquela afinidade de almas que no raras vezes salta uma gerao. Os filhos e os

netos olham para admirar, e admiram na inteno de aprender e aperfeioar, o que se acha preparado na sua massa hereditria.

O senador Castorp era alto e macilento. Os anos lhe haviam curvado os ombros e a nuca, mas ele fazia esforo intenso para compensar isso por uma postura muito ereta.

Ao assumi-la, numa dignidade penosamente mantida, contraa-se-lhe a boca, cujos lbios j no se apoiavam em dentes, repousando sobre as gengivas vazias, uma vez

que o ancio punha a dentadura postia apenas para comer. E justamente esse esforo, aumentado talvez pelo empenho de esconder um incipiente tremor de cabea,

que determinava aquela atitude austera e tesa, com o queixo escorado pelo n da gravata, atitude que tanto agradava ao pequeno Hans Castorp.

O senador apreciava a caixinha de rap usava uma oblonga, de tartaruga, lavrada de ouro e servia-se de lenos vermelhos, cujas pontas costumavam pender do bolso

traseiro da sobrecasaca. Se bem que isso no deixasse de ser uma nota um tanto cmica da sua personalidade, parecia perfeitamente admissvel em considerao idade,

como uma negligncia que a velhice ora se pode permitir consciente e humoristicamente, ora acarreta sem que a vtima, numa ignorncia respeitvel, se d conta dela.

Seja como for, era esse o nico sinal de fraqueza que o olhar arguto do pequeno Hans Castorp jamais observara na pessoa do av. Mas, para o menino de sete anos tanto

como para a recordao do adulto, a imagem cotidiana e familiar do ancio no constitua a genuna e verdadeira. Na sua realidade autntica, o av tinha aspecto

diferente, muito mais belo e muito mais certo do que o de todos os dias: era assim como aparecia num retrato de tamanho natural, que antigamente estivera pendurado

na sala de estar dos pais do menino, e depois emigrara com ele para a rua da Esplanada, onde recebera o seu lugar por cima do sofa de seda vermelha, na sala de recepo.

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O retrato mostrava Hans Lorenz Castorp vestido com os trajes oficiais de um vereador da cidade trajes dos cidados austeros e at piedosos de uma era desaparecida,

e que essa comunidade ao mesmo

tempo conservadora e progressista levara consigo na sua marcha atravs das pocas, reservando-os ao uso festivo, a fim de confundir, dessa forma cerimoniosa, o passado

com o presente, o presente com o passado, e de evidenciar a perptua continuidade da sua histria, como que confirmando a veneranda solidez da sua firma comercial.

Sobre um cho coberto de lajes avermelhadas, diante de um fundo de pilares e arcos ogivais, o senador Castorp aparecia de p, com o queixo inclinado e as comissuras

da boca apontando para baixo, cravando nas lonjuras a mirada contemplativa dos olhos azuis, empapuados. A veste talar, aberta na frente, exibia nas orlas um largo

debrum de peles. De umas meias mangas amplas, estufadas e adornadas de gales, saam outras mangas, mais justas, de pano liso. Punhos de renda cobriam as mos at

a metade. As pernas finas do ancio estavam revestidas de meias de seda preta, e os ps, calados de sapatos com fivelas de prata.

Rodeava-lhe o pescoo uma golilha larga como um prato, engomada e disposta em numerosas pregas, que o queixo aplanava na parte dianteira, e que se levantava de ambos

os lados. Por baixo dela caa sobre o colete um folho pregueado de cambraia. Sob o brao levava o ancio o tradicional chapu de aba larga, cuja copa terminava em

ponta.

Era um excelente retrato, obra de um artista afamado, executada com timo gosto, no estilo dos mestres antigos, ao qual se prestava o tema. Trazia lembrana de

quem o contemplasse quadros espanhis

ou holandeses do fim da Idade Mdia. O pequeno Hans Castorp olharao freqentemente, no como um perito de arte, claro, mas com certa compreenso geral e at com

muita perspiccia. Embora no tivesse visto o av em pessoa tal como o representava a tela, seno uma nica vez, e assim mesmo durante um curto instante, por ocasio

da chegada de um cortejo solene ao palcio da municipalidade no deixava de considerar, como j dissemos, a aparncia do retrato como a verdadeira e genuna, e

de ver no av de todos os dias apenas a

forma interina, um substituto imperfeitamente adaptado ao seu papel. Pois, o que havia de diferente e esquisito no seu aspecto cotidiano tinha a sua origem, evidentemente,

numa tal adaptao imperfeita e qui um tanto desajeitada; tratava-se de restos e vestgios da sua forma pura e autntica, que no se tinham apagado por completo.

Assim, estavam fora de moda o colarinho duro, pontudo, e o alto n da gravata branca, mas era impossvel aplicar o termo "fora de moda" quela maravilhosa pea de

vesturio, de que aqueles constituam apenas aluso interina: a golilha espanhola. E o mesmo acontecia com a cartola de abas inusitadamente recurvas, que o av usava

na rua, e qual, numa realidade superior, correspondia o feltro de aba larga, reproduzido no quadro; e ainda o mesmo se dava com a longa e ampla sobrecasaca, cujo

modelo e essncia era, aos olhos do pequeno Hans Castorp, a veste talar, agaloada e debruada de peles.

Assim o menino aprovara no seu ntimo que o av surgisse em plena autenticidade e perfeio no dia em que chegou a hora de lhe dizer adeus para sempre. Era na sala

de jantar, a mesma sala onde tantas vezes haviam feito as refeies, sentados um em frente do outro. No seu centro jazia agora Hans Lorenz Castorp, estendido no

caixo enfeitado de prata, exposto numa essa rodeada de coroas. Lutara at o fim contra a pneumonia, lutara tenaz e demoradamente, se bem que antes tivesse dado

a impresso de se acomodar vida moderna apenas por meio de uma espcie de adaptao. E enquanto o ancio jazia ali, no seu leito de gala, no se sabia se era vencedor

ou vencido. Em todo caso, exibia uma expresso severa e sossegada; a fisionomia, depois de todas essas lutas, aparecia mudada, e o nariz mais pontiagudo. A metade

inferior do corpo estava escondida sob um cobertor, em cima do qual se achava um ramo de palmeira. A cabea repousava erguida sobre um travesseiro de seda, de forma

que o queixo se conchegava imponentemente concavidade dianteira da golilha espanhola. Entre as mos, meio ocultas pelos punhos de renda, e cujos dedos, embora

imitando uma posio natural, no deixavam de revelar frieza e imobilidade, haviam introduzido um crucifixo de marfim,

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que o defunto, de sob as plpebras abaixadas, parecia fitar incessantemente.

No princpio da enfermidade, Hans Castorp vira o av algumas vezes; mas depois no tornara a v-lo. Haviam evitado que ele assistisse ao espetculo da luta, que

na sua maior parte se desenrolara durar_ te

as horas noturnas. S indiretamente sentira o menino as suas consequencias, em virtude da atmosfera angustiada da casa, dos olhos avermelhados do velho Fiete, das

idas e vindas dos mdicos. O resultado final, porm, que agora presenciava na sala, resumia-se no fato de que o av, solenemente desobrigado daquela adaptao passageira,

assumira em definitivo o seu genuno e merecido aspecto. E esse resultado parecia ao pequeno Hans Castorp digno de aprovao, ainda que o velho Fiete vertesse lgrimas,

meneando sem cessar a cabea, e que ele mesmo chorasse, como o fizera quando da repentina morte da me, e pouco tempo depois em presena do pai, que tambm estivera

estendido assim, no menos silencioso e estranho.

No se esquea que era a terceira vez, num curto lapso de tempo, e numa idade to tenra, que a morte agia sobre o esprito e os sentidos principalmente os sentidos

do menino. Esse quadro e essa im

presso j no lhe eram novos, seno bastante familiares. Nas duas ocasies anteriores j se mostrara comedido e dono de si, sem perder o domnio dos nervos, apesar

da tristeza natural que sentia. E dessa vez aparentou ainda maior tranqilidade do que das outras. Como ignorasse a significao prtica que aqueles acontecimentos

tinham para a sua existncia, ou talvez os considerasse com certa indiferena pueril, confiante em que o mundo, deste ou daquele modo, cuidaria de seu bem-estar,

manifestou em frente dos atades certa frieza igualmente infantil, bem como uma ateno objetiva, qual o terceiro enterro acrescentou um matiz especial de superioridade

precoce, baseada na plenitude da experincia anteriormente adquirida, que o imunizava contra os freqentes acessos de choro e o contgio do pranto dos demais, fazendo

com que tudo isso se lhe afigurasse como uma

reao normal. No decorrer de trs ou quatro meses, aps o faleci

mento do pai, esquecera-se da morte; agora se recordou, e todas as impresses antigas reavivaram-se exatamente, simultneas e intensas, na sua peculiaridade incomparvel.

Analisadas e resumidas, essas impresses seriam pouco mais ou menos as seguintes: a morte tinha dois aspectos, um piedoso, significativo, de melanclica beleza,

quer dizer, um aspecto religioso, e ao mesmo tempo tinha outro, absolutamente diverso e at mesmo oposto, um aspecto muito fisico, bem material, que era impossvel

qualificar propriamente de belo, significativo, piedoso, sequer de triste. A natureza solene e religiosa expressava-se no suntuoso atade do defunto, na magnificncia

das flores e no ramo de palmeira, que, como se sabe, simbolizavam a paz celestial; expressava-se alm disso, e ainda mais nitidamente, no crucifixo entre os dedos

exangues de quem outrora era o av, bem como no Cristo abenoador, de Thorwaldsen, que se achava cabeceira do fretro, e nos dois candelabros que se erguiam de

ambos os lados e nessa ocasio haviam assumido um carter igualmente eclesistico. Todas essas disposies encontravam evidentemente o seu sentido preciso e prprio

na idia de que o avo se unira para sempre com sua verdadeira e genuna figura. Mas, alm dessa razo de ser, existia como o pequeno Hans Castorp bem notava, ainda

que no se desse conta disso em palavras mais uma outra, uma finalidade mais profana, a manifestar-se em tudo isso, principalmente naquela multido de flores,

e entre elas em especial nas tuberosas espalhadas por toda parte: cabia-lhes disfarar, fazer esquecer e no admitir ao limiar da conscincia o segundo aspecto da

morte, que no era nem belo nem realmente triste, mas, a bem dizer, quase indecente e de um carter baixo e carnal.

Era em virtude desse segundo aspecto que o av defunto se afigurava to estranho, que no fundo nem parecia o av, seno um boneco de cera, de tamanho natural, que

a morte pusera em seu lugar, e ao qual agora se dedicavam todas essas pompas piedosas e reverentes. Quem jazia ali, ou melhor, aquilo que ali se achava estendido,

no era portanto o verdadeiro av; no passava de um invlucro, que - Hans

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Castorp sabia-o muito bem no constava de cera, mas de sua prpria matria; apenas de matria, e precisamente nisso residia o indecente e a ausncia de tristeza;

aquilo era to pouco triste como so as coisas que dizem respeito ao corpo e s a ele. O pequeno Hans Castorp contemplava essa matria lisa, cor de cera, de uma

consistncia casecsa, de que estava feita aquela figura morta de tamanho natural, com o rosto e as mos do ex-av. Uma mosca acabava de pousar na testa imvel e

comeava a mexer a probscide. O velho Fiete espantou-a cautelosamente, evitando tocar a testa; ao faz-lo, exibia uma fisionomia reservada e pudica, como se no

devesse nem quisesse saber do ato que praticava; pudor que sem dvida se devia ao fato de ser o av, no atual estado, corpo e nada mais. Mas a mosca deu um vo circular

e aterrissou em seguida nos dedos do av, perto da cruz de marfim.

Enquanto isso sucedia, Hans Castorp percebeu, mais distintamente do que antes, aquela emanao leve apenas, mas de uma persistncia singular, e que no lhe ficava

estranha. Por vergonhoso que isso parecesse, lembrava-lhe ela um companheiro de escola, afetado de um mal desagradvel e por isso evitado pelos colegas. E Hans Castorp

compreendeu que o aroma das tuberosas tinha por objetivo abafar essa emanao, o que no conseguia, apesar da linda exuberncia e austeridade.

Hans Castorp esteve diversas vezes diante do cadver; uma vez a ss com o velho Fiete; outra, com seu tio-av Tienappel, negociante de vinhos, e os dois tios James

e Peter; depois uma terceira vez, quan

do um grupo de estivadores endomingados permaneceu durante alguns minutos perante o atade, para despedir-se do antigo chefe da casa Castorp & Filho. E chegou a

hora do enterro. A sala estava cheia de gente e o pastor Bugenhagen, da igreja de So Miguel, o mesmo que batizara Hans Castorp, pronunciou, ornado de uma golilha

espanhola, a orao fnebre. No coche que seguia frente de uma fila comprida, uma fila interminvel, o pastor conversava muito amigavelmente com o pequeno. E assim

terminou mais um captulo da vida de Hans Castorp, que logo depois mudou de casa e de ambiente, pela segunda vez na sua curta existncia.

DA CASA DOS TIENAPPELS E DO ESTADO MORAL DE HANS CASTORP

No lhe redundou isso em desvantagem, pois o menino passou a morar na casa do cnsul Tienappel, seu tutor nomeado pelo tribunal. Nada lhe faltava ali, nem com respeito

sua pessoa, nem tampouco no referente defesa dos seus interesses, dos quais ele ainda nada sabia. O cnsul Tienappel, tio da saudosa me de Hans, administrava

os bens deixados pelos Castorps. Ps venda os imveis, e tambm se encarregou de liquidar a firma Castorp & Filho, Importao e Exportao. O que conseguiu salvar

eram uns quatrocentos mil marcos, que constituiam a herana de Hans Castorp. O cnsul Tienappel colocou-os em valores seguros, cobrando, no obstante os sentimentos

de parente, trimestralmente, dois por cento de comisso legal sobre os juros vencidos.

A casa dos Tienappels, situada no fundo de um jardim, avenida de Harvestehude, dava para um gramado, no qual no se tolerava a mais mnima erva daninha. Atrs

havia um roseiral pblico e o rio. Apesar de possuir uma bela carruagem, o cnsul caminhava todos os dias ao escritrio, na cidade velha, a fim de fazer um pouco

de exerccio, pois s vezes sofria de ligeiras congestes cerebrais. s cinco da tarde regressava da mesma maneira, e a seguir comia-se na casa dos Tienappels com

todo o refinamento de gente culta. Era um homem cheio de corpo, que se vestia com os melhores tecidos ingleses. Tinha os olhos um tanto saltados, de um azul aquoso,

que escondia atrs de culos com aros de ouro; o nariz, de ordinrio, estava coberto de espinhas. O cnsul usava barba grisalha de marinheiro e um diamante esplendoroso

no curto mindinho da mo esquerda. Sua mulher j falecera havia muito tempo. Tinha dois filhos, Peter e James. O primeiro servia na marinha e passava apenas pouco

tempo em casa do pai, ao passo que o outro trabalhava na firma paterna, uma casa de vinhos, sendo considerado como o futuro sucessor do chefe. A casa era dirigida

desde muitos anos por Schalleen, filha de um ourives de Altona, que andava com alvos punhos engomados em volta dos pul-

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sos rolios; cumpria a ela cuidar que na mesa de almoo e de jantar houvesse fartura de frios, camares, salmo, enguia, peito de ganso, e tomato ketchup para o

rosbife. Observava com olhos vigilantes os garons contratados por ocasio dos banquetes, que o cnsul Tienappel dava aos seus amigos, e era ela que, na medida do

possvel, servia de me ao pequeno Hans Castorp.

Este se criou num clima abominvel, entre vento e bruma. Ia crescendo, se assim se pode dizer, dentro de um impermevel amarelo. Contudo sentia-se perfeitamente

bem. Desde cedo era um pouco

anmico, conforme verificou o dr. Heidekind, que lhe prescreveu, para antes do almoo, aps a aula, um volumoso copo de porter, bebida substancial, como se sabe,

e considerada pelo doutor como altamente sanguificativa. Em todo caso, o porter tranqilizava apreciavelmente a vitalidade de Hans Castorp e aumentava nele de modo

benfico uma determinada tendncia para a "basbaquice", como dizia seu tio Tienappel, ou seja, aquela sua inclinao para sonhar, de boca aberta, sem pensar, e com

o olhar cravado no espao. De resto era sadio e normal, um tenista regular e um bom remador, se bem que preferisse ao manejo dos remos instalar-se numa noite de

vero no terrao do clube nutico de Uhlenhorst, diante de um copo cheio, para apreciar a msica e contemplar os barcos iluminados, por entre os quais os cisnes

sulcavam o irisado espelho das guas. Bastava ouvi-lo falar, calma e ponderadamente, sem grande profundidade e com alguma monotonia, numa voz levemente influenciada

pelo dialeto hamburgus; bastava at examinar-lhe de relance a correo loura, o perfil finamente recortado, de certo cunho antigo, e no qual uma arrogncia hereditria

e inconsciente se manifestava sob a forma de uma indolncia um tanto rida,

para verificar que, indubitavelmente, esse Hans Castorp era um produto puro e autntico daquele solo e se enquadrava com absoluta perfeio no ambiente. Ele prprio,

se se tivesse estudado sob esse aspecto, no teria experimentado a mnima dvida quanto a isso.

A mida atmosfera da grande cidade martima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de pra

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zer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovao, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanaes da

gua, da hulha e do alcatro e pelos acres odores de montes de produtos coloniais, via como no cais do porto os enorms guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligncia

e a gigantesca fora de elefantes a servio do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlnticos ancorados at

os armazns das docas ou os vages da via frrea. Via os comerciantes, com impermeveis amarelos, tal qual o dele prprio, aflurem Bolsa, por volta do meio-dia,

onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que algum se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe

o crdito. Via e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses a multido que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de

vapores regressados da sia ou da frica, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hlices no ar, escorados em pontaletes grossos como rvores, monstruosos

na sua paralisia, invadidos por exrcitos de operrios que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos

numa cerrao fumosa, os esqueletos de navios em construo, enquanto engenheiros, com os planos de construo e as tabelas de zonchadura na mo, davam ordens aos

capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infncia, e despertavam nele apenas a sensao confortvel e habitual de fazer parte de

tudo isso; impresso que culminava, quando, numa manh de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen -Joachim Ziemssen comia no Pavilho

do Alster pezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, aps o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volpia a fumaa

de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparncia anmica

e refinada, agarrava-se com fervor e

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firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da me, aos prazeres fisicos que a vida lhe oferecia.

Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilizao que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus

filhos. Ia lavadinho como um nen e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiana dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente

marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armrio, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando

regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem afirmava ele que fora de Hamburgo ningum sabia engomar. Um pedacinho pudo no

punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchlo de violento mal-estar. Suas mos, posto no fossem tipicamente aristocrticas, tinham a pele

bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herana do av, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistncia mole, haviam

sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro.

Ao caminhar ou estar de p, avanava um pouco o ventre, o que no dava propriamente uma impresso de energia marcial. Em compensao era impecvel a sua postura

mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburgus. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente

do corpo, enquanto dissecava um pedao de frango ou habilmente extraa, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pina de lavagante. Terminada a refeio,

era sua primeira necessidade a tigelinha de gua perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegrio, uma vez que Hans

Castorp tinha uma fonte conveniente onde compr-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual

se falar mais adiante, e cujos txicos picantes se combinavam deliciosamente com os do caf. Hans Castorp punha as suas provises de fumo a salvo das influncias

prejudiciais da

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calefao a vapor, guardando-as no poro