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    O PREDOMNIO HUMANO

    Keith Thomas

    (Do livro: O homem e o mundo natural, Keith Thomas, Cia das Letras, 1996, pgs. 21-61)

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    (Clique aquise quiser fazer download deste texto em word compactao zip)

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    Pergunte a qualquer um na massa de gente obscura: qual o propsito da existncia das coisas? A resposta geral que

    todas as coisas foram criadas para nosso auxlio e uso prtico! [ ... ] Em resumo, todo o cenrio magnfico das coisas

    diria e confiantemente visto como destinado, em ltima instncia, convenincia peculiar do gnero humano. Dessa

    forma, o grosso da espcie humana arrogantemente se eleva acima das inumerveis existncias que o cercam.

    G. H. Toulmin, The Antiquity and Duration of the World [A ant igidade e durao do mundo, 1780, ed. de 1824], pp.51-2.

    1. FUNDAMENTOS TEOLGICOS

    Na Inglaterra dos perodos Tudor e Stuart, a viso tradicional era que o mundo fora criado para o bem dohomem e as outras espcies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades. Tal pressuposto fundamentaas aes dessa ampla maioria de homens que nunca pararam um instante para refletir sobre a questo.Entretanto, os telogos e intelectuais que sentissem a necessidade de justific-lo podiam apelar prontamente

    para os filsofos clssicos e a Bblia. A natureza no fez nada em vo, disse Aristteles, e tudo teve umpropsito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens. Os animaisdomsticos existiam para labutar, os selvagens para serem caados. Os esticos tinham ensinado a mesma

    coisa: a natureza existia unicamente para servir os interesses humanos. (1)Foi nesse esprito que os comentadores Tudor interpretaram o relato bblico da criao. Se bem que osespecialistas modernos localizem relatos conflitantes incorporados na narrativa do Gnesis, os telogos doincio do perodo moderno, de modo geral, no viam dificuldades para chegar a uma sntese razoavelmenteaceita. (2)O Jardim do den, afirmavam, era um paraso preparado para o homem, no qual Deus conferiu aAdo o domnio sobre todas as coisas vivas (Gnesis, 1, 28). No princpio, homem e bestas conviveram

    pacificamente. Os homens provavelmente no eram carnvoros e os animais eram mansos. Mas com o pecadoe a Queda a relao se modificou. Ao rebelar-se contra Deus, o homem perdeu o direito de exercer umdomnio fcil e inconteste sobre as outras espcies. A terra degenerou. Espinhos e cardos nasceram onde

    antes existiam apenas frutos e flores (Gnesis, III, 18). O solo fez-se pedregoso e rido, tornando necessrioum trabalho rduo para o seu cultivo. Apareceram pulgas, mosquitos e outras pestes odiosas. Vrios animaislivraram-se da canga, passando a ser ferozes, guerreando uns com os outros e atacando o homem. Atmesmo os animais domsticos deviam agora ser forados submisso.

    Ento, aps o Dilvio, Deus renovou a autoridade do homem sobre a criao animal:

    Temam e tremam em vossa presena todos os animais da terra, todas as aves do cu, e tudo oque tem vida e movimento na terra. Em vossas mos pus todos os peixes do mar. Sustentai-vosde tudo o que tem vida e movimento (Gnesis, IX, 2-3).

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    Doravante, os homens seriam carnvoros e os animais poderiam ser abatidos e comidos legitimamente,guardando-se apenas as restries de dieta vigentes. Nesta lei do Antigo Testamento o domnio do homemsobre a natureza se fundou. (3)O advento de Cristo reforou-a, sendo visto por alguns comentadores comouma confirmao dos direitos humanos sobre o mundo natural; embora tambm fosse possvel argumentar quetais direitos se reservavam aos cristos verdadeiramente regenerados. (4)

    difcil, hoje em dia, ter noo do empolgante esprito antropocntrico com que os pregadores das dinastiasTudor e Stuart interpretavam a histria bblica. Eles no hesitavam em representar os atributos fsicos domundo como uma resposta direta ao pecado de Ado: "A Terra ser maldita por causa da tua obra" (Gnesis,III, 17). Foi apenas devido ao pecado original que os animais selvagens ficaram ferozes, que existem osdetestveis rpteis e que os animais domsticos tm de suportar infortnio e misria. "As criaturas no foramfeitas para si mesmas, mas para o uso e o servio do homem", disse um bispo do tempo de Jaime I. "Se

    piorou a sua condio no foi por castigo a eles, mas como parte do nosso. (5)

    O predomnio humano tinha, portanto, lugar central no plano divino. 0 homem era o fim de todas as obras deDeus, declarava Jeremiah Burroughes, em 1657; "Ele fez os outros para o homem e o homem para si

    prprio". "Todas as coisas", concordava Richard Bentley em 1692, foram criadas "principalmente para o

    benefcio e prazer do homem". "Se procuramos as causas finais, o homem pode ser visto como o centro domundo", ponderava Francis Bacon, "de tal forma que se o homem fosse retirado do mundo todo o restopareceria extraviado, sem objetivo ou propsito". (6) Alguns clrigos pensavam que aps o Juzo Final omundo seria aniquilado; ele tinha sido feito somente para acomodar a humanidade, sendo este o seu nicouso. (7)

    Assim, a despeito do pecado original, o direito humano ao domnio permanecia intacto. Ele era ainda "o lugar-tenente e vigrio de Deus Todo-Poderoso". "Todas as criaturas foram feitas para o homem, sujeitas a seugoverno e destinadas a seu uso." (8)Os animais eram menos dceis que antes, mas no tinham esquecido detodo seus deveres. Como observou Andrew Willet em 1605, ainda persistia "um instinto natural de obedincia

    nessas criaturas que so para o uso humano, como o boi, o asno e o cavalo". (9)"Por vezes", dizia JeremiahBurroughes em 1643, "pode-se ver uma criana pequena guiando uma centena de bois ou vacas para c ou

    para l, a seu talante; isso mostra que Deus preservou algo do domnio do homem sobre as criaturas". (10)Oinstinto que trazia os peixes ao litoral em cardumes, salientava o clrigo no-conformista Philip Doddridge umsculo depois, "parece uma sugesto de que eles se destinam ao uso humano". O nico propsito dos animais,declarava o elisabetano Thomas Wilcox, era prestar servio ao homem, "para cujo benefcio foram feitastodas as criaturas que existem". (11)

    Foi tendo em mente as necessidades humanas que Deus criteriosantente projetou e distribuiu os animais. Oscamelos, observou um pregador em 1696, foram sensatamente colocados na Arbia, onde no havia gua, e

    as bestas selvagens "enviadas a desertos, onde podiam causar menos dano". Constitua um sinal daProvidncia Divina que os animais selvagens fossem menos prolficos que os domsticos e que vivessem emcovis durante o dia, geralmente saindo apenas noite, quando os homens dormiam. (12) Alm disso,enquanto os indivduos das espcies selvagens so muito parecidos entre si, as vacas, os cavalos e outrosanimais domsticos apresentam uma variao muito conveniente de cor e forma, providenciada para que "ohomem pudesse distingui-los mais prontamente e saber de quem eles so propriedade". O mdico GeorgeCheyne, em 1705, explicou que o Criador fez o excremento dos cavalos ter bom cheiro porque sabia que oshomens estariam sempre na vizinhana deles." (13)

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    Todo animal estava, pois, destinado a servir algum propsito humano, se no prtico, pelo menos moral ouesttico. Os animais selvagens necessariamente eram instrumento da ira divina, tendo sido deixados entre ns"a fim de serem nossos professores", refletia James Pilkington, bispo elisabetano; eles estimulavam a coragemdo homem e propiciavam treinamento til para a guerra. (14) Os mosces, especulava o fidalgo virginianoWilliam Byrd em 1728, foram criados para que "os homens pudessem exercitar suas faculdades e engenho aose protegerem contra eles". Os macacos e papagaios foram feitos "para o contentamento do homem". Os

    pssaros canoros foram projetados "com o propsito de entreter e deliciar a espcie humana". (15)A lagosta,

    observou o elisabetano George Owen, servia a vrios fins em um nico: fornecia ao homem alimento, pois elepodia comer sua carne; exerccio, pois tinha primeiro de quebrar suas patas e pinas; e objeto decontemplao, pois era possvel apreciar sua magnfica carapaa, com seus "saios, braais (avambraos),espaldeiras, coxotes, manoplas (guantes) e gorjais, curiosamente batidos e forjados pelo mais admirvelartfice do mundo".

    (Observao: Saios e coxotes eram as peas da armadura que protegiam as coxas; as manoplas souguantes defendiam as mos; as espaldeiras cobriam os ombros e os gorjais a garganta.)

    No tocante ao gado e s ovelhas, Henry More estava convencido, em 1653, de que a nica razo para eles

    terem sido criados antes do homem foi a de manter sua carne fresca "at termos necessidade de nos alimentardeles". Ainda na dcada de 1830, os autores dos Tratados de Bridgewater sobre a "bondade de Deusconforme manifestada na Criao" sustentavam que todas as espcies inferiores tinham sido feitas paraservir os propsitos humanos. Deus criou o boi e o cavalo para labutar a nosso servio, disse o naturalistaWilliam Swainson; o co para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir "perfeita satisfao emum estado de parcial confinamento" O piolho era indispensvel, explicava o reverendo William Kirby, porquefornecia poderoso incentivo aos hbitos de higiene. (16)

    Os vegetais e minerais eram considerados da mesma maneira. Henry More pensava que seu nico propsitoera estender a vida humana. Sem a madeira, as casas dos homens no passariam de "uma espcie maior de

    colmias ou ninhos, construda de gravetos e palha desprezveis e de imunda argamassa"; sem os metais, oshomens teriam sido privados da "glria e pompa" da batalha, ferida com espadas, armas e trombetas; em vezdisso, haveria somente "os uivos e brados de homens pobres e nus espancando-se uns aos outros [ ... ] com

    porretes, ou brigando tolamente aos murros". At mesmo as ervas daninhas e os venenos tinham seus usosessenciais, notava um herbartrio: exercitavam "o engenho humano em elimin-los [ ... ]. No tivesse ele nadacontra que lutar e o lume de seu esprito estaria em parte extinto". (17)

    Foi no final do sculo XVII e incio do XVIII que tais debates sobre a perfeio dos desgnios do Criadoratingiram sua forma mais engenhosa e extravagante. No sculo que se seguiu Reforma, em contraste, atendncia dos telogos foi colocar grande nfase no pecado original. Passou-se a enfatizar o estado miservel

    e decadente do mundo natural, e os obstculos que Deus tinha posto no caminho do homem; raramente sesustentava que tudo era como idealmente devia ser. Entretanto, a partir de meados do sculo XVII, houveuma crescente disposio a colocar em segundo plano o pecado original para destacar no a decadncia danatureza, mas seu desgnio benvolo. Tudo foi feito para melhor; no havia desarmonias reais entre anecessidade do homem e a das criaturas a ele subordinadas; os conflitos de interesse no passavam deaparncia.

    No sculo XVIII, insistia-se amplamente em que a domesticao era benfica para os animais; ela oscivilizava e aumentava seu nmero: "ns multiplicamos a vida, a sensao e o prazer". (18)Vacas e ovelhas

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    passavam melhor sob os cuidados do homem que deixadas merc de predadores ferozes. Abat-las paraalimento podia parecer cruel, dizia Thomas Robinson em 1709, mas, "quando se examina o assunto mais de

    perto", isso se mostrava "uma gentileza, em vez de crueldade"; o seu fim era rpido e se lhes poupava ossofrimentos da idade. No havia injustia quanto a matar o gado para fornecer alimento para "um animal maisnobre", pensava o arcebispo King; foi apenas por essa razo que as bestas foram criadas antes de ns. Almdisso, acrescentava William Wollaston, os sofrimentos dos seres brutos no eram como os do homem. Elesno tinham nenhuma concepo do futuro e nada perdiam por serem privados da vida. Era, portanto, "melhor

    para os bichos estarem sob o domnio do homem". (19)

    A autoridade humana sobre o mundo animal era, assim, virtualmente ilimitada. Ele podia us-la como lheaprouvesse, dizia John Day em 1620: "para seu proveito ou prazer". (20)Os vegetais, obviamente, no tinhamdireitos, por serem destitudos de sentido e, dessa forma, incapazes de serem feridos." (21)Tampouco osanimais tinham algum direito. Eles "no podem ter nenhum direito de sociedade conosco", dizia LancelotAndrewes, "porque carecem de razo". No podiam possuir terra, pois Deus concedera a Terra aos homens,no aos carneiros e cervos. (22)Ao contrrio dos homens, as bestas no tinham autoridade para seu domniosobre as criaturas que consumiam. Nem mesmo tinham poder sobre suas prprias vidas. "Elas no possuemnenhum direito de propriedade sobre nenhuma coisa", salientava Samuel Gott, "no, nem sobre si prprias".

    "Podemos gui-las a qualquer espcie de morte que exija a necessidade, seja de nossa alimentao, ou denosso corpo", declarava o bispo Hopkins. (23) Quando os animais tornavam-se incmodos, concordavaHenry More, os homens tinham o direito de cont-los, "pois no h como discutir que ns somos maisvaliosos que eles". A vivisseco, pensava Isaac Barrow, era "urna crueldade das mais inocentes e umaferocidade facilmente desculpvel". Mesmo Thomas Hobbes, que rejeitava a autoridade das Escrituras para ahegemonia do homem, concordava que no poderiam existir obrigaes para com os animais, porque "fazer

    pactos com as bestas impossvel". (24)

    Desse modo, quando viajantes comearam a trazer relatos de como as religies orientais mantinham umaviso totalmente diferente, e como os jainas, os budistas e os hindus respeitavam as vidas dos animais, at

    mesmo dos insetos, a reao geral foi de desconcertado desdm. Era um "desatino inenarrvel - da parte doshindus, na opinio de um observador do sculo XVII, jogar a viva na pira do marido e, no obstante, seremto cuidadosos com as existncias de criaturas insignificantes, "como se a vida de um homem fosse de menosimportncia e considerao que a do bicho". (25)

    (Observao: Em Shipton-under-Wychwood, Oxfordshire, no ano de 1615, o pregador Henry Mills ilustrava o carterprofano da religio turca para seus ouvintes rurais contando-lhes de "uma mulher que, em meio a uma longa jornada,

    apanhava gua com as mos e a oferecia a seu co que desfalecia de sede, a fim de restaurar as foras do animal, e como

    essa mulher, na religio turca, fora conduzida ao paraso em virtude de tais feitos"; Biblioteca Bodleiana, Documentos

    da Diocese de Oxford, c. 25, fol. 266)

    Os vestgios de um ponto de vista similar no Ocidente tambm mereciam condenao. "No posso aprovar",afirmava um pregador em 1612, "a filosofia demasiado piedosa de Pitgoras, que no permitiria que a vida da

    planta ou do animal fosse violada". Lancelot Andrewes seguia santo Agostinho e Toms de Aquino aodescartar, desdenhosamente, a doutrina maniquesta de que o homem no tinha direito de matar outrascriaturas. O sexto mandamento, contra o assassinato, no valia para os no-humanos, explicava ele. (16)Nomesmo esprito, um apicultor do sculo XVII criticava o "temperamento piedoso" daqueles que consideravamuma pena matar as abelhas para conseguir mel (prtica comum na poca): "O Senhor Deus no trouxe at nsas criaturas para nosso benefcio", indagava ele, "e para serem usadas conforme nos parea melhor para onosso bem? [ ... ] No guardar a lei usar essas tolas criaturas de tal forma que possam servir melhor ao

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    nosso benefcio, o que eu considero ser o seu uso correto e a finalidade para a qual foram criadas?". Nosculo XVIII, Philip Doddridge considerava que, como os animais so "capazes apenas de nveis limitados defelicidade, em comparao com o homem", "adequado que os interesses deles cedam ao da espcie humanasempre que, em algum artigo considervel, surgir competio entre uns e outros" . (27)

    At mesmo quem desejava matar animais por simples prazer podia invocar, como observou Thomas Fullerem 1642, "o alvar dado ao homem para dominar as criaturas". Das rinhas de galo e do aulamento de ursos,eles podiam dizer: "O cristianismo nos fornece a insgnia que permite usar esses esportes". Os provrbiostradicionais sobre a autoridade do homem diante dos animais foram muito bem resumidos, em 1735, pelo

    poeta e caador William Somervile:

    As criaturas brutas so sua propriedade,

    Feitas para ele, servis sua vontade.

    To til o que ele preserva, como o que mata nocivo;

    O seu soberano nico e exclusivo. (28)

    A teologia da poca assim fornecia os alicerces morais para esse predomnio do homem sobre a natureza, quetinha se tornado, em incios do perodo moderno, um propsito amplamente reconhecido da atividadehumana. A tradio religiosa dominante no mantinha nenhum vnculo com aquela "venerao" da naturezaencontrada em vrias religies do Oriente e que o cientista Robert Boyle corretamente reconhecia como um"obstculo desencorajador ao imprio do homem sobre as criaturas inferiores". Desde os tempos dos anglo-saxes, a Igreja crist na Inglaterra colocou-se contra o culto das nascentes e dos rios. As divindades pagsdo bosque, da corrente e da montanha foram expulsas, deixando assim desencantado o mundo, e pronto paraser formado, moldado e dominado. (29)

    Em 1967, o historiador americano Lynn White Jr., descreveu o cristianismo, em sua forma ocidental, como "areligio mais antropocntrica que o mundo j viu"; e seu breve artigo culpando a Igreja medieval peloshorrores da poluio moderna tornou-se quase que uma bblia para os ecologistas de nossos dias. (30) * O

    professor White no foi o primeiro a atribuir a explorao ocidental da natureza ao legado religiosocaracterstico da Europa. * * Entretanto, como seus predecessores, ele provavelmente superestimou aextenso em que as aes humanas eram determinadas apenas pela religio oficial. Na dcada de 1680, odissidente ingls Thomas Tryon tambm comparava as exigncias moderadas que os ndios norte-americanosfaziam natureza com a apropriao implacavelmente manipulatria dos invasores europeus. ***Mas elereconhecia que foram os novos incentivos comerciais que fizeram a diferena: foi menos a substituio do

    animismo pago pelo cristianismo que a presso do comrcio internacional de peles o que levou caapredatria e a uma destruio sem precedentes da vida selvagem canadense. Como notaria Karl Marx, nofoi sua religio, mas o surgimento da propriedade privada e da economia monetria, o que conduziu oscristos a explorar o mundo natural de uma forma que os judeus nunca fizeram; foi aquilo que ele chamou "agrande influncia civilizadora do capital" que, finalmente, ps fim "deificao da natureza". (31)Crticos maisrecentes da tese do professor White observaram que os antigos romanos exploravam os recursos naturais nomundo pr cristo de modo mais eficaz que seus sucessores medievais cristos; e que, no perodo moderno, oculto da natureza no evitou a poluio industrial no Japo. Os problemas ecolgicos no so exclusivos doOcidente, pois a eroso do solo, o desmatamento e a extino de espcies tiveram lugar em partes do mundoonde a tradio judaico- crist no teve qualquer influncia. Os maias, os chineses e os povos do Oriente

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    Prximo foram capazes de destruir seu meio ambiente sem a ajuda do cristianismo. Na verdade, osensinamentos cristos eram menos idiossincrticos do que o professor White sugeria, pois havia outrasreligies, no-crists, que tambm tinham seus mitos sobre a autoridade que Deus concedera ao homem paradominar o mundo natural. Em 1632, por exemplo, dizia-se sobre os ndios americanos que "eles tm umatradio segundo a qual Deus fez o homem e a mulher e ordenou-lhes que vivessem juntos e tivessem filhos,matassem os cervos, os animais, os pssaros, peixes e aves aquticas, e o que mais quisessem, a seu bel-

    prazer". (32)O antropocentrismo no foi apenas da Europa ocidental.

    Alm disso, o legado judaico-cristo era muito ambguo. Alm da nfase no direito do homem a explorar asespcies inferiores, apresentava outra doutrina diferente, do homem como gerente ou lugar-tenente de Deus eresponsvel pelas suas criaturas. Os telogos ingleses citados at aqui tendiam a desconsiderar as passagensdo Antigo Testamento nas quais se sugeria que o homem tem o dever de agir responsavelmente diante dacriao divina. Eles passavam por cima do embaraoso trecho dos Provrbios (XII, 10), que ensinava que o

    justo cuidada vida de seus animais, e pela parte de Osias(II, 18), em que estava implcito serem os animaisparticipes da aliana divina. " indubitvel que tal expresso metafrica", dizia um professor de Oxford, em1685, "pois as coisas a mencionadas no so partes apropriadas para fazer uma aliana". Muitos homenscultos e judiciosos tomavam, portanto, essa passagem como mera renovao da aliana pela qual os animais

    foram sujeitos a Ado. (33) No tocante aos Provrbios, os comentadores citavam com muito alvio apergunta de so Paulo, naPrimeira Epistola aos Corntios (IX, 9):"Acaso tem Deus cuidado dos bois?" -que eles, talvez incorretamente, tomavam como evidncia de que a resposta era no. (34)

    Mas pode-se sustentar, com algum cabimento, que a influncia grega e estica distorceu o legado judaico, demodo a tornar a religio do Novo Testamento muito mais antropocntrica que a do Antigo; e que ocristianismo ensina, numa escala jamais encontrada no judasmo, que o mundo todo se subordina aosobjetivos do homem. (35)Afortunadamente, a discusso teolgica mais atual sobre o verdadeiro significadoda Bblia irrelevante para os propsitos deste livro. No necessrio determinar, aqui, se o cristianismo ou no intrinsecamente antropocntrico. A questo que no incio do perodo moderno seus principaisexpoentes ingleses, os pregadores e os comentadores, sem dvida o foram. No devido momento, as doutrinascrists seriam retomadas para dar fora a uma viso totalmente diferente das relaes do homem com osanimais. Mas no incio de nosso perodo a explorao, no a gerncia, foi o tema dominante. Um leitor que seaproximasse, inocente, dos escritos morais e teolgicos dos sculos XVI e XVII poderia ser perdoado porinferir que o principal propsito deles era definir a condio especial do homem e justificar seu domnio sobreas outras criaturas.

    II. A SUJEIO DO MUNDO NATURAL

    Com efeito, "civilizao humana" era uma expresso virtualmente sinnima de conquista da natureza. O mundovegetal sempre foi fonte de alimento e de combustvel; o Ocidente, por esta poca, caracterizava-se por suadependncia excepcionalmente alta dos recursos naturais, fosse para o trabalho, o alimento, o vesturio ou otransporte. A civilizao da Europa medieval seria inconcebvel sem o boi e o cavalo. *Na verdade, j secalculou. que o emprego de animais para carga e trao fornecia ao europeu do sculo XV uma fora motrizcinco vezes superior de seus contemporneos chineses. Tal como a sociedade chinesa, as sociedades astecae inca da Amrica contavam com menos animais que seus conquistadores europeus; foram os espanhis queintroduziram os cavalos, bois, ovelhas e porcos no Novo Mundo. (1) Alm disso, os europeus eramexcepcionalmente carnvoros, em comparao com os povos vegetarianos do Oriente. (2)

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    Em nenhuma parte da Europa essa dependncia dos animais foi maior que na Inglaterra, no sculo XVIII etalvez muito antes, uma proporo de animais domsticos por rea cultivada e por pessoa superior dequalquer outro pas da Europa, salvo os Pases Baixos. (3)O incio da poca moderna inglesa presenciou umanotvel expanso no uso de cavalos para trao, dessa forma liberando gradualmente os bois para seremusados como alimento humano. (4)Osvisitantes estrangeiros espantavam-se vendo tantos aougues e tantaalimentao baseada na carne. "Nossos matadouros", declarava o elisabetano Thomas Muffett, so "amaravilha da Europa, sim, verdade, e mesmo de todo o mundo". Londres, pensava Henry Peachman, "come

    mais carne de vaca e carneiro num ms que toda a Espanha, a Itlia e uma parte da Frana num ano inteiro".(5)Evidentemente, a carne era um luxo relativo. "Nossos pobres camponeses", assinalava um telogo em1608, "alimentam-se em sua maior parte de queijo duro, leite e razes"; no final do sculo XVII, Gregory Kingcalculava que um quarto da populao podia se permitir comer carne somente dois dias; em sete, e outroquarto no mais que uma vez por semana. Mas restava ainda metade dos habitantes que comia carneregularmente, numa mdia de 67 kg por ano - e King exclua de seus clculos a carne bovina importada dosholandeses e o toucinho da Westflia. Os marinheiros britnicos do sculo XVIII tinham direito a 94 kg decarne de vaca por ano e 47 kg anuais de carne de porco.6 No ano de 1726, estimou-se que somente emLondres foram abatidos cem mil bois, cem mil vacas e seiscentos mil novilhos. Em 1748, o visitante suecoPehr Kalm notou que a Inglaterra era diferente de outros pases porque a carne de aougue constitua a maior

    parte da principal refeio diria: "No creio que algum ingls dono de seu prprio nariz jamais tenha comidouma refeio sem carne". (7) O ideal de qualquer pessoa era uma dieta rica em carne, pois esta,

    particularmente a de vaca, constitua, segundo os mdicos, "de todos os alimentos [ ... ] o mais conveniente natureza do homem e aquele que produz a nutrio mais abundante para o corpo"; supunha-se que a carnetornava os homens viris e agressivos.8 Um telogo escocs chegou mesmo a considerar necessrio explicarque a doutrina judaica, segundo a qual gluto quem come mais de meio quilo de carne de uma s vez, nose aplicava "a estes pases frios", onde decididamente no era gula consumir mais de meio quilo de carne deuma s sentada. (9)

    Do sculo XVI ao XVIII, coerentemente, o rosbife foi um smbolo nacional da Inglaterra. (10) No poracaso, o ato de trinchar a carne mesa era um atributo social to importante, associado a um vocabulriosenhorial (e caracteristicamente sdico):

    Despedaar esse cervo; [ ... ] alar esse ganso; suspender esse cisne; temperar esse frango;quebrar as asas desse pato selvagem; desamarrar esse coelho; desmembrar essa gara; exibiressa grua; mutilar esse pavo; desjuntar esse abetouro; [ ... ] picar essa tarambola; abrir essa

    brema; [ ... ] domar esse caranguejo [...]

    Enquanto isso, os cientistas e planejadores econmicos do sculo XVII anteviam triunfos ainda maiores sobreas espcies inferiores. Para Bacon, o fim da cincia era devolver ao homem o domnio sobre a criao que ele

    perdera em parte com o pecado original, ao passo que Robert Boyle era instado por seu correspondenteJohn Boyle a estabelecer o que este chamava "o imprio da espcie humana". Para os cientistas formadosnessa tradio, todo o propsito de estudar o mundo natural se resumia em que "a Natureza, desde queconhecida, ser dominada, gerida e utilizada a servio da vida humana". (12)Como salientou William Forsyth,em 1802, num apelo observao das lagartas: "seria de grande utilidade familiarizar-se tanto quanto possvelcom a economia e a histria natural de todos esses insetos, na medida em que, desse modo, estaramos aptosa achar o mtodo mais adequado de destru-los"." A motivao inicial para o estudo da histria natural foi deteor prtico e utilitrio. A botnica nasceu corno uma tentativa de identificar os "usos e virtudes" das plantas,essencialmente para a medicina, mas tambm para a culinria e a manufatura. Era convico geral que cada

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    parte do mundo das plantas tinha sido projetada para servir um propsito humano, o que levou JohnColbatch, em 1719, a descobrir o uso medicinal do visco: "Veio-me de pronto mente que algo deextraordinrio devia existir nessa planta de invulgar beleza; que o Todo-Poderoso a tinha destinado a fins maisavanados e nobres que meramente o de alimentar os tordos ou ser pendurado nas casas dos supersticiosos

    para espantar os maus espritos [ ... ]. Conclu, a priori, que seria muito provavelmente para dominar [ ... ] aepilepsia". (14)

    Tambm eram de ordem prtica as intenes da zoologia. A Sociedade Real*

    estimulou o estudo dosanimais com vistas a determinar "se eles podiam ser de alguma serventia ao gnero humano, como alimento ouremdio; e se esses ou quaisquer outros usos deles podiam ser ainda mais aprimorados". "No questofilosfica de pouca monta", considerava seu secretrio Henry Oldenburg, "saber [ ... ] que animais podem serdomesticados para o benefcio humano e que cruzamentos com outros animais podem ser efetuados"."Sculos de criao seletiva j tinham refinado a proviso de animais domsticos, vacas, ovelhas, galinhas e

    pombas, mas restavam muitas possibilidades novas ainda por explorar. Os porcos, exortava sir William Petty,podiam ser ensinados para o trabalho; mudada a sua dieta, a carne da criao domstica poderia sermelhorada.

    Um dos correspondentes de Samuel Hartlib sugeria que animais mais exticos fossem introduzidos naInglaterra: se deu certo com os perus, por que no com os elefantes, bfalos ou mulas? ** "Rezo a Deus

    pela introduo de novas criaturas nesta ilha", entoaria Christopher Smart, "Pois rogo a Ele pelas avestruzesda Plancie de Salisbury, pelos castores do Medway e os peixes prateados do Tmisa". No sculo XIX, oobjetivo oficial da Sociedade Zoolgica seria o de aclimatar e desenvolver novos animais domsticos. (16)Osanimais, como afirmava em 1835, o reverendo William Kirby, eram do maior interesse para todas as pessoas,no s por sua diversidade e beleza, "ruas, acima de tudo, por sua preeminente utilidade para o gnerohumano". (17)

    As plantas eram igualmente maleveis. Uma ampla gama de plantas de cultivo fora herdada da antigidade

    remota, mas o contnuo desenvolvimento e experimentao abriam novas perspectivas. Os estudiosos daagricultura descreviam os grandes melhoramentos alcanados pela -modificao das espcies daquelesvegetais que so naturalmente produzidos, suprimindo por completo alguns e difundindo outros em seulugar".18 Um hortelo declarava, em 1734, que o homem agora dispunha do poder de "conduzir o mundovegetal a um aperfeioamento, satisfao e prazer muito superiores aos conhecidos em idades passadas".Uma infinidade de rvores, flores, frutos, vegetais e culturas industriais exticas aguardava a ocasio de serimportada. (19)O mundo era plstico, apto a ser adaptado e modelado.

    Na histria conjectural que se foi tornando mais e mais popular devido ao Iluminismo europeu do sculoXVIII, fez-se da vitria do homem sobre outras espcies o tema central. A verdadeira origem da sociedadehumana, dizia-se, estava na associao dos homens para se defenderem das feras . (20)Depois vieram a caae a domesticao. O ato humano fundamental, considerava Buffon, foi domesticar o co. Isso levou,concordava Thomas Bewick, conquista e posse pacfica da terra. (21) No fosse o camelo, refletiaHerder, os desertos da frica e da Arbia teriam permanecido inacessveis e, sem o cavalo, os europeus

    jamais conquistariam a Amrica. Lord Kames notou que, sem a rena, a Lapnia permaneceria virgem. AdamSmith observava que plantaes e rebanhos foram as formas mais primitivas de propriedade privada. "Nossalabuta diminuda e nossa riqueza aumentada graas ao controle dos animais teis", dizia Edward Gibbon.(22)

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    Hoje, quando o nosso predomnio sobre a natureza parece quase completo, h inmeros comentadoresdispostos a tornarem os olhos com nostalgia para perodos passados, em busca de um equilbrio mais justo.Mas nas pocas Tudor e Stuart a atitude caracterstica foi de exaltao a um domnio humano to arduamenteconseguido. 0 controle do homem sobre a natureza era o ideal conscientemente proclamado dos primeiroscientistas modernos. No obstante, apesar do imaginrio agressivamente desptico explcito em seu discursode "posse", "conquista" e "domnio", eles encaravam sua tarefa, graas a geraes de pregao crist, comoinocente do ponto de vista moral. "Ela jamais causou dano a qualquer homem", disse Francis Bacon, "nunca

    gravou com remorso a sua conscincia". O agricultor, entoava Abraham Cowley, confinava seu ofcio a"guerras inocentes, apenas contra bichos e pssaros"; William Somervile concordava: embora, de fato,"sangrenta", a caa era, "ainda assim, livre de culpa". (23)

    Nos poemas de "casa de campo", do incio do sculo XVII, pssaros e animais encontravam satisfao em seoferecer para serem alimento do homem.

    A perdiz, a cotovia e o faiso,

    Como para a Arca, tua casa vo.

    Sozinho volta o boi ordeiro

    Ao matadouro, com o cordeiro;

    E todo bicho segue a senda,

    Traz a si mesmo em oferenda. (24)

    Os rituais dos caadores da poca denunciam prazer sem inibies na captura e matana de animaisselvagens. Quando Jaime I ia caa do veado ele cortava, pessoalmente, a garganta da presa e untava com

    sangue as faces de seus cortesos, no sendo permitido que estes se limpassem; e tornou-se praxe, entre"damas e mulheres de escol, aps a caa de um cervo, assistir no local at que ele fosse aberto, a fim de

    poderem lavar as mos com sangue, o que deveria torn-las mais alvas". (25)Nos manuais eqestres, montara cavalo no era s um modo de transporte confortvel. Em esprito, era como um espetculo do tipo daFeira de so Bartolomeu, na qual se mostravam "feras amansadas"; (26)simbolizava o triunfo humano; era arazo dominando as paixes animais. Assim, o espetculo de um fidalgo "atemorizando um bicho feroz ecruel" criava "majestade e terror aos olhos das pessoas inferiores, ao contemplarem-no acima da marchacomum dos outros homens", conforme declarava sir Thomas Elyot. medida que saltava e fazia corcovear,galopava e dava voltas, ou habilmente se movia de lado, o ginete do grande cavalo proclamava no s a suasuperioridade social como o seu domnio da criao animal. (27)Os cavalos da poca diferiam em matizessociais tanto quanto os automveis de hoje. Mas um cavalo qualquer era melhor que nada, e o nmero dessesanimais multiplicou-se. Um visitante estrangeiro notou, em 1557, que na Inglaterra nenhum homem andaria a

    p se pudesse evit-lo; num sculo depois, sir William Petty no era capaz de mencionar prova melhor de queo domnio ingls beneficiara os irlandeses: "agora, na Irlanda, o homem mais pobre monta a cavalo quando,at aqui, mesmo o melhor deles andava a p como animal". No incio do sculo XVIII, uma das supostasatraes da vida na Carolina do Sul era que os cavalos eram em to grande nmero que raramente se viaalgum ali viajar a p, exceto os negros, e mesmo estes, com freqncia, iam a cavalo. (28)

    No mesmo esprito, os colonizadores da Virgnia iniciaram a tarefa de converter os ndios oferecendo-lhes

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    uma vaca para cada oito lobos que pudessem matar, troca esta que, na sua conciso, simbolizava muito bema viso que tinham dos usos a atribuir ao mundo natural. Oferecer gado aos ndios, alegava-se, seria "um

    passo para civiliz-los e faz-los cristos". (29). Pela mesma razo, duzentos anos depois, na GrandeExposio de 1851, uma barraca exibia peles de macaco trazidas; da frica. Era penoso, escreveu umcontemporneo sensvel, pensar nos sofrimentos que as criaturas deviam ter suportado. Mas havia um raio deesperana: "o trabalho de capturar esses macacos civiliza os africanos". (30)

    III. A SINGULARIDADE HUMANA

    Os escrpulos quanto ao tratamento de outras espcies eram afastados pela convico de que havia umadiferena fundamental, em gnero, entre a humanidade e as outras formas de vida. A justificativa para essacrena remontava a antes da Cristandade, chegando at os gregos. Segundo Aristteles, a alma compreendiatrs elementos: a alma nutritiva, compartilhada pelos homens e vegetais; a alma sensvel, dos homens eanimais; e a alma racional ou intelectual, exclusiva do homem. (1)Tal doutrina foi retomada pelos escolsticosmedievais e combinada com a idia judaico-crist de que o homem foi feito imagem de Deus (Gnesis, I,27). Ao invs de representar o homem apenas como um animal superior, essa concepo o elevava a umestado completamente diferente, a meio caminho entre animais e anjos. No incio do perodo moderno, ela se

    fez acompanhar de boa dose de auto-satisfao.

    O homem, dizia-se, era mais belo e perfeitamente formado que qualquer dos outros animais. Ele tinha "maisda majestade divina em suas feies" e uma "simetria mais rara das partes". (2) Jeremiah Burroughesrecordava sua congregao que, quando Deus viu suas outras obras, Ele apenas disse que eram "boas", ao

    passo que, quando fez o homem, Ele disse "muito boas": "Observem, nunca disse 'muito boas' at o ltimodia, at que o homem fosse feito" (3)

    Ainda assim, existia uma acentuada falta de concordncia sobre onde exatamente repousava a superioridadeexclusiva do homem. A busca desse esquivo atributo foi um dos mais srios desafios enfrentados pelos

    filsofos ocidentais, a maior parte dos quais tendeu a se fixar em um trao e a enfatiz-lo de maneiradesproporcional, por vezes at o absurdo. Assim, o homem foi descrito como animal poltico (Aristteles);animal que ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utenslios (Benjamin Franklin); animal religioso(Edmundo Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lvi-Strauss). Como observa o Sr.Cranium do romancista Peacock, o homem j foi definido como bpede implume, como animal que formaopinies e, ainda, animal que carrega um basto . (4)O que todas essas definies tm em comum queassumem uma polaridade entre as categorias "homem" e "animal" e que invariavelmente encaram o animalcomo inferior. Na prtica, obviamente, o objetivo de tais definies nunca esteve tanto em distinguir oshomens dos animais quanto em propor algum ideal de comportamento humano, como quando MartinhoLutero e o papa Leo XII afirmaram, um em 1530 e outro em 1891, que a propriedade privada constitua a

    diferena essencial entre os homens e os animais. (5)

    A poca Tudor, a quantidade de preceitos herdados sobre o assunto j era enorme. A partir de Plato, deu-se grande importncia postura ereta: os animais olhavam o cho, mas o homem alava os olhos para o Cu.(6)Aristteles desenvolveu o tema, acrescentando que o homem ri, que seu cabelo encanece e que somente ohomem no pode menear as orelhas. (7) No comeo da Idade Moderna, as diferenas anatmicascontinuavam a ter grande peso. Segundo um mdico do primeiro perodo Stuart:

    O homem de estrutura muito diferente, em seus intestinos, dos animais vorazes, como os ces,lobos, etc., que, preocupados apenas com a barriga, os tm descendo quase diretamente de seu

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    ventrculo ou estmago ao nus: ao passo que, nesse nobre microcosmo que o homem,existem nas partes intestinais vrias circunvolues sinuosas, meandros e voltas, por meio dasquais, obtendo uma reteno mais longa do alimento, ele capaz de muito melhor se dedicar aespeculaes sublimes e a proveitosos servios tanto na Igreja como Estado. (8)

    No final do sculo XVIII, o esteta Uvedale Price chamava especial ateno para o nariz. "Creio que o homem o nico animal que possui uma salincia pronunciada no meio da face." (9)

    Trs outras caractersticas humanas recebiam uma certa nfase. A primeira era a fala, qualidade que John Raydescreveu como "to peculiar ao homem que nenhum animal jamais poderia consegui-la". Era atravs da fala,dizia Ben Jonson, que o homem expressava sua superioridade sobre as outras criaturas. Sem ela, concordavao bispo Wilkins, o homem seria "uma criatura muito banal". Por no contarem com a linguagem, explicava oeconomista do sculo XVII I, James Anderson, as bestas no podiam transmitir experincia a sua

    posteridade: somente o homem progredia, enquanto as outras espcies animais tinham "as mesmascapacidades e propenses [ ... ] desde o perodo mais remoto em que as conhecemos. (10)

    A segunda qualidade distintiva era a razo. O homem, como afirmou o bispo Cumberland, era "um animal

    dotado de inteligncia". Saber se a diferena era de tipo ou apenas de grau continuava em debate. Algunsviam os animais como totalmente irracionais.

    Robert Lovell, em 1661, dividia o conjunto da criao animal em duas categorias, "racionais" e "irracionais",situando s o homem na primeira. Gervase Markham registrou a "opinio convicta de "inmeros veterinrios",

    para quem os cavalos no tinham crebro de espcie alguma; ele prprio abrira os crnios de vrios dessesanimais, nada encontrando em seu interior." A maioria, porm, pensava que os animais tinham capacidadeselementares de entendimento, conquanto muito inferiores s humanas. Aristteles ensinou que tinham algumainteligncia prtica, mas lhes faltava capacidade para a deliberao ou a razo especulativa. Da vastasuperioridade intelectual do homem, concordava-se, provinham sua memria superior, a maior imaginao, a

    curiosidade, o sentido de tempo, a concepo mais aguda do futuro, o uso dos nmeros, o senso de beleza, acapacidade de progredir. 12 Acima de tudo, o homem era capaz de escolher, enquanto os animais eram

    presa de seu prprio instinto, guiados apenas pelo apetite e incapazes de livre-arbtrio. (13)

    Essa exclusiva capacidade humana para a livre ao e a responsabilidade moral conduzia terceira e, na visodos telogos, mais decisiva diferena. No se tratava da razo, qualidade afinal compartilhada, em certamedida, pelas criaturas inferiores, mas da religio. Ao contrrio dos animais, o homem dispunha deconscincia e instinto religiosos. (14) Contava tambm com uma alma imortal, ao passo que os bichos

    pereciam sem serem capazes de uma outra vida. Isso no era motivo de pesar: "A vida de um animal", nafrase de um pregador seiscentista, era "longa o bastante para uma existncia animal". Sugerir que os bichos

    pudessem ser imortais, dizia outro pregador em 1695, constitua um "absurdo escandaloso". A crena em queas bestas se extinguem com a morte era muito importante, explicava ele, porque preservava a dignidade danatureza humana, mostrando que h urna diferena essencial entre o esprito do homem e as almas dosanimais. (15)

    No sculo XVII, a tentativa mais notvel de ampliar tal diferena foi uma doutrina originalmente formulada porum mdico espanhol, Gomez Pereira, em 1554, mas desenvolvida de maneira independente e celebrizada porRen Descartes, de 1630 em diante. Tratava-se da tese de que os animais so meras mquinas ou autmatos,tal como os relgios, capazes de comportamento complexo, mas completamente incapazes de falar,raciocinar, ou, segundo algumas interpretaes, at mesmo de ter sensaes. Para Descartes, o corpo

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    humano tambm um autmato; afinal, ele desempenha vrias funes inconscientes, como a da digesto.Mas a diferena est em que no seio da mquina humana h a mente e, portanto, uma alma separada,enquanto os seres brutos so autmatos desprovidos de almas ou mentes. S o homem combina, ao mesmotempo, matria e intelecto. (16)

    Tal doutrina antecipava a futura psicologia mecanicista e continha, em germe, o materialismo de La Mettrie ede outros pensadores do sculo XVIII. No devido tempo, ela capacitaria os cientistas a defenderem que aconscincia pode ser explicada mecanicamente e que o conjunto da vida psquica de um indivduo produtode sua organizao fsica. Aquilo que Descartes dizia dos animais seria dito, um dia, do homem. (17)Nessenterim, porm, a doutrina cartesiana produziu o efeito de degradar ainda mais os bichos, em contraste com osseres humanos. O prprio Descartes parece ter modificado sua doutrina nos anos seguintes, e no estavadisposto a concluir que os seres brutos fossem totalmente incapazes de ter sensaes; para ele, a questoessencial era que no dispunham da faculdade do raciocnio. Descartes negava almas aos animais por estesno exibirem qualquer comportamento que no pudesse ser atribudo ao mero impulso natural (18)Mas seusseguidores foram mais longe. Os animais, declaravam, no sentem dor; o gemido de um co que apanha noconstitui prova do sofrimento animal, assim como o som de um rgo no atesta que o instrumento sente dorquando tocado. (19)Os uivos e contores de um bicho seriam meros reflexos externos, sem relao com

    qualquer sensao interior.

    E possvel que hoje essa doutrina parea contrariar o senso comum. Mas no surpreende que ocartesianismo, tivesse seus defensores em sua poca. Um tempo acostumado a um grande nmero demaravilhas mecnicas - relgios de mesa e de bolso, bonecos automticos e autmatos de todo gnero -estava bastante propenso a acreditar que os animais tambm eram mquinas, embora feitas por Deus e no

    pelo homem. (20)* Alm disso, Descartes apenas estava acentuando uma distino j implcita na doutrinaescolstica. Toms de Aquino, afinal, ensinara que a assim chamada prudncia dos animais no passava deum instinto implantado por Deus. (21)Mais ainda, o cartesianismo parecia uma excelente via para defender areligio. Seus opositores, em contraste, podiam ser tornados teologicamente suspeitos, pois quando

    concediam s bestas as capacidades de percepo, memria e reflexo, estavam implicitamente atribuindoaos animais todos os elementos de uma alma imortal, o que era absurdo; e se acaso negassem que eles tinhamuma alma imortal, ainda que possuindo tais capacidades, estariam implicitamente perguntando se tambm ohomem a teria. (22)O cartesianismo constitua a maneira de escapar a alternativas igualmente inaceitveis.

    Negava que os animais tivessem almas e sustentava que os homens eram algo mais que mquinas. Se seduziua tantos foi, no entender de Leibniz, "porque parecia necessrio ou atribuir almas imortais s bestas ou admitirque a alma do homem podia ser mortal" (23)

    Mas o mais forte argumento, em favor da posio cartesiana, era que ela constitua a melhor racionalizao

    possvel para o modo como o homem realmente tratava os animais. A viso alternativa deixava espao para aculpa do homem, ao reconhecer que os animais podiam sofrer e efetivamente sofriam; e suscitava dvidassobre os motivos de um Deus capaz de permitir que os bichos sofressem misrias no merecidas em talescala. O cartesianismo, ao contrrio, absolvia Deus da acusao de causar injusta dor s bestas inocentes,ao permitir que os homens as maltratassem; tambm justificava o predomnio do homem, ao libert-lo, comoDescartes afirmava, de "qualquer suspeita de crime, por mais freqentemente que pudesse comer ou matar osanimais". (24) Ao negar a imortalidade dos bichos, ele afastava qualquer dvida remanescente quanto aodireito do homem a explorar a criao bruta. Pois, como os cartesianos observavam, se os animais realmentetivessem um elemento imortal, as liberdades que os homens tomavam com eles seriam injustificveis; e admitirque os animais tivessem sensaes era fazer do comportamento humano algo intoleravelmente cruel. (25) A

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    sugesto de que um animal pudesse sentir ou possuir uma alma imortal, comentava Locke, tinha preocupadoalguns homens a tal ponto que eles "preferiram concluir que todos os bichos eram mquinas perfeitas, aconceder que suas almas fossem imortais". (26)O propsito explcito de Descartes fora fazer dos homens"senhores e possuidores da natureza". (27)Adequava-se bem sua inteno que ele descrevesse as outrasespcies como inertes e desprovidas de toda dimenso espiritual. Ao faz-lo, instaurou um corte absolutoentre o homem e o restante da natureza, limpando dessa forma o terreno para o exerccio ilimitado dadominao humana.

    A negao cartesiana da alma dos animais gerou vasta literatura erudita; no exageramos ao descrev-lacomo uma das preocupaes centrais dos intelectuais europeus dos sculos XVII e XVIII. (28) Todavia,conquanto a obra de Descartes tenha sido divulgada na Inglaterra, este pas produziu apenas meia dzia dedefensores explcitos da posio cartesiana. Entre eles inclua-se o habilssimo sir Knelm Digby, que nohesitava em declarar serem os pssaros mquinas, cujos movimentos, ao construrem ninhos ou alimentaremseus filhotes, em nada se distinguiam do tiquetaquear de um relgio ou do rudo de uma campainha (29)Muitos fisilogos concordavam em que o corpo tinha movimentos mecnicos e involuntrios. Entretanto, otelogo Henry More era mais representativo da opinio inglesa quando disse asperamente a Descartes, em1648, que considerava "assassina" a sua doutrina. (30) A maioria dos intelectuais dos perodos posteriores

    pensava, como Locke e Ray, que a idia das mquinas-animais era "contrria a toda evidncia dos sentidos eda razo" e "avessa ao senso comum da espcie humana". Como notou Bolingbroke, o homem simplescontinuaria a acreditar que havia uma diferena entre o touro da aldeia e o relgio da parquia. O telogono-conformista John Howe sentia-se capaz de entender a ansiedade de Descartes por distinguir entrehomens e animais, "a fim de que no sofresse qualquer dano a doutrina da imortalidade da alma humana"; noentanto, considerava essa formulao "muito mais piedosa que ... convincente" (31)

    Contudo, Descartes apenas conduzira a insistncia europia no abismo entre o homem e os animais at a suaconcluso lgica. Um Deus transcendente, externo Sua criao, simbolizava a separao entre esprito enatureza. O homem estava para o animal corno o cu estava para a terra, a alma para o corpo, a cultura para

    a natureza. Havia uma diferena qualitativa total entre o homem e o ser bruto. Na Inglaterra, a doutrina dasingularidade humana era defendida de todos os plpitos. John Evelyn ouviu um sermo, em 1659, sobrecomo o homem era "urna criatura de constituio diversa do restante dos animais, tanto em alma como emcorpo; [ e ] como os ltimos tinham que se subordinar ao primeiro". Em 1683, o deo de Winchester admitiuque os animais possuam algumas qualidades humanas, se bem que "de maneira inferior", mas denunciou aidia de que por isso, os animais fossem iguais aos homens, como sendo uma "inveno perigosa". (32)Nodecorrer do sculo XVIII, esse tema foi bastante reiterado. "Na escala que leva dos seres brutos ao homem",declarava Oliver Goldsmith, "a linha distintiva fortemente traada, bem marcada, intransponvel". "Por maistnue que s vezes possa parecer", afirmou o naturalista William Bingley, "a fronteira que separa os homens

    dos seres brutos fixa e imutvel". As vantagens prticas de tal diferenciao eram claras, conquantoimpalpveis as suas razes. "Aos animais, que tornamos nossos escravos", escreveria Charles Darwin, "nogostamos de considerar como semelhantes". (33)

    IV. CONSERVANDO AS FRONTEIRAS

    Obviamente, a maior parte dessas dissertaes eruditas passava muito acima da mente das pessoas comuns.Entretanto, consciente ou inconscientemente, a distino central entre homem e animais fundamenta ocomportamento de todos. O que seriam, por exemplo, a religio e a moral, seno tentativas de restringir osaspectos supostamente animais da natureza humana, o que Plato chamava "o animal selvagem dentro de

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    ns"? (1) Como afirmou Richard Baxter, "aquele que aprendeu bem [ ... ] em que ponto um homemefetivamente difere de um ser bruto, lanou um alicerce to slido para uma existncia virtuosa que toda arazo do mundo jamais ser capaz de derrot-lo". Se um homem no tinha a mente pura, dizia OliverCromwell, nada mais o diferenciava do animal. O evanglico setecentista John Fletcher explicou queregenerao significava passar do estado de natureza ao de graa: "Ele era um homem animal; ao nascer denovo tornou-se um homem espiritual". (2)No fortuito que o smbolo do Anti-Cristo fosse a Besta, ou queo Diabo costumasse ser retratado como combinao de homem e animal. Quando as pessoas viam o que

    pensavam ser espritos malignos, geralmente estes apareciam sob o aspecto de algum bicho: co, gato ou rato;um memorialista relatava o caso de um homem "arrastado para a gua por um ser em forma de touro". (3)

    Do mesmo modo que a moral e a religio, a educao erudita, a "civilidade" e o refinamento tambm tinhamcomo objetivo elevar os homens acima dos animais. A Inglaterra no era uma dessas sociedades, como Bali(4)onde se v o consumo de alimentos como uma operao asquerosa que melhor efetuar privadamente.Mas as pessoas cozinhavam a carne, ao invs de com-la crua como os animais, e consideravam a gula comoum vcio "animalesco". ("[Eu fui] um pouco suno ao jantar", escreve o quacre irlands John Rutty em seudirio espiritual.) (5)Seu contemporneo Oliver Goldsmith considerava que "de todos os animais, somos nso que menos tempo gastam comendo; esta uma das grandes diferenas entre ns e a criao bruta; e

    [acrescentava ele, virtuosamente] comer um prazer de gnero to vil que ningum, exceto quem est muitoperto dos quadrpedes, deseja o seu prolongamento". (Goldsmith ficara compreensivelmente chocado com ocaso, seu contemporneo, do rapaz de Bristol que provinha de uma famlia ruminante e, quinze minutos apscada refeio, comeava a mascar todo o alimento outra vez, declarando que da segunda feita o gosto eramelhor.) (6)

    Muito antes de Goldsmith, o manual que Erasmo escreveu sobre a civilidade (de influncia decisiva noassunto) fizera residir a essncia das boas maneiras mesa na diferenciao do homem frente aos animais,mais do que face aos prprios "rsticos". No estale os lbios, como um cavalo, advertia ele; no engula acomida sem mastig-la, como uma cegonha; no roa os ossos, como um co; no lamba o prato, como um

    felino. (Mesmo assim, o embaixador veneziano ficou chocado, em 1618, ao descobrir que os londrinosdescaradamente mascavam frutas na rua "como se fossem cabras".) (7)As regras de compostura de Erasmomostram a mesma preocupao: no mexa os cabelos, como um potro; no relinche ao rir, como um cavalo,ou mostre os dentes, como um cachorro; no balance o corpo inteiro ao falar, como uma lavandisca; no fale

    pelo nariz: "Isso prprio das gralhas e dos elefantes". No sculo XVIII, Henry Fielding notava que eram"esses grandes refinadores de nossas maneiras", os mestres de dana, "que, segundo alguns, ensinavam o quemais nos distingue da criao bruta". (8)

    Uma vez que todas as funes fsicas tinham associaes animais indesejveis, alguns comentadoresconsideravam ser a moderao do corpo, ainda mais que a razo, o que distinguia os homens das bestas. (9)H uma passagem instrutiva no dirio de Cotton Mather, clrigo da Nova Inglaterra, datada de 1700:

    Estava certa vez esvaziando a cisterna da natureza, a jorrar gua no muro. Enquanto isso,aproximou-se um co, que fez o mesmo, minha frente. Pensei comigo: "Que criaturas vis e

    banais so os filhos dos homens. Como as nossas necessidades naturais nos degradam e nossituam [...] no mesmo plano que os prprios ces!".

    Os meus pensamentos prosseguiram: "Todavia, serei uma criatura mais nobre; e no exatoinstante em que minhas necessidades naturais me rebaixarem condio do animal, meu esprito

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    deve (repito: no mesmo instante!) elevar-se e pairar acima dele [ ... ].

    Consequentemente, resolvi que seria minha prtica comum, quando quer que eu desse umpassopara saciar essa ou aquela necessidade da natureza, fazer disso uma oportunidade para formarem minha mente algumpensamento puro, nobre e divino [ ... ] .

    Passou, assim, a ser sua firme resoluo, em 1711, usar a oportunidade das evacuaes naturais dirias parater alguns pensamentos piedosos sobre o ponto em que eu possa diferir dos seres brutos (o que, nos atos

    prticos, fao muito pouco). (10)

    Nem todos atingiam um nvel to peculiar de autoconscincia. Mas a maioria das pessoas era ensinada aencarar seus impulsos fsicos como impulsos "animais", a exigir controle. O contrrio significaria ser"animalesco" ou "brutal". (11)A luxria, em particular, era sinnimo de condio animal, pois as conotaessexuais de termos como "bruto", "bestial" e "animalesco" eram ento muito mais fortes do que hoje. (12) Aluxria, afirmava um moralista do sculo XVII, fazia os homens "parecerem-se [ ... ] com porcos, cabras,ces e as mais selvagens bestas do mundo". (13)Nos bestirios e nos livros de emblemas, uma porcentagemnotavelmente elevada dos animais que aparecem representa a lascvia ou a infidelidade sexual. Para Gerrard

    Winstanley, a liberdade sexual era "a liberdade de bestas devassas e desprovidas de razo". Para JeremyCollier, a moral desregrada do cenrio da Restaurao * rompera "as distines entre homem e bicho.Cabras e macacos, se pudessem falar, expressariam sua brutalidade nessa mesma linguagem". O impulsosexual no homem era comumente concebido como vindo de baixo para cima. (14)

    Onde quer que olhemos, na Inglaterra do incio do perodo moderno, encontramos ansiedade, latente ouexplcita, quanto a qualquer forma de comportamento ameaando transgredir os frgeis limites entre o homeme a criao animal. A higiene fsica era necessria, conforme afirmaria John Stuart Mill, porque a sua falta,"mais do que qualquer outra coisa, torna o homem bestial". (15)

    A nudez era bestial, pois as roupas, como o ato de cozinhar, constituam um atributo humano exclusivo. (16)Era bestial que o homem tivesse o cabelo indevidamente longo: "Os bichos so mais peludos que o homem",escrevia Bacon, "e os homens selvagens mais que os civilizados". (17) Era bestial trabalhar noite, pelamesma razo que a invaso noturna de domiclio era um crime pior que o roubo luz do dia; a noite, comoexplicava sir Edward Coke, era "o momento em que o homem deve descansar, e em que os bichos vagam

    busca de sua presa". (18)At mesmo nadar era bestial, pois, alm de ser aos olhos de muitos puritanos umaforma perigosa de semi-suicdio, representava um mtodo no-humano de locomoo. Como observou umtelogo de Cambridge em 1600: os homens andam; os pssaros voam; somente peixes nadam. (19) Umcomentador chegava mesmo a pensar que o motivo pelo qual alguns peles-vermelhas pintavam seus dentes de

    preto era porque supunham "essencial para os homens distinguir-se dos seres brutos em todos os aspectos e,

    portanto, era necessrio no ter nem mesmo os dentes da mesma cor". (20)

    Mesmo o fato de fingir ser um animal para fins de ritual ou diverso era inaceitvel. William Prynne declaravaque era imoral vestir-se como bicho no palco porque isso significava obliterar a gloriosa imagem do homem.Muitos moralistas partilhavam sua objeo aos disfarces animais; alm disso, no incio do sculo XVII, ocavalo de vime parece ter praticamente desaparecido da morrisdance. *Outras formas de se vestir comoanimal tambm se tornaram incomuns, at serem revividas pelos folcloristas no perodo moderno. Ao mesmotempo, as histrias tradicionais sobre a metamorfose de seres humanos em bichos eram condenadas ou comofantasias poticas ou como fices diablicas. (21)Uma das razes pelas quais os pssaros monstruosos

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    causavam tamanho horror era que eles ameaavam a solidez da linha divisria entre homens e animais.

    Tambm se desaprovavam relaes de proximidade com os animais. Quando, em 1667, o dr. Edmund Kingplanejou a transfuso do sangue de uma ovelha para as veias de um homem, o experimento foi logo sustado,devido a -certas consideraes de natureza moral"; no sculo XIX, um dos principais argumentos contra avacinao seria que a inoculao de fluidos provenientes de vacas resultaria na "animalizao" de sereshumanos. (22) Dessa maneira, a bestialidade era considerada o pior dos crimes sexuais porque, comoexplicava um moralista da poca Stuart, "transforma o homem no prprio bicho, tornando-o um exemplar dacriao bruta". (23) O pecado era o da confuso,* sendo imoral misturar as categorias. ** As injunescontra a "sodomia com animais" eram comuns na literatura moral do sculo XVII, embora ocasionalmente otpico fosse omitido, "sendo o fato mais srdido que sua descrio". (24)A bestialidade passou a ser crimecapital em 1534 e, com um breve intervalo, assim permaneceu at 1861. 0 incesto, em contrapartida, no foicrime punido nos tribunais seculares, at o sculo XX. (25)

    Na Inglaterra do incio da poca moderna, at os animais de estimao despertavam suspeita moral,especialmente se admitidos mesa e mais bem alimentados que os servos. Feria as normas de civilidadetrazer ces mesa, decretava Erasmo. "O emprego excessivamente familiar de toda criatura bruta deve ser

    abominado", dizia um moralista em 1633. (26) O animal de estimao no convencional - um sapo, um insetoou uma doninha - podia ser identificado como ntimo de feiticeiras, ao passo que, para as damas, acariciar ummico no colo era, como determinou Helkiah Crooke em 1631, "algo muito perverso e no humano". Ohomem de f recordava a histria da devota elisabetana Katherine Stubbes, que, de seu leito de morte,avistou sua cadelinha predileta.

    Talvez ela preferisse no t-la visto, mas tocou-a dali e chamou o marido, dizendo-lhe: "Bomesposo, eu e voce ofendemos a Deus gravemente ao receber tantas vezes essa cadela em nossoleito; no teramos mostrado disposio para receber uma alma crist [ ... ] em nosso quarto,aliment-la em nosso colo e dar-lhe comida nossa mesa como o fizemos com esta vira-lata

    imunda por tanto tempo. O Senhor deu-nos a graa de nos arrependermos" [... ] e desde entoela no pde mais tolerar a presena do animal. (27)

    Foi durante esses sculos que a maior parte dos agricultores terminou colocando os animais para fora de suascasas. *

    Os sentimentos para com os animais, dizem os antroplogos, em geral so projeo de atitudes diante dohomem." Na Inglaterra do princpio da era moderna, o valor oficialmente atribudo aos animais era negativo,ajudando a definir, por contraste, o que supostamente distinguia ou exaltava a espcie humana. Ao encarnar aanttese de tudo o que era valioso e valorizado, a idia que se tinha dos seres brutos constitua um aval to

    indispensvel para os valores humanos estabelecidos quanto as noes igualmente absurdas ento sustentadasa respeito das feiticeiras ou dos papistas. "O sentido de ordem", foi dito corretamente, "somente podia serapreendido pela explorao de sua anttese ou 'contrrio' ". (29)Era fcil nascer a analogia com os animais,na mente de homens que conviviam com maior nmero de bichos, selvagens ou domsticos, do que os nossoscontemporneos. A criao bruta proporcionava o ponto de referncia mais acessvel para o contnuo

    processo de autodefinio humana. Sem serem iguais ao homem, nem completamente diferentes, os animaisofereciam uma reserva quase inesgotvel de significados simblicos.

    No entanto, no havia muita justificao objetiva para o modo pelo qual os animais eram percebidos.

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    "Bbado como uma cabra", **dizia o provrbio. Mas quem jamais viu uma cabra bbada? (30) O homematribua aos animais os impulsos da natureza que mais temia em si mesmo - a ferocidade, a gula, a sexualidade- mesmo sendo o homem, e no os animais, quem guerreava a sua prpria espcie, comia mais do que deviae era sexualmente ativo durante todo o ano. Foi enquanto um comentrio implcito, sobre a natureza humanaque se delineou o conceito de "animalidade". Como observaria S. T. Coleridge, chamar os vcios humanos de"bestiais" era difamar os seres brutos. (31)

    V. SERES HUMANOS INFERIORESAo traar uma slida linha divisria entre o homem e os animais, o principal propsito dos pensadores doincio do perodo moderno era justificar a caa, a domesticao, o hbito de comer carne, a vivisseco (quese tornara prtica cientfica corrente, em fins do sculo XVII) e o extermnio sistemtico de animais nocivos ou

    predadores. Mas essa insistncia to grande em distinguir o humano do animal tambm teve conseqnciasimportantes para as relaes entre os homens. Com efeito, se a essncia da humanidade era definida comoconsistindo em alguma qualidade especfica, seguia-se ento que qualquer homem que no demonstrasse talqualidade seria sub-humano ou semi-animal. "Em todo mundo natural mentalmente elaborado", escreve umantroplogo moderno, "o contraste entre homem e no homem fornece uma analogia para o contraste entre o

    membro da sociedade humana e o estranho a ela". freqente, diz outro, que tribos se reservem o ttuloarrogante de "homem", referindo-se a outros povos como "macacos". (1)

    No incio da era moderna havia na Inglaterra grupos exclusivos, como a Famlia do Amor, de quem se diziano perodo elisabetano que "qualquer um que no pertena sua seita visto por eles como um animal semalma". (2) Mas igual atitude de excluso do outro se notava, em escala ainda maior, face aos povos"primitivos" que no dispunham de atributos como os que tambm faltavam aos .animais: tecnologia, linguageminteligvel, religio crist. Muitos, dentre os primeiros exploradores, concordariam com Gibbon que "o serhumano bruto, sem artes e sem lei, [ ... ] mal pode ser distinguido do restante da criao animal". (3)A culturaera to necessria ao homem como a domesticao s plantas e aos animais. Robert Gray declarava, em

    1609, que "a maior parte" do globo era "possuda e injustamente usurpada por animais selvagens [ ... 1 ou porselvagens brutais, que, em razo de sua mpia ignorncia e blasfema idolatria, so ainda piores que osanimais". O conde de Clarendon concordava: "a maior parte do mundo ainda habitada por homens toselvagens como as feras que com eles convivem." "Suas palavras soam mais parecidas s dos chimpanzs ques dos homens", relatava sir Thomas Herbert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperana; "duvidoque a maioria deles tenha antepassados melhores que macacos". "Os hotentotes", dizia um clrigo da pocade Jaime I, eram "bestas em pele de homem", e sua fala, "um rudo inarticulado em vez de uma linguagem,como o cacarejar das galinhas ou o engrolar dos perus". Trata-se de "animais imundos", disse um viajante,que "dificilmente merecem o nome de criaturas racionais". Os sculos XVII e XV111 ouviram muitos

    discursos sobre a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade animalesca e sua natureza brutal. (4)De modo geral, os ndios americanos no eram vistos dessa forma, mas, s vezes, tambm eram descritos emlinguagem semelhante. Frobisher os imaginava morando em cavernas e caando suas presas "como o fazem ourso e outros animais selvagens". Robert Johnson os via a vagar "para cima e para baixo em bandos, comomanadas de cervos em uma floresta". Na Virgnia, foram observados "arrastando-se de quatro [ ... ] comoursos"; suas casas eram descritas como "covis ou pocilgas" e eles prprios como "mais brutais que as bestasque caam". Em 1689, Edmund Hickeringill, um clrigo ingls que estivera nas ndias Ocidentais, falavadesdenhosamente dos "pobres e tolos ndios nus" como estando "apenas a um passo (se tanto) dos macacos".(5)

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    Muitos viam os irlandeses mesma luz. Viviam "como bichos", afirmava o elisabetano Barnaby Rich; "emcondies brutais e detestveis", dizia sir William Petty. Comiam carne crua e bebiam sangue quente de vacas.(6) A natureza animal dos irlandeses fora descoberta muito tempo antes das caricaturas vitorianas que osdescreviam com feies simiescas. Na dcada de 1650, um capito no regimento do general Ireton contou deque modo, quando uma guarnio irlandesa foi destroada em Cashel, no ano de 1647, os vencedoresencontraram entre os mortos "vrios que tinham caudas de quase vinte centmetros"; e, quando se duvidou dahistria, quarenta soldados apresentaram-se para testemunhar, sob juramento, que as tinham visto

    pessoalmente. (7)

    Havia outros animais mais perto de casa. "O que um beb", perguntava um autor jacobiano, *"seno umabesta rude na forma de homem? E o que um jovem seno (por assim dizer) um burrico selvagem semmodos e sem freios?" As crianas pequenas no tinham o controle de suas aes e a linguagem da infncia"no era nem um pouco melhor que os sons produzidos pelos bichos mais sagazes quando se comunicam unscom os outros". (8)Os jovens, ainda incapazes de controlar suas paixes, eram apenas um pouco melhores.Comportavam-se "como asnos selvagens e novilhos bravios", dizia George Fox; como potros, na opinio deGerrard Winstanley. (9)

    Tambm as mulheres estavam perto do estado animal. Durante vrios sculos os telogos tinham discutido,em parte frvola, em parte seriamente, se o sexo feminino tinha alma ou no, debate que acompanhava deperto a polmica sobre os animais e que, s vezes, produzia ecos no nvel popular. Em Witley in Surrey, em1570, um certo Nicholas Woodies teria afirmado que as mulheres no tinham alma; em Earls Colne, Essex,em 1588, o prprio ministro disse o mesmo; e na diocese de Peterborough, em 1614, soube-se de umindivduo espirituoso, que "sustentava aberta e obstinadamente que as mulheres no tinham alma, exceto as[solas] de seus sapatos". **O quacre George Fox encontrou um grupo de pessoas que sustentava que asmulheres "no tinham mais alma que os gansos". (10)Os ginecologistas da poca davam muita nfase aosaspectos animais do parto. Era comum referir-se a uma mulher grvida como "procriando"; um clrigo do

    perodo anterior Guerra Civil comparava, no plpito, as mulheres s porcas. Certos puritanos inimigos dosrituais realizados aps o nascimento ***s vezes faziam o mesmo, referindo-se me como uma porcaseguida pelos bacorinhos. (11) At o sculo XVIII, o ato de amamentar os bebs costumava ser visto pelasclasses superiores como uma atividade degradante, a ser evitada quando possvel, confiando-se os recm-nascidos aos cuidados de amas-de-leite. Jane Austen alinhava-se numa longa tradio ao descrever as

    pessoas de seu sexo como "pobres animais" consumidos por partos todos os anos. (12)

    Ainda mais bestiais eram os pobres - ignorantes, sem religio, esqulidos em suas condies de existncia e,mais importante, no tendo os elementos que se supunha caracterizarem o ser humano: alfabetizao, clculonumrico, boas maneiras e apurado senso de tempo. Os intelectuais desde muito costumavam encarar as

    pessoas no letradas como sub-humanas. (13) No incio dos tempos modernos essa atitude persistia. "Osmembros da vasta ral que parece portar os sinais do homem no rosto", explicava sir Thomas Pope Blount,em 1693, "no passam de seres rudes em seu entendimento [...] por metfora que os chamamos homens,

    pois na melhor das hipteses nada mais so que os autmatos de Descartes, molduras e sombras de homens,que tm to-somente a aparncia para justificar seus direitos racionalidade". (14)

    Para outros observadores, os pobres eram "a parcela mais vil e grosseira da humanidade"; suas ocupaeseram "bestiais" e "labutavam como seus cavalos". (15)Na sua resposta aos rebeldes do Lincolnshire, em1536, o rei Henrique VIII descreveu aquela comunidade como "uma das mais rudes e animalescas de todo oreino". No Pembrokeshire elisabetano, George Owen observava rapazes pastoreando rebanhos, fortemente

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    queimados de sol, "suas peles gretadas como as de elefantes". Os aldees de Tottington, Lancashire, eram"meros seres brutos", segundo o beneficiado local, em 1696. Nos charcos do Essex, em 1700, havia "gentede ndole to abjeta e srdida que quase parecem ter suportado a sina de Nabucodonosor, e de tantoconversarem com as bestas terem aprendido as maneiras delas". Em Madeley, Shropshire, o vigrio, JohnFletcher, refletia em 1772 sobre a condio dos barqueiros:

    Presos s suas cordas como cavalos a seus tirantes, em que ponto eles diferem dos seres rudes elaboriosos? No na postura ereta do corpo, pois, na intensidade de seu esforo, eles se curvam para afrente, adiantando a cabea, suas mos apoiadas ao solo. Se que h diferena, ela consiste nisso: oscavalos so favorecidos com um arreio para poupar o seu dorso; j aqueles, como se o seu novalesse ser poupado, puxam sem qualquer auxlio; os animais mourejam em paciente silncio e emmtua harmonia ritual; j os homens, em barulhentas disputas e horrveis imprecaes. (16)

    Os mais bestiais de todos eram os que se situavam nas margens da sociedade humana: os loucos, quepareciam possudos por bichos selvagens; os vagabundos, que no seguiam nenhuma vocao, *mas viviam,

    no dizer do puritano William Perkins, "uma vida de bichos".(17)J se disse, corretamente, que a imagem daanimalidade pairava sobre o hospcio. (18)Imagem semelhante perpassa as acusaes da poca contra osvadios, que no se "associavam em famlias, mas se juntavam como animais". Os mendigos tambm eramcomo os brutos, pois gastavam todo o seu tempo procurando comida. (19)

    Uma vez percebidas como bestas, as pessoas eram passveis de serem tratadas como tais. A tica dadominao humana removia os animais da esfera de preocupao do homem. Mas tambm legitimava osmaus-tratos queles que supostamente viviam uma condio animal. Nas colnias, a escravido, com seusmercados, as marcas feitas a ferro em brasa e o trabalho de sol a sol, constitua uma das formas de tratar oshomens vistos como bestiais. Segundo o relato de um viajante ingls, os portugueses marcavam os escravos

    "como fazemos com as ovelhas, a ferro quente" e no mercado de escravos de Constantinopla, FynesMoryson viu os compradores levarem as peas para dentro para examin-las sem roupa, tocando-as "comoapalpamos os bichos, a fim de conferir se eram gordos ou fortes". (10) Davam-se aos escravos, comfreqncia, nomes tpicos de ces e cavalos. (21)Um ourives londrino do sculo XVIII anunciava -cadeadosde prata para pretos ou cachorros"; os anncios ingleses de negros fugidos mostram que amide eles traziamargolas em torno do pescoo. (22)Os historiadores consideram atualmente que a escravido negra precedeuas afirmaes da condio semi-animal dos negros. As teorias mais desenvolvidas de inferioridade racialvieram depois.(23)*

    Entretanto, difcil crer que o sistema jamais tivesse sido tolerado se aos negros fossem, atribudos traos

    totalmente humanos. A sua desumanizao foi um pr-requisito necessrio dos maus tratos.

    Dentro do pas, a domesticao dos animais fornecia vrias das tcnicas para enfrentar a delinqncia: freiospara mulheres rabugentas; celas, correntes e palha para os loucos; cabrestos para as mulheres vendidas emleilo no mercado, num rito informal porm amplamente aceito de divrcio. (24)A educao dos jovens eramuitas vezes comparada ao amansamento de cavalos; e no foi por acidente que o surgimento, nos sculosXVII e XVIII, de mtodos mais humanos de domar cavalos coincidiria com uma reao contra o uso de

    punies fsicas na educao.*

    Acima de tudo, a gente comum era constantemente descrita como composta de animais, que precisavam ser

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    controlados fora para no explodirem e se tornarem perigosos. A melhor maneira de lidar com eles,afirmou Timothy Nourse em 1700,

    ser pr-lhes freio e faz-los sentirem as esporas, sempre que come cem com seus troques epatadas. O dito de um fidalgo ingls vinha mui a propsito, que trs coisas devem estar todo otempo sob controle: um co mastim, um cavalo de bolas [ i. e., um garanho I e um homemrstico; e eu realmente vejo o rstico resmungo e intratvel como, dos trs, o maisdesventurado. (25)

    Essa atitude no chegava a ser a forma tpica pela qual todos os membros das classes abastadas encaravamos seus inferiores, mas tambm no era excepcional. E uma carta recm -descoberta do gentil Charles Lamb,**sem data, mas certamente escrita numa fase de inquietao rural,*** serve para lembrar-nos o quanto elasobreviveu.

    Os bons tempos se foram da Inglaterra desde que os pobres passaram a especular sobre sua condio.Outrora eles se arrastavam aos trancos, de modo to irrefletido como os cavalos. Assobiando, o lavradorseguia lado a lado com seu irmo que relinchava. Hoje o bpede carrega uma caixa de fsforos nos culotes de

    couro 1 e, a cada novo incndio, meio condado se diverte. (26)Alguns antroplogos acreditam que foi o trato de rebanhos de animais domsticos que deu origem a umaconcepo da vida poltica como espao da interveno e da tcnica humanas. Sociedades como as daPolinsia, nas quais se vivia da horticultura e do cultivo de gneros que requerem interveno humana bastantelimitada, parecem ter assumido uma viso pouco ambiciosa da funo do governante. Acreditavam que anatureza deve ser deixada a seu curso prprio, e que se pode confiar na capacidade dos homens cuidarem desi prprios, sem regras vindas de cima. Mas a domesticaodos animais criou uma atitude mais autoritria."

    Na Inglaterra do incio do perodo moderno, o domnio humano sobre as criaturas inferiores forneceu aanalogia mental em que se basearam vrios arranjos polticos e sociais. Alm disso, os dois tipos de domnio

    reforavam-se mutuamente. A "soberania" que Deus concedeu a Ado sobre os animais, explicava umcomentador do perodo jacobiano, significava "predomnio e posse como tem o senhor sobre seus servos".(28)Os homens gozavam de soberania sobre as criaturas inferiores, mas nem todos os homens. Como diziaum provrbio conhecido: "Os homens mais sbios viam como um grande mal que os servidores montassem acavalo". (29) *

    A domesticao tornou-se, assim, padro arquetpico para outras formas de subordinao social. 0 modelobsico era paternal, com o governante como bom pastor, tal corno o bispo com seu rebanho. Animais dceise fiis obedecendo a um senhor atencioso constituam um exemplo para todos os subalternos.

    Suas faculdades mentais so [ ... ] proporcionais a seu estado de submisso [escrevia um observadorem 1758] [.. ] eles tm conhecimento adequado s suas respectivas esferas, e suficiente para o papelsecundrio que devem desempenhar [ ... ] se tivessem um grau de saber mais elevado [ ... ] seriam as

    pestes do gnero humano; iriam queixar-se e ressentir-se [ ... ] associar-se e se rebelar [ ... ] no maissuportariam seu estado atual e necessrio de subordinao, que muito mais feliz do que qualqueroutro que possam ter.

    No se trata de um poltico do sculo XVIII opondo-se a urna proposta de educao para os pobres, e simde um naturalista (William Borlase) discutindo os animais inferiores. Como escreveu Oliver Goldsmith sobre atoupeira: "Um grau restrito de viso suficiente para uma criatura destinada a viver nas trevas. Uma vista mais

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    ampla somente serviria para mostrar-lhe os horrores de sua priso". (30)

    Dessa maneira, o ideal do predomnio humano tambm repercutia no relacionamento dos homens entre si, noapenas no modo de tratarem o mundo natural. Alguns homens eram vistos como animais teis, a seremrefreados, domesticados e tornados dceis; outros eram daninhos e predadores, a serem eliminados. "Deixemque vista a cabea de lobo", dizia-se do fora-da-lei no sculo XIII. "Eles agem corno lobos e h que trat-loscorno tais", afirmava um clrigo em 1703 sobre os ndios da Nova Inglaterra, justificando o fato de seremcaados como ces. (31) Na Esccia jacobiana um chefe do cl Campbell oferecia pela cabea de umMacGregor unia recompensa equivalente de um lobo; na Irlanda, na poca de Cromwell, os tories foramfreqentemente comparados a lobos vorazes. (32) John Locke considerava que quando um agressor ignoravaos ditames da razo humana automaticamente se tornava passvel de ser eliminado como uma fera. Assimfizeram em 1657 os moradores da aldeia de Great Horkesley, em Essex: confrontados com uni certo SamuelWarner, "o mais perigoso e sanguinrio vilo do condado", de quem se dizia ter morto um homem e assaltadooutro, eles exigiram que as autoridades "o amarrassem, como se usava tratar das feras selvagens". (33)Foi namesma dcada que, sendo o quacre Edward Billing atacado por uma multido, "um grandalho" disse: "no

    perturbemos um magistrado com ele. Arranquem-lhe os miolos [... ] eles so como ces em tempo de peste.Devem ser exterminados enquanto andam na rua, para que no nos infetem". (34)

    Falavam srio, portanto, os polemistas que tratavam de desumanizar seus oponentes como, por exemplo,John Milton, comparando seus inimigos a "corujas e cucos, asnos, macacos e ces"; ou o devoto NehemiahWallington, que descreveu os realistas como "tigres e ursos, pela crueldade [ ... ] porcos-do-mato, pelodesperdcio e destruio [ ... ] sunos pela embriaguez [ ... ] e lobos, pela ganncia". (35)Do escolsticomedieval santo Alberto Magno, que acusava seus contraditores de blasfemarem "como feras", a Karl Marx,que chamou Malthus de "babuno", tal linguagem fez parte, essencial, da tradio de controvrsia eruditaeuropia. (36)No incio da Idade Moderna inglesa, foi uma arma regular da polmica religiosa e poltica,usada por Thomas More, que chamou William Tyndale de "besta atrevida" e estigmatizou seus textos cornouma "besteira venenosa e ftida de alguma serpente fedorenta", ou pelos puritanos, que denunciavam os

    clrigos no pregadores como "ces emudecidos" * Os bispos, dizia o autor annimo dos Tratados deMarprelate, eram "porcos, ces, lobos e raposas"." As analogias animais eram igualmente visveis na stira eofensas populares. Os que se opunham s cerimnias da Igreja muitas vezes encenavam batismos ou funeraissimulados de vacas, porcos, gatos, ces e cavalos. (38) s vezes, os defensores da Igreja retaliavam namesma moeda: em 1643, um puritano registrou triunfalmente o nascimento de uma criana-monstro, filha de

    pais papistas, como sendo um castigo para a av, que alguns amos antes, "por malignidade inveterada [ ... ] epor escrnio diablico" para com as famosas vtimas do arcebispo Laud batizara seus trs gatos com osnomes de "Bastwick", "Burton" e "Prynne", cortando-lhes; as orelhas "em enorme desdm por seus gloriosossofrimentos". (39)**

    Xingar algum de animal ainda faz parte do discurso humano. Mas isso perdeu ai fora que teve nutria pocaem que as bestas no gozavam de qualquer direito considerao moral. Com efeito, descrever um homemcomo um bicho era dizer que ele devia ser tratado como tal. A histria das perseguies religiosas no incio do

    perodo moderno torna absolutamente claro que, para aqueles que cometiam atos atrozes, e sanguinrios,desumanizar a vtima reclassificando-a corno animal era, muitas vezes, uma preliminar mental indispensvel.

    No entanto,, quase todos os protestos em prol dos pobres e oprimidos, no comeo da era moderna, estavamvazados em termos da mestria ideologia de dominao humana que se usava para justificar a opresso. Aescravido era atacada porque confundia as categorias de homem e animal," enquanto se denunciava a tirania

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    poltica com o argumento de que era errado tratar seres humanos como se fossem animais. Em 1596, osrevoltosos de Oxfordshire protestaram que os servos estavam sendo "reprimidos e presos feito ces". JamesHarrington considerava o povo da Esccia oprimido porque vivia "em condio pouco melhor que o gado danobreza -, ao passo que para Edmund Ludlow a questo central durante a Guerra Civil era se o rei deveriagovernar seus sditos com base na lei, ou domin-los, "como bestas", ou pela fora.(42)"Os homens", disseum antimonarquista em 1654, "no so como ovelhas sob guarda de um pastor, caso em que a dignidade daespcie pode com justia reivindicar superioridade e domnio sobre a espcie inferior, em vista da grande

    diferena existente entre elas". A razo governa o homem, declarava John Locke. A fora era apenas para osseres brutos. (43)

    Tambm as pessoas comuns sempre foram extremamente sensveis a qualquer comparao possvel com osanimais, seus inferiores. Quando o primeiro duque de Buckingham adquiriu o hbito de ser levado a passeioem liteira, surgiram objees imoralidade de ele "empregar criaturas suas semelhantes para fazer o serviode bestas"; e nos tempos vitorianos denunciou-se como uma "prtica brbara" o costume de, nas feiras decontratao de trabalho, -homens e mulheres ficarem em lotes, como gado, para inspeo". Os pais temiamque os filhos morressem sem batismo e fossem confiados terra "como ces"; da a aflio, em 1539, quando

    pais adotivos franceses recusaram-se a sepultar uma criana inglesa que morrera aos seus cuidados e a

    enviaram de volta a Calais "como se fosse um bezerro morto". ( 44)

    Por essa razo, boa parte do protesto popular durante o perodo se expressou na reivindicao de que todosdeviam ser admitidos a compartilhar aquele predomnio sobre a criao inferior que Deus concedera espciehumana. "Toda a terra, as rvores, os animais, os peixes e as aves", queixava-se o autor radical de LightShining in Buckinghamshire (Luz que brilha em Buckinghamshire, 1648), "esto confinados a umas poucasmos mercenrias". (45) Muitos se opunham lei florestal da Idade Mdia, que restringia o acesso sreservas de caa reais; e odiavam as leis que, a partir do sculo XIV, tinham limitado o direito de caa aquem tinha uma determinada posio social ("No adequado", explicou Jaime I, "que os rsticos venham ater esses esportes"). (46) Os pobres tambm queriam o direito de matar veados e alvejar pssaros. Eles

    aceitavam a propriedade privada dos animais domsticos, mas se apegavam ao velho ditame da common-Iaw, segundo o qual no havia propriedades das feras (ferae naturae) at que fossem mortas ou amansadas.

    Juristas europeus, como Grotius ou Pufendorf, muito se esforariam por refutar a crena das "pessoasignorantes", para quem todo homem tinha direito a alguma parte do domnio sobre a natureza outorgado porDeus ao homem, porm o comum do povo manteve-se impermevel a essa sorte de argumento." Durante aGuerra Civil, um grupo de soldados do Parlamento, aquartelado em Leamington, causou srios danos ao

    pombal do baro Trevor. Quando seu capito os admoestou,

    eles retrucaram que as pombas eram aves do cu dadas aos filhos dos homens, e todos os

    homens tinham a posse comum delas, podendo peg-las, e eram tanto do baro quanto delesmesmos, portanto, iriam mat-las [ ... ]e isso no fugiria a seus direitos; frente ao que [ ... ] ocapito disse ter ficado to convencido que se viu incapaz de responder queles argumentos e,assim, retirou-se, deixando-os fazer o que quisessem.

    No sculo XVIII, o grande advogado William Blackstone confirmava que as leis florestais e de caa"fundavam-se todas nas mesmas concepes inaceitveis de propriedade permanente sobre as criaturasselvagens". (48)No surpreende pois que os caador