thomas harris dragão vermelho

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THOMAS HARRIS DRAGÃO VERMELHO ISBN 972-46-O704-6 (Edição original: ISBN O- 440-20615-4) Título original: Red Dragon Tradução: J. A. Nogueira Gil (D Yazzo Fabrications, Inc. Direitos para Portugal reservados por Editorial Notícias Rua da Cruz da Carreira, 4-B 1100 Lisboa Edição n.º 1-301054-O795 Depósito legal n.' 89 644195 Fotocomposição e fotolitos: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. EDITORIAL NOTÍCIAS Porque a Misericórdia tem um coração humano, A Piedade, um rosto humano, E o Amor, a forma humana do divino, E a Paz, o aspecto humano. WILLIAM BLAKE, Cantos de Inocência, «A Imagem Divina». A Crueldade tem um Coração Humano e a Inveja, um Rosto Humano, o Terror, a Forma Humana do Divino e o Segredo, o

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Page 1: Thomas Harris   Dragão Vermelho

THOMAS HARRIS DRAGÃO VERMELHO

ISBN 972-46-O704-6 (Edição original: ISBN O-440-20615-4)

Título original: Red Dragon Tradução: J. A. Nogueira Gil (D Yazzo Fabrications, Inc. Direitos para Portugal reservados

por Editorial Notícias

Rua da Cruz da Carreira, 4-B 1100 Lisboa

Edição n.º 1-301054-O795 Depósito legal n.' 89 644195 Fotocomposição e fotolitos: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.

EDITORIAL NOTÍCIAS

Porque a Misericórdia tem um coração humano, A Piedade, um rosto humano, E o Amor, a forma humana do divino, E a Paz, o aspecto humano.

WILLIAM BLAKE, Cantos de Inocência, «A Imagem Divina».

A Crueldade tem um Coração Humano e a Inveja, um Rosto Humano, o Terror, a Forma Humana do Divino e o Segredo, o

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Aspecto Humano.

Aspecto Humano é um Metal forjado, Forma Humana, uma Forja acesa,

Rosto Humano, uma Fornalha fechada, Coração Humano, a sua Garganta sequiosa.

WILLIAM BLAKE, Cantos de Experiência, «Uma Imagem Divina»*.

* Depois da morte de Blake, este poema foi encontrado

juntamente com as gravuras de Cantos de Experiência. Só apareceu mais tarde em edições póstumas.

CAPÍTULO 1

Will Graham instalou Crawford numa mesa de piquenique, entre a casa e o oceano, e serviu-lhe um copo de chá gelado.

Jack Crawford olhou com agrado -a velha casa, distinguindo, na claridade do dia, o prateado do sal do mar que salpicava as madeiras da construção. - Devia ter-te apanhado em Marathon, quando saíste

do escritório - disse. - Não vais querer falar aqui desse assunto. - Não me apetece falar disso nem aqui nem em sítio nenhum, Jack, mas se achas que é necessário, pois seja. Só te peço que não mostres fotografias. Se as trouxeste, deixa-as na pasta. Molly e Willy não tardam aí. - O que é que sabes ao certo? - O que foi publicado no Miami Herald e no Times - disse Graham. - Duas famílias massacradas

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nas suas próprias casas no intervalo de um mês. Birmingham e Atlanta. As circunstâncias foram semelhantes. - Não foram semelhantes. Foram as mesmas. - Até agora, quantas confissões espontâneas?

- Oitenta e seis, quando telefonei esta tarde - disse

Crawford. - Lunáticos. Nenhum deles conhecia os detalhes. O assassino parte os espelhos e serve-se dos fragmentos. Nenhum deles sabia deste pormenor. - Que mais é que não disseste aos jornais?

9 - É louro, dextro e realmente forte, calça o quarenta e três. Sabe dar nós de marinheiro. Não há impressões digitais. Usa luvas de cirurgia. - Já disseste isso publicamente.

- Não se sente muito à vontade com fechaduras - disse

Crawford. - Na última vez, usou um diamante corta-vidro e uma ventosa para entrar na casa. Ah, e o seu sangue é AB positivo. - Alguém o feriu? - Tanto quanto se sabe, julgo que não. Foi caracterizado pelo sêmen e saliva. - Crawfard olhou na direcção do mar, que parecia um espelho. - WilI, há uma coisa que preciso de saber. Leste nos jornais e o segundo crime foi comentado na TV. Chegaste a pensar em fazer-me uma chamada? - Não. - Por que não? - Porque sobre o primeiro, em Birmingham, não havia muitos detalhes. Podia ter sido qualquer coisa - vingança, um parente, eu sei lá! - Mas depois do segundo, soubeste quem era? - Soube. Um psicopata. Não te telefonei porque não me apeteceu. Sei quem é que já tens a trabalhar nisto. Arranjaste os melhores especialistas de laboratório, sem contar com o Heimlich, em Harvard, e o Bloorn, na Universidade de Chicago. - E tenho-te aqui a reparar a merda dos barcos a motor.

- Estou convencido de que eu não te servia para nada,

Jack. Deixei de me ocupar desses assuntos. - A sério? Os dois últimos que se apanharam, foste exactamente tu quem lhes deitou a mão, não foste?

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- Limitei-me apenas a fazer aquilo que tu e os outros

também são capazes de fazer. - Isso não é totalmente verdade, Will. Tu pensas de modo especial. - Estou convencido de que já houve histórias a mais sobre o modo como penso. - Fizeste algumas deduções que ficaram sempre por explicar. - As provas estavam lá - disse Graham.

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- Certo. Havia tantas quantas se quisesse. Montes delas... depois de tudo ter acontecido. No início havia tão pouca coisa que praticamente nem sequer

chegava para uma acusação. - Tens uma boa equipa, Jack. Estou convencido de que não te servia de grande coisa. E além disso vim para aqui para esquecer isso tudo. - Eu sei. Da última vez ficaste magoado. Agora já

me pareces em forma. E estou em forma, mas decidi parar, nem sei bem explicar porquê. - Compreendia perfeitamente que não fosses capaz de voltar a olhar ... - Não, não é isso. É certo que é incómodo, mas é

sempre possível continuar a trabalhar depois de eles terem morrido. A pior parte é o hospital e os interrogatórios. É preciso esquecer o que se vê e continuar a pensar. Presentemente não me sinto capaz de uma coisa dessas. Conseguiria forçar-me a ver, mas seria incapaz de reflectir. - Já morreram todos, Will - disse Crawford suavemente. Jack Crawford. reencontrava no modo de falar de Graham o seu próprio ritmo, a sua própria sintaxe. Já ouvira Graham fazer o mesmo em relação a outras pessoas. Acontecia muitas vezes, numa conversa importante, Graham adquirir os tiques de linguagem do seu interlocutor. Crawford chegara a acreditar que o fazia de propósito, que se tratava de um truque pa ra conservar um determinado ritmo, mas chegara rapidamente à conclusão de que se tratava de um fenômeno absolutamente involuntário e que Graham

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tentara evitá-lo, embora sem êxito. Crawford meteu dois dedos no bolso do casaco. Tirou duas fotografias, que colocou em cima da mesa. - Todos mortos. Graham fitou-o nos olhos antes de pegar nas fotografias. Eram instantâneos: uma mulher, três crianças e um pato, junto a um lago com utensílios para um piquenique. Uma família agrupada por detrás de um bolo.

11 Depois de alguns segundos, voltou a pousar as fotografias. Colocou uma sobre a outra antes de se voltar para a praia, onde uma criança, agachada, procurava qualquer coisa na areia. Uma mulher, com as mãos nas ancas, mantinha-se de pé, observando o ~pequenito, enquanto as ondas se vinham desfazer junto aos seus pés. Inclinou-se para sacudir o cabelo molhado que se lhe colava aos ombros. Graham, ignorando o seu convidado, observou Molly e o filho ,por tanto tempo quanto o que demorara a olhar para as fotografias. Crawford sentia-se contente, mas procurava não o demonstrar, quase de modo idêntico ao cuidado que tivera na escolha do local daquela conversa. Estava convencido de que conquistara Graham. Mas era preciso deixá-lo amadurecer.

Três cães excepcionalmente feios vagueavam por perto e vieram deitar-se próximo da mesa.

- Meu Deus - exclamou Crawford. - Fica calmo, são só cães, acho - explicou Graham. – Há muita gente que vem abandonar cachorrinhos aqui por perto. Os mais bonitos ainda os consigo

dar. Os outros ficam por aí e vão crescendo ao Deus dará.

- Estão demasiado gordos, não estão? - Molly é uma pateta com estes vagabundos.

- Levas aqui uma rica vida, WilI, com Molly e o garoto.

Que idade tem ele? - Onze. - Está óptimo. Vai ser mais alto que tu. Graham concordou com um aceno. - O pai era -mais alto do que eu. Sim, sinto-me bem

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aqui. - A minha vontade era ter trazido a PhyIlis comigo a Florida ... Arranjar um cantinho para a minha reforma e deixar de viver como um homem das cavernas. Ela diz que os amigos dela estão todos em Arlington. - Era minha intenção agradecer-lhe os livros que me levou ao hospital, mas nunca consegui arranjar tempo. Agradece-lhe por mim.

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- Fica descansado. - Duas pequenas aves de cores brilhantes pousaram na mesa, à procura de restos de doce. Crawford ficou a vê-las saltitar, até que levantaram voo e desapareceram. - WilI, este bandalho parece que se encontra na mesma fase que a lua. Assassinou os Jacobi em Birmingliam num sábado à noite, 28 de Junho, dia de lua cheia. Assassinou os Leeds na noite de anteontem, 26 de Julho. Um dia a menos para completar um mês lunar. Deste modo, se tivermos sorte, resta-nos pouco mais de três semanas antes que volte a fazer a mesma gracinha.

- Admirava-me muito que fosses capaz de ficar aqui em

Keys à espera de leres ~ reportagem do próximo crime no-teu Miami Herald. Porra, não sou o papa, não estou aqui para te dizer o que tens de fazer, mas há uma coisa que quero saber Wili: respeitas a minha opinião? - Bem sabes que sim.

- Estou convencido de que temos hipóteses de o apanhar

mais rapidamente se trabalhares connosco. Anda, WilI, mexe-me esse cu e vem dar-nos uma mão. Vai a Atlanta e Birmingam e observa à tua vontade. A seguir vai ter comigo a Washington. Faz um esforço, é a única coisa que te peço. Graham não respondeu. Crawford esperou que algumas ondas se viessem desfazer na praia. Então, levantou-se, colocando o casaco no ombro. - Voltamos a falar depois de jantar. - Fica e comes connosco. Crawfard abanou a cabeça.

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- Venho mais tarde. Deve haver recados para mim no Holiday Inn e tenho de fazer uma série de chamadas. De qualquer modo, agradece à Molly da minha parte. O carro de aluguer de Crawford levantou uma camada

de poeira fina que assentou lentamente nos arbustos de ambos os lados da estrada de terra batida. Graham voltou para junto da mesa. Receava que esta fosse a sua última recordação de Sugarloaf Key - gelo a derreter-se em dois copos de chá, guardanapos de papel que a brisa fazia esvoa-

13 çar da mesa de madeira vermelha e Molly e Willy ao longe na praia.

Pôr-do-sol em Sugarloaf: garças-reais imóveis e a bola de fogo enorme. Will Graham e Molly Foster Graham estavam sentados num tronco de árvore que dera à costa, os rostos iluminados pelo alaranjado do pôr-do-sol, enquanto nas suas costas se iam formando sombras violentas. Ela pegou-lhe na mão.

- Crawford parou na boutique para falar comigo antes de

vir para aqui - disse-lhe ela. - Perguntou-me qual era o caminho. Tentei telefonar-te. De vez em quando podias dar-te ao incómodo de atender o telefone. Vimos o carro quando chegámos a casa e demos a volta pela praia. - Que mais é que ele te perguntou? - Como é que estavas. - E que é que lhe respondeste? - Disse-lhe que estavas em forma e que devia deixar-te em paz de uma vez por todas. Que é que ele quer agora? - Que encontre provas. Sou um especialista forense, Molly, está escrito no meu diploma. - O teu diploma? Serviste-te dele para tapar uma frincha do tecto. - Sentou-se às cavalitas no tronco de árvore. - Se sentisses falta da tua vida anterior e do teu trabalho, falavas nisso, mas nunca o fizeste. Estás mais aberto, mais descontraído ... e eu gosto disso. - Temos passado um tempo óptimo, não temos? O modo como ela pestanejou deu-lhe a entender que

podia

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ter dito qualquer coisa mais apropriada. Mas ela continuou sem lhe dar tempo de interromper. -, Só te fez mal teres trabalhado para o Crawfard.

Quem ouvir até é capaz de ficar convencido de que não tem mais ninguém. Se lhe apetecer pode requisitar o governo inteiro. Será que não pode deixar-nos em paz de uma vez por todas? - Crawford não te contou que foi o meu supervisor

nas duas vezes em que deixei a Academia do FBI para intervir em casos

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reais? Esses dois casos foram os únicos que lhe apareceram em toda a sua vida profissional. E olha que o Jack já trabalha há imenso tempo. Agora surgiu um terceiro caso. Esta espécie de psicopata é muito rara. Ele sabe que eu tenho ... experiência.

- Não é preciso que mo digas - respondeu Molly. A camisa

estava desapertada e podia ver a cicatriz que lhe atravessava o abdômen. Saliente, da largura de um dedo, em alguns pontos talvez mais, nunca ficava bronzeada com o sol. Subia-lhe em diagonal desde a anca esquerda e terminava no lado contrário, junto à caixa torácica.

O Dr. Hannibal Lecter fizera-lhe aquilo com uma faca de

sapateiro. Acontecera um ano antes de ter encontrado Molly e por pouco fora a causa da sua morte. O Dr. Lecter, conhecido pelos jornais como «Hannibal, o Canibal», fora o segundo psicopata que Graham apanhara. Quando finalmente saiu do hospital, Graham demitiu-se do FBI, deixou Washington, e arranjou trabalho como mecânico diesel na doca de Marathon, em Florida Keys. Era um trabalho que conhecia bem. Viveu numa caravana estacionada nas docas até que Molly veio instalar-se numa casa velha de Sugarloaf Key. Foi a vez de Graham se sentar às cavalitas no tronco, ao mesmo tempo que segurava as mãos de Molly. Os pés dela deslizaram debaixo dos seus. - Ouve uma coisa, Molly, Crawfard acha que tenho

uma

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habilidade especial para lidar com monstros. Para ele chega a ser uma superstição. - Acreditas nisso?

Graham olhou para três pelicanos que voavam em linha

sobre a rebentação. - Molly, um psicopata inteligente - em especial um sádico - é extremamente difícil de apanhar por várias razSes. Em primeiro lugar, não se encontra nenhum móbil compreensível, o que obriga que seja uma pista que é preciso pôr de lado. Na maioria das vezes é impossível conseguir-se qualquer coisa dos informadores. Não te esqueças de que a maioria das detenções que se efectuam é só porque alguém deu com a língua nos dentes,

15 e não porque houve um trabalho sério' de investigação. No caso deste tipo não existem informadores. Até pode acontecer que o assassino não saiba o que está a fazer. A única possibilidade que existe é a de se extrapolar a partir dos indícios que formos obtendo, por insignificantes que sejam. Somos obrigados a tentar reconstruir a sua actuação e a procurar encontrar padrSes de comportamento. - Antes de o seguir e de o encontrar - disse Molly. !Tenho medo de que te lances na pista desse maníaco, ou lá que raio lhe queiras chamar. Tenho medo de que te faça o que o último te fez. É isso, pronto! - Não penses nisso, Molly. Ele nunca conseguirá ver-me ou saber o meu nome. É a polícia que tem de o prender, se conseguirem encontrá-lo, e não eu. Crawford. precisa apenas da minha opinião. Molly via a luz avermelhada do sol reflectir-se na superfície espelhada do mar. Uma formação de cirros flutuava no horizonte. Graham adorava a maneira como ela voltava a cabeça, mostrando-lhe descuidadamente o seu pior perfil. Podia ver o pulsar da veia na garganta e de repente lembrou-se de uma forma intensa do gosto do sal na sua pele. Engoliu a saliva e acrescentou: - Que é que posso fazer? - Aquilo que já decidiste. Se ficas aqui e há mais assassínios, o mais certo é este lugar se

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tornar insuportável para ti. Pensarás sempre nessas histórias de lua cheia. E afinal para que é que pediste a minha opinião se já tinhas decidido? - E se eu te pedisse a sério, o que é que respondias? - Que ficasses aqui comigo. Comigo, percebes, e com

o Willy. Era capaz de fazer sei lá o quê se soubesse que resultava. Sei que esperas de mim que não chore e que me comporte normalmente. Se as coisas não correrem pelo melhor, terei a satisfação de saber que fizeste aquilo que estava certo. E tudo isto não passará de um momento fugidio. Depois só me restará regressar a casa e ligar um dos lados do cobertor eléctrico. - Hei-de manter-me à distância. - Sabes bem que não. Achas que sou egoísta?

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- Não me importo. - Nem eu. Sinto-me bem aqui; é do prazer e da doçura que aqui encontro. E, quanto a ti, é graças a tudo aquilo que te aconteceu anteriormente que tens consciência disso, que o aprecias. Ele acenou com a cabeça. - Haja o que houver, não quero perder isto - disse ela. - Nem eu. E não vamos perder. A escuridão caiu rapidamente e Júpiter apareceu a

sudoeste no horizonte. Regressaram a casa, atrás da qual se erguia, no céu, uma lua corcunda. Para lá da rebentação, os peixes debatiam-se para escapar à morte.

Crawfard regressou depois de jantar. Tirara o casaco e a gravata e enrolara as mangas da camisa para se sentir mais à vontade, Molly achava que os braços de Crawford, gordos e esbranquiçados, eram repugnantes. Parecia-lhe um estupor de um macaco diabolicamente manhoso. Serviu-lhe o café junto ao ventilador instalado na varanda, onde ele se encontrava sentado a refrescar-se, e ficou a fazer-lhe companhia enquanto Graham e Willy foram dar de comer aos cães. Não disse nada. Os insectos nocturnos esbarravam nos mosquiteiros. - Parece com bom aspecto, Molly - disse Crawford.

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Tanto um como o outro estão com muito bom aspecto - elegantes e bronzeados. - Diga o que disser, vai levá-lo consigo, não vai? - É verdade, tem de ser. Tenho de o fazer. Mas juro-lhe, por Deus, Molly, que hei-de tornar as coisas para ele o mais fáceis que me seja possível. Está modificado. Foi óptimo vocês terem-se casado. - Tem melhorado pouco a pouco. Já não tem pesadelos como antes. Houve uma altura em que tinha uma obcecação pelos cães. Agora limita-se a tomar conta deles e deixou de falar no assunto a toda a hora. Jack, você é amigo dele. Por que é que não o pode deixar em paz?

17 - Simplesmente porque ele é o melhor. Porque não

pensa como toda a gente e não tem um espírito de rotina. - Will está convencido de que precisa dele para encontrar indícios. - É verdade. Nesse domínio ninguém o ultrapassa.

Mas há também o outro aspecto do trabalho, aquele de que ele não gosta: o trabalho de imaginação, de extrapolação. - Estou convencida de que também não gostava de o fazer. Jack, prometa-me uma coisa. Prometa-me que o impede de se embrenhar demasiado nessa história. Tenho medo de que morra se tiver de lutar. - Não vai ter de lutar, isso posso garantir-lhe.

Quando Graham terminou o trabalho com os cães, Molly

ajudou-o a fazer a mala.

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CAPÍTULO 2

Will Graham passou lentamente diante da casa onde a família de Charles Leeds vivera e morrera. Não havia qualquer luz nas janelas. No jardim ficara acesa uma única lâmpada. Parou a dois quarteirSes de distância e regressou a'pé, trazendo debaixo do braço um dossier com o relatório dos detectives da polícia de Atlanta. A noite estava amena.

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Graham insistira em vir sozinho. Se houvesse mais alguém na casa não conseguia concentrar-se - fora a explicação que dera a Crawford. No entanto, havia uma outra razão, essa, de carácter particular: não sabia muito bem como é que iria reagir e não queria ter ninguém a observar as suas reacções. Conseguira aguentar o choque da morgue. O edifício em tijolo de dois andares encontrava-se levemente recuado em relação à rua, no meio de um terreno arborizado. Graham deixou-se ficar imenso tempo sob as árvores a observá-lo. Precisava de recuperar a sua calma interior. Na sua mente, um pêndulo de prata oscilava na noite. Esperou que o pêndulo se imobilizasse.

Alguns vizinhos passaram de carro, olhando furtivamente

para a casa antes de desviarem o olhar. Uma casa onde se cometeu um assassínio é sempre um assunto penoso para os vizinhos, como se se tratasse do rosto de alguém que os tivesse traído. Só os forasteiros e as crianças eram capazes de a olhar de frente.

19 As persianas estavam subidas. Tanto melhor. Significava que não viera ninguém da família. Os familiares baixam sempre as persianas. Deu lentamente a volta à casa sem acender a lanterna. Parou duas vezes para escutar. A polícia de Atlanta estava ao corrente da sua visita, mas não se passava o mesmo com os vizinhos. Podiam reagir de modo violento e chegar a disparar sobre ele. Olhando através de uma janela das traseiras conseguiu ver os móveis que se encontravam dentro de casa, recortando-se em sombras chinesas, iluminados pela luz do candeeiro do jardim da frente. O aroma de jasmim que pairava no ar tornava o ambiente pesado. Uma varanda envidraçada ocupava a maior parte das traseiras da casa. A porta da varanda fora selada pela polícia de Atlanta. Graham quebrou o selo e entrou.

Na porta que dava da varanda para a cozinha, a polícia

substituíra os vidros partidos por contraplacado. Acendendo a lanterna, abriu a porta com a chave que

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os polícias lhe tinham dado. Queria ligar as luzes, usar o seu distintivo reluzente e fazer barulho para justificar a sua presença naquela casa silenciosa onde cinco pessoas haviam sido assassinadas. Não fez nada disso. Dirigiu-se para a cozinha mergulhada na escuridão e sentou-se à mesa. Duas lâmpadas piloto do equipamento de cozinha projectavam na escuridão reflexos azulados. Sentia-se no ar o cheiro a maçãs e a verniz para móveis. O termostato disparou e o ar condicionado começou a trabalhar. Graham sobressaltou-se com o ruído inesperado, sentindo um laivo de medo, uma sensação que ele conhecia bem, mas depressa se refez, decidido a continuar. Conseguia ver e ouvir melhor quando sentia medo, mas em contrapartida deixava de falar controladamente, chegando por vezes a mostrar-se grosseiro. Mas ali não havia ninguém com quem falar, ninguém a quem pudesse insultar.

A loucura entrara naquela casa pela porta da cozinha,

calçando sapatos tamanho quarenta e três. Sentado na escuridão, Graham farejava a loucura como um cão-polícia fareja uma camisa.

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Passara praticamente todo o dia e o princípio da noite

a estudar o relatório dos detectives dos Homicídios de Atlanta. Lembrou-se.de que a luz do exaustor sobre o fogão se encontrava acesa na altura em que a polícia chegou. Voltou a ligá-la. Havia dois posters na parede, um de cada lado do fogão. Num deles estava-escrito: «Os beijos são efémeros mas os bons petiscos são eternos» e no outro: «É sempre na cozinha que os nossos amigos se reencontram porque é aí que ouvem bater, o coração da casa.» Graham olhou para o relógio. Onze e meia da noite. Segundo o médico legista, as mortes teriam ocorrido entre as onze da noit( ,e a uma da manhã. A entrada em primeiro lugar. Tentou imaginar como é

que as coisas se teriam passado ... O lunático começou por arrombar a porta da varanda.

Na

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escuridão tirou qualquer coisa do bolso: uma ventosa, talvez a base de um afia-lápis de secretária. Agachado contra a parte inferior de madeira da porta da cozinha, o lunático ergueu a cabeça para espreitar pelo vidro. Humedeceu a ventosa com a língua, fez pressão contra o vidro e premiu a alavanca para a fixar. Um pequeno corta-vidros de diamante que lhe permitia cortar um círculo de vidro, estava preso à ventosa por um fio. Um leve rangido do diamante e uma pancada seca para partir o vidro. Uma mão para dar a pancada e a outra para segurar a ventosa. O vidro não deve cair. A peça de vidro que cortou tem uma forma ligeiramente oval porque o fio se embaraçou no topo da ventosa à medida que ia cortando. Apenas um leve ruído quando retira o bocado de vidro e o coloca no chão. Pouco se importa por ter deixado no vidro saliva do tipo AB positivo. A mão enluvada introduz-se pelo buraco e encontra a fechadura. A porta abre-se sem qualquer ruído. Já está dentro de casa. A luz do exaustor permite-lhe distinguir os objectos naquela cozinha desconhecida. O ambiente está agradavelmente fresco. Will Graham engoliu duas pastilhas contra a azia, sentindo-se irritado com o ruído produzido pelo celofane que as continha. Atravessou a sala de estar mantendo a lanterna afastada de si, um hábito de longa data. Estudara conscienciosamente a planta do andar, mas mesmo assim enganou-se no caminho antes de alcançar as escadas. Não rangeram sob o seu peso.

Encontrava-se agora à porta do quarto principal.

Conseguia distinguir as coisas sem a ajuda da lanterna. Numa mesinha de cabeceira, um relógio digital projectava as horas no tecto e uma luz alaranjada de vigia encontrava-se acesa perto da casa de banho. O cheiro a cobre metálico do sangue era ainda bastante forte. Olhos acostumados à escuridão conseguiam distinguir as coisas de modo razoável. O lunático conseguira distinguir o Sr. Leeds da esposa. Vira o suficiente para atravessar a sala, agarrar Leeds pelos cabelos e cortar-lhe a garganta. E a seguir?

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De volta ao interruptor de parede, um pequeno cumprimento à Sr a Leeds antes do tiro que iria mutilá-la?

Graham acendeu as luzes e as manchas de sangue nas

paredes, no colchão e no soalho saltaram-lhe aos olhos. O ar ainda estava cheio de gritos lancinantes. Sentiu-se desfalecer perante o ruído deste quarto silencioso sujo de manchas sombrias. Graham sentou-se no chão para tentar acalmar-se.

Calma, tem calma, mantém-te calmo. O número e diversidade das manchas de sangue fora um enigma para os detectives de Atlanta que tentaram reconstituir o crime. Todas as vítimas tinham sido encontradas nos próprios leitos, o que não era consistente com a localização das manchas. Inicialmente pensaram que Charles Leeds fora agredido no quarto da filha e em seguida arrastado para o seu quarto. Uma análise mais cuidada das manchas obrigara-os a reconsiderar.

Ainda não fora possível determinar os movimentos do

assassino em todos os quartos. Mas agora, com a ajuda do relatório da autópsia e

do laboratório, Will Graham começava a ver como as coisas se tinham passado. O assassino cortara a garganta de Charles Leeds,

que dormia ao lado da mulher, e voltara ao interruptor de parede para acender

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a luz - no interruptor foram encontrados cabelos de Leeds e vestígios de brilhantina, deixados por uma luva de borracha. Disparou sobre a Sr.' Leeds na altura em que esta se erguia da cama e em seguida dirigiu-se para os quartos das crianças.

Apesar do ferimento, Leeds levantou-se e tentou fazer-lhe

frente para proteger as crianças, embora sangrasse abundantemente, indício de hemorragia arterial. Foi empurrado, caiu e morreu junto da filha. Um dos rapazes foi abatido a tiro na cama. O

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outro também foi encontrado deitado, mas tinha cotão nos cabelos. A polícia concluiu que devia estar debaixo da cama e que foi arrastado para fora antes de ser morto igualmente a tiro. Quando já se encontravam todos mortos, talvez com excepção da Sr a Leeds, foi a altura de partir os espelhos, de escolher os fragmentos e de consagrar uma atenção especial à Sr. Leeds. Graham recebera duplicados de todos os relatórios de autópsia. O da Sr.' Leeds especificava que a bala entrara à direita do umbigo, indo alojar-se na coluna vertebral por altura das vértebras lombares, mas que morrera estrangulada. O aumento dos níveis de serotonina e de histamina

ao nível da ferida da bala indicava que sobrevivera pelo menos cinco miinutos depois do tiro. O nível de histamina era mais elevado do que o de serotonina, o que significava que não resistira mais de quinze minutos. A maior parte dos outros ferimentos teriam sido feitos depois de morta, embora não houvesse qualquer certeza. Se os outros ferimentos eram posteriores à sua morte, que raio é que o assassino estivera a fazer durante o espaço de tempo em que a Sr a Leeds agonizava?, perguntava Graham a si próprio. Não havia dúvida de que lutara com Leeds e assassinara os outros membros da família, mas tudo isso não demorara mais de um minuto. Partiu os espelhos, e depois?

Os detectives de Atlanta eram muito minuciosos. Tinham

medido e fotografado tudo de uma forma exaustiva, aspirado toda a área, inspeccionado os cantos mais escondidos e investigado os próprios sifSes da casa de banho. Mesmo assim, Graham voltava a examinar toda a situação.

23 As fotografias da polícia e os contornos marcados

nos colchSes mostravam a Graham onde os corpos tinham sido encontrados. Vários indícios - por exemplo os vestígios de nitrato nas roupas de cama, no caso dos ferimentos a tiro indicavam que se encontravam aproximadamente na mesma posição na altura em que

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haviam falecido. Mas a profusão de manchas de sangue e de marcas encontradas no tapete do patamar permaneciam sem qualquer explicação. Um dos detectives apresentara uma teoria segundo a qual algumas das vítimas teriam tentado rastejar para escaparem ao assassino. Graham não acreditava nisso. Era evidente que o assassino os deslocara depois de terem morrido para os voltar a colocar no local onde foram encontrados.

Aquilo que ele fizera com a Sr a Leeds era óbvio. E a

respeito dos outros? Não lhes tinha infligido as mesmas mutilações, como fizera com a Sr a Leeds. As crianças haviam sido apenas atingidas com um tiro na cabeça. Charles Leeds morrera da hemorragia e do sangue que engolira. A única marca adicional que se encontrara nele provinha de ter sido amarrado ao nível do peito, facto, muito possivelmente, posterior à sua morte. Sendo assim, que é que o assassino fizera com eles depois de terem morrido? Graham tirou do dossier as-fotografias da polícia,

os relatórios do laboratório sobre manchas de sangue e de líquidos orgânicos individuais encontrados no quarto e um estudo comparativo permitindo calcular as projecções do sangue. Estudou os quatro com atenção, esforçando-se por fazer corresponder os ferimentos às manchas e trabalhando no sentido inverso. Assinalou cada mancha num esboço à escala do quarto principal, usando os diagramas comparativos para calcular a direcção e velocidade das projecções. Procurava deste modo determinar as posições dos corpos nos diferentes instantes do drama. Uma fila de três manchas oblíquas, precisamente num

dos cantos da parede do quarto. No tapete, três manchas muito ténues. Por cima da cabeceira da cama, do lado de onde dormia Charles Leeds, a parede encontrava-se manchada e havia marcas de sangue nos prumos. O diagrama de Graham começava a parecer-se

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como um daqueles desenhos em que é preciso unir os pontos para formar uma imagem. Olhou-o com atenção, voltou

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a olhar para o quarto e de novo para o esquema, até começar a sentir uma dor de cabeça insuportável. Foi ao quarto de banho, tomou os seus dois últimos comprimidos Bufferin e em seguida fez correr a água na mão em concha. Molhou o rosto e limpou-se à fralda da camisa. A água escorreu para o chão. Esquecera-se de que o sifão fora desligado para analisarem o filtro. Se não fosse esse detalhe, o quarto de banho encontrava-se intacto, com excepção do espelho partido e do pó vermelho de impressões digitais, conhecido por «sangue de dragão». Escovas de dentes, cremes para o rosto, máquina de barbear, encontrava-se tudo nos seus lugares. Dir-se-ia que a família ainda continuava a utilizar o quarto de banho: os collants da Sr a Leeds pendurados no toalheiro, onde ela os deixara a secar. Reparou que cortava uma das pernas de um par, quando tinha uma malha caída - podia usar dois pares ao mesmo tempo, cada um deles só com uma perna, conseguindo poupar dinheiro. Este tipo de pequena economia da Sna Leeds impressionou-o; Molly agia de modo idêntico. Graham passou por uma das janelas para se instalar sobre a cobertura de madeira da varanda. Abraçando os joelhos, a camisa húmida colada às costas, respirou fundo tentando libertar-se do cheiro de matadouro que lhe invadira o nariz.

As luzes de Atlanta iluminavam a noite, tomando difícil

avistar as estrelas. Em Keys devia estar uma noite bonita. Podia estar naquele momento a observar as estrelas cadentes na companhia de Molly e Willy, procurando ouvir o silvo - estavam todos de acordo sobre este ponto - que fariam ao cair. Os meteoros de Delta Aquário encontravam-se no seu apogeu e isto era uma coisa que Willy não queria perder. Sentiu de novo um arrepio e fungou. Não era altura para pensar em Molly. Só podia servir para o distrair. E além disso não era de muito bom gosto. Esse era exactamente o problema de Graham: nem sempre os seus pensamentos eram de muito bom gosto. Não existia uma

25 separação real no seu espírito. Tudo aquilo que via e que aprendia contaminava todos os seus outros

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conhecimentos. Por vezes, estas misturas eram difíceis de suportar, mas nada conseguia fazer para as evitar. Todos os seus valores adquiridos de decência e de conveniência se rebelavam diante destas associações de ideias ou assustavam-se com os seus sonhos, e no ambiente fechado da sua mente não existia refúgio possível para aquilo que ele amava. As associações faziam-se à velocidade da luz, enquanto os juízos de valor preferiam o passo comedido da ladainha. Seria impossível que alguma vez impusessem e orientassem a sua reflexão. A sua própria mentalidade parecia-lhe grotesca e útil ao mesmo tempo, como se fosse uma cadeira tosca, mas não conseguia reagir contra isso. Graham apagou a luz e atravessou a cozinha. Num dos cantos da varanda a lanterna iluminou uma bicicleta e uma cama para um cão feita num cesto de vime. No pátio havia uma casota e perto dos degraus ficara abandonada uma gamela.

Tudo demonstrava que os Leeds haviam sido surpreendidos

durante o sono. Segurando a lanterna entre o queixo e o peito,

escreveu uma nota: «Jack, onde estava o cão?» Graham regressou ao hotel. Teve de se concentrar na condução embora o tráfico fosse praticamente nulo às quatro e meia da madrugada. A cabeça ainda lhe doía e tentou encontrar uma farmácia que estivesse aberta toda a noite. Encontrou uma em Peachtree. Um segurança de aspecto pouco cuidado dormitava próximo da porta. O empregado da farmácia, envergando uma bata desbotada e cheia de caspa nos ombros, vendeu a Graharn os comprimidos Bufférin que este pediu. A iluminação da farmácia feria a vista. Graham detestava farmacêuticos jovens. Achava-lhes na maioria das vezes um ar convencido e desconfiava de que em casa deviam ser desagradáveis. - Mais alguma coisa? ~ perguntou o farmacêutico,

com os dedos pousados nas teclas da caixa registadora. - Mais alguma coisa?

26

Os escritórios do FBI de Atlanta tinham-lhe reservado

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quarto num hotel absurdo, perto do novo centro comercial de Peachtree. Os elevadores eram envidraçados, em forma de vagem, para que não se esquecessem de que se encontravam mesmo na cidade. Graham subiu no elevador juntamente com dois indivíduos cheios de autocolantes, participantes numa convenção qualquer. Agarrados à barra do elevador, observavam o átrio do hotel. - Olha para aquela maravilha junto à recepção, é a Wilma e os outros que estão agora a chegar - disse o mais corpulento. Porra, como eu gostava de dar uma dentada naquilo. - F... até que ela deitasse sangue pelo nariz - disse o outro. O medo, a violência, a cólera. - A propósito, sabes por que é que uma mulher tem pernas? - Não, porquê? - Para não deixar um rasto como um caracol. As portas do elevador abriram-se. - É aqui? É, chegámos - disse o mais corpulento. Ao sair foi de encontro à parede.

Olha, olha, afinal não estás melhor do que eu - disse o outro.

Ao chegar ao quarto, Graham colocou o dossier em cima da cómoda. Mas arrependeu-se e guardou-o numa gaveta onde não o pudesse ver. Estava farto de todos aqueles mortos de grandes olhos arregalados. Apeteceu-lhe telefonar a Molly, mas ainda era muito cedo.

Estava prevista uma reunião às oito da manhã na sede da

polícia de Atlanta. Pouco tinha para lhes dizer. Precisava de tentar dormir. A sua mente era semelhante a uma casa onde toda a gente discutia e em que a luta começava logo no hall de entrada. Com uma sensação incómoda de vazio e de entorpecimento, bebeu dois dedos de whisky no copo dos dentes antes de se deitar. O peso da escuridão oprimia-o. Acendeu a luz da casa de banho e voltou a deitar-se. Tentou imaginar Molly na casa de banho a escovar o cabelo.

Ressoavam-lhe na mente passagens do relatório de autópsia

e era a sua própria voz que ele ouvia, embora nunca o tivesse lido

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27 em voz alta: «[ ... (as fezes eram formadas (...) um vestígio de talco na parte inferior da perna direita. Fractura da parede média da órbita devido a inserção de um fragmento de espelho [ ... ]» Graham fez um esforço para pensar na praia de Sugarloaf Key e ouvir o ruído das ondas. Imaginou a sua oficina e pensou no escoamento da elepsidra que ele e Willy estavam a construir. Trauteou em surdina Whisky River e a seguir procurou cantar o Black Mountain Rag do princípio ao fim. A música de Molly ... Não tinha problemas com a parte de guitarra de Doc Watson, mas perdia-se sempre no solo de violão. Molly tentava ensinar-lhe sapateado no pátio da casa, fazia troça dele ... acabou por adormecer. Acordou menos de uma hora depois, banhado em suor: a silhueta da outra almofada recortava-se contra a luz da casa de banho e era a Sr.' Leeds que jazia a seu lado, mordida, despedaçada, os olhos vidrados, as têmporas e as orelhas cobertas de manchas de sangue, dando a ideia das hastes de uns óculos. Não conseguia olhá-la de frente. Com um uivo de sirene a ecoar-lhe na cabeça, estendeu a mão e só encontrou os lençóis. Experimentou um alívio imediato. Levantou-se, o coração a pulsar desordenadamente, e vestiu uma camisola lavada antes de atirar para a banheira aquela que trazia vestida. Não foi capaz de se mudar para o lado seco da cama. Preferiu estender uma toalha sobre os lençóis empapados em suor e voltar a deitar-se, as costas apoiadas na cabeceira da cama, um copo na mão. De uma só vez engoliu quase que um terço do conteúdo.

Procurou encontrar qualquer coisa em que pudesse pensar,

não importava o quê. A farmácia onde comprara os comprimidos. Isso dava. Talvez porque tivesse sido a única coisa em todo o dia que não estivera relacionada com mortes. Lembrou-se das velhas boticas e das suas fontes de soda. Nos seus tempos de miúdo sempre lhes encontrara um ar esquisito. Quando se entra num deles, o primeiro pensamento que vem à ideia é o de comprar preservativos, mesmo que não se tenha

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necessidade. Havia artigos nas prateleiras que não se encontravam há muito noutros sítios.

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Na farmácia onde comprara o Bufferin, os contraceptivos

com as suas embalagens ilustradas encontravam-se num mostruário em plástico brilhante, pendurado na parede por detrás da caixa registadora. Pessoalmente preferia a desordem da botica da sua infância. Graham aproximava-se a passos largos dos quarenta e começava a recordar com um aperto de coração o mundo que tinha conhecido; era como a âncora de um barco que arrastasse atrás de si durante uma tempestade. Lembrou-se de Smoot. No tempo em que Graham era uma criança, o velho Smoot trabalhava como gerente para o farmacêutico proprietário da botica do bairro. Smoot, que bebia durante as horas de trabalho e que se esquecia de descer a persiana da montra, fazendo que as alpergatas em exposição ficassem desbotadas. Smoot, que se esquecia de desligar a máquina de fazer café para em seguida ter de chamar os bombeiros. Smoot, que dava ~crédito às crianças que lhe compravam gelados. O seu maior crime fora o de ter encomendado cinquenta bonecas Kewpie a um vendedor numa altura em que o proprietário se encontrava de férias. No seu regresso, este suspendeu Smoot durante uma semana. Logo a seguir fizeram uma campanha de venda das bonecas. As cinquenta bonecas foram dispostas na montra em semicírculo, dando a impressão de que não tiravam os olhos de todas as pessoas que passavam na rua. Tinham uns olhos enormes de um azul lindíssimo. A sua exposição atraía os olhares de toda a gente, e Graham por diversas vezes se perdera na sua contemplação. Sabia perfeitamente que não passavam de bonecas, mas a sensação era a de que não tiravam os olhos dele. Tantas bonecas iguais. Muitas pessoas paravam para olhar para elas. Bonecas de gesso, todas com os mesmos caracóis um pouco ridículos - e no entanto todos aqueles olhares fixados nele faziam-lhe pele de galinha.

Só agora é que Graham começava a descontrair-se. Bonecas

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a olharem para ele. Tentou beber um golo, mas engasgou-se e entornou a bebida no peito. Procurou às apalpadelas o candeeiro de mesinha de cabeceira. Tirou o dossier da gaveta da cómoda.

29

30

Separou os relatórios de autópsia referentes às crianças dos Leeds e o esboço anotado do quarto principal e espalhou tudo em cima da cama. Ali estavam as três manchas de sangue na parede do quarto e as manchas correspondentes no tapete. Também estavam anotados os tamanhos das três crianças. Condizia tudo. Tudo. Nos três casos. Tinham sido instalados encostados à parede, em frente da cama. Um público. Um público de mortos. E Leeds. Amarrado pelo peito à cabeceira da cama. Numa posição como se estivesse sentado. Ficando com a marca da corda no peito e manchando a parede acima da cabeceira. O que é que eles olhavam? Nada, estavam todos mortos. Mas tinham os olhos abertos. Assistiam ao espectáculo dado pelo lunático e pelo corpo da Sr a Leeds, na cama, ao lado do Sr. Leeds. Um público. Este tarado podia ver os rostos à sua volta. Graham chegou a pensar se ele teria acendido uma vela. A luz vacilante teria dado um toque de vida aos seus rostos. Mas não fora encontrada nenhumavela. Talvez utilizasse uma da próxima vez.

Esta insignificante primeira ligação com o assassino

devorava-o como uma sanguessuga. Febril, Graham mordeu o lençol. Por que é que os mudaste de posição? Não os podias

ter deixado ficar onde estavam ~ perguntou Graham. Há qualquer coisa que fizeste e que me queres esconder. Qualquer coisa de que tens vergonha. A menos que não possas permitir que eu o saiba. Abriste-lhes os olhos? A Sr a Leeds era linda, não era? Acendeste a luz

depois de teres cortado a garganta do marido para que ela o visse sangrar, nãofoi? Era insuportável ter de usar luvas quando lhe tocaste, não era?

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Havia talco na perna dela. Não havia talco na casa de banho. Parecia que alguém lhe enunciava estes dois factos em voz baixa.

Tiraste as luvas, não tiraste? O talco caiu da luva de borracha que tiraste para lhe tocares, não foi, seu filha da puta? Tocaste-a com as mãos nuas antes de voltares a calçar as luvas para a limpares. Mas enquanto estavas sem luvas, abriste-lhe os olhos?

Ao quinto toque Jack Crawfard levantou o auscultador. Durante a noite atendera o telefone tantas vezes que esta nova chamada não o incomodou. - Jack, é Will. - Diz. - O Price ainda está nas Impressões Digitais Latentes? - Está. Já não sai muito. Está a trabalhar no ficheiro das impressões individuais. - Acho que ele devia dar um salto a Atlanta. - Porquê? Tu próprio disseste que eles tinham um bom especialista.

É bom mas não se compara com o Price. Que é que queres que ele faça? O que é que ele deve investigar?

As unhas das mãos e dos pés da Sr.ª Leeds. Estão envernizadas, é uma camada muito fina. E as cómeas dos olhos de toda a família falecida. Jack estou convencido de que ele tirou as luvas. - Meu Deus, Price vai ter de se mexer - disse Crawford. O funeral está previsto para esta tarde.

31 CAPÍTULO 3 - Estou convencido de que sentiu necessidade de lhe tocar - disse Graham à laia de preâmbulo, Encontravam-se os dois no comando da polícia de Atlanta. Crawfard estendeu-lhe uma coca-cola que tirara da máquina automática. Eram oito menos dez da manhã. - De certeza que a deslocou - disse Crawford. Encontrámos marcas nos pulsos e na parte posterior dos joelhos que o provam. Mas todas as impressões foram produzidas por luvas não porosas. Não te

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preocupes, Price já chegou. Um filho da mãe sempre a resmungar. Neste momento já vai a caminho da Casa Funerária. A morgue deixou levantar os corpos ontem à noite mas .a Casa Funerária ainda não fez nada. Estás com um aspecto horrível. Conseguiste dormir? - Cerca de uma hora. Estou convencido de que sentiu necessidade de lhe tocar com as mãos nuas.

- Espero que tenhas razão, mas o laboratório de Atlanta

jura a pés juntos que ele usou sempre luvas de cirurgião disse Crawford. - Os fragmentos de vidro tinham impressões lisas. Uma impressão do indicador na parte de trás do fragmento cravado nos grandes lábios e uma impressão esborratada do polegar na~ parte da frente do mesmo bocado de espelho.

- Provavelmente esfregou-o depois de o ter enterrado,

certamente para se conseguir ver ao espelho - disse Graham.

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Aquele que ela tinha na boca estava manchado com sangue. E aconteceu o mesmo com os que lhe cravou nos olhos. Nunca chegou a tirar as luvas.

- A Sr.' Leeds era uma mulher de família, não viste? Se

me encontrasse numa situação íntima tenho a certeza de que gostaria de lhe tocar na pele. E tu, não? - íntima? - Crawfard não conseguiu evitar que a voz

lhe traduzisse o nojo que a ideia lhe causava. Começou a verificar os bolsos como se procurasse qualquer coisa, para disfarçar. - Sim, íntima. Estavam sós. Todos os outros estavam mortos. Podia abrir-lhes ou fechar-lhes os olhos conforme lhe apetecesse. - Sim, podia fazer o que lhe apetecesse - disse Crawford. - Procuraram impressões em toda a pele, mas não deu nada. A única coisa que encontraram foi a marca de uma mão no pescoço.

O relatório não diz nada sobre a investigação de resíduos

nas unhas. - Julgo que as unhas estavam sujas quando fizeram o levantamento. Enterrou as unhas nas palmas das mãos. Nunca chegou a arranhá-lo. - Tinha uns pés bonitos - observou Graham.

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- Umm-hmm. E se subíssemos - respondeu Crawford. Chegou a altura de passarmos as tropas em revista.

O equipamento de Jiminy Price era bastante volumoso: duas malas grandes, mais um saco de fotógrafo e o tripé. Fez uma algazarra enorme ao entrar pela porta principal da Casa Funerária Lombard em Atlanta. Era um homem idoso e frágil e o interminável trajecto de táxi desde o aeroporto não melhorara em nada o seu temperamento. Um jovem untuoso, com o cabelo cortado à moda, conduziu-o para um gabinete decorado em tons de ameixa e creme. A secretária encontrava-se limpa de qualquer papel, tendo apenas uma estatueta conhecida por Mãos em Oração.

33 Price estava a examinar os dedos das mãos em oração quando entrou o próprio Sr. Lombard. Este verificou as credenciais de Price com um cuidado meticuloso. - O seu escritório de Atlanta ou agência, como lhe quiser chamar, telefonou-me, como é lógico, Sr. Price. Mas na noite passada tivemos de chamar a polícia para pôr na rua um sujeito detestável, que tentava tirar fotografias para o The National Tattler. Vejo-me portanto na obrigação de ser extremamente prudente e tenho a certeza de que compreende; Sr. Price. Os corpos só nos foram entregues cerca da uma da manhã e o funeral está previsto para esta tarde às cinco horas. Não temos qualquer hipótese de o adiar. - Isto não vai demorar muito tempo - disse Price. Preciso de um assistente razoavelmente inteligente, se é que tem alguém nestas condições. Tocou nos corpos, Sr. Lombard? - Não.

Tente saber quem é que lhes tocou. Tenho de recolher as

impressões digitais deles.

Naquela manhã, na reunião dos inspectores encarregados do caso Leeds, falou-se sobretudo de dentes~ O inspector-chefe de Atlanta, R. J. Springfield, conhecido por Buddy, um tipo corpulento em mangas de camisa, encontrava-se junto

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da porta na companhia do Dr. Dominic Princi, enquanto os vinte e três detectives iam entrando. - Muito bem, meus senhores, agora que estamos todos aqui, vamos fazer um grande sorriso - disse Springfleld. - Mostrem ao Dr. Princi os vossos dentes. É isso, mostrem os dentes todos. Meu Deus, Sparks, que é que se passa? Isto é a sua língua ou engoliu uma serapilheira? Vamos, entrem. Uma imagem frontal de uma dentadura muito ampliada, maxilar superior e inferior, estava afixada sobre o painel da ordem de serviço na parede por detrás do estrado. A Graham fazia-lhe lembrar uma fantasia de Carnaval. Sentou-se com Crawford no fundo da sala enquanto os detectives se sentavam em carteiras.

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O comissário de segurança pública de Atlanta,, Gilbert Lewis, e o responsável das relações públicas encontravam-se à parte, em cadeiras desdobráveis, Lewis devia estar presente numa conferência de imprensa dali a uma hora.. O chefe de detectives Springfield iniciou a reunião. - Muito bem, já nos divertimos o suficiente. Se deram uma vista de olhos ao relatório desta manhã, verificaram de certeza que não se avançou um milímetro. - Os interrogatórios sistemáticos casa a casa vão

continuar num raio de mais quatro blocos a partir da cena do crime. O Departamento R & 1 enviou-nos dois homens para os ajudarem a verificar todas as reservas aéreas e alugueres de automóveis tanto em Birmingliam como em Atlanta.

- Os detectives encarregados dos hotéis e do aeroporto

vão sair mais uma vez. Sim, foi isso que eu disse, hoje, mais uma vez. Interroguem as empregadas domésticas, os miúdos, os empregados de recepção. O homem teve de tomar banho em qualquer sítio e é muito possível que tenha deixado vestígios. Se encontrarem alguém que tenha feito a limpeza, saquem as pessoas do quarto, selem-no e dirijam-se em passo de corrida para a lavandaria. Finalmente temos qualquer coisa para vos mostrar. Dr. Princi? O Dr. Dominic Princi,_médico-chefe de patologia do condado de Fulton, encaminhou-se para

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o estrado, tomando lugar junto da ampliação dos dentes. Na mão tinha uma dentadura. - Meus senhores, os dentes do indivíduo devem ser muito parecidos com estes. O Smithsonian em Washington conseguiu fazer a reconstituição a partir das impressões recolhidas das dentadas encontradas no corpo da Sr a Leeds e de uma dentada muito mais nítida num pedaço de queijo que estava no frigorífico dos Leeds. - Princi continuou. - Como podem ver, os incisivos laterais estão apertados, aqui e aqui - Princi apontou os dois pontos na dentadura que tinha na mão e em seguida na ampliação. - O alinhamento é imperfeito e falta um canto neste incisivo central. O outro incisivo tem um entalhe. Dá a ideia de um «chanfro de alfaiate», uma coisa que acontece a quem tem o hábito de partir linha com os dentes.

35 - Filho da mãe de dentuças - resmungou alguém no meio da assistência. - Diga-me uma coisa, Doe, como é que tem a certeza de que foi o indivíduo que deu uma dentada no queijo? - perguntou um detective de elevada estatura que se encontrava na primeira fila. Princi detestava que lhe chamassem «Doc», mas não se deu por achado. - Os vestígios de saliva encontrados no queijo e nos ferimentos correspondem ao mesmo tipo sanguíneo. Os dentes e o tipo de sangue das vítimas são diferentes. - Bom trabalho, Doutor - disse Springfleld. - Vamos agora entregar-lhes fotografias dos dentes. - E se comunicássemos aos jornais? - perguntou Simpkins, o responsável das relações públicas. - Com um texto do gênero «Alguma vez viu estes dentes?». - Não vejo qualquer inconveniente - disse Springfleld. E o senhor, comissário? Lewis acenou com a cabeça. Mas Simpkins ainda não tinha terminado. - Dr. Princi, a imprensa vai perguntar-nos por que é que foram precisos quatro dias para construir esta reprodução. Também vai querer saber por que é que foi preciso pedir ajuda a Washington. O agente especial Crawford não tirava os olhos da

ponta

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da sua esferográfica. O Dr. Princi corou, mas a voz manteve-se calma. - As marcas de dentadas na carne são deformadas quando o corpo é removido, Sr. Simpson.---. - Simpkins. < - Pois seja, Simpkins. Nunca teríamos conseguido este resultado apenas com as dentadas na vítima e é aí que o queijo entra em jogo. O queijo é relativamente sólido,- bastante delicado para uma moldagem. É preciso começar por o barrar de óleo para que não haja aderência de bolor- O Smithsonian já fez trabalhos deste gênero para o laboratório criminal do FbI. Está mais bem equipado para conseguir fazer um estudo facial e possui um articulador

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anatómico. Além disso, tem como consultor um especialista em odontologia. E nós não temos. Mais alguma coisa? - Seria correcto dizermos que o atraso foi devido

ao atraso no laboratório do FBI em vez de nos considerarmos responsáveis? Princi voltou-se para ele. - O que seria correcto dizermos, Sr. Simpkins, é que foi um investigador federal, o agente especial, Crawford, que descobriu o queijo no frigorífico há dois dias, muito depois de os vossos homens terem virado o local do avesso., Foi a meu pedido que ele requisitou o trabalho, de laboratório. De qualquer modo, confesso que me sinto aliviado por saber, que não foi nenhum de vocês que deu uma dentada no queijo. O comissário Lewis interrompeu, fazendo ecoar por toda a sala a sua voz de baixo. - Ninguém está a pôr em causa a sua opinião, Dr. Princi. Simpkins, a última coisa de que precisamos é de começar uma merda de uma disputa com o FBI. Acabem com isso. - Estamos todos no mesmo barco - disse Springfleld. Jack, os seus homens querem acrescentar mais alguma coisa?. Crawfard tomou a palavra. Nem todos os rostos que se voltavam para ele mostravam sinais de simpatia. Era preciso fazer qualquer coisa a esse

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respeito. - A única coisa que me interessa, chefe, é

desanuviar o ambiente. Há alguns anos havia uma rivalidade acentuada entre nós. Quer fossem os federais, ou a polícia local, cada um procurava puxar a manta e destapar o outro. E os criminosos aproveitavam para se escaparem. Presentemente, o Bureau e eu já não pensamos dessa maneira. Estou-me nas tintas para quem levar a taça. O investigador Graham é da mesma opinião. Para quem ainda não o conheça, é aquele que está sentado ali ao fundo. Se o tipo que fez isto for atropelado por um camião do lixo, para mim está perfeito, uma vez que a única coisa que é importante é que seja posto fora de circulação. Tenho a certeza de que vocês pensam da mesma maneira. Crawford olhou para os detectives. Esperava que se acalmassem e que não procurassem armar-se em vedetas. O comissário Lewis dirigiu-lhe a palavra.

37 - O investigador Graham já trabalhou neste tipo de casos? Já.

- Sr. Graham, talvez tenha alguma coisa a acrescentar,

uma sugestão? Crawford interrogou Graham com o olhar. - Quer fazer o favor de se aproximar do estrado? - disse Springfield. Graham teria preferido falar com Springfield em particular. Fazer uma exposição diante de toda a gente não o animava por aí além. No entanto, fez o que lhe pediam.

Despenteado e tisnado pelo sol, Graham não se parecia de

modo nenhum com um investigador federal. Springfield achava que se parecia mais com um pintor da construção civil que se tivesse endomingado para comparecer em tribunal. Os detectives agitaram-se nas cadeiras. Mas quando Graham se voltou para enfrentar a assistência, os olhos, de um azul-deslavado, fazendo contraste com o rosto bronzeado, conseguiram imobilizá-los nos lugares. - Só algumas palavras - começou ele. - Não podemos concluir que se trate de um antigo doente

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mental ou de alguém. que já tenha sido condenado por atentados ao pudor. Existem até muitas possibilidades de que não possua cadastro. E, se tiver, será mais do gênero de roubo por arrombamento. - Pode ser que em crimes menores tenha manifestado a sua tendência para morder, como por exemplo em lutas de bar ou maus tratos infligidos a crianças. Neste aspecto, a maior ajuda que poderemos ter virá eventualmente do pessoal dos serviços de emergência e dos elementos da assistência social. Será preciso verificar todos os casos graves de dentadas de que eles se possam lembrar, sem ter em conta a personalidade da vítima ou o modo de se relacionar com os acontecimentos. E era só isto que lhes queria dizer. O detective de elevada estatura que se encontrava na fila da frente ergueu a mão e falou ao mesmo tempo. - Mas para já só tem mordido mulheres, não é? - Segundo as informações que temos, é de facto assim. No entanto, não há dúvida de que morde de mais. Seis dentadas

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graves na Sr a Leeds, oito na Sr.' Jacobi. Temos de concordar que é um bocado acima'da média. - Que média? - A dos crimes sexuais, que é de três. Não, não há dúvida de que gosta de morder. - As mulheres. - Na maioria dos crimes sexuais, a dentada caracteriza-se por uma mancha esbranquiçada no centro, na zona da sucção. Nestes casos, estas características não aparecem. O Dr. Prinei fez menção desse facto no seu relatório de autópsia e eu próprio tive oportunidade de o verificar na morgue. Não existem vestígios de sucção. Talvez morda mais pelo prazer da luta do que por preversão sexual. - É muito pouco - disse o inspector. Mas vale a pena verificar - disse Graham. - Todos

os casos de dentadas devem ser verificados. As pessoas mentem sobre o modo como as coisas se passaram. Os pais de uma criança que foi mordida dirão que foi

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um animal e deixarão que seja vacinada contra a raiva, só para evitar o escândalo na família, todos vocês já se defrontaram com casos desses. É melhor informarem-se junto dos hospitais e procurarem saber quem foi vacinado contra a raiva.

- Pronto, agora é que acabei. - Quando Graham se sentou, os músculos das coxas crisparam-se-lhe com a fadiga. - Vale a pena perguntar e vamos fazê-lo - disse o inspector-chefe Springfield. - O grupo dos Cofres e Armazéns vai ocupar-se do quarteirão juntamente com o grupo de Furtos por' Esticão. Pensem no cão. Os dados e a fotografia encontram-se no dossier. Tentem descobrir se o cão foi visto na companhia de um estranho. Quanto aos Costumes e Drogas, ocupem-se dos cowboys da nossa praça e dos bares manhosos depois do trabalho de rotina. Marcus e Whitman, atenção às presenças no funeral. Terão os parentes e amigos de família que desfilarão diante de vocês. Bom. Que é que se passa com o fotógrafo? Certo. Entreguem o

39 livro de registo de condolências do funeral ao R & 1. Estes já receberam o de Birmingliam. O resto das missões, encontram-se especificadas na folha de serviço. Vamos a isto.,

- Só mais uma coisa - disse o comissário Lewis. Os

detectives voltaram a afundar-se nos assentos. - Ouvi agentes deste comando referirem-se ao assassino pelo nome de Dentuças. Estou-me nas tintas para aquilo que lhe chamam entre vocês, concordo que têm de lhe chamar qualquer coisa. Mas gostaria de que nenhum agente se lhe referisse em público por «Dentuças». Não dá um ar muito profissional. Do mesmo modo, não quero que esse nome apareça em nenhum relatório interno. É tudo, meus senhores. Crawford e Graham acompanharam Springfield de regresso ao seu gabinete. O inspector-chefe serviu-lhes café,,enquanto Crawford ligava à central telefónica para tomar nota das mensagens que lhe eram destinadas. - Ontem não consegui falar-lhe a sós - disse Springfield a Graham. - Isto está uma autêntica

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casa de doidos. O seu nome é mesmo Will? Os rapazes conseguiram arranjar-lhe tudo aquilo de que precisava? - Sim, foram perfeitos.

- Estamos a «patinar» de uma forma incrível - observou

Springfield. - É certo que se conseguiu uma fotografia das pegadas encontradas no canteiro de flores. Deixou pegadas nos arbustos e na relva e praticamente aquilo que se sabe é o número que calça e talvez uma ideia da sua estatura. A pegada esquerda é um pouco mais profunda, o que pode significar que transportava qualquer coisa. É um trabalho delicado., mas, no entanto, há alguns anos, conseguimos apanhar um ladrão a partir de uma fotografia como esta. Revelava que o indivíduo tinha a doença de Parkinson. Princi conseguiu identificar as características. Desta vez não temos tanta sorte. - Tem uma boa equipa - disse Graham., - É verdade, mas não estamos habituados a este tipo

de trabalho, graças a Deus. Responda-me francamente, vocês trabalham sempre juntos, o senhor, Jack e o Dr. Bloorn, ou só se reúnem para casos como este?

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Só para casos destes - respondeu Graham. Não há dúvida de que é uma equipa de respeito.

Ainda há um bocado o comissário dizia que foi o senhor que fisgou o Lecter há três anos. - Estávamos os três a trabalhar em colaboração com

a polícia de Maryland - disse Graham. - Foi ela que o

prendeu. Springfild, era teimoso, mas não era estúpido, Notava~se

que Graham não estava à vontade. Fez rodar a cadeira ao mesmo tempo que reunia algumas folhas. - Vocês quiseram saber o que aconteceu ao cão. Está aqui a informação a esse respeito. Na noite passada, um veterinário da zona telefonou ao irmão de Leeds. O cão estava em casa dele. Leeds e o miúdo mais velho levaram-no ao veterinário na tarde do dia em que foram assassinados. Tinha um abcesso no abdômen. O veterinário operou-o e correu tudo bem. De início, pensou que se tratava de um

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ferimento por bala, mas não encontrou nada. Está convencido de que o cão foi ferido com um picador de gelo ou com uma sovela. Temos andado a perguntar aos vizinhos se viram alguém a brincar com o cão e hoje telefonámos aos veterinários da zona para saber se encontraram mais algum caso de mutilação. - O cão trazia uma coleira com o nome dos Leeds?, - Não.

- E em Birmingam os Jacobi tinham um cão? - perguntou

Graham. - Já devíamos ter verificado isso - disse

Springfild. Espere um instante. - Marcou um número interno. - O tenente Flatt faz a nossa ligação com Birmingham ... Está, Flatt? O que é que se sabe sobre o cão dos Jacobi? Sim, sim ... Uh-huh ... uh-huh. Um minuto. - Colocou a mão sobre o micro. - Não há cão. Encontraram um prato de gato, sujo, no quarto de banho do rés-do-chão, mas não havia vestígios de gato. Os vizinhos estão a tentar encontrá-lo, - Peça a Birmingliam para verificarem no jardim e nas construções vizinhas - disse Graham. - Se o gato foi ferido, é possível que as crianças não o tenham encontrado a tempo e depois o tenham enterrado. Conhece os gatos. Escondem-se para

41 morrer. Os cães regressam para junto dos donos. Pode também perguntar-lhes se tinha uma coleira? - Diga-lhes que lhes enviamos uma sonda de metano,

se precisarem - disse Crawford. - Evita as escavações.

Springfield transmitiu as questSes. O telefone tocou logo

que acabou de desligar. A chamada era para Jack Crawford- e era de Jiminy Price, que ainda se encontrava na Casa Funerária Lombard. Crawford atendeu no outro telefone. - Jack, encontrei impressões num fragmento, provavelmente de um polegar e de parte da palma. - Jimmy, és a luz da minha vida. - Eu sei. O fragmento está tingido e a impressão

esborratada. Tenho de ver o que é que posso fazer quando regressar. É do olho esquerdo do filho mais velho. É a primeira vez que faço uma coisa destas. Quase que passava sem o notar mas sobressaía da

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hemorragia provocada pelo ferimento de bala. - Achas que consegues identificá-lo? - Pode demorar muito tempo, Jack. É possível, se estiver registado no ficheiro de impressões individuais, mas é a mesma coisa que procurar uma agulha num palheiro. A impressão da palma foi recolhida no dedo grande do pé esquerdo da Sr a Leeds. Só serve para comparação. Teremos muita sorte se for possível avançar com isto. Estavam presentes o adjunto responsável das relações públicas e o próprio Lombard. Tirei fotografias in situ. Achas que chega? - Lembraste-te de tirar as impressões digitais dos empregados da Casa Funerária? - Recolhi as impressões de Lombard e dos seus gatos-pingados, mesmo daqueles que disseram que não tinham tocado nos cadáveres. Neste momento estão a lavar os dedos e a rogar-me pragas. Quero ir-me embora, Jack. Trabalho melhor na minha própria câmara escura. Quem sabe o que será possível encontrar? Posso apanhar o avião de Washington dentro de uma hora e enviar-te as fotografias das impressões ao princípio da tarde. Crawfard pensou por momentos. Okay, Jimmy, mas anda depressa com isso. E envia

cópias ao FBI e à polícia de Atlanta e de Birmingiam.

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- Está combinado. Há mais uma coisa que temos de esclarecer - disse Price. Crawford ergueu os olhos para o tecto. - Não digas que me vais chatear com a diária? É isso mesmo. - Meu velho Jimmy, nunca mais poderei recusar-te o

que quer que seja. Graham olhou pela janela enquanto Crawfard os punha

ao corrente a respeito das impressões. - É de facto notável - limitou-se a dizer Springfield. O rosto de Graham estava lívido, fechado como o de

um condenado, pensou Springfield.

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Ficou a observar Graham até este ter saído da sala.

Na altura em que Graham e Crawford deixaram o gabinete de Springfield estava a terminar a conferência de imprensa dada pelo comissário. Os jornalistas da imprensa escritaprecipitaram-se para os telefones. Os repórteres de televisão estavam a fazer «cortes», permanecendo de pé diante das câmaras para relatar as melhores perguntas que foram ouvidas na conferência de imprensa; a seguir, estendiam os microfones para o vazio, para obter uma resposta que seria inserida mais tarde a partir da sequência, de respostas dadas pelo comissário. Crawfard e Graham desciam a escada principal quando um homenzinho os ultrapassou para se voltar em seguida e lhes tirar uma fotografia. O rosto surgiu atrás da máquina fotográfica. - Will Graham! ' - exclamou. - Lembra-se de mim?

Freddy Lounds! Fiz a cobertura do caso Lecter para o Tattler e fui eu que escrevi a reportagem. - Lembro-me muito bem - disse Graham. Crawford e ele continuaram a descer as escadas enquanto Lourids caminhava de lado diante deles. - Quando é que o chamaram, Will? O que é que já conseguiu saber?

- Não tenho nada para lhe dizer, Lotinds.

43 - Qual é a diferença entre este tipo e Lecter? Fez-lhes ... - Lounds - Graham quase gritou e Crawford. colocou-se entre os dois homens. - Lounds, os seus artigos são uma merda e o The National Tattler só serve para limpar o cu. Pire-se! Crawford agarrou Graham pelo braço. - Vá, Lounds, ponha-se a andar. Já. WilI, vamos tomar um pequeno-almoço à nossa vontade. Anda daí. Voltaram a esquina, caminhando calmamente. - Desculpa-me, Jack, mas não consigo suportar este tipo. Aproveitou o facto de eu estar no hospital para ... - Eu sei - disse Crawford. - Fui eu que o pus na

rua, não lhe fez mal nenhum. - Crawford lembrou-se da fotografia publicada no The National Tattler na

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altura em que o caso Lecter terminara. Lounds introduzira-se no quarto do hospital enquanto Graham estava a dormir. Afastara o lençol, tirando uma fotografia ,que mostrava o ânus artificial temporário de Graham. O jornal limitara-se a cobrir o baixo-ventre de Graham com um quadrado negro e a publicar a fotografia com o subtítulo «Louco esfaqueia polícia». O restaurante era tranquilo e agradável. Graham,

com as mãos ainda trémulas, deixou entornar café no pires. Viu que o fumo do cigarro de Crawford incomodava um casal que se encontrava na mesa vizinha.- O casal comia com lentidão, num silêncio carregado de rancor.

Duas mulheres - aparentemente mãe e filha - discutiam

próximo da porta. Falavam em voz baixa, mas os rostos encontravam-se deformados pela cólera, uma cólera que Graham conseguia sentir no seu próprio rosto, na nuca. A perspectiva de ter de testemunhar, num processo

em Washington naquela própria manhã irritava Crawford. Receava a possibilidade de ser retido durante vários dias. Enquanto acendia mais um cigarro, observava as mãos de Graham e o tom da pele.

- Atlanta e Birmingham vão comparar a impressão do polegar com as dos maníacos sexuais que já têm cadastro disse Crawford. - Nós podemos fazer o mesmo. Entretanto Prince já

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tirou dos dossiers uma impressão individual, Vai submetê-la ao Finder. Olha que já adiantámos um bom bocado de trabalho! O Finder era uma máquina do FBI que permitia ler e fazer o tratamento das impressões; era capaz de identificar a impressão do polegar a partir de uma ficha relativa a um assunto totalmente diferente. - Quando o apanharmos, a impressão digital e os dentes constituirão provas conclusivas - disse Crawford. - Para já, temos de nos limitar a imaginar qual será o aspecto dele, o que poderá

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corresponder a imensa gente. Mas suponhamos que conseguimos deter um suspeito com francas possibilidades de ser o nosso homem. -Avanças para o veres. O que é que pode haver a respeito dele que não te surpreenda? - Não faço ideia, Jack. Estás a ver, para mim ele ainda não tem um rosto. Poderíamos passar anos à procura de gente que inventámos. Conseguiste falar com Bloorn? - Falei com ele ontem à noite ao telefone. Bloorn

não acredita que- se trate de um suicida e Heiralich pensa o mesmo. Bloorn só esteve aqui meia-dúzia de horas no primeiro dia, mas ele e Heiralich têm o dossier completo. Esta semana, Bloora está a fazer exames a candidatos a doutoramento. Manda-te cumprimentos. Tens o número dele de Chicago? - Tenho., Graham gostava do Dr. Alan Bloorn, um homenzinho roliço de olhos tristes, mas que era um psiquiatra forense de primeira categoria. Graham apreciava sobretudo o facto de o Dr. Bloorn nunca ter procurado ver nele um assunto de estudo.. Não se podia dizer o mesmo de outros psiquiatras. - Bloora disse-me que não ficaria nada surpreendido

se viéssemos a ter notícias do Dentuças. Podia mesmo acontecer que nos enviasse uma mensagem - disse Crawford. - Na parede de um quarto. Bloom acredita que ele esteja desfigurado ou que acredite que se encontra desfigurado. Disse-me, no entanto, para não dar muita importância a esse aspecto. «Não quero que percam a presa em busca de uma sombra», foi o que ele me disse. «Só iria

45 distrair-vos e arruinar os vossos esforços.» Parece que lhe ensinaram a falar assim na universidade. - Ele tem razão - observou Graham. - Deves saber qualquer coisa senão não tinhas descoberto a impressão digital - disse Crawford., - Ouve, Jack, havia indícios suficientes na parede. Não tive qualquer influência. E além disso gostava que não esperasses demasiado de mim. De acordo?

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- Descansa que vamos apanhá-lo. Tenho a certeza de que concordas comigo.

- Sim, vamos apanhá-lo. De uma maneira ou de outra. - Como, por exemplo? Havemos de encontrar indícios que nos tenham escapado.

- E a outra maneira, qual é? - Vai continuar no mesmo ritmo até ao dia em que

fará demasiado barulho ao entrar na casa e o marido tenha tempo de pegar numa arma. - Não há mais soluções? - Julgas que o vou conseguir detectar no meio de uma multidão? Isso é bom para o Ezio Pinza. O Dentuças continuará até que tenhamos sorte suficiente ou provas que cheguem. Mas não irá parar. - Porquê? - Porque encontra prazer numa coisa destas. - Diz-me uma coisa, afinal conhece-lo melhor do

que aquilo que queres dar a entender - disse Crawford. Graham só lhe respondeu depois de terem saído do

restaurante.

- Espera até à próxima lua cheia - disse Graham. - E

depois já me podes dizer o que é que eu sei a respeito dele. Graham voltou para o hotel e dormiu duas horas e meia.

Acordou ao meio-dia, tomou um duche e encomendou café e uma sandes. Chegara a altura de estudar com atenção o dossier Jacobi. Lavou os óculos com o sabonete do hotel e sentou-se perto da janela com o dossier. Durante os primeiros minutos,

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erguia a cabeça a cada ruído, passos no hall ou o bater longínquo da porta do elevador. Até que se concentrou totalmente no dossi*er., O empregado bateu à porta por diversas vezes. Quando se cansou de esperar, pousou o tabuleiro diante da porta e assinou ele próprio a factura.

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47 CAPÍTULO 4

Hoyt Lewis, leitor de contadores da Companhia de Electricidade da Georgia, estacionou a carrinha debaixo de uma grande árvore da avenida e recostou-se no assento, procurando uma posição mais confortável para almoçar. Deixara de ser agradável desembrulhar um almoço que fora embalado por ele. Ia longe o tempo dos bilhetinhos e das palavras carinhosas. Ia a meio da sandes quando uma voz grossa lhe fez dar um salto.

- Se não me engano devo ter gasto cerca de mil dólares de electricidade apenas em relação ao mês passado. Lewis voltou-se e viu a face corada de H. G. Parsons à janela da carrinha. Trazia uns calções tipo bermudas e tinha uma vassoura na mão. - Não percebi o que disse. - Vai dizer-me que gastei cerca de mil dólares de

electricidade? Percebeu agora? - Sr. Parsons, não faço a menor ideia de quanto é

que gastou porque ainda não li o seu contador. Quando o tiver lido faço o registo na minha ficha. Parsons preocupava-se com o valor da factura e já

por várias vezes apresentara queixa junto dos serviços competentes. - Sei muito bem aquilo que gasto - disse Parsons. -

Vou apresentar uma queixa à Comissão de Litígios sobre o que se está a passar.

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- Quer ir ler o contador comigo? Podemos ir lá e ... - Sei perfeitamente ler um contador. E tenho a certeza de que você também o podia fazer se não fosse tão cansativo. - Ouça uma coisa, Parsons - disse Lewis saindo da

carrinha. - No ano passado o senhor colocou um íman no contador. A sua esposa disse-me que estava no hospital. Aproveitei para o retirar e passei uma esponja sobre o assunto. Mas fui obrigado a fazer

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um relatório quando no Inverno passado o senhor deitou melaço no contador. E verifiquei que pagou sem discutir quando lhe apresentaram a factura. A sua factura aumentou depois de todas as instalações eléctricas que o senhor fez. Fartei-me de lhe dizer que na sua casa havia uma fuga qualquer de corrente. Contratou um electricista para ver qual era a razão? Não, preferiu ir aos escritórios queixar-se de mim. Estou farto até às pontas dos cabelos das suas atitudes. - Lewis estava branco de cólera.

- Vou ser franco consigo - disse Parsons, dirigindo-se

para o jardim da sua casa. - Está a ser vigiado, Sr. Lewis. Vi alguém que anda à sua frente a fazer o mesmo percurso de contagens - disse ele já do lado de lá da vedação. - Não tarda muito que tenha de começar a procurar outro-trabalho. Lewis arrancou, conduzindo ao longo da avenida. Precisava de arranjar outro local para acabar de almoçar. E era pena. Há anos que almoçava à sombra daquela árvore. Ficava exactamente nas traseiras da casa de Charles Leeds.

+s cinco e meia da tarde, Hoyt Lewis meteu-se no seu carro particular e seguiu para o bar do aeroporto, Cloud Nine, onde bebeu vários copos para se descontrair. Quando telefonou à sua ex-mulher, só conseguiu dizer-lhe: - Gostava tanto que continuasses a preparar o meu almoço. - Devias ter pensado nisso antes. Espertinho - disse ela, desligando em seguida.

Sem convicção, jogou uma partida de cartas com vários

empregados da Georgia Power. Parecia procurar alguém no meio da multidão. Funcionários da companhia aérea começavam a invadir

49 o Cloud Nine. Tinham todos o mesmo bigodinho e o mesmo anel com uma pedra de fantasia. Só faltava que montassem um jogo de dardos no Cloud Nine e o transformassem em pub inglês ... Já não se consegue estar tranquilo em casa! - Viva, Hoyt. Jogamos a uma caneca de cerveja? -

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Era Billy Meeks, o seu chefe de serviço. - A propósito, Billy, preciso de falar contigo. - Que é que se passa? - Conheces aquele velho filho da mãe do Parsons que passa a vida a telefonar? - Telefonou-me na semana passada - disse Meeks. -

Que é que ele fez? - Disse-me que há alguém a fazer o meu giro antes de mim, como se estivesse a verificar se eu fazia o meu trabalho. Não pensas que eu faça a leitura dos contadores deitado na cama, pois não? - Nem pensar nisso. - Não acreditas, pois não? Quer dizer ... Se estou

na lista negra de alguém, quero que mo venham dizer

directamente. - Se estivesses na minha lista negra, achas que tinha

medo_ de te dizer cara a cara? - Não. - Assim está melhor. Escuta, se alguém estivesse a verificar o teu itinerário, eu era o primeiro a sabê-lo. As chefias estão sempre ao corrente deste gênero de situações. Ninguém está a investigar a teu respeito, Hoyt. Não podes ligar àquilo que o Parsons te diz, não passa de um velho rabugento. Telefonou-me a semana passada para me dizer: «Parabéns por ter começado a prestar mais atenção ao trabalho de Hoyt Lewis.» Nem sequer lhe liguei. - A minha pena é não lhe termos atirado com a lei

para cima quando foi o caso daquele contador - disse Lewis. - Vê lá tu que hoje estava muito descansado na avenida à sombra de uma árvore a comer a minha sandes, quando o Fulano me saltou em cima. Do que o gajo está a precisar é de um bom pontapé no cu.

- Quando eu fazia o teu itinerário, era também aí que

parava para almoçar - disse Meeks. - Olha uma coisa, já te tinha

50 contado que cheguei a ver a Sr.'Leeds? Não parece lá muito certo estar agora a falar dela, uma vez que já morreu, mas uma ou duas vezes vi-a cá fora

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nas traseiras, em fato de banho, a bronzear-se. Uhau! Que corpo que ela tinha! É uma vergonha o que lhe aconteceu.'Era uma senhora simpática. - Já apanharam alguém? - Nem pó. - Foi uma pena terem apanhado os Leeds quando os

velhos Parsons estavam ali mesmo a jeito - comentou Lewis. Talvez não acredites, mas nunca consentiria que a minha companheira se passeasse em fato de banho no jardim da nossa casa. «Billy, meu querido, ninguém me vê», foi aquilo que ela me ddizia. E eu respondi-lhe que não era possível ter-se uma certeza, que há malucos para tudo, que de um momento para o outro podiam saltar a vedação com o «coiso» na mão., Os chuis chegaram a convocar-te? Perguntaram-te se tinhas visto alguém? Perguntaram, mas estou convencido de que fizeram as mesmas perguntas a toda a gente que trabalha naquela zona. por minha parte terminei ontem de fazer um trabalho em Lauxelwood, do outro lado da Avenida Betty Jane, onde estive toda a semana - disse Lewis enquanto arrancava o rótulo da garrafa de cerveja. - Disseste-me que Parsons te telefonou na semana passada? - Foi. - Então deve ter visto alguém a ler o seu contador.

Não tinha telefonado se a ideia fosse só a de me chatear como hoje fez. Dizes que não mandaste ninguém e ele tem a certeza de que não foi a mim que me viu? - Talvez um tipo da Southeastern Bell a verificar qualquer coisa. - É possível. - Embora isso me admirasse. Não temos as mesmas linhas. Achas que devia telefonar aos chuis? - Não fazia mal nenhum - disse Meeks. - Nah, até podia ser que fosse um bem para Parsons encontrar-se diante de uma farda. Vai apanhar um cagaço danado quando os vir chegar. Graham, que pouco mais possuía do que um equipamento básico de pesca, um Volkswagen em terceira mão e duas caixas de Montrachet, sentiu uma leve animosidade contra estes brinquedos de adultos e tentou perceber porquê. Quem era Leeds? Um funcionário do fisco que

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tinha tido sucesso na vida, um jogador de futebol Sewanee, um homem calmo que gostava de rir, um homem que, mesmo com a garganta dilacerada, se ergueu e tentou lutar. Um estranho sentido de dever fez que Graham continuasse a sua busca por toda a casa, na mesma tentativa de reconstituir a personalidade do dono. Investigando a seu respeito era, de certo modo, uma maneira de se desculpar e poder logo em seguida fazer o mesmo em relação à esposa. Graham pressentia que tinha sido ela que tinha atraído o monstro, como o canto de um grilo atrai a morte das moscas de olhos vermelhos.

CAPÍTULO 5

Graham regressou à casa dos Leeds ao fim da tarde. Entrou pela porta da frente e tentou não olhar para os estragos que o assassino tinha feito. Até aí tinha visto processes, o local onde as mortes tinham ocorrido e os cadáveres - tudo muito depois de as coisas terem acontecido. Já sabia muita coisa sobre o modo como tinham morrido. Hoje tinha programado tentar saber quais eram os seus hábitos de vida. Tratava-se portanto de uma inspecção. Na garagem encontrou um excelente barco de ski, com bastante uso, mas muito bem conservado, e uma carrinha station, Havia também tacos de golfe e uma bicicleta de exercício. O equipamento de ginástica praticamente não tinha uso. Brinquedos de adultos.

Graham tirou um dos tacos do saco e quase se desequilibrou ao ensaiar um remate longo. Quando voltou a encostar o saco dos tacos de golfe à parede, sentiu o cheiro a couro que se evolava dele. Eram os objectos pessoais de Charles Leeds. Continuou a investigação sobre Charles Leeds, procurando em toda a casa. Os seus troféus de caça encontravam-se na sala de estar. Um conjunto de Grandes Obras, todas numa fila. Os anuários Sewanee. H. Allen Smith, Perelman e Max Shulman nas estantes. Vonnegut e Evelyn Waugh. O livro Beat to Quarters, de C. S. Forrester, encontrava-se aberto numa mesa. No armário da sala, uma boa espingarda de caça, uma máquina fotográfica Nikon, uma máquina de filmar Bolex Super 8 e um projector.

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Portanto tinha sido a Sr.' Leeds. Tinha um pequeno quarto de vestir no cimo das escadas. Graham conseguiu lá chegar sem que no quarto de dormir tivesse de olhar à sua volta. O quarto de vestir estava forrado em tons de amarelo e, se não fosse o facto de o espelho por cima do toucador se encontrar partido, podia dizer-se que se encontrava intacto. No chão em frente do armário encontrava-se um par de mocassins L L Bean, como se ela tivesse acabado de os tirar. O roupão encontrava-se pendurado e o armário revelava a leve desorganização característica de uma mulher que tem muitos outros armários para organizar. O diário da Sr a Leeds estava no toucador, numa caixa de veludo cor-de-ameixa. A chave estava colada à tampa com fita adesiva, juntamente com um talão de verificação do departamento da polícia. Graham sentou-se numa frágil cadeira branca e abriu

o diário à sorte:

Dezembro, 23, terça-feira. - Fomos a casa da mamã. As crianças ainda estão a dormir. Quando a mamã envidraçou a

53 varanda das traseiras, detestei o modo como alterou o aspecto da casa, mas tenho de concordar que afinal é muito agradável poder estar aqui sentada com uma temperatura amena a olhar para a neve que cai lá fora. Quantos Natais mais é que ela será capaz de aguentar com uma casa cheia de netos? Espero que ainda sejam muitos. Ontem, no regresso de Atlanta, começou a nevar a

seguir Raleigh e fizemos uma viagem difícil. Quase tivemos de vir passo. Ainda por cima sentia-me cansada por ter sido

obrigada a arranjar toda a gente. Próximo de Chapel Hill, o Charlie parou o carro e saiu. Tirou alguns cristais de gelo de um ramo para me preparar um martini. Regressou ao carro, as suas pernas imensas erguendo-se na neve, e ali estava ele com o cabelo e as pestanas cheias de neve nesse instante o meu espírito foi invadido pelo amor que

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sinto por ele. Foi uma sensação como se dentro de mim alguma coisa se quebrasse com um mínimo de dor para logo em seguida ser inundada por um calor extremamente agradável. Espero que a parka lhe sirva. Se ele me dá aquele anel, tenho a impresssão de que me dá uma coisa. E se a Madelyn vê o anel, vai sentir-se como se lhe dessem um chuto naquele cu cheio de celulite. Quatro diamantes incrivelmente grandes, da cor de gelo sujo. O gelo formado da água congelada é tão transparente. O sol atravessou o pára-brisas do carro e incidiu no gelo partido que se encontrava dentro do copo, formando um pequeno prisma. Projectou uma mancha vermelha e verde na mão com que estava a segurar o copo, e tive a sensação de sentir as cores projectadas. Ele perguntou-me o que é que eu queria que ele me

desse como prenda de Natal. Com as mãos em concha, sussurrei-lhe ao ouvido: o teu grande c... meu tolo e que o metas em mim tão fundo quanto puderes. A nuca ficou~lhe de repente de um vermelho vivo. Tem sempre receio de que as crianças possam ouvir. Os homens não têm confiança nenhuma nos sussurros.

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A página estava suja da cinza de charuto do detective que já por ali tinha passado. Graham leu até já não ter luz, passando por episódios como a operação às amígdalas da filha e um susto que a Sr a Leeds tinha tido em Junho último quando lhe tinha aparecido um caroço num dos seios (meu Deus, as crianças ainda são tão pequeninas).

Três páginas à frente o caroço já era um quisto benigno

que tinha sido facilmente removido.

O Dr. Janovitch deu-me alta esta tarde. Deixámos o hospital e fomos até ao lago. Há muito tempo que lá não íamos, Parece que nunca conseguimos arranjar tempo para isso. Charlie levou duas garrafas de champanhe no gelo, bebemo -las e demos de comer aos patos enquanto o sol se punha. Ficou à beira da água, de costas voltadas para

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mim, e estou convencida de que chegou a chorar. A Susana disse que tivera medo de que levássemos do hospital para casa mais um irmão para ela. Casa!

Graham ouviu o telefone tocar no quarto. Ouviu-se um click e o zumbido de um atendedor de chamadas. «Está? Fala Valerie Leeds. Peço desculpa de não poder atender neste momento, mas se após o sinal me deixar o seu nome e número de telefone, ligo-lhe o mais rápido possível. Obrigada.»

De certo modo, Graham esperava ouvir a voz de Crawfard

depois do sinal, mas só distinguiu o ruído de fundo da ligação. Tinham desligado. Ouvira a voz dela; agora queria vê-la. Voltou à

sala de estar. Trazia no bolso uma bobina de filme Super 8 que tinha

pertencido a Charles Leeds. Três semanas antes da sua morte, este deixara o filme numa loja para revelar. Nunca o tinha levantado. A polícia encontrara o talão na carteira de Leeds, tinha levantado o filme na loja, e os detectives viram o filme caseiro, juntamente com algumas fotografias reveladas ao mesmo tempo, não tendo encontrado nada de interesse. Graham queria ver os Leeds em vida. Na esquadra os detectives puseram um projector à sua disposição. Mas ele recusou

55 porque queria ver o filme na casa. De certo modo contrariados, deixaram-no levantar o filme no depósito. Encontrou o ecrã e o projector no armário da sala, montou-os e sentou-se no grande sofá de couro de Charles Leeds para ver o filme. Sentiu que havia qualquer coisa no braço da cadeira que se lhe colava à palma da mão - marcas dos dedos de uma criança lambuzados com hortelã-pimenta. A mão de Graham ficou a cheirar a rebuçado. Era um pequeno filme mudo bastante agradável, muito mais imaginativo do que a maioria dos que costumava ver. Começava com as imagens de um cão cinzento pêlo-de-arame a dormir na carpeta da sala. O cão tinha ficado perturbado momentaneamente pelo zumbido e tinha levantado o focinho para olhar para a máquina. Mas aconchegou-se de novo e voltou a

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dormir. Um close up do focinho do cão ainda a dormir. De repente as orelhas do pêlo-de-arame arrebitaram-se. Ergueu-se e começou a ladrar - a câmara seguiu-o enquanto se dirigia para a cozinha, correndo para a porta, onde parou expectante, tremendo de excitação ao mesmo tempo que abanava o toco de cauda. Graham mordeu o lábio enquanto também aguardava. No ecrã a porta abriu-se é surgiu a Sr a Leeds carregando sacos do supermercado. Pestanejou para logo em seguida rir surpreendida, ao mesmo tempo que compunha com a mão que tinha livre uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre os olhos. Enquanto desaparecia da imagem notava-se o mover dos lábios. Logo em seguida surgiram as crianças com sacos mais pequenos. A rapariga tinha seis anos e os rapazes oito e dez. O miúdo mais novo, aparentemente um veterano dos

filmes feitos pela família, fez uma careta na direcção da câmara. Esta estava numa posição demasiado alta. De acordo com o relatório da autópsia, Leeds tinha um metro e noventa de altura. Graham ficou convencido de que esta parte do filme devia ter sido feita no início da Primavera. As crianças vestiam agasalhos e a Sr a Leeds tinha um aspecto pálido. Na morgue, o corpo apresentava-se bronzeado e viam-se as marcas do fato de banho.

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Seguiram-se cenas breves dos rapazes a jogarem pingue-pongue na cave e de Susana a desembrulhar um presente no quarto, a língua dobrada sobre o lábio superior num esforço de concentração, enquanto uma farripa de cabelo lhe caía sobre os olhos. Empurrou o cabelo para trás com a mãozita gorducha como a mãe tinha feito na cozinha. A cena seguinte mostrava Susana num banho de espuma, agachada como uma pequena rã. Na cabeça tinha uma enorme touca de banho. O ângulo da câmara era mais baixo, mas a focagem não se mantinha estável - nitidamente o trabalho de um dos irmãos. A cena terminou com ela a gritar para a câmara sem que se ouvisse qualquer som, cobrindo o peito enquanto a touca de banho lhe escorregava para os olhos.

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Para não ficar atrás, Leeds tinha surpreendido a esposa

no chuveiro. A cortina do chuveiro estremeceu, notando-se o vulto que estava por detrás, como tantas vezes acontecia nas peças de teatro das festas do liceu. O braço da Sr a Leeds saiu da cortina. Na mão tinha uma enorme esponja de banho. A cena terminou com a lente obscurecida com espuma de banho.

O filme terminou com uma cena de Norman Vincent Peale a

falar na televisão e um grande plano de Charles Leeds a ressonar na cadeira onde agora Graham se encontrava sentado.

Depois de o filme ter acabado, ficou a olhar para o

rectângulo de luz projectado no ecrã. Gostava dos Leeds e lamentava ter estado na morgue. Lembrou-se de que o lunático que os tinha visitado também devia ter gostado deles. Mas o lunático gostava deles mais da maneira como agora se encontravam.

Graham sentia-se incapaz de raciocinar e a cabeça fervilhava de ideias. Nadou na piscina do hotel até sentir as pernas dormentes e saiu da água pensando em duas coisas ao mesmo tempo - um martini Tangueray e o sabor da boca de Molly. Preparou o martini num copo de plástico e telefonou a Molly. - Olá, artista. - Olá miúdo! Onde é que estás?

57 Neste estupor deste hotel em Atlanta. - A fazer alguma coisa de jeito? - Nada de interesse. Sinto-me só. - Eu também. - Com tesão. - Eu também. - Fala-me de ti.

- Bom, tive hoje uma questão com a Sr a Holper. Queria

devolver um vestido com uma mancha enorme de whisky no fundo das costas. Tenho quase a certeza de que o vestiu naquela festa dos Jaycee. - E que é que tu disseste? - Disse-lhe que não lho tinha vendido naquele estado. - E o que é que ela respondeu?

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- Disse que nunca tivera antes qualquer problema em devolver um vestido, e que era essa uma das razSes por que comprava na minha loja em vez de ir a outros sítios que estava farta de conhecer. E então o que é que tu disseste? - Oh, disse-lhe que estava preocupada porque o Will

a falar ao telefone é impossível. Estou a ver. ok - O Willy está óptimo. Anda a tapar os ovos de tartaruga que os cães desenterram. Conta-me o que é que tens feito. Tenho lido relatórios e a comida é uma porcaria. - E de certeza tens pensado imenso. - Também. - Posso ajudar-te em alguma coisa? - Ainda não consegui agarrar nada de palpável, Molly. Os dados não são suficientes. Bom, há montes de informações, mas ainda não as trabalhei o suficiente. - Ainda vais estar em Atlanta durante muito tempo? Não quero chatear-te a pedir-te que venhas para casa, mas anseio que o faças. Não sei. Ainda vou estar aqui mais alguns dias. Sinto a tua falta.

58 - Queres falar sobre foder? - Tenho a impressão de que não aguentava. Acho que

é melhor não o fazermos. - Não fazermos o quê? - Falarmos sobre foder. - Está bem. Mas não te importas se eu pensar nisso, pois não? - Bem sabes que não. Arranjámos mais um cão. - Estou servido! - Dá a ideia de ser cruzado de basset e pequinois. - Deve ser uma maravilha. - Tem uns tomates enormes. - Deixa lá os tomates do bicho. - Quase que arrastam pelo chão. Quando corre tem de os encolher. Ele não é capaz de fazer isso. É, sim senhor. Tu é que não sabes. Sei, sim senhora. Consegues fazer o mesmo com os teus?

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Lá estamos nós a voltar ao mesmo. E então? Se queres saber, tive de os encolher uma vez. Quando é que foi isso?

Quando era rapaz. Tive de saltar uma vedação de arame

farpado a toda a velocidade. Porquê?

Levava debaixo do braço uma melancia que eu não tinha

cultivado. - Estavas a fugir? De quem? - Um porco qualquer que eu conhecia. Alertado pelos cães, disparou da barraca no seu BVD, de caçadeira na mão. Felizmente tropeçou num arbusto, o que me deu o avanço de que eu precisava. Disparou contra ti? De início julguei que sim. Mas os relatórios que

ouvi devem ter sido feitos pelo meu traseiro. Nunca consegui saber ao certo o que se tinha passado,

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Conseguiste passar a vedação? + vontade. Tão novo e já tinhas uma mentalidade criminosa. Menina, eu não tenho uma mentalidade criminosa. Eu sei que não. Estou a pensar em pintar a cozinha. Qual é a cor de que gostas? Will? Qual é a cor de que gostas? Ainda estás aí? - Estou, uhm, pinta-a de amarelo. Para mim o amarelo é uma cor péssima. Ao pequeno-

almoço passava a ter um aspecto esverdeado. - Então azul. - O azul é frio. - Chiça, se é assim ... olha pinta-a cor-de-caca-de-bebé, tanto se me dá ... Não, espera, o mais certo é eu dentro em breve já estar em casa e vamos os dois à loja das tintas, assim já podemos escolher os dois e compramos aquilo que quisermos. Combinado? Aproveitamos para comprar também alguns pincéis que nos fazem falta. - Acho que sim, fazemos como tu queres. Nem sequer

sei por que é que estou a falar disto. Sabes uma coisa?

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Amo-te, sinto a tua falta e estás a fazer aquilo que tem de ser feito. Sei que a ti também te custa. Estou aqui e estarei aqui quando regressares a casa ou então vou ter contigo onde quiseres. E acho que é tudo. - Querida Molly, minha querida Molly. Agora tens de

ir para a cama. - Está bem. - Boa noite. Graham estendeu-se na cama com as mãos atrás da cabeça enquanto relembrava os jantares que tinha tido com Molly. Caranguejo-das-rochas e Sancerre, com a brisa salgada a misturar-se no aroma do vinho. Um dos seus problemas era o de fixar os pormenores

das conversas que tinha, e mais uma vez isso estava a acontecer. Lembrando-se da conversa telefónica que tinha tido, veio-lhe à ideia aquela observação da «mentalidade criminosa». Era estúpido da sua parte.

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Graham achava que o interesse que Molly tinha nele era na sua maioria inexplicável. Telefonou para o comando da polícia e deixou um recado para Springfield dizendo-lhe que na manhã seguinte queria começar a ajudar no trabalho porta a porta. Não havia mais nada que se pudesse fazer. - O gin ajudou-o a adormecer.

61 CAPÍTULO 6

Em cima da secretária de Buddy Springfield estavam as cópias meio-amarrotadas de todos os recados telefónicos sobre o caso Leeds. Terça de manhã, quando Springfield chegou ao escritório, às sete horas, havia sessenta e três. A que se encontrava no cimo tinha uma marca vermelha. Dizia que a polícia de Birmingliam encontrara um gato enterrado numa caixa de sapatos- atrás da garagem dos Jacobs. O gato tinha uma flor presa nas patas e estava embrulhado numa toalha de mesa. O nome do gato estava escrito com uma letra infantil numa etiqueta atada à caixa com uma corda cheia de nós.

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O examinador médico de Birmingliam disse que o gato fora estrangulado. Rapara-lhe o pêlo e não lhe tinha encontrado nenhuma ferida. Enquanto pensava, Springfield batia com a haste dos óculos nos dentes. No local encontraram terra macia e cavaram com uma

pá. Não fora necessária nenhuma prova de metano. No entanto, Graham tinha tido razão. O chefe de detectives cuspiu no dedo e continuou a

sua busca no monte das cópias dos recados telefónicos. A maioria era informações a respeito de veículos suspeitos na vizinhança durante a semana anterior, descrições vagas indicando só o tipo de veículo ou a cor. Quatro dos residentes de Atlanta tinham recebido cha-

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madas telefónicas anónimas em que lhes era dito: «Vou fazer-te a mesma coisa que fiz aos Leeds.» A chamada de Hoyt Lewis estava no meio do monte. Springfield telefonou ao comandante do turno da noite. - O que é que se passa sobre a informação desse leitor de contadores a respeito de um tal Parsons? Número quarenta e oito. - Tentámos contactar ontem à noite o serviço de assistência, chefe, para verificar se eles tinham tido alguém naquela avenida - disse o comandante de serviço do turno da noite. - Vão telefonar-nos esta manhã a dar-nos uma resposta.

- Encarregue alguém de lhes ligar o mais depressa

possível - disse Springfield. - Verifique os serviços sanitários, os serviços de obras, licenças de construção ao longo da avenida, e depois diga-me alguma coisa para o carro. Em seguida ligou para o número de Will Graham. - Will? Dentro de dez minutos estou à porta do teu hotel para irmos dar uma volta. Ainda não eram oito menos um quarto quando Springfield estacionou o carro no fundo da avenida. Ele e Graham seguiram os vestígios de rodados que se distinguiam no saibro- Mesinio àquela hora da manhã o sol já aquecia bastante. - Precisas de comprar um chapéu - disse

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Springfield enquanto descia o seu próprio chapéu de palha sobre os olhos.

A vedação na traseira da propriedade dos Leeds estava

coberta com videiras Pararam junto ao contador da luz que se encontrava no poste. - Se veio por este caminho conseguia ver as traseiras da casa - disse Springfield.- Só tinham passado cinco dias e a propriedade dos Leeds já começava a ter um aspecto- abandonado. O relvado não estava aparado e cebolas-bravas despontavam da erva. O pátio encontrava-se juncado de pequenos ramos que tinham caído. Graham sentiu vontade de os apanhar. A casa parecia adormecida, as janelas da varanda vazias e obscurecidas pelas longas sombras que de manhã eram projectadas pelas árvores. Parado na avenida ao lado de Springfield, Graham conseguia ver o seu reflexo no

63 vidro da porta da varanda. Estranhamente, a reconstituição da entrada do assassino parecia-lhe agora totalmente diferente à luzdo sol. Reparou num papagaio de criança que se movia suavemente na brisa da manhã. - Aquele deve ser o Parsons - disse Springfield. H. G. Parsons morava duas casas a seguir. Tinha-se levantado cedo e estava a cavar um canteiro de flores. Springfield -e Graham foram até à cancela das traseiras de Parsons e pararam junto aos baldes do lixo que se encontravam presos à vedação com correntes. Com uma fita, Springfield mediu a altura a que se

encontrava o contador. Tinha apontamentos sobre todos os vizinhos dos

Leeds. Estes apontamentos diziam-lhe que Parsons se reformara antecipadamente do posto que ocupava nos correios-, a pedido do seu supervisor. O supervisor fizera um relatório em que especificava que Parsons era «incrivelmente distraído». Os apontamentos de Springfield'também continham uma parte de mexericos. Os vizinhos diziam que a esposa de Parsons, sempre que podia, ficava com a irmã,- que vivia em Macon, o máximo de tempo que lhe era possível, e que o filho nunca mais lhe tinha telefonado,

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- Sr. Parsons, Sr. Parsons - chamou Springfield. Parsons encostou o ancinho à casa e aproximou-se da vedação. Calçava sandálias e peúgas brancas. Os calcanhares das peúgas estavam manchados da terra e da relva. O rosto era de um rosado brilhante. Arteriosclerose, pensou Graham. E já tomou o comprimido. Digam? - Sr. Parsons, podemos falar consigo por momentos? Precisávamos da sua ajuda - disse Springfield. - São da Companhia de Electricidade? - Não, chamo-me Buddy Springfield e sou da polícia. - Então é acerca do assassínio.,Já tinha dito ao

agente que a minha mulher e eu estávamos em Macon.

- Eu sei, Sr. Parsons. Queríamos fazer-lhe uma pergunta

sobre o seu contador. Foi ...

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se esse ... desse leitor de contadores disse que eu fiz

qualquer coisa de ilegal,. está só ... - Não, não, Sr. Parsons. Na semana passada viu

alguém desconhecido a ler o seu contador? - Não. - Tem a certeza? Tenho a impressão de que disse a

Hoyt Lewis que tinha passado alguém a fazer a mesma leitura de contadores à frente dele. - De facto disse. E já não é sem tempo. Estou a tratar do assunto e a Comissão de Serviços Públicos vai receber da minha parte um relatório completo. - Tudo bem. Tenho a certeza de que o irão examinar

com toda a atenção. Quem é que viu a ler o contador? - Não era um estranho, era alguém da Companhia de

Electricidade da Georgia. - Como é que sabe? Bom, parecia-se com um leitor de contadores. - O que é que ele vestia? - O que eles todos vestem, acho eu. O que é? Uma

bata castanha e um boné. - Conseguiu ver-lhe o rosto? - Já não tenho a certeza. Estava a olhar

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pela janela da cozinha quando o avistei. Quis falar com ele, mas tive de ir vestir o roupão e quando saí já se tinha ido embora. - Tinha um camião? - Não me lembro de ter reparado nisso. Que é que se passa? Por que é que me faz estas perguntas todas?

- Estamos a investigar todas as pessoas que na semana

passada estiveram na vizinhança. É muito importante, Sr. Parsons. Faça um esforço para se lembrar. - Então é sobre o assassínio. Ainda não prenderam

ninguém, pois não? - Não. - Na noite passada estive a vigiar a rua durante

uns minutos e não passou um único carro da polícia. O que aconteceu aos Leeds foi horrível. A minha mulher tem estado completamente transtor-

65 nada. Sempre quero ver quem é que vai comprar a casa. No outro dia vi alguns pretos a olhar para ela. Sabe, tive de falar com o Leeds algumas vezes por causa das crianças, mas eram impecáveis. Evidentemente que nunca fez nada daquilo que lhe aconselhei a respeito da relva. O Departamento de Agricultura tem alguns folhetos excelentes sobre o controlo de ervas daninhas. Cheguei mesmo a pôr-lhe os folhetos na caixa do correio. Aqui para nós, quando cortou as cebolas-bravas, o cheiro era simplesmente sufocante. - Sr. Parsons, quando é que viu exactamente esse tipo na avenida? - perguntou Springfield. - Não tenho a certeza, estou a tentar lembrar-me. - Lembra-se a que horas foi? De manhã? Ao meio-dia?

+ tarde? - Sei as horas do dia, não é preciso estar a mencioná-las. Talvez de tarde. Não me lembro. Springfield esfregou a nuca. - Desculpe-me, Sr. Parsons, mas tenho de ter uma certeza a este respeito. Podemos ir à sua cozinha para nos mostrar de onde é que o viu chegar?

- Primeiro mostrem-me a vossa identificação. Os dois.

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Dentro de casa havia silêncio, superfícies brilhantes e ar abafado. Limpa. Imaculadamente limpa. O cuidado desesperado de um casal a envelhecer e que começa a ver as suas vidas esfumarem-se. Graham tinha preferido ter ficado lá fora. Tinha a certeza de que as gavetas estavam cheias de prata polida e de toalhas de linho. Pára com isso e vamos mas é espremer a velha múmia.

Da janela que ficava sobre a banca da cozinha tinha-se

uma boa vista das traseiras. - Aqui estamos. Estão satisfeitos? - perguntou

Parsons. Daqui pode ver-se lá para fora. Não falei com ele e não me lembro do aspecto dele. Se é tudo o que queriam, tenho muito que fazer. Graham falou pela primeira vez. - Disse que foi vestir o roupão e que quando saiu ele se tinha ido embora. Isso quer dizer que não estava vestido?

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- Não estava. - A meio da tarde? Sentia-se doente, Sr. Parsons? O que eu faço na minha própria casa só a mim diz respeito. Se me der na bolha até posso vestir uma fantasia de canguru. Por que é que não estão lá fora à procura do assassino? Se calhar é porque aqui está mais fresco. - Soube que se reformou, Sr. Parsons, e por isso acho que não tem qualquer importância se se veste ou não durante o dia. Há muitos dias em que nem sequer se chega a vestir, não é verdade? As veias das têmporas de Parsons estavam dilatadas. - Lá porque estou reformado isso não quer dizer que

não me vista e que não o tenha que fazer todos os dias. Simplesmente estava cheio de calor, entrei e fui tomar um chuveiro. Estava a trabalhar. Estava a adubar e durante a tarde já tinha feito um dia de trabalho, o que é muito mais do que aquilo que os senhores hoje farão. - Estava a fazer o quê? - A adubar. - Em que dias é que costuma fazer isso? - + sexta. Foi na sexta-feira passada. Fizeram

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a entrega de manhã, uma grande carrada, e eu tinha ... tinha tudo espalhado da parte da tarde. Pode perguntar ao Centro de Jardinagem a quantidade que era. - E o senhor, como estava cheio de calor, entrou

para tomar um chuveiro. O que é que estava a fazer na cozinha? - A preparar um copo de chá gelado.

- E foi buscar gelo? Mas o frigorífico fica do outro

lado, longe da janela. Parsons, junto da janela, olhou para o frigorífico, parecendo perdido e confuso. Os olhos estavam sombrios e inexpressivos, como os olhos de um peixe no mercado já ao fim do dia. De repente iluminaram-se, com um sentimento de triunfo. Dirigiu-se para o armário junto do lava-louças. - Tinha vindo buscar comprimidos de sacarina e estava aqui precisamente quando o vi. É isso. E é tudo. Agora, se procurassem ...

67 - Acho que ele viu Hoyt Lewis - disse Graham. - Também eu - respondeu Springfield. - Não era Hoyt Lewis. Não era ele. - Os olhos de Parsons estavam lacrimejantes. - Como é que sabe? - disse Springfield. - Podia ter sido Hoyt Lewis e o senhor pensou ... - Lewis tem um tom de pele bronzeado. Tem o cabelo grisalho e oleoso e rugas na cara. - A voz de Parsons tinha subido de tom e falava tão depressa que era difícil compreendê-lo. - Foi por isso que eu vi que não era ele. De certeza que não era Lewis. Este tipo era mais pálido e o cabelo era louro. Voltou-se para escrever no bloco e pude ver debaixo do boné. Louro. Com o cabelo na nuca cortado a direito.

Springfield permaneceu absolutamente imóvel e, quando

falou, a sua voz ainda tinha um tom de cepticismo. - E o rosto dele? - Não sei. Talvez tivesse um bigode. - Como Lewis? - Lewis não tem bigode. - Estou a ver - disse Springfield. - O

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contador estava ao nível dos olhos ou tinha de olhar para cima? - Julgo que ao nível dos olhos. - Era capaz de o reconhecer se o visse de novo? - Não. - Que idade é que ele tinha? - Não era muito velho. Não faço ideia. - Viu o cão dos Leeds perto dele? - Não.

Tenho de lhe confessar uma coisa, Sr. Parsons, verifico

que me tinha enganado - disse Springfield. - A sua ajuda é muito importante para nós. Se não se importar, vou chamar o nosso artista. Sentado aqui à mesa da cozinha talvez o senhor lhe consiga dar uma ideia do aspecto desse fulano. De certeza que não era Lewis. - Não quero que o meu nome apareça em nenhum jornal. - E de certeza que não vai aparecer.

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Parsons acompanhou-os até à saída. - Fez um trabalho magnífico neste jardim, Sr.

Parsons disse Springfield. - Deviam dar-lhe um prêmio. Parsons não disse nada. O rosto estava vermelho e em constante movimento, enquanto os olhos lacrimejavam. Ficou ali, de sandálias e calções, que mais pareciam um saco, a olhar para eles. Quando deixaram o jardim, pegou no ancinho e começou a revolver furiosamente a terra, espalhando o adubo na relva, sem se preocupar com as flores que encontrava pelo caminho.

Springfield pediu informações pelo rádio do carro. Nenhuma das companhias de serviços nem os departamentos da câmara eram capazes de dar qualquer informação sobre o homem que tinha percorrido a avenida no dia anterior ao assassínio. Springfield informou sobre a descrição de Parsons e deu instruções para o artista. - Digam-lhe para desenhar o poste e o contador em primeiro lugar e para começar a partir daí. Terá de pôr a testemunha à vontade para tentar conseguir qualquer coisa. - O nosso artista não gosta lá muito de atender chamadas ao domicílio - disse o chefe de

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detectives a Graham, enquanto fazia deslizar o Ford descapotável através do tráfego. - Gosta que as secretárias o vejam a trabalhar, com a testemunha de pé, apoiando-se alternadamente num pé ou no outro, espreitando por cima do ombro dele. Uma esquadra de polícia é um local demasiado triste para fazer perguntas a alguém a quem não seja necessário meter medo. Logo que tenhamos o retrato na mão vai ser preciso percorrer a vizinhança de porta em porta. Tenho a impressão de que conseguimos qualquer coisa, Wili. Ainda está tudo muito vago mas já temos qualquer coisa, não achas? Estás a ver, apertámos com o pobre diabo e ele abriu-se. Agora temos de explorar os resultados. - Se de facto o homem da avenida é aquele que procuramos, para já são as melhores notícias - disse Graham. Estava farto daquilo.

69 - É isso mesmo. Significa que não se limita a sair do autocarro e a seguir na direcção que lhe dá na bolha. Trabalha com um plano. Passou a noite na cidade. Um ou dois dias antes sabe qual é o alvo. Tem de ter uma ideia qualquer. Marca o local, mata o animal de estimação e a seguir mata a família. Que raio de ideia é que ele terá na cabeça? - Springfield fez uma pausa. - De certo modo é o teu território, não é. - De facto. Se não for de mais ninguém, tenho a impressão de que é meu. - Sei que já viste antes casos deste gênero. Não gostaste quando o outro dia te falei de Lecter, mas preciso de falar contigo a esse respeito. - Está bem. Ao todo matou nove pessoas, não foi? - Temos conhecimento de nove. Houve duas que não mor-

reram.

Que é que lhes aconteceu? Uma delas está num hospital de Baltimore, num pulmão artificial. A outra está num hospital para alienados mentais em Denver. - O que é que o levou a fazer isso, até que ponto é

que ele era louco?

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Graham olhou para os transeuntes que passavam a seu lado no passeio. A sua voz parecia impessoal, como se estivesse a ditar uma carta. - Fez o que fez porque sentiu prazer nisso. Ainda o sente. O Dr. Lecter não pode ser considerado louco no sentido vulgar da palavra. Fez algumas coisas monstruosas porque sentiu prazer nisso. Mas quando quer, pode funcionar perfeitamente e parecer normal. - Como é que os psicólogos classificaram o caso? O que é que estava errado com ele? - Dizem que é um sociopata, porque não encontraram

mais nenhum termo que lhe pudessem aplicar. Tem algumas das características que atribuem a um sociopata. Não tem qualquer sentimento de remorso ou de culpa. E apresentou o primeiro e o

70

pior dos indicadores: sadismo para com os animais quando era criança. Springfield resmungou. - Mas não apresenta mais nenhuma das outras características - continuou Graham. - Não era um desenraizado e não apresentava nenhum historial de problemas com a lei. Não era mesquinho e explorador nas pequenas coisas, como o são a maioria dos sociopatas. Não é insensível. Não sabem como é que o devem classificar. Os seus encefalogramas mostram alguns padrSes estranhos, mas não conseguiram tirar conclusSes a esse respeito. - Como é que o classificavas? - perguntou Springfield. Graham hesitou. - Só para ti, como é que o classificavas? - É um monstro. Quando penso nele, lembro-me dessas coisas que de vez em quando nascem nos hospitais e que só fazem pena. Alimentam-nas, mantêm-nas confortáveis, mas se as tiram da máquina, morrem. Sob o ponto de vista da mentalidade, Lecter é a mesma coisa, mas parece normal e ninguém é capaz de dizer o contrário.

- Alguns dos chefes meus amigos que tenho encontrado no

sindicato são de Baltimore. Perguntei-lhes como é que conseguiste descobrir Lecter. Disseram-me que

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não sabem. Como é que o fizeste? Qual foi a primeira indicação, a primeira coisa que sentiste? - Foi uma coincidência - disse Graham. - A sexta

vítima foi assassinada na sua oficina. Havia equipamento para trabalhar madeira e também era lá que guardava o equipamento de caça. O corpo estava pendurado num gancho no local onde costumava pendurar as ferramentas e, de facto, encontrava-se numa lástima, cortado, esfaqueado e com setas por todo o corpo. As feridas lembravam-me qualquer coisa. Mas não conseguia descobrir o que era. E tiveste de te preocupar com os seguintes.

Foi. Lecter estava no seu máximo, fez os três seguintes

em nove dias. Mas esta sexta vítima apresentava duas cicatrizes antigas na coxa. O patologista contactou o hospital local e soube que cinco anos antes caíra de uma árvore, quando andava à caça com arco e flecha, e que espetara uma na perna. » O médico que fez o registo da ocorrência era o cirurgião residente, mas Lecter tratou-o em primeiro lugar, estava de serviço nas emergências. Encontrámos o nome no registo de admissões. Já se tinha passado muito tempo desde o acidente mas convenci-me de que Lecter se poderia lembrar de qualquer coisa que lhe tivesse parecido estranha sobre a ferida com a flecha. Fui ao gabinete dele para lhe falar a este respeito. Naquela altura agarrávamo-nos a qualquer indício que aparecesse. » Naquela altura passara a dedicar-se à psiquiatria

e o gabinete era muito agradável, todo em estilo antigo. Disse-me que já não se lembrava muito bem do caso da ferida com flecha, que tinha sido um dos companheiros de caça da vítima que o tinha trazido, e era tudo. » No entanto, houve qualquer coisa que não me soou

bem. Não tinha a certeza se tinha sido qualquer coisa que Lecter tinha dito ou fora qualquer coisa que eu tinha visto no gabinete dele. Crawford e eu debruçámo-nos sobre o assunto. Verificámos os registos e Lecter não possuía qualquer registo a esse respeito. Precisava de estar só algum tempo no gabinete dele, mas não conseguíamos arranjar um

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mandato de busca. Não havia a mínima evidência. Decidi-me a ir falar de novo com ele. » Era domingo, mas ele também dava consultas aos domingos. O edifício estava vazio, só havia duas ou três pessoas na sala de espera. Viu-me logo que lá cheguei. Conversámos e, enquanto ele fazia um esforço delicado para me ajudar, olhei para a prateleira por cima da cabeça dele e vi alguns livros de medicina muito antigos. E soube que era ele.

» Quando o olhei de novo, é possível que o meu rosto se

tivesse alterado, não faço ideia. Sabia-o e sabia que ele sabia. No entanto, não era capaz de descobrir o motivo. Não conseguia acreditar. Tinha de pensar sobre o assunto. Murmurei qualquer coisa e saí dali na direcção do hall, onde havia uma cabina telefónica. Não queria alarmá-lo antes de ter conseguido ajuda. Estava

72

a falar para o operador da polícia quando ele surgiu em peúgas por uma porta de serviço. Não o senti aproximar-se. Senti o seu hálito e a seguir ... foi aquilo que tu sabes. - Afinal como é que conseguiste saber? - Julgo que foi uma semana depois, já no hospital, que consegui descobrir. Era uma ilustração do Homem Ferido, que se via muito nos livros antigos de medicina, como aqueles que Lecter tinha. Mostra diferentes tipos de ferimentos em combate, todos na mesma figura. Já a tinha visto num curso de supervisores que um patologista dera na GWU. A posição da sexta vítima e os seus ferimentos eram em tudo semelhantes aos do Homem Ferido. - Homem Ferido? Era só isso que tinhas? - De facto era. Foi uma coincidência que eu tivesse visto a gravura. Foi uma questão de sorte. E que sorte. - Se não acreditas em mim, por que raio é que me perguntaste?

Faço de conta que não ouvi o que disseste. Está bem. Também não era isso que queria dizer. No entanto foi o modo como as coisas se passaram.

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- Okay - disse Springfield. - Okay. Obrigado por me teres contado. Preciso de saber coisas como esta.

A descrição que Parsons dera do homem na avenida e as informações sobre o gato e o cão eram possíveis indicações sobre os métodos do assassino: aparentemente tinha inspeccionado primeiro o local, disfarçado de leitor de contadores, e sentira-se impelido a ferir os animais de estimação das vítimas antes de ter ido matar a família. O problema imediato que a polícia enfrentava era o

de divulgar ou não esta teoria.

Com o público alertado e ciente dos sinais de perigo, a

polícia poderia ter um aviso prévio de um possível futuro ataque do assassino, mas de certeza que o assassino também estaria atento às notícias.

73 E podia modificar os seus hábitos. No departamento de polícia havia um sentimento muito forte de que as ténues pistas que se tinham obtido se deveriam manter em segredo, com excepção de um boletim especial que seria distribuído em todo o Sudoeste pelos veterinários e responsáveis de centros de recolha de animais, pedindo relatórios imediatos se verificassem mutilações de qualquer animal doméstico. Por outro lado, isto traduzia-se em não fornecer ao público um alerta que poderia ser vital. Era uma questão de ética e a polícia não se sentia muito confortável a este respeito. Consultaram o Dr. Alan Bloorn em Chicago. O Dr. Bloorn disse-lhes que, se o assassino lesse um aviso nos jornais, provavelmente mudaria de método na marcação de uma casa. O Dr. Bloorri tinha dúvidas de que o homem fosse capaz de parar de atacar os animais de estimação, independentemente do risco que pudesse correr. O psiquiatra disse à polícia que não deveriam de modo nenhum concluir que tinham vinte e cinco dias para trabalhar, ou seja, o tempo que faltava antes da próxima lua cheia, a 25 de Agosto. Na manhã de 31 de Julho, três horas depois de Parsons ter fornecido a sua descrição, foi tomada uma decisão após uma conferência telefónica entre

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as polícias de Atlanta e de Birmingliam e Crawford, em Washington: deviam mandar confidencialmente o boletim para os veterinários, investigar durante três dias na vizinhança com o esboço do artista e a seguir fornecer a informação à imprensa, rádio e televisão.

Durante esses três dias, Graham e os detectives de

Atlanta calcorrearam os passeios, mostrando o esboço aos proprietários das casas situadas na área da residência dos Leeds. O esboço traduzia apenas a sugestão de um rosto, mas esperavam encontrar alguém que pudesse fornecer mais pormenores. A cópia do esboço que foi fornecida a Graham foi-se esbatendo nas margens devido ao suor das mãos. A maioria das vezes era extremamente difícil que os moradores atendessem à porta. + noite deitava-se no quarto, coberto de pó de talco nas bolhas e vergSes feitos pelo calor, enquanto a mente andava às voltas com

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o problema como se se tratasse de um holograma. Namorava o sentimento que usualmente antecede uma ideia. Só que esta nunca mais chegava. Entretanto em Atlanta verificaram-se quatro incidentes com ferimentos e uma morte, tudo devido a moradores que dispararam contra parentes que chegaram tarde a casa. No comando da polícia amontoavam-se as chamadas telefónicas e as informações sem qualquer interesse. O desespero alastrava como uma epidemia de gripe. Crawford regressou de Washington no terceiro dia e foi encontrar Graham sentado, a tirar as peúgas ensopadas em suor. - Muito trabalho?

- Se amanhã pegares num esboço já vês como é - disse

Graham. - Não é preciso, vai aparecer tudo nas notícias

desta noite. Andaste todo o dia a pé? - Não é possível andar de carro nos jardins deles.

- Nunca esperei que fosse possível conseguir qualquer

coisa desta investigação - disse Crawford.

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Se é assim, que raio é que estavas à espera que eu fizesse? Simplesmente o melhor que te fosse possível - Crawford

ergueu-se para se ir embora. - O excesso de trabalho foi muitas vezes para mim uma droga, especialmente depois de ter deixado a bebida. Tenho a impressão de que contigo se passa o mesmo. Graham estava irritado. Evidentemente que Crawford tinha razão. Graham era um preguiçoso inato, e ele sabia-o. Nos seus tempos de escola tentava compensar este facto com a velocidade com que desempenhava as tarefas. Mas agora já não estava na escola. Havia mais qualquer coisa que ele podia fazer e já há dias que tinha consciência disso. Podia esperar até que fosse levado a fazê-lo por desespero, nos últimos dias antes da lua cheia. Ou podia fazê-lo já, enquanto valesse a pena. Havia uma opinião de que precisava. Uma análise da situação que ele precisava de compartilhar; um equilíbrio da mente que ele

75 precisava de recuperar depois do conforto de todos os anos passados em Keys. As razSes surgiram-lhe de repente como vagas que se quebram na orla da praia e finalmente, sem dar conta de que encolhia a barriga, Graham disse em voz alta: - Tenho de ver Lecter. 76

CAP+TULO 7

O Dr. Frederick Chilton, director do Hospital Psiquiátrico Chesapeake para Criminosos Inimputáveis, rodeou a secretária para apertar a mão de Will Graham. - O Dr. Bloorn telefonou-me ontem, Sr. Graham, ou

devo tratá-lo por Dr. Graham? - Não sou médico. - Gostei muito de receber notícias do Dr. Bloorn,

conhecemo-nos há anos. Tem aqui uma cadeira. - Estamos-lhe muito gratos pela sua ajuda, Dr. Chilton.

- Para lhe~ ser franco, às vezes tenho mais a

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impressão de ser o secretário de Lecter do que o seu guarda - disse Chilton. A correspondência que ele recebe é impressionante. Estou convencido de que, para certos investigadores, é muito chic corresponderem-se com ele. Já vi cartas dele emolduradas em serviços de psicologia. Durante algum tempo dir-se-ia que todos os estudantes inscritos nesta especialidade queriam ter uma entrevista com ele. Seja o que for, sinto-me contente por poder colaborar convosco e com o Dr. Bloom. - Gostaria de ver o Dr. Lecter na maior privacidade

- disse Graham. - E talvez seja preciso que tenha de voltar ou de lhe telefonar. Chilton acenou com a cabeça. - Antes de mais, o Dr. Lecter não deverá deixar o seu quarto. Trata-se do único local onde não é obrigado a estar de camisa

77 de forças. Uma das paredes do seu quarto é constituída por uma barreira dupla que dá para o corredor. Se quiser posso dizer que lhe levem uma cadeira. Sinto-me na obrigação de lhe pedir que não lhe passe nenhum objecto, com excepção de folhas de papel, que não tenham agrafes ou clips. Nem classificadores, nem canetas, nem lápis. Tem as suas próprias canetas especiais. - É capaz de ser preciso mostrar-lhe documentos que

o poderão excitar - disse Graham. - Mostre-lhe tudo o que quiser, desde que se trate

de papel. Deve passar-lhe os documentos pela abertura destinada ao tabuleiro das refeições. Através das barras não lhe estenda nada nem aceite nada. Ele deve devolver-lhe os documentos pela mesma abertura do tabuleiro. É um ponto sobre o qual insisto. O Dr. Bloom e o Sr. Crawford garantiram-me que seguiria escrupulosamente as minhas instruções. - Não se preocupe - disse Graham, ao mesmo tempo

que se levantava.

- Sei que tem pressa de o ver, Sr. Graham, mas antes

quero contar-lhe uma coisa que de certeza o vai

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interessar. » Pode parecer incongruente tentar precavê-lo, a

si, contra Lecter, mas as suas reacções são absolutamente imprevisíveis. Comportou-se perfeitamente durante o primeiro ano de internamento e deu a ideia de que estava na disposição de querer colaborar com os médicos. Em consequência - isto passou-se durante a administração anterior - houve um certo abrandamento nas medidas de segurança a seu respeito. » No dia 8 de Julho de 1976, da parte da tarde,

queixou-se de dores agudas no peito. Na sala de exame tiraram-lhe a camisa de forças para que pudessem fazer o electrocardiograma. Um dos enfermeiros deixou a sala para fumar um cigarro e o outro voltou-se por segundos. A enfermeira era muito ágil, conseguiu salvar um dos olhos. » Vai achar isto estranho. - Chilton tirou de uma gaveta uma fita de papel de electrocardiograma que desenrolou em cima da secretária. Com o dedo seguiu a linha do gráfico. - Aqui, está deitado na mesa do exame. O pulso é de 72. Aqui, agarra a

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enfermeira pela cabeça e puxa-a para ele. Aqui, é neutralizado pelo enfermeiro. Não ofereceu a menor resistência, embora o enfermeiro lhe tenha deslocado o ombro. Está a compreender? O seu pulso nunca passou dos 85. Mesmo quando arrancou a língua à enfermeira. Chilton observava Graham, mas o rosto deste mantinha-se impenetrável. Recostou-se na cadeira e cruzou os dedos sob o queixo. As mãos estavam secas e brilhantes.

- Está a ver, quando Lecter foi preso, todos pensávamos

que se tratava de uma ocasião única para ser possível estudar de perto um sociopata puro - disse Chilton. - É raro encontrar-se um vivo. Lecter é extraordinariamente lúcido e perceptivo, conhece a psiquiatria a fundo, mas é um criminoso temível. Pareceu-nos que queria cooperar e ficámos

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convencidos de que tínhamos finalmente alguém para estudar este tipo de desvio. De um modo idêntico ao que se passou com Beaumont quando estudava a digestão no estômago de Saint Martin. » Em resumo, não avançámos praticamente nada desde o dia da sua admissão. Chegou a ter conversas de interesse com Lecter?

- Não, só o vi no dia em que ... Vi-o principalmente no

tribunal. O Dr. Bloora mostrou-me os artigos dele que foram publicados - disse Graham. - Está muito ligado a si, pensa imenso em si. - Já teve sessões com ele? - Sim. Doze. É impenetrável. Encara os testes de

modo sobranceiro, seja qual for o seu tipo ou finalidade. Edwards, Fabre e o próprio Dr. Bloom em pessoa vieram conversar com ele. Fiquei com os seus apontamentos. Para eles, Lecter também constitui um enigma. É evidente que se torna impossível adivinhar o que ele esconde ou saber se compreende mais do que aquilo que quer dar a entender. Desde que aqui entrou, já escreveu alguns artigos brilhantes para o Boletim Americano de Psiquiatria e para os Arquivos Gerais, mas trata sempre de problemas que não se encontram relacionados com ele. Na minha opinião, tem medo de ser «resolvido», sabendo que a partir daí mais ninguém se interessaria por ele e que seria votado ao esquecimento até ao fim dos seus dias.

79 Chilton calou-se. Era seu hábito servir-se da sua

visão periférica para observar os seus pacientes durante as entrevistas. E julgava poder fazer o mesmo com Graham. - Aqui toda a gente pensa que a única pessoa que

deu provas de uma certa compreensão do Dr. Hannibal Lecter foi o senhor. Deseja fazer algum comentário a este respeito? - Não. - Parte do pessoal ficou com alguma curiosidade em saber se, quando o senhor viu as vítimas do Dr. Lecter, o «estilo» dos assassínios,

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se assim podemos dizer, foi capaz de reconstituir as suas fantasias, e se isso o ajudou a identificá-lo? Graham não respondeu. - Dispomos de informações muito reduzidas a este respeito. Existe um artigo no Boletim de Psicologia Patológica e julgo que é tudo. Acha que podia discutir este assunto com o pessoal? Eu sei que desta vez não é possível, fui proibido formalmente pelo Dr. Bloorn. Devemos deixá-lo a sós. Mas talvez de uma próxima vez. O Dr. Chilton conhecia bem o que era a hospitalidade e diante dele encontrava-se um exemplo típico. Graham levantou-se. - Obrigado, doutor. Agora gostaria de ver Lecter. Imediatamente.

A porta de aço da zona de alta segurança fechou-se atrás de Graham. Ouviu o barulho dos ferrolhos a serem corridos.

Graham sabia que Lecter passava a maior parte da manhã a

dormir. Lançou uma vista de olhos ao corredor. Do sítio onde se encontrava não conseguia ver a cela de Lecter, podendo, no entanto, aperceber-se de que a luz se encontrava no mínimo.

Graham queria ver Lecter a dormir. Precisava de tempo

para fortalecer a sua vontade. Se ele sentisse a loucura de Lecter invadir-lhe a mente precisava de se lhe opor rapidamente, como se se tratasse de reparar uma fuga. Para cobrir o ruído dos seus passos acompanhou um

empregado que empurrava um carro cheio de roupa suja. Era muito difícil apanhar o Dr. Lecter de surpresa.

80

Graham parou no meio do corredor. A frente da cela era em barras de aço. Mais atrás, e fora do alcance da mão, uma rede de nylon bastante rígida encontrava-se esticada do solo ao tecto e de uma parede à outra. Graham distinguiu uma mesa e uma cadeira aparafusadas ao solo. A mesa encontrava-se cheia de livros e de correspondência. Aproximou-se das barras onde apoiou a mão para a retirar logo em

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seguida. O Dr. Hannibal Lecter estava deitado na cama, a

cabeça apoiada numa almofada que se encontrava encostada à parede. Sobre o peito encontrava-se aberto o Grande Dicionário de Cozinha, de Alexandre Dumas.

Graham encontrava-se junto das barras não havia mais de

cinco segundos quando Lecter abriu os olhos e disse: Continua com esse horrível after shave que usou no tribunal. - Oferecem-mo todos os anos pelo Natal.

A luz desenhava minúsculos pontos vermelhos nos olhos

castanhos do Dr. Lecter. Graham sentiu que os cabelos da nuca se eriçavam. - Sim, pelo Natal - disse Lecter. - Recebeu o meu cartão? - Recebi, muito obrigado. O cartão de boas-festas do Dr. Lecter fora enviado

a Graham pelo laboratório central do FBI em Washington. Queimara-o no jardim, lavando as mãos em seguida, antes de tocar em Molly. Lecter levantou-se, dirigindo-se para a mesa. Um homem de baixa estatura e muito asseado.

- Então, WilI, sente-se. Deve haver cadeiras dobráveis

num desses armários. Pelo menos, julgo que sim. - O empregado foi buscar-me uma. Lecter permaneceu de pé enquanto Graham não se sentou. - A propósito, como está o agente Stewart? - perguntou ele. - Está bem. O agente Stewart demitira-se depois de ter visto a

cave do Dr. Lecter. Presentemente dirigia um motel, mas Graham não fez qualquer referência a esse assunto. De certeza que Stewart não estaria interessado em receber uma carta de Lecter.

81 - É uma pena que os problemas afectivos o tenham perturbado a tal ponto. Podia ter chegado muito longe. Você,

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Will, tem algum problema? - Não. - Era de esperar. Graham. sentia que Lecter procurava adivinhar os pensamentos mais íntimos e sentia-se de certo modo como uma mosca apanhada numa armadilha. - Sinto-me satisfeito que tenha vindo. Quanto tempo é que já passou? Três anos? Os meus visitantes são todos pequenos psiquiatras ou doutores em Psicologia que ensinam em universidades de província. Escribas que redigem artigo atrás de artigo para preservar a sua reputação. - O Dr. Bloom mostrou-me o seu trabalho sobre habituação cirúrgica, o que foi publicado no Boletim de Psiquiatria Clínica. - E depois? - Achei-o muito interessante, mesmo sendo um profano.

- Um profano ... um profano ... eis um termo bastante

interessante - disse Lecter. - Todos esses grandes professores, todos esses técnicos contratados pelo governo ... e acha que é profano. No entanto foi o senhor que me prendeu, não foi, Will? Sabe como é que conseguiu? - Tenho a certeza de que leu o relatório. Está tudo lá. Não, isso não está, WilI, sabe como é que procedeu? Está no relatório. E, aliás, que importância é que isso tem? - Para mim, nenhuma, Will. - Dr. Lecter, gostava que me ajudasse. - Era aquilo que eu pensava. - Trata-se de Birmingham e Atlanta. Sim. - Está a par dos acontecimentos, tenho a certeza. Li os jornais. Não pude cortar os artigos porque

não me deixam ter tesoura. Sabe, às vezes ameaçam-me de me tirarem os livros. Não queria de modo nenhum que pensassem que me interesso por um assunto tão mórbido. - Começou a rir. Os dentes

82

do Dr. Lecter eram pequenos e brilhantes. - Quer saber como é que ele faz a sua escolha, é isso? - Lembrei-me de que poderia ter uma opinião a este

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respeito que me quisesse transmitir. - E por que é que eu faria uma coisa dessas? Graham previra esta pergunta. Não podia dizer de

modo nenhum que a razão seria para pôr fim a uma série de assassínios, era coisa que não seria aceite por Lecter, pelo menos para já. - Há certas coisas que lhe fazem falta - respondeu Graham. - Material de investigação, filmes. Podia falar ao responsável.

- Chilton? Deve ter estado com ele antes deter vindo

aqui. Não acha que ele é macabro com aquele modo de nos triturar as meninges, como um aluno do liceu que tenta desapertar o seu primeiro soutien? Aposto em como tentou consigo a história da visão periférica. E aposto também que você se apercebeu disso. É capaz de não acreditar, mas tentou submeter-me a mim ao teste de percepção temática. Permanecia diante de mim, os lábios arreganhados, aguardando que eu tirasse o cartão MF 13. Ah, desculpe, esqueço-me sempre de que não faz parte dos eleitos. Trata-se de um cartão que representa uma mulher deitada e um homem de pé, em primeiro plano. Supostamente deveria evitar qualquer interpretação sexual. Escangalhei-me a rir. Inchado de orgulho, contou a quem o quis ouvir que eu me escapava à prisão graças ao meu síndroma de Ganser. Mas estou a aborrecê-lo com as minhas histórias. - Podia ter acesso aos documentos filmados da AAM. - Não acredito que conseguisse o que me interessa. - Ponha-me à prova. - E, além disso, de momento tenho livros que cheguem. - Podia ter acesso ao dossier deste caso. Isso não lhe interessa?

Que disse? Julguei que pudesse estar interessado em verificar

se é mais manhoso do que aquele de quem ando à procura. - Da sua afirmação sou levado a concluir que se considera mais manhoso do que eu, uma vez que me prendeu.

83 - Não, sei que não sou mais manhoso do que o senhor. - Nesse caso, WilI, como é que fez para me prender? - Estava em desvantagem.

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- Como?

- Estava sob o domínio da paixão. E além disso é um doente mental.

- E você está muito moreno, Will. Graham não lhe respondeu. - As suas mãos estão todas estragadas, já não se parecem com as mãos de um polícia. A sua loção para depois de barbear, é o tipo de prenda que seria escolhida por uma criança. É mesmo aquela que tem um barco no rótulo, não é? - O Dr. Lecter raras vezes erguia a cabeça. Quando fazia uma pergunta, colocava a cabeça de lado, como se pretendesse que partilhassem a sua própria curiosidade. Houve um novo instante de silêncio, após o que acrescentou: - Não acredite que é capaz de conseguir qualquer coisa fazendo apelo à minha vaidade intelectual. - Não tenho qualquer intenção de tentar enganá-lo. Ou aceita ou recusa, é tudo. E, além disso, o Dr. Bloom já está a trabalhar no caso, e como é o maior ... - Tem o dossier consigo? - Tenho. Com fotografias? - Sim. - Dê-mo para que eu possa estudar. - Não. - WilI, você sonha muito? - Adeus, Dr. Lecter. Não me ameaçou de me tirar os livros. Graham afastou-se. - Dê-me o dossier e eu digo-lhe o que é que penso sobre o caso.

Graham introduziu na abertura do tabuleiro a versão abreviada do dossier. Lecter puxou-o para ele. - O dossier começa com um resumo. Pode lê-lo de imediato - disse Graham.

84 antes de mim.

- Gostava de o ler a sós, se não se importa. Dê-me uma hora. Graham aguardou numa sala triste, sentado num banco de plástico. Os enfermeiros trouxeram-lhe café. Não lhes dirigiu a palavra. Fixou os pequenos objectos que se encontravam na sala, feliz por

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verificar que não lhe dançavam diante dos olhos. Teve de ir à casa de banho por duas vezes. Sentia o espírito enevoado. O ajudante de carcereiro conduziu-o de novo à zona

de alta segurança. Lecter estava sentado à mesa, o olhar perdido na distância. Graham sabia que ele passara a hora inteira a olhar para as fotografias. - É um rapaz muito tímido, Will. Gostava de o encontrar. Já considerou a possibilidade de que ele se encontre desfigurado ou de que pense que é desfigurado? - Os espelhos. - Exacto. Repare que ele partiu todos os espelhos da casa, mas a atitude teve uma segunda intenção. Quando enterra os fragmentos de espelho, não são os ferimentos que lhe interessam. Estão colocados de tal modo que se pode mirar neles. Pode ver-se nos olhos da Sr.' Jacobi e da ... como é que se chama a outra? - Sr a Leeds. - É isso. É interessante - disse Graham. Não, não é «interessante». Você já tinha pensado nisso antes de mim.

- Confesso que considerei essa possibilidade. - Você só veio aqui para me ver, para reencontrar o velho odor familiar, não é? Devia cheirar-se a si próprio. - Preciso da sua opinião. - Ainda não tenho. - Quando tiver gostava muito de a conhecer. - Posso ficar com o dossier? - Ainda não decidi a esse respeito - disse Graham. - Por que é que não foi feita nenhuma descrição do jardim? Existe de facto uma vista de frente da casa, a planta das depen dências onde os crimes foram cometidos, mas não existe pratica-

85

mente nada sobre o jardim. Qual é o aspecto do pátio nos dois casos?

- São pátios grandes com vedações e alguns

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arbustos. Porquê?

- Bom, meu caro WilI, se é verdade que este peregrino

mantém relações muito especiais com a lua, pode muito bem acontecer que goste de sair até ao pátio para a contemplar, antes de se arranjar, está a compreender? Já viu o sangue à luz do luar, Will? Tem um tom quase que negro. Não deixa no entanto de conservar o seu brilho. Quando se está nu é preferível ter tranquilidade suficiente para conseguir fazer este tipo de coisas ao ar livre. Digamos que é conveniente demonstrar consideração para com os vizinhos. - Está então convencido de que ojardim poderia ser

um factor preponderante de escolha quando ele procura as suas vítimas? _ Oh, pode ter a certeza de que sim. E a lista ainda não se encontra encerrada. Deixe-me ficar o dossier, Will. Vou estudá-lo. Quando tiver mais informações, gostava que me pusesse ao corrente. Pode telefonar-me. +s vezes, quando o meu advogado me telefona, trazem-me um telefone. Antes ligavam a chamada ao sistema de intercomunicação. Toda a gente podia ouvir o que dizíamos nos altifalantes. Quer dar-me o seu número de telefone particular? - Não. - WilI, sabe por que é que conseguiu prender-me? - Adeus, Dr. Lecter. Pode transmitir-me qualquer mensagem para o número de telefone indicado no dossier. - Graham afastou-se. - Sabe por que é que me apanhou? Graham saíra do campo de visão de Lecter e dirigia-

se a grandes passadas para a porta de aço. - Apanhou-me porque você e eu somos semelhantes. Foram as últimas palavras que Graham ouviu, quando

a porta se fechou atrás dele. Sentia-se entorpecido e ao mesmo tempo receava deixar este estado de entorpecimento. Caminhava de cabeça baixa e não fala-

86

va com ninguém. O sangue latejava-lhe nas têmporas com um ruído que recordava um bater de asas. A

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distância que o separava da rua pareceu-lhe muito curta. Era um único edifício e só cinco portas entre Lecter e o mundo exterior. Sentia uma impressão absurda de que Lecter saíra com ele. Parou diante da porta do Hospital e olhou à sua volta para se certificar de que de facto se encontrava só. Instalado numa viatura estacionada do outro lado da rua, a teleobjectiva apoiada na parte de cima do vidro, Freddy Loutids tirou uma fotografia excelente, apanhando Graham de perfil no enquadramento da porta e a inscrição que se encontrava gravada na pedra por cima dela: «Hospital Psiquiátrico Chesapeake para Criminosos Inimputáveis». Mais tarde o National Tattler reduziu o enquadramento da fotografia de modo a que se visse apenas o rosto de Graham e as duas últimas palavras gravadas na pedra: «Criminosos Inimputáveis».

87

CAPÍTULO 8

Depois da partida de Graham o Dr. Hannibal Lecter ficou

durante várias horas na penumbra, deitado na cama. Por momentos interessou-se pelos tecidos: a trama da fronha da almofada contra as mãos que mantinha cruzadas atrás da nuca, o tecido mais fino muito perto do rosto.

Depois foram os odores e deixou vaguear a imaginação.

Alguns eram reais, outros não. Tinham colocado cloro nos sanitários; esperma. Serviam chili na cantina, uniformes enrijecidos pelo suor. Graham não quisera dar-lhe o seu número de telefone particular; o perfume, um pouco ácido, do chá acabado de colher. Lecter sentou-se na cama. Afinal de contas podia ter-se mostrado amável. Os seus pensamentos tinham o odor quente e de cobre de um despertador eléctrico. Pestanejou por várias vezes e em seguida ergueu as pálpebras. Subiu a intensidade da luz e escreveu um recado a Chilton, em que lhe pedia autorização para ligar ao seu advogado. A lei permitia a Lecter falar a sós com o

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advogado e ele nunca abusara desta regalia. Chilton nunca o autorisaria a dirigir-se ao telefone; foi portanto o telefone que veio ter com ele. Dois guardas trouxeram o aparelho e desenrolaram um longo cordão que se encontrava ligado à tomada do seu gabinete. Um dos guardas trazia as chaves e o outro, um aerosol de gás paralisante. - Dr. Lecter, vá para o fundo da sua cela. De cara para a parede. Se se voltar ou se se aproximar das barras antes de ter

88 ouvido a porta fechar-se, atiro-lhe com aerosol à cara. Compreendido? - Perfeitamente - disse Lecter. Obrigado por me terem trazido o telefone. Teve de passar a mão através da rede de nylon para marcar o número. O serviço de informações de Chicago deu-lhe os números do Departamento de Psiquiatria, na Universidade de Chicago, e do gabinete do Dr. Alan Bloorn. Ligou à central do Departamento de Psiquiatria. - Queria falar com o Dr. Alan Bloorn. - Acho que ele hoje não vem, mas vou ligar ao seu serviço. - Só um momento. Devia lembrar-me do nome da sua secretária mas confesso que não consigo recordar-me. - Linda King. Só um instante se faz favor. Obrigado. O telefone tocou oito vezes até que alguém levantá-se o auscultador.

- Gabinete de Linda King. - Bom dia, Linda. - A Linda não trabalha aos sábados. O Dr. Lecter previra que as coisas se passariam desta maneira. - Talvez consiga dar-me uma informação. Fala Bob Greer, das edições Blaine & Edwards. O Dr. Bloora pediu-me para enviar a Will Graham um exemplar do livro de Overholser, O Psiquiatra à Face da Lei. Linda devia indicar-me a sua direcção e o seu número de telefone mas ainda não o fez. - Escute, sou interina, a Linda estará aqui na segun... - Tenho de apanhar o Federal Express dentro de cinco minutos. Não queria estar a telefonar ao Dr.

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Bloora porque foi ele que disse a Linda para o enviar e gostava de evitar que ela arranjasse histórias por tão pouca coisa. Deve ter tomado nota na sua agenda. Se me der essa informação prometo-lhe um ramo de flores. - Ela não tem agenda. - Bom, então deve estar num ficheiro. - Sim.

89 - Seja uma menina bonita, dê-me esta informação e prometo que não lhe faço perder mais tempo. - Qual foi o nome que disse? - Graham, Will Graham. - Está aqui. O seu número particular é o 305 5

7002. - Tenho de lhe enviar o livro para a residência. - Não tenho o endereço particular. - Então qual é que tem? - Federal Bureau of Investigation, Décima Rua e Avenida da Pensilvânia, Washington D. C. Espere, tenho aqui também

Caixa Postal 3680, Marathon, Florida.

- É um anjo. Obrigado. - Não tem de quê. Lecter sentia-se melhor. Poderia talvez fazer um telefonema a Graham ou, se ele não se mostrasse amável, fazer que um armazém de artigos médicos lhe enviasse uma bolsa para colostomia, como recordação dos bons velhos tempos.

CAP+TULO 9 A sudoeste dali e a mais de mil e cem quilómetros, na cafetaria da Gateway Filra, em Saint Louis, Francis Dolarhyde esperava pelo seu hamburger. As entradas dispostas no balcão frigorífico estavam recobertas de molho coalhado. Mantinha-se perto da caixa registadora e bebia café por um copo de plástico. Uma jovem ruiva, envergando uma bata de laboratório, entrou na cafetaria e aproximou-se do distribuidor de doces. Por diversas vezes olhou para as costas de

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Dolarhyde e fez um trejeito com a boca. Finalmente dirigiu-se a ele e disse-lhe: - Sr. Dolarhyde? Dolarhyde voltou-se. Mesmo fora da câmara escura usava os seus óculos de protecção de lentes vermelhas. Ela esforçou-se por

não tirar os olhos da ponte da armação dos óculos. Seria possível sentarmo-nos por uns

momentos? Precisava de falar consigo. - O que é que tem para me dizer, Eileen? - Que me sinto verdadeiramente desolada. Bob estava um pouco tocado e fazia de palhaço. Não o fazia por mal. Sentemo-nos, peço-lhe. Só um instante. Não quer? - Mmm, Imun - Dolarhyde nunca pronunciava «sim», sentia uma dificuldade enorme com as consoantes sibilantes. Sentaram-se. A rapariga torcia nervosamente um guardanapo de papel. 90 91 - Toda a gente estava a divertir-se imenso naquela noite e sentíamo-nos contentes por termos o senhor connosco - disse ela. - Um pouco surpreendidos, mas na realidade contentes. Sabe como é o Bob, nunca pára de fazer imitações, devia trabalhar na rádio. Imitou dois ou três sotaques, contou várias histórias, bem sabe que ele é mesmo capaz de falar como um negro. Quando ele imitou aquela outra voz, não era para o ridicularizar. Estava demasiado embriagado para saber quem é que lá estava. - Todos eles riram muito e depois ... não riram mais. - Foi então que Bob compreendeu o que estava a fazer. - No entanto não deixou de continuar. - Sim, eu sei. - Conseguiu erguer os olhos do guardanapo para a armação dos óculos sem se distrair. - Tive uma discussão com ele por causa disto. Não queria ofendê-lo. Tentava simplesmente fazer rir as pessoas. Notou certamente como ele ficou corado.

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- Convidou-me a... fazer um dueto com ele. - Agarrou-o pelos ombros, queria que o senhor

também se risse. Acredite em mim, Sr. Dolarhyde. - Tudo aquilo me divertiu imenso, Eileen. - Mas agora o Bob está muito envergonhado. - Ouça, não quero que ele esteja preocupado por tão pouco. Não tem qualquer razão para isso. Diga-lhe isso da minha parte. Nunca mais falaremos disto no trabalho. Meu Deus, se eu tivesse tanto talento como o Bob faria ... faria igualmente imitações. Vamos encontrar-nos dentro em breve e é preciso que ele compreenda que não lhe quero mal por causa disso. - Ainda bem. Sabe, ele gosta de brincar, mas é um

rapaz muito sensível. - Não tenho qualquer dúvida. E igualmente temo. A voz de Dolarhyde era abafada pela mão. Quando se encontrava sentado apoiava sempre o nó do dedo indicador contra o lábio superior. - Perdão? - Acho que tem uma boa influência sobre ele, Eileen. - Com toda a franqueza também acho que sim. Nunca bebe a não ser ao fim-de-semana. Descontrai-se um pouco e depois a

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mulher telefona de casa. Faz caretas enquanto eu lhe falo, mas sei que depois do telefonema fica preocupado. Uma mulher sente este género de coisas. - Pousou rapidamente os dedos sobre o pulso de Dolarhyde; apesar dos óculos, viu que o seu olhar se modificava. - Não se preocupe, Sr. Dolarhyde. Sinto-me feliz por termos tido esta conversa. - Eu também, Eileen. Dolarhyde ficou a olhar para ela enquanto se afastava. Tinha uma marca na parte de trás do joelho. Disse então para si mesmo que Eileen não gostava dele. Aliás, não se enganava. Ninguém gostava dele. A grande câmara escura estava fresca e cheirava a

produtos químicos. Francis Dolarhyde trabalhava sob luz vermelha e verificava o revelador que se encontrava na cuba. Centenas de metros de filmes particulares vindos de todo o país passavam

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continuamente naquela cuba. A temperatura e a frescura dos produtos químicos eram de uma importância vital. Ele era o responsável por isso e por todas as outras operações antes de os filmes passarem ao secador. Várias vezes ao dia tirava filmes da cuba e verificava-os, imagem por imagem. Na câmara escura não havia qualquer ruído. Dolarhyde desencorajava qualquer tipo de conversa entre os seus assistentes e comunicava com eles sobretudo por gestos. Depois de a equipa ter terminado o seu trabalho, ficou só na câmara escura para revelar, secar e montar os seus próprios filmes.

Dolarhyde regressava a casa cerca das dez horas da noite. Vivia só, numa grande casa, uma herança dos avós, que se situava no extremo de um caminho coberto por saibro e que atravessava um enorme pomar a norte de Saint Charles, na outra margem do rio Missouri, mesmo em frente de Saint Louis. O proprietário do pomar encontrava-se ausente e ninguém cuidava dele. ãrvores mortas e galhos partidos misturavam-se com as árvores que ainda se encontravam verdejantes. Julho estava a chegar ao fim e o cheiro

93 das maçãs a apodrecer espalhava-se para lá do pomar. Durante o dia as abelhas tomavam conta do lugar numa azáfama constante. O vizinho mais próximo morava a cerca de um quilómetro. Logo que entrava, Dolarhyde fazia uma inspecção à

casa; há já alguns anos fora vítima de uma tentativa de roubo. Acendeu a luz em cada uma das dependências e procurou em todos os cantos. Um visitante não seria capaz de acreditar que ele vivia só: as roupas dos seus avós continuavam penduradas nos armários, as escovas da avó, onde permaneciam ainda alguns cabelos, arrumadas no toucador, a dentadura da avó encontrava-se num copo, na mesinha de cabeceira. A avó morrera já havia dez anos. O encarregado das pompas fúnebres dissera-lhe: «Sr. Dolarhyde, pode fazer o favor de trazer a dentadura da sua avó?» e ele respondeu-lhe: «Cale a boca e faça o que tem a fazer.» Tendo verificado que se encontrava só na casa,

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Dolarhyde subiu ao primeiro andar, tomou um duche prolongado e lavou o cabelo. Vestiu um quimono feito de um tecido sintético a imitar a seda e em seguida deitou-se na cama estreita do quarto que ocupava desde a infância. O secador de cabelo da sua avó tinha um tubo e uma touca de plástico. Colocou a touca na cabeça e passou o tempo a folhear uma revista de moda. A dureza e a brutalidade de certas fotografias possuíam qualquer coisa de notável. Começava a sentir-se excitado. Fez rodar a lâmpada de leitura para iluminar uma gravura fixada na parede, junto da cama. Era uma reprodução de uma aguarela de William Blake, O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. Esta pintura transtornara-o completamente desde o momento em que a tinha visto. Antes, nunca vira nada que se encontrasse tão próximo do seu pensamento gráfico. Tinha a sensação de que Blake espreitara por uma das suas orelhas e vira o Dragão Vermelho. Durante semanas, Dolarhyde receara que os pensamentos lhe pudessem sair pelas orelhas para se materializarem na câmara escura e queimarem os filmes. Colocara tampSes de algodão nas orelhas. Mais tarde, temendo que o algodão fosse inflamável ' tentara a lã de aço. Fizera-lhe sangrar as orelhas. Por último,

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cortara pequenos bocados de tela de amianto da cobertura de uma tábua de passar a ferro e fizera pequenas bolas que obstruíam perfeitamente os seus canais auditivos. Durante muito tempo a única coisa que vira fora o Dragão Vermelho. Presentemente tinha outra coisa. Sentiu o início de uma erecção. Por vontade dele as coisas ter-se-iam processado

mais lentamente, mas, agora, já não podia esperar. Dolarhyde correu os pesados reposteiros das janelas da sala de estar do rés-do-chão. Montou o ecrã e o projector. O seu avô não se importara com as objecções da avó e instalara uma cadeira reclinável na sala de estar (ela colocara um pano

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bordado no apoio da cabeça). Dolarhyde sentia-se bem. Colocou uma toalha no braço da cadeira. Apagou a lâmpada. Deitado naquela sala às escuras, poderia imaginar-se em qualquer sítio. Instalara no tecto um pequeno aparelho rotativo que projectava manchas multicores nas paredes, no chão, na sua própria pele. Poderia ter-se imaginado no assento de uma nave espacial, uma bola de vidro flutuando entre as estrelas. Quando fechava os olhos, parecia-lhe que sentia as manchas luminosas deslizar-lhe sobre o corpo e, quando os reabria, podiam ser as luzes de uma cidade que brilhavam acima dele, abaixo dele. Não havia nem alto nem baixo. + medida que aquecia, o aparelho aumentava de velocidade e os pontos luminosos abatiam-se sobre ele, despejavam as suas torrentes angulares sobre o mobiliário, escorriam pelas paredes numa chuva de meteoros. Poderia ser um cometa mergulhando na direcção da nebulosa de Caranguejo.

Havia um único lugar que se encontrava ao abrigo da luz.

Colocara diante do aparelho um pedaço de cartão que projectava uma sombra sobre o ecrã de cinema. Talvez um dia viesse a fumar erva para aumentar os efeitos; mas hoje não sentia necessidade disso. Accionou o interruptor para pôr o projector a trabalhar. Um rectângulo branco surgiu no ecrã, seguido de riscos acinzentados, estrias, até que se viu o pêlo-de-arame erguer as orelhas e dirigir-se para a porta da cozinha, agitando freneticamente a cauda. Um

95 corte e em seguida o pêlo-de-arame mais uma vez, a correr, ao mesmo tempo que tentava apanhar a cauda com os dentes. A Sr.' Leeds entra na cozinha com os sacos do supermercado. Começa a rir eleva a mão ao cabelo. As crianças entram por sua vez. Novo corte seguido de um plano bastante mal iluminado. É o quarto de Dolarhyde no primeiro andar. Está nu diante de O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. Tem «óculos de combate» fixos ao rosto por uma tira elástica, semelhantes aos que usam os jogadores de hóquei no gelo. Tem uma erecção que mantém com a mão.

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A imagem torna-se nublada quando se aproxima da câmara

com movimentos estilizados, a mão estendida para fazer o ponto. O rosto ocupa todo o ecrã. A imagem estremece para em seguida se estabilizar sobre um grande plano da boca; o lábio superior, disforme, está arreganhado, entre os dentes vê-se a ponta da língua. No cimo da imagem pode ver-se um olho arregalado. A boca enche o ecrã, os lábios afastam-se para deixar ver os dentes e por último é a escuridão total quando a boca se fecha sobre a objectiva. A dificuldade da sequência seguinte é evidente. Uma imagem nublada, violentamente iluminada, transforma-se numa cama: Charles Leeds debate-se, a Sr.' Leeds ergue-se, protege os olhos com a mão, volta-se para Leeds, coloca as mãos sobre o seu corpo, rola para a borda da cama e fica com as pernas presas nos lençóis, tenta levantar-se. A câmara aponta na direcção do tecto, as molduras varrem o ecrã e por fim a imagem estabiliza-se: a Sr a Leeds está de novo deitada na cama, vendo-se uma mancha escura que alastra na camisa de noite. Leeds agarra o pescoço com um olhar tresloucado. Durante alguns segundos a imagem fica negra para logo em seguida se verificar uma mudança brutal. A câmara está imóvel, instalada num tripé. Já estão todos mortos. Cuidadosamente instalados. Duas crianças sentadas, encostadas à parede, diante da cama, a terceira de frente para a câmara. O Sr. e a Sr a Leeds encontram-se deitados na cama com os lençóis puxados. O Sr. Leeds está encostado à cabeceira, a cabeça levemente inclinada. O lençol dissimula a corda que lhe amarra o peito.

96

Dolarhyde aparece na esquerda da imagem, executando movimentos estilizados de dançarino de Bali. Coberto de sangue, nu, com excepção dos óculos, desliza e dá saltos entre os mortos. Aproxima-se da cama, do lado da Sr a Leeds, agarra nos lençóis e puxa-os com um gesto largo, antes de tomar uma pose como se tivesse acabado de fazer uma verónica. Sentado na sala de estar da casa dos seus avós, Dolarhyde estava coberto de suor. A sua língua espessa saía constantemente, a cicatriz do

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lábio superior encontrava-se brilhante de saliva e gemia enquanto se excitava. Mesmo no momento do orgasmo sentia-se triste por

verificar que nas sequencias seguintes perdia toda a graça e elegância, onde rastejava como um porco, as nádegas voltadas para a câmara. Já não se tratava de uma questão de pose plástica, de sentido de ritmo, de subida dramática; a única coisa que restava era um frenesim bestial. Apesar de tudo, era absolutamente fantástico. Ver

este filme era fantástico. Embora menos do que os crimes. Dolarhyde deu conta de que este filme tinha um defeito grave: não mostrava exactamente a morte dos Leeds e o final do seu número deixava muito a desejar. Era como se tivesse mandado os seus próprios critérios às urtigas. O Dragão Vermelho não se comportaria dessa maneira. Não fazia mal. Ainda podia rodar muitos filmes e,

com a experiência, esperava poder vir a adquirir uma certa desenvoltura estética, mesmo nos instantes mais íntimos. Era preciso que se ultrapassasse. Era a obra da sua vida, uma obra magnífica. Permaneceria para sempre. Precisava portanto de se pôr ao trabalho, escolher

os seus próximos parceiros. Já fizera cópias de vários filmes rodados no 4 de Julho, dia da festa nacional. O fim do Verão trazia sempre um acréscimo de trabalho quando chegavam ao laboratório os filmes das férias - as férias de Natal constituíam tradicionalmente o outro período de ponta do ano.

Todos os dias havia famílias que lhe enviavam a sua

candidatura ...

97 CAPÍTULO 10

O avião de Washington para Birmingham ia meio-vazio. Graham instalou-se à janela. Ao lado dele o lugar estava vago.

Recusou a sandes com mau aspecto que a hospedeira lhe

ofereceu e pousou sobre a mesa o dossier Jacobi. Na

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primeira página anotara os pontos comuns entre os Jacobi e os Leeds. Os dois casais aproximavam-se dos quarenta anos e tinham filhos - dois rapazes e uma rapariga. Edward Jacobi tinha um filho de um casamento anterior que se encontrava na universidade no dia em que a família foi massacrada. Em ambos os casos, os chefes de família possuíam diplomas universitários, e as famílias habitavam vivendas de rés-do-chão e primeiro andar numa zona agradável dos arredores. A Sr a Jacobi e a Sr a Leeds eram mulheres muito atraentes. As famílias tinham cartSes de crédito das mesmas instituições e eram assinantes de um certo número de revistas populares. Quanto a semelhanças era tudo o que havia. Charles Leeds era consultor fiscal. Edward Jacobi engenheiro metalúrgico. A família de Atlanta era presbiteriana; os Jacobi eram católicos. Os Leeds sempre haviam residido em Atlanta; os Jacobi haviam deixado Detroit três meses antes para virem morar em Birmingham. A palavra «acaso» produzia na mente de Graham um

ruído semelhante ao de uma torneira que pinga. «Vítimas escolhidas ao

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acaso», «sem móbil aparente», eram estas as expressões que os jornais utilizavam e que os inspectores lançavam aos quatro ventos para tentar dissimular a sua cólera e a sua frustração.

«Acaso» não era o termo que convinha. Graham sabia que os

autores de assassínios colectivos não escolhiam as suas vítimas ao acaso. O homem que matara os Leeds e os Jacobi encontrara neles qualquer coisa que o atraíra e que o levara a agir daquela maneira. Talvez os conhecesse muito bem - era o que Graham esperava -, mas também era possível que nunca os tivesse visto. Fosse como fosse, Graham tinha a certeza de que o assassino os vira pelo menos uma vez antes de os matar. Escolhera-os porque havia neles qualquer coisa que o despertara, e as mulheres encontravam-se no cerne do enigma. No entanto, os crimes apresentavam certas diferenças.

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Edward Jacobi fora abatido quando descia a escada de

lanterna na mão, provavelmente acordado por um ruído suspeito. A Sr a Jacobi e os filhos haviam sido abatidos com uma

bala na cabeça, a Sr a Leeds recebera uma bala no abdômen. Tanto num caso como no outro, a arma era uma pistola automática de nove milímetros. Nos ferimentos foram encontrados vestígios de lã de aço provenientes de um silenciador de fabrico artesanal. Os envólucros não apresentavam impressões digitais. A faca só servira para Charles Leeds. O Dr. Princi estava convencido de que se tratava de uma lâmina muito fina e muito pontiaguda, provavelmente uma faca de entalhar. O modo como se introduziu nas casas também fora diferente: nos Jacobi forçara a porta do pátio, nos Leeds fora utilizado um diamante.

As fotografias dos crimes de Birmingham não mostravam a

quantidade de sangue encontrada em casa dos Leeds, mas as paredes estavam manchadas numa zona compreendida entre os quarenta e os sessenta centímetros acima do soalho. Tanto num caso como no outro, o assassino tivera público. A polícia de Birmingham procurara impressões nos cadáveres, unhas incluídas, e não encontrara nada. Um enterro ou um mês de Verão em

99 Birmingham era o suficiente para destruir uma impressão como aquela que fora encontrada no filho dos Leeds. E em ambos os casos eram os mesmos cabelos louros,

a mesma saliva, o mesmo esperma. Graham apoiou as fotografias das famílias contra as costas do assento da frente e ficou a olhar longamente para elas no silêncio pesado do avião. O que é que em casa deles teria atraído mais a atenção do assassino? Graham fazia tudo para se convencer de que existia um ponto comum e que não tardaria a descobri-lo. Senão teria de visitar mais casas e ver o que é que

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o Dentuças aí teria deixado em sua intenção.

Graham havia recebido instruções dos escritórios de Birmingham e telefonou à polícia logo que chegou ao aeroporto. O ar condicionado da sua viatura projectava gotículas de água nos braços e nas mãos. Parou em primeiro lugar junto à agência imobiliária Geelian, na Avenida Deimison. Geehan, grande e calvo, atravessou a carpeta turquesa para vir cumprimentar Graham. O sorriso desvaneceu-se logo que Graham lhe mostrou a sua placa de identidade e lhe pediu a chave da casa dos Jacobi. - Hoje vamos ter polícias de uniforme? - perguntou

ele, colocando a mão na cabeça. - Julgo que não. - Espero que assim seja, pois vou mostrá-la esta tarde a dois clientes. É uma bela casa. Toda a gente que a vê fica encantada com ela. Na última quinta-feira tive lá um casal vindo de Duluth, reformados sem qualquer tipo de problema. Chegáramos já à altura em que se falava de hipotecas quando chegaram os polícias na sua viatura de patrulha. O casal fez-lhes algumas perguntas e no que toca às respostas, tiveram muitas mais do que aquilo que esperavam. Esses valentes polícias levaram o casal a dar a volta completa, explicando-lhes quem fora assassinado em cada um

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dos locais. Depois disto tudo, adeusinho Geelian e desculpe por o termos estado a incomodar. Quis dizer-lhes que já não havia problemas, mas não me quiseram ouvir. E partiram suavemente no seu Cadillac Sedan de Ville. - Houve algum homem sozinho que tenha pedido para

visitar a casa? - Não sei, de qualquer modo, comigo não. Somos

vários a ocuparmo-nos deste caso. Mas julgo que não. A polícia não nos quis deixar pintar a casa mais cedo. Acabámos o interior na passada terça-feira. Foram precisas duas demãos e em alguns sítios mesmo três. Ainda estamos a trabalhar no exterior. Vai

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ficar um brinco. - Como é que a pode vender antes da homologação

da sucessão? - Não se pode assinar, mas isso não impede que

possa preparar tudo. As pessoas podiam mudar-se depois de terem assinado um protocolo de acordo. Não posso permitir-me ficar com os braços cruzados. É um dos meus colegas que está em poder da documentação e os juros não param de subir. - Quem é o executor testamentário do Sr. Jacobi? - Byron Metcalf, da firma Metcalf e Bames. Quanto tempo é que pensa ficar por aqui? - Ainda não sei. O mais provável é até ter acabado. - Pode deixar a chave na caixa do correio.

Ao dirigir-se à casa dos Jacobi, Graham teve a desagradável impressão de seguir uma pista já fria. A casa erguia-se na extremidade da vila, num quarteirão que havia sido reconstruído. Precisou parar à beira da estrada nacional para consultar o mapa antes de se meter por uma estrada secundária asfaltada. Já se passara mais de um mês desde o assassínio. E ele, o que estava a fazer nessa altura? Montava um par de motores diesel num casco Rybovich de dezanove metros e cinquenta, fazia sinal a Ariaga para descer a grua de mais um centímetro suplementar. Molly juntara-se a eles ao fim da tarde e tinham-se instalado os

101 três sob um toldo, na cabina do barco em construção, para saborear camarSes enormes que Molly trouxera e beber Dos Equis, enquanto Ariaga lhes explicava como é que se limpavam as lagostas, desenhando-lhes a cauda na serradura que se encontrava no chão. Os raios de sol, que se reflectiam nas águas, brincavam no ventre das gaivotas.

O ar condicionado salpicou de água a camisa de Graham e

ele despertou tomando consciência de que se encontrava em Birmingham. Já não havia camarSes nem gaivotas, apenas a estrada, tendo à sua direita pequenos bosques e prados, cabras e cavalos, e à esquerda, Stonebridge, quarteirão residencial já

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antigo, constituído por algumas casas elegantes e outras tantas de aspecto nitidamente abastado. Viu o painel da agência a uma centena de metros. A casa dos Jacobi era a única do lado direito da estrada. A seiva das árvores que a bordejavam tornava o saibro pegajoso, vindo bater com estrépito no interior dos pára-choques. Empoleirado numa escada estava um carpinteiro que reparava uma janela. Fez um sinal com a mão na direcção de Graham, quando este deu a volta à casa. Um pátio coberto de lajes era abrigado pela sombra de um carvalho imponente. De noite, a árvore devia ocultar a luz do projector colocado à entrada. Era por ali que o Dentuças entrara, por aquelas portas de vidro de correr. As portas tinham sido substituídas, os caixilhos de alumínio brilhavam e ainda se via a etiqueta do fabricante. Diante das portas de correr fora instalada uma porta de segurança gradeada, em ferro forjado. A porta da cave era também nova - em aço e cheia de fechos de segurança. No pátio exterior viam-se os componentes de uma caldeira. Graham entrou. Um soalho nu, um cheiro de salas fechadas. Os seus passos ecoaram na casa vazia. Os novos espelhos da casa de banho nunca chegaram a reflectir o rosto dos Jacobi, nem o do assassino. Em cada espelho via-se uma pequena mancha branca, indicando o lugar onde existiu a etiqueta do preço. Uma tela dobrada fora colocada a um canto do quarto de casal. Graham sentou-se e ficou imenso tempo naquela posição, a olhar para o sol que entrava pelas janelas. 102

Não havia nada ali. Mais nada. Seria possível que, se ele tivesse vindo logo após

o assassínio dos Jacobi, os Leeds ainda estivessem vivos, perguntava ele a si próprio. Graham testava assim o pesado fardo desta dúvida. E continuava a sentir esse peso nos ombros quando

saiu para o exterior para olhar o céu. De costas curvadas e mãos nos bolsos, Graham colocou-se à sombra de uma árvore para observar a

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estrada que passava diante da casa dos Jacobi. Como é que o assassino chegara à casa dos Jacobi?

De carro. Onde é que estacionara? O caminho em saibro era demasiado ruidoso para uma visita nocturna, mas a polícia de Birmingham não estava de acordo com Graham a este respeito.

Percorreu a álea até à estrada. Havia valetas cavadas de

um lado e do outro do asfalto. Com o terreno bem seco devia ser possível transpor a valeta e dissimular um veículo nos arbustos do lado da estrada onde viviam os Jacobi.

Em frente da casa havia a única estrada que conduzia a

Stonebridge. Um painel indicava que Stonebridge dispunha da sua própria patrulha de serviço. Um veículo estranho teria sido imediatamente referenciado, e do mesmo modo qualquer homem que chegasse a pé durante a noite. Não havia, portanto, hipóteses de ter estacionado em Stonebridge. Graham entrou de novo na casa e surpreendentemente verificou que o telefone não estava cortado. Ligou para o serviço de meteorologia local e soube que haviam caído cerca de oito centímetros de chuva no dia anterior ao da morte dos Jacobi. Por conseguinte, as valetas deviam estar cheias e o assassino não conseguira estacionar ao lado da estrada asfaltada. Na zona adjacente ao pátio, um cavalo acompanhou

Graham ao longo da vedação caiada que seguia na direcção das traseiras da propriedade. Deu um torrão de açúcar ao cavalo, deixando-o em seguida, quando a vedação fez um ângulo para seguir ao longo das dependências. Parou quando viu o buraco cavado na terra, no local onde os filhos dos Jacobi haviam enterrado o gato. No posto de polícia de

103 Atlanta, quando se encontrara com Springfield, ficara com a ideia de que as dependências estavam pintadas de branco. Na realidade estavam pintadas de verde-escuro. As crianças tinham embrulhado o gato numa toalha e colocaram-no depois numa caixa de sapatos,

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com uma flor nas patas. Graham encostou-se à vedação. O enterro de um animal, um ritual solene de infância. Os pais regressam a casa para não serem obrigados a rezar. As crianças que olham umas para as outras e que descobrem em si uma coragem insuspeitada. A miúda inclina a cabeça, os outros imitam-na - a enxada é maior do que eles. Depois de terem discutido brevemente para saber se o gato se encontra no céu com Deus e Jesus, as crianças param por momentos de chorar. De pé, o sol a dardejar-lhe a nuca, Graham tem pelo menos uma certeza: tão certo como o Dentuças ter morto o gato era o facto de que também os vira enterrá-lo. Era um espectáculo que não podia permitir-se perder. E, além disso, não fizera duas viagens: uma para matar o gato e outra para massacrar os Jacobi. Viera, matara o gato e esperara que as crianças o descobrissem. Era impossível saber onde é que as crianças haviam encontrado exactamente o gato. Os polícias não conseguiram encontrar ninguém que tivesse falado com os Jacobi durante a tarde, cerca de dez horas antes do momento da sua morte.

Como é que o assassino viera e onde se escondera para

esperar? Entre a vedação e as primeiras árvores havia uma zona de arbustos de cerca de trinta metros, tendo aproximadamente a altura de um homem. Graham tirou do bolso das calças um velho mapa, que estendeu em cima da cerca. Indicava um bosque que se prolongava por cerca de quatrocentos metros na parte de trás da casa dos Jacobi. Por detrás das árvores, na orla sul, uma estrada secundária seguia paralelamente à que passava diante da casa. Graham meteu-se no carro, regressando à estrada nacional e tomando nota dos números que o contador marcava. Em seguida, dirigiu-se para sul ao longo da nacional até voltar na estrada

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secundária indicada no mapa. Rolou quase que a passo até que o contador lhe indicou que se encontrava na parte de trás da casa dos Jacobi, do outro lado do pequeno bosque.

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O revestimento da estrada interrompia-se bruscamente à

entrada de um conjunto de habitações de aspecto modesto, tão recente que nem sequer se encontrava marcado na carta. Entrou no parque de estacionamento. A maior parte das viaturas era muito velha, assente em suspensSes extremamente fatigadas. Dois veículos estavam assentes em cepos. Crianças de cor jogavam basquete na terra batida, à volta de um único cesto sem rede. Graham sentou-se no pára-choques para os observar por uns momentos. Apetecia-lhe tirar o casaco mas sabia que o .44 Special e a pequena máquina fotográfica presa no cinto iam chamar a atenção. Sentia-se sempre incomodado quando as pessoas olhavam para a sua pistola. Havia oito jogadores na equipa que envergavam camisolas. Em número de onze, os jogadores da outra equipa estavam de tronco nu. A arbitragem fazia-se por aclamação. Um dos jogadores sem camisola fora empurrado; deixou o jogo por instantes, regressando logo a seguir para se meter na confusão, depois de ter comido um biscoito. Os gritos e os ruídos abafados da bola puseram Graham de bom humor. Um cesto, uma bola de basquete. Mais uma vez se sentiu espantado pelo número de apetrechos que os Leeds possuíam. O mesmo acontecia com os Jacobi, segundo o relatório da polícia de Birmingham. Canoas e equipamentos de desporto, material de campismo, máquinas fotográficas, espingardas de caça, canas de pesca. Esta abundância era um outro ponto comum a ambas as famílias.

Tendo imaginado os Leeds e os Jacobi em vida, pensou

automaticamente naquilo em que eles se tinham tornado presentemente, e deixou de conseguir continuar a ver o jogo de basquete. Inspirou profundamente e dirigiu-se para a orla sombria do bosque, do outro lado da estrada.

105 Bastante espessos na orla, os arbustos rareavam à medida que Graham avançava no sentido da mata de pinheiros, e não teve qualquer dificuldade

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em caminhar sobre o leito de caruma. Não havia o menor sinal de brisa. O ar estava morno e, nas árvores, os pássaros anunciavam o seu regresso. O terreno descia em declive suave para o leito de um ribeiro seco, perto do qual cresciam alguns ciprestes. Pegadas de ratos-trocadores e de musaranhos estavam marcadas na argila vermelha. Havia igualmente pegadas de pés humanos, algumas delas pertencentes a crianças. Os contornos estavam delineados para as chuvas sucessivas. Do outro lado do riacho seco, o terreno elevava-se novamente: o aspecto era diferente, um terreno arenoso onde cresciam fetos. Graham continuou a sua ascensão até avistar a luz por entre as árvores na orla da floresta. Por entre os troncos conseguia ver o andar superior

da casa dos Jacobi. De novo os arbustos, quase da sua altura, entre o bosque e a vedação da propriedade dos Jacobi. Graham abriu caminho por entre os arbustos e parou junto da vedação para olhar para o pátio.

O Dentuças devia ter estacionado no parque do conjunto

habitacional e atravessado o bosque, para então se deter junto aos arbustos da parte de trás da casa, atrair o gato e estrangulá-lo, antes de rastejar até à vedação com o pequeno corpo inanimado na mão. Graham imaginou a cena: o gato atirado pelo ar, caindo pesadamente no pátio, em vez de se voltar e cair sobre as patas, se estivesse vivo. O Dentuças fizera isso durante o dia, as crianças

nunca teriam conseguido encontrar o gato à noite. E esperara para os observar. Teria passado o dia todo no meio dos arbustos? Perto da vedação seria fácil avistá-lo. E para ver o pátio da zona dos arbustos seria necessário que se mantivesse de pé, ao sol, de frente para as janelas da casa. Só lhe restava portanto a solução de voltar ao bosque. Graham fez o mesmo.

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Os polícias de Birmingham estavam muito longe de ser

estúpidos. Haviam afastado os arbustos e investigado cuidadosamente toda a zona, mas isso

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fora antes de o gato ter sido encontrado. Procuravam indícios, rastos, objectos abandonados, tudo, menos um posto de observação. Will penetrou alguns metros na floresta e inspeccionou o terreno. Começou por subir à elevação de onde conseguia ter uma vista parcial do pátio e em seguida prosseguiu ao longo da linha das árvores. Procurava há mais de uma hora quando um ponto luminoso ao nível do solo lhe chamou a atenção. Tratava-se do anel metálico de uma lata de sumo de fruta meio-enterrada sob as folhas, ao pé de um dos raros olmos que cresciam no meio dos pinheiros. Encontrava-se a cerca de três metros quando o avistou, mas não se aproximou imediatamente, preferindo inspeccionar o terreno durante vários minutos. Agachou-se e afastou as folhas diante dele, caminhando lentamente sobre a planta dos pés para não destruir eventuais indícios. Sem se apressar, limpou a base do tronco das folhas que aí se amontoavam. Não se avistava nenhuma pegada sob a camada de folhas do Outono passado. Descobriu perto do anel metálico o resto de uma maçã roída pelas formigas. As aves tinham comido as sementes. Estudou o terreno durante mais dez minutos. Por último, sentou-se no solo, esticou as pernas e encostou-se à árvore.

Uma nuvem de mosquitos deslocava-se numa coluna de luz.

Uma lagarta rastejava pela face inferior de uma folha. Por cima dele, num grande ramo, havia vestígios de

lama avermelhada deixados por calçado. Graham pendurou o casaco num ramo e começou a trepar pelo outro lado do tronco, deitando de vez em quando uma vista de olhos aos ramos com vestígios de lama. Quando se encontrava a uma dezena de metros do solo, inclinou-se de lado e avistou a casa dos Jacobi a cerca de cento e setenta metros de distância. Vista daquele ângulo parecia ligeiramente diferente e a cor do telhado era predominante. Conseguia ver o pátio, bem como o

107 terreno situado do outro lado dos anexos. Com um

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bom binóculo seria possível distinguir o mais pequeno detalhe do rosto dos ocupantes da casa. Viaturas passavam ao longe. Um cão ladrou. Uma cigarra começou a cantar e cobriu rapidamente todos os outros ruídos.

Por cima dele um ramo de diâmetro considerável formava um

ângulo recto com a casa dos Jacobi. Trepou ao longo do tronco e ínclinou-se para melhor ver o ramo. Muito perto do rosto, um lata de sumo de fruta encontrava-se entalada entre o ramo e a casca. - Formidável - disse ele em voz baixa. - Sobretudo não te mexas daqui ... Qualquer criança poderia ter deixado ali a lata. Continuou a sua ascensão, embora os ramos fossem cada vez mais finos, e voltou a olhar para o ramo grosso, agora debaixo de si. Fora arrancado um fragmento da casca: numa superfície do tamanho de uma carta de jogar via-se o tegumento da árvore, mais verde. O rectângulo verde estava gravado até à madeira branca. Graham descobriu o seguinte desenho:

Fora cuidadosamente executado com o auxilio de uma faca

pontiaguda, que nada tinha a ver com o trabalho de uma criança. Graham fotografou a marca depois de se certificar de que regulara convenientemente a exposição. Daquele ramo tinha-se uma vista excelente, ainda

melhor depois que um pequeno ramo pendente do ramo superior fora cortado para permitir uma abertura. As fibras estavam esmagadas e a extremidade levemente achatada. Graham procurou o ramito. Se estivesse caído no solo já o teria encontrado. Não, estava lá, com as suas folhas amarelecidas, entalado na folhagem mais verde do ramo inferior.

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O laboratório teria necessidade dos dois lados da incisão para medir a inclinação dos bordos cortantes. Isto queria dizer que era preciso voltar com uma serra. Tirou várias fotografias do toco sem deixar de resmungar.

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Sei que trepaste para aqui e que esperaste depois de

teres morto o gato e o teres atirado para o pátio. Estou convencido de que vigiaste as crianças e que não passaste o tempo a talhar um ramo e a sonhar. Quando a noite caiu, víste-os passar diante das janelas iluminadas, viste os estores que desciam e as luzes que se apagavam uma atrás da outra. Desceste em seguida e foste ao encontro deles. Foi assim, não foi? Não deve ter sido muito difícil ter descido deste grande ramo tendo uma lanterna e estando luar. Para Graham não foi assim tão fácil como isso. Enfiou um raminho na abertura da lata de sumo de fruta e ergueu-a lentamente para a libertar antes de descer ao longo do tronco, com o ramito preso nos dentes quando precisava das duas mãos. Voltou ao parque e notou que haviam escrito sobre a poeira que cobria a viatura: «Levon é uma anedota.» A altura'da inscrição mostrava que os residentes mais jovens do conjunto habitacional eram já uns ases da alfabetização.

Perguntou a si próprio se também teriam escrito na

viatura do Dentuças. Graham passou alguns momentos a observar as janelas dos imóveis. Devia haver cerca de uma centena. Alguém podia lembrar-se de ter visto um branco no parque a altas horas da noite, mesmo já tendo passado mais de um mês. Para interrogar cada um dos moradores sem perder muito tempo seria preciso pedir a ajuda da polícia de Birmingham. Resistiu à tentação de enviar a lata directamente

para Jinuny Price. Precisava dos polícias de Birmingham e era portanto melhor confiar-lhes a descoberta. Limpar a lata não seria muito complicado, mas já seria completamente diferente quando se tratasse de encontrar impressões provocadas por um suor ácido. Talvez Price pudesse tomar conta disso depois de a polícia de Birmingham ter limpo a lata; o principal era não a tocar com as

109 mãos nuas. Sim, era melhor confiar o trabalho à polícia. Sabia que o FBI se agarraria freneticamente ao ramo gravado e que toda a gente

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teria uma fotografia. De casa dos Jacobi ligou para a Criminal de

Birmingham. Os inspectores chegaram exactamente ao mesmo tempo de estar com Geehan, o agente imobiliário, que acompanhava eventuais compradores.

110

CAP+TULO 11

Quando Dolarhyde entrou na cafetaria, Eileen estava a ler um artigo do National Tattler intitulado «O pão envenenado!». Comera só o recheio da sua sandes de salada de atum. Por detrás dos seus óculos de lentes vermelhas, os olhos de Dolarhyde percorreram rapidamente a primeira página do Tattler. Entre os grandes títulos encontrava-se, para além de «O pão envenenado!», «Elvis no seu ninho de amor: fotografias exclusivas!», «Medicamento miraculoso para as vítimas de cancro» e, sobretudo, ocupando toda a página, «Pedida ajuda a Hannibal, o Canibal: o monstro colabora com a polícia no caso dos assassínios do Dentuças». De pé diante da janela, fazia rodar lentamente o seu copo de café, esperando que Eileen se levantasse. Ela colocou o seu tabuleiro no carrinho e preparava-se para deitar fora o Tattler quando Dolarhyde lhe tocou no ombro. Eileen, posso ficar com o jornal? - Com certeza. Só o comprei por causa do horóscopo. Dolarhyde leu-o no seu gabinete, depois de se ter fechado à chave. Freddy Lounds publicara dois artigos na página central dupla. O artigo principal era uma reconstituição impiedosa do massacre' das famílias Leeds e Jacobi. A polícia não divulgara os detalhes dos casos e Lounds recorrera-se em grande parte da sua imaginação para rechear o seu artigo de notas macabras.

111 Dolarhyde achou-os essencialmente banais. O artigo

de fundo era mais interessante.

UM LOUCO CRIMINOSO CONSULTADO PELO POLíCIA

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A QUEM TENTARA ASSASSINAR

por Freddy Lounds

Chesapeake, Maryland. - Os inteligentes «cães de caça federais» patinam no caso do Dentuças - o assassino psicopata que massacrou famílias completas em Birmingham e Atlanta - e foram pedir a ajuda do assassino mais bestial que actualmente se encontra em cativeiro. O Dr. Hannibal Lecter, cujas práticas inomináveis lhes foram relatadas há três anos nestas mesmas colunas, foi consultado esta semana na sua cela de alta segurança pelo investigador~vedeta Will Graham. Graham esteve a ponto de perecer sob os golpes de Lecter na altura em que conseguiu desmascarar este último autor de uma série de assassínios aterradores.

Foi retirado da sua reforma antecipada para relançar a

caça ao Dentuças. O que se terá passado no decorrer deste espantoso

encontro entre dois inimigos mortais? O que é que Graham procurava, afinal de contas?

«Quem se assemelha, junta-se», confiou-nos um elemento

importante da administração federal. Fazia referência a Lecter, mais conhecido sob o nome de Hannibal, o Canibal, que era ao mesmo tempo psiquiatra e responsável por assassínios colectivos. * se ele se referia a Graham? * Tattler soube que Graham, antigo professor de Medicina Legal na Academia do FBI em Quântico (Virgínia), esteve em tempos internado durante quatro semanas numa instituição para doentes mentais ... Os responsáveis recusaram-se a dizer por que é que colocaram na primeira linha de uma caça ao homem tão importante um indivíduo que sofre de instabilidade mental.

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A natureza exacta do problema psicológico de Graham não

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nos foi revelada, mas um antigo enfermeiro em psiquiatria classificou-a como «depressão profunda». Garmon Evans, antigo auxiliar do Hospital Naval de Bethesda, explicou-nos que Graham fora admitido na secção criminal psiquiátrica pouco depois de ter morto Garrett Ja~ cob Hobbs, o Monstro de Minnesotta. Graham abatera Hobbs em 1975, pondo assim termo ao reino daquele que durante oito meses mergulhara Minneapolis num ambiente de terror. Ainda segundo Evans, durante a primeira semana de

internamento Graham ficara prostrado, recusando qualquer alimento. Graham nunca foi agente do FBi Os observadores mais atentos explicam esta particularidade pelo facto de que o Bureau impSe critérios de admissão muito severos para evitar qualquer forma de instabilidade psíquica. As fontes federais indicam apenas que Graham começou por trabalhar no laboratório central e que lhe confiaram um posto de ensino na Academia do FBI, após ele ter dado provas de capacidades excepcionais, tanto no laboratório como no terreno, onde desempenhara um lugar de «investigador especial». O Tattler soube igualmente que, antes de ser admitido na administração federal, Graham trabalhara na Criminal em New Orleans, posto que ele deixou apenas para seguir cursos especiais de Medicina Legal na Universidade George Washington.

Um dos oficiais de polícia de New Orleans que trabalhou

com Graham fez-nos o seguinte comentário: «Pode dizer-se que está na reforma, mas os federais sabem onde é que o podem encontrar. Um pouco como se se tivesse um mangusto na cave. Não se vê, mas sabemos que está lá para apanhar as serpentes.»

O Dr. Lecter está internado para o resto dos seus dias.

Se chegar a ser considerado são de espírito, será julgado por ter cometido nove assassínios com premeditação.

113 O advogado de Lecter informou-nos que o seu cliente passa o tempo a redigir artigos muito

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interessantes para as revistas científicas e que mantém um «diálogo permanente» por escrito com alguns dos maiores especialistas de psiquiatria. Dolarhyde interrompeu a leitura para olhar para as fotografias. Havia duas por cima do artigo. A primeira mostrava Lecter espalmado contra uma viatura da polícia; a segunda era a que Freddy Lourids tirara a Will Graham diante do Hospital de Chesapeake. Cada um dos artigos de Lounds era ilustrado com um pequeno retrato do jornalista. Dolarhyde olhou longamente para as fotografias. Acariciou-as durante muito tempo com a ponta do indicador e sentiu prazer naquele contacto um pouco áspero. A tinta deixou-lhe uma mancha na ponta do dedo. Humedeceu-o com a lingua e enxugou-o a um lenço de papel. A seguir cortou o artigo e guardou-o no bolso. No caminho de regresso a casa, Dolarhyde comprou papel higiénico idêntico ao usado em campismo e nos barcos, bem como um inalador. Sentia-se em forma, apesar da sua asma dos fenos. Como a maior parte das pessoas que sofreram uma rinoplastia extensiva, Dolarhyde não tinha pêlos no nariz e a asma dos fenos atacava-o continuamente. Acontecia-lhe o mesmo no que dizia respeito às infecções das vias respiratórias superiores.

Quando um camião avariado bloqueou a circulação na ponte

que atravessava o Missouri na direcção de Saint Charles durante dez minutos, esperou pacientemente. A sua carrinha negra, com o interior forrado a carpeta, era um lugar agradável. A aparelhagem estereofónica difundia a Música Aquática, de Haendel. Os dedos tamborilavam no volante ao som da música e

por vezes dava pancadinhas no nariz. Num descapotável imobilizado na fila vizinha estavam duas mulheres de shorts e blusas amarradas com um nó sobre o estômago. Dolarhyde tinha uma vista superior sobre o descapotável.

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Pareciam cansadas de pestanejar por causa do brilho do sol que se punha no horizonte. A passageira

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tinha a cabeça deitada para trás e os pés apoiados no painel de bordo. Esta posição provocava-lhe duas pregas no estômago. Dolarhyde reparou num sinal no interior da coxa. Ela surpreendeu-o a olhar e sentou-se normalmente antes de cruzar as pernas. O rosto reflectia um certo desagrado. Disse qualquer coisa à condutora e ambas olharam

a direito diante delas. Sabia que falavam dele, mas sentia-se tão feliz que nem sequer se importou. Aliás, cada vez lhe acontecia menos encolerizar-se. Sabia que ia forjando uma dignidade impecável sob todos os aspectos. A música era das mais agradáveis. As viaturas que o precediam conseguiram arrancar. A fila vizinha continuava paralisada. Tamborilou no volante ao som do ritmo e baixou o vidro com a outra mão. Tossiu lançando em seguida um escarro esverdeado na direcção da passageira, atingindo-a ao lado do umbigo. Arrancou e as imprecações da mulher foram rapidamente cobertas por Haendel.

O enorme arquivo de Dolarhyde tinha pelo menos um século. Forrado a couro negro e com cantos em cobre, era tão pesado que foi preciso uma mesa de dactilógrafa para o suportar dentro do armário fechado à chave ao cimo das escadas, onde se encontrava arrumado. Dolarhyde soube que seria dele desde o primeiro momento em que o viu num leilão organizado por causa da falência de uma velha tipografia de Saint Louis. Tomara banho e voltara a vestir o quimono; agora podia abrir a porta do armário e tirar a mesa de rodas. Logo que o livro se encontrou no seu lugar, sob a reprodução de O Grande Dragão Vermelho, instalou-se numa cadeira e abriu-o. O cheiro do papel com mofo subiu-lhe às narinas.

Na primeira página viam-se a toda a largura, em grandes

letras iluminadas por ele, as palavras do Apocalipse: «E depois um outro prodígio apareceu no céu - era um grande dragão vermelho [ ... ]»

115 A primeira peça deste dossier era igualmente a única que não se encontrava impecavelmente

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apresentada. Entre as páginas encontrava-se uma fotografia amarelecida, representando uma criança de pouca idade ao lado da sua avó, nos degraus da grande moradia. Agarrava-se à saia da avó. Esta mantinha-se rígida, de braços cruzados. Dolarhyde apressou-se a voltar a página, como se a fotografia tivesse sido esquecida por engano naquele sítio.

Havia vários recortes de jornais: os mais antigos diziam

respeito ao desaparecimento de mulheres de idade madura em Saint Louis e Toledo. As páginas encontravam-se preenchidas com a escrita de Dolarhyde, em tinta preta, e que não era muito diferente da própria escritura de William Blake. Colados na margem, fragmentos de couro cabeludo pareciam-se com cometas alinhados no livro de apontamentos do Criador. Havia os recortes dos jornais referentes aos Jacobi, bem como as bobinas de filme e os diapositivos, metidos em pequenas bolsas coladas nas páginas. Os artigos relativos à família Leeds também estavam acompanhados de um filme. A expressão «Dentuças» só aparecera nos jornais depois de Atlanta. Este nome fora riscado de todos os comentários feitos sobre os Leeds. E presentemente Dolarhyde agia da mesma maneira com o artigo do Tattler, riscando cada menção de «Dentuças» com grandes traços enraivecidos de marcador vermelho. A página seguinte estava virgem e cortou cuidadosamente o artigo do Tatller para o colocar na página. Devia conservar a fotografia de Graham? As palavras «Criminosos inimputáveis» gravadas na pedra por cima de Graham irritavam Dolarhyde. Tinha horror de tudo o que simbolizava uma doença qualquer. O rosto de Graham estava fechado, indecifrável. Pô-lo de lado para mais tarde. Mas Lecter ... Lecter. A fotografia do doutor não estava muito boa. Dolarhyde possuía uma melhor que tirou de uma caixa arrumada no armário. Fora publicada na altura da detenção de Lecter

116

e distinguiam-se perfeitamente os seus olhos

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estranhos. Apesar de tudo, também não o satisfazia plenamente. Na mente de Dolarhyde, Lecter só se podia parecer com um daqueles inquietantes retratos dos príncipes da Renascença. Porque Lecter era possivelmente o único homem no mundo a possuir a sensibilidade e a experiência susceptíveis de lhe permitirem compreender plenamente a glória e a majestade do destino de Dolarhyde. Dolarhyde sentia que Lecter conhecia a irrealidade dos que morrem para ajudar a cumprir um determinado destino, atendendo a que não são seres de carne, mas de ar e de luz, de cores e de sons muito breves, que se desvanecessem no próprio instante da sua transmutação. Como balSes de cor que rebentam. E em que a mudança lhes confere uma importância muito superior às vidas miseráveis a que se agarram. Dolarhyde reunia os seus gritos como um escultor reúne a poeira que se liberta da pedra trabalhada. Lecter era capaz de compreender que o sangue e o alento não passavam de elementos cuja transformação era necessária para o seu brilho. Do mesmo modo como a combustão é a fonte da luz.

Gostaria de se encontrar com Lecter, discutir e trocar

ideias, alegrar-se com ele pela sua visão comum, ser reconhecido por ele do mesmo modo como João, conhecido pelo Baptista, reconheceu Aquele que viria depois dele, apoiar-se nele como o Dragão sobre 666 nas aguarelas de William Blake consagradas ao Apocalipse, filmar finalmente a sua morte quando, no instante da morte, ele se fundiria com a força do Dragão. Dolarhyde calçou um par de luvas de borracha novas e dirigiu-se para o seu gabinete. Desenrolou e rasgou a camada exterior do papel higiénico que comprara e em seguida destacou uma tira de sete folhas. Com a mão esquerda, e cuidadosamente, escreveu uma carta a Lecter. A fala nunca dá uma informação completa sobre as

capacidades de escrita de um indivíduo; a de Dolarhyde era entrecortada, pontuada de dificuldades tanto reais como imaginárias, e o contraste com a sua escrita era impressionante. Apesar de tudo, deu

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conta de que lhe era impossível exprimir tudo o que lhe ia no coração. Precisava de ter notícias de Lecter. Precisava de uma resposta pessoal antes de poder dizer a Lecter aquilo que era realmente importante.

Como é que poderia conseguir isso? Procurou na caixa os

recortes de jornais que se referiam a Lecter e leu-os todos. Foi então que descobriu um método simples e pôs-se ao

trabalho. Mesmo assim a sua carta pareceu-lhe muito hesitante quando a releu, demasiado tímida. Assinara como um «Admirador Fervoroso». «Um fervoroso.» É isso mesmo. Ergueu a cabeça com

um gesto imperioso. Introduziu o polegar na boca, tirou a dentadura e

colocou-a no mata-borrão. A parte superior era pouco comum. Os dentes eram normais, brancos e bem implantados, mas a parte em acrílico cor-de-rosa tinha uma forma tortuosa que lhe permitia adaptar-se às intumescências e às deformações das suas gengivas. Além disso possuía uma prótese em plástico mole com um obturador que se destinava a fechar o palato mole quando falava. Tirou da gaveta uma caixa pequena que continha uma outra dentadura. A parte superior era idêntica, com excepção da prótese que lhe faltava; entre os dentes, irregulares, havia manchas escuras e o conjunto libertava um cheiro levemente desagradável. Esta dentadura era idêntica à da sua avó, que se

encontrava no copo pousado na mesinha de cabeceira. Dolarhyde aspirou o odor e em seguida abriu a boca, colocou a dentadura e humedeceu-a com a ponta da língua.

Dobrou a carta pelo sítio da assinatura e mordeu o papel

com toda a força. Quando voltou a desdobrar a carta, a assinatura apareceu dentro de uma marca oval. Era a sua marca, o seu carimbo, um sinete constelado de sangue seco.

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CAPÍTULO 12

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Eram cinco horas quando o advogado Byron Metealf tirou a gravata, serviu-se de um copo e colocou os pés em cima da secretária. - De certeza que não quer um?

- Fica para outra vez. - Graham desapertou os punhos da

camisa. O ar condicionado não era suficiente. - Não conhecia lá muito bem os Jacobi - disse Metcalf. Só moravam nesta cidade há três meses. Fui uma vez ou duas beber um copo a casa deles, juntamente com a minha mulher. O Ed Jacobi contactara-me para lhe redigir um novo testamento, foi assim que os conheci. - E é o seu executor testamentário? - Sou. A mulher estava designada em primeiro lugar; escolheu-me a seguir prevendo o caso de que ela também falecesse ou que estivesse doente. Tem um irmão em Filadélfia, mas acho que não se entendiam lá muito bem. - O senhor foi procurador-adjunto no tribunal do distrito. - Fui, de 1968 a 1972. Tentei conseguir a eleição

para procurador em 1972 mas as coisas não correram bem. Presentemente já não penso nisso.

- Na sua opinião, Sr. Metcalf, o que é que se passou ao

certo? - De início pensei em Joseph Yablonski. Está a ver, o líder sindicalista.

119 Graham acenou com a cabeça. - Um assassínio com um móbil - neste caso o poder -, tudo disfarçado como se se tratasse de um crime sádico. Passámos a pente fino os papéis de Ed Jacobi. Quando digo «nós» refiro-me a Jerry Estridge, do gabinete do procurador, e a mim mesmo. » Nada. A morte de Ed Jacobi não teria servido de proveito a ninguém. Evidentemente que ganhava bem e registara licenças que lhe davam lucros, mas tudo o que entrava na casa saía imediatamente. A mulher herdava tudo com excepção de uma propriedade na Califórnia, que seria para os filhos e para os seus descendentes. Existe também uma pequena quantia de parte destinada ao outro filho. Deveria

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ser suficiente para lhe pagar três anos de estudos na universidade, o mais certo três anos a repetir. - Niles Jacobi. - Esse mesmo. Esse rapaz causava montes de preocupações a Ed Jacobi. Vivia com a mãe na Califórnia. Foi enviado para Chino por roubo. Estou convencido de que a mãe dele não presta para nada. Ed foi ver o miúdo no ano passado. Trouxe-o para Birmingham e inscreveu-o no Bardwell Coramunity College. Tentou tê-lo em casa, mas fazia a vida impossível a todos os outros elementos da família. A Sr a Jacobi aguentou-o algum tempo, mas depois puseram-no num lar para estudantes. - Onde é que ele se encontrava? - Na noite de 28? - Metcalf tinha as pálpebras semicerradas para olhar para Graham. - A polícia pôs a questão e eu também o fiz. Foi ao cinema, depois voltou para a escola. Foi confirmado. Além disso ele é do grupo O. Sr. Graham, tenho de ir buscar a minha mulher dentro de meia hora. Se quiser podemos encontrar-nos amanhã. Diga-me se precisar de alguma coisa. - Gostaria de ver os artigos pessoais dos Jacobi. Diários pessoais, fotografias, etc. - Não existe grande coisa. Perderam praticamente tudo no incêndio da casa deles em Detroit. Não houve nada de suspeito no que aconteceu, Ed estava a soldar na cave, caíram faíscas numas latas de tinta e a casa incendiou-se. » Há algumas cartas particulares. Estão no cofre com os valo-

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res. Não me lembro de ter visto qualquer diário particular. O resto está tudo no armazém. É possível que Niles tenha algumas fotografias, embora isso me admirasse. Ouça, tenho de estar no tribunal às nove e meia, mas podia encontrar-me consigo um bocado mais tarde para lhe mostrar o cofre. - Perfeito - disse Graham. - Oh, só mais uma coisa: gostaria de ter as cópias de tudo o que se refere à sucessão, correspondência, contestações, etc. - O gabinete do juiz de Atlanta já me pediu o mesmo, estão a fazer comparações com a sucessão dos Leeds - disse Metcalf.

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- De acordo, mas também queria cópias para mim. Bom, e vai tê-las. Não acredita que seja uma história de dinheiro, pois não? - Não. Mas tenho sempre a esperança de ver um nome

que seja comum nos dois casos. - Você não é o único.

Os estudantes do Bardwell Coramunity College encontravam-se alojados em quatro pequenos dormitórios dispostos em volta de um rectângulo de terra batida. Quando Graham chegou ao local, estava no seu auge uma guerra de altifalantes. Os altifalantes, instalados nas varandas de estilo motel, enfrentavam-se a grandes golpes dos Kiss de um lado e da Abertura 1812 do outro. Um saco de plástico cheio de água desenhou uma curva no céu antes de vir rebentar a três metros de Graham. Afastou a roupa que estava a secar e passou por cima de uma bicicleta para entrar na sala do apartamento que Niles partilhava com outros estudantes. A porta do quarto de Niles estava entreaberta e deixava escapar uma torrente de música. Graham bateu à porta. Não houve resposta. Abriu a porta para trás. Sentado num dos leitos gêmeos, um tipo com o rosto cheio de acne fumava um gigantesco cachimbo de ópio. Uma rapariga que envergava uma bata encontrava-se deitada na outra cama.

121

O rapaz voltou a cabeça para poder ver melhor Graham.

Via-se nitidamente que sentia dificuldade em reflectir. - Procuro Niles Jacobi. O outro pareceu surpreendido. Graham baixou o volume da música. - Procuro Niles Jacobi. - É apenas um remédio para a asma. Não tem o hábito de bater à porta antes de entrar? - Onde é que está Niles Jacobi? - E eu o que é que sei? Além disso, o que é que lhe quer? Graham exibiu o distintivo.

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- Vá, faça um esforço. - Oh, merda - disse a rapariga. - Os estupefacientes, não pode ser ... Ouça, não é aquilo que julga, eu vou explicar-lhe. - Diga-me onde é que se encontra Niles Jacobi. - Acho que consigo encontrá-lo - disse a rapariga. Graham esperou que ela se informasse nos outros quartos. Um concerto de descargas de autoclismo assinalou a sua passagem. No quarto havia poucos vestígios de Niles Jacobi:

num toucador, uma fotografia da família Jacobi, era tudo o que existia. Graham ergueu um copo cheio de gelo que se derretia lentamente e enxugou com a manga a marca de humidade. A rapariga regressou. - Tente o Hatefúl Snake - disse ela.

O bar do Hateful Snake encontrava-se instalado num armazém de janelas pintadas de verde-escuro. Os veículos que se encontravam estacionados em frente eram dos mais heteróclitos: cabinas de camiSes sem os atrelados, viaturas clássicas, um descapotável lilás, um Chevrolet e um Dodge cujas carroçarias se encontravam assentes sobre pneus traseiros sobredimensionados para se parecerem com dragsters, quatro Harley-Davidson em bom estado. O ar condicionado instalado sobre a porta pingava para o passeio.

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Graham evitou as gotas que caíam e entrou no bar. O local estava apinhado e tresandava a desinfectante e a perfume barato. A empregada, uma espécie de matrona em fato-macaco azul, estendeu uma coca a Graham por cima da cabeça dos clientes. Era a única mulher que se encontrava no estabelecimento. Muito moreno e extremamente magro, Niles Jacobi encontrava-se perto da juke-box. Meteu uma moeda no aparelho mas deixou ao seu companheiro o cuidado de carregar nas teclas para escolher a música.

O aspecto de Jacobi era o de um estudante libertino, o

que já não era o caso daquele que escolhera os

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discos. O companheiro de Jacobi tinha uma cara de miúdo num corpo musculoso. Trazia uma t-shirt e uns jeans coçados até à trama sobre as bossas dos bolsos. Os braços eram nodosos e as mãos enormes eram bastante feias. No antebraço esquerdo via-se uma tatuagem visivelmente executada por um profissional: «Rei do cacete.» No outro braço, uma tatuagem, que fora certamente feita na prisão, mais grosseira: «Randy.» O cabelo rapado crescera a esmo. Na altura em que carregou numa das teclas dajuke-box, Graham avistou um pequeno rectângulo rapado no antebraço. Graham sentiu um aperto no estômago. Seguiu Niles Jacobi e Randy, que abriam caminho entre os clientes. Instalaram-se num reservado. Graham parou a menos de um metro da mesa. - Niles, chamo-me Will Graham. Queria falar consigo

uns minutos. Randy dirigiu-lhe um sorriso autoritário. Um dos

dentes da frente fora desvitalizado. - Conhecemo-nos? - Não. Niles, tenho de lhe falar. Niles ergueu as sobrancelhas com um olhar surpreendido. Graham interrogava-se sobre o que lhe poderia ter acontecido na penitenciária de Chino.

- Gostava de continuar a conversar em privado. Pira-te

disse Randy.

123 Graham olhou para os braços musculosos, o bocado de adesivo na parte de dentro do cotovelo, o rectângulo liso onde Randy ensaiara o fio da lâmina da sua faca. A panóplia completa do profissional. Randy faz-me medo. Ataca ou então afasta-te diplomaticamente. - És surdo ou quê? - disse Randy. - Estou a dizer para te pirares! Graham desabotoou o casaco e colocou a placa de identificação em cima da mesa. - Nem um gesto, Randy. Se tentas levantar-te ficas com um segundo umbigo.

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- Desculpe-me senhor. - A subserviência imediata do antigo presidiário. - Randy, vais fazer-me um favor. Vais meter dois dedos no bolso de trás das calças. Vais encontrar uma navalha de ponta e mola que deve ter uns bons doze centímetros. Coloca-a em cima da mesa. Aí ... tal e qual. Graham meteu a navalha no bolso. O cabo encontrava-

se gorduroso. - Bom, agora a tua carteira. Dá-mo. Vendeste sangue hoje, não vendeste? - Sim, e depois? - Vais mostrar-me o recibo que eles te deram, aquele que deverás apresentar da próxima vez. Coloca-o aí. Randy era do grupo O. Mais uma pista a pôr de parte. - Há quanto tempo é que saíste da prisão? - Três semanas. - Qual é o nome do oficial de polícia que se ocupa de ti? - Eu não saí de condicional. - Não estás à espera de que eu acredite, pois não?

- Graham tinha vontade de abanar Randy durante um bocado. Poderia prendê-lo por porte de arma proibida. E frequentar um bar constituía uma violação da liberdade condicional. Graham sabia que não suportava Randy por ter tido medo dele. Randy.

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Sim? - Desaparece.

- Não sei o que lhe possa contar. Conheciamal o meu pai disse Niles Jacobi quando Graham o acompanhou de volta à escola. - Abandonou a minha mãe quando eu tinha três anos e depois disso nunca mais o vi, a minha mãe opunha-se terminantemente. - Veio ver-te na Primavera passada. - Veio. - Em Chino. - Está muito bem informado. - Só quero clarificar as coisas. Como é que se passou a visita?

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- Bom, ele estava no parlatório, mantinha-se tenso, como se não quisesse olhar à sua volta, está a ver, há muitas pessoas que têm a impressão de visitarem o zoológico. A minha mãe falara-me muito dele, mas o aspecto não era tão terrível como isso. Com o seu casaco de desporto podia ser um tipo qualquer. - Que é que ele te disse? - Estava à espera de que me enfiasse a cara na merda que eu tinha feito, ou que me acusasse de todas as desgraças da Terra, normalmente é assim que as coisas se passam no parlatório. Mas limitou-se apenas a perguntar-me se pensava em voltar à escola. Disse-me que eu lhe seria confiado se voltasse à escola e que era preciso que eu fizesse um esforço. «É preciso que te controles um pouco, estás a ver? Faz um esforço e posso mandar-te para a escola.» Este gênero de coisas. - Isso foi quanto tempo antes da tua saída? - Duas semanas. - Ouve uma coisa, Niles, falaste da tua família a alguém enquanto estavas em Chino? A companheiros de cela, por exemplo. Niles Jacobi ergueu os olhos por instantes na - direcção de Graham. - Oh, estou a perceber. Não, não falei do meu pai,

se é isso que quer dizer. Há anos que não pensava nele e não vejo razão pela qual poderia ter falado.

125 - E aqui? Alguma vez levaste amigos a casa dos teus pais? Não são os meus pais. Ela não é minha mãe. - Já levaste alguém a casa deles? Colegas de escola, por exemplo, ou então ... - Indivíduos pouco recomendáveis, é isso que quer dizer, senhor oficial de polícia Graham? - Exacto. - Não. - Nunca? - Já lhe disse que não. - Alguma vez te fez qualquer ameaça? Notaste se tinha problemas particulares nestes dois últimos meses antes de isto ter acontecido? - Da última vez que o vi parecia preocupado, mas era por causa dos meus estudos. Acordava sempre

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tarde. Chegou a comprar-me dois despertadores. Fora isso, não estou ao corrente de nada.

- Tens qualquer coisa que lhe tenha pertencido? Cartas,

fotografias, por exemplo? - Não. - Tens uma fotografia da família toda, está sobre o toucador do teu quarto, ao lado do cachimbo de ópio. - O cachimbo não é meu. Nunca me serviria de uma porcaria daquelas. - Preciso dessa fotografia. Vou mandar tirar cópias

e depois devolvo-ta. Não tens mais nada?

Jacobi tirou um maço de cigarros e apalpou os bolsos à

procura de fósforos. - É tudo o que tenho. Aliás, gostava de saber por

que é que eles me deram a fotografia. O meu pai está a sorrir para a Sr a Jacobi e para os rebentos ... Pode ficar com ela. Nunca olhou para mim daquela maneira.

Graham precisava de conhecer os Jacobi. E as suas recentes ligações de Birmingham pouco adiantavam.

126

Byron Metealf deu-lhe acesso ao cofre. Leu as poucas cartas que aí se encontravam - a maioria era correspondência profissional - e deitou uma vista de olhos às jóias. Passou três dias completos no armazém onde se encontravam guardados os móveis dos Jacobi. Metealf vinha ajudá-lo à noite. As caixas empilhadas sobre as paletas foram todas abertas e o seu conteúdo examinado. As fotografias da polícia permitiram a Graham situar o lugar dos diferentes objectos dentro de casa. A maior parte dos móveis eram novos, tinham sido comprados com a indemnização paga pela companhia de seguros depois do incêndio de Detroit. Os Jacobi nem sequer tinham tido tempo de deixar nos móveis as suas marcas pessoais. Houve um móvel que atraiu em especial a atenção de Graham: tratava-se de uma mesinha de cabeceira

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sobre a qual ainda se viam uns restos de pó de impressões digitais. Um pouco de cera verde ficara colada no meio do tampo da mesinha.

Pela segunda vez Graham pensou se o assassino não teria

acendido uma vela. A equipa científica da polícia de Birmingham fizera

um trabalho excelente. A impressão esborratada da extremidade de um nariz

era tudo aquilo que em Birmingham e Jimmy Price em Washington tinham conseguido tirar da lata de sumo de fruta encontrada na árvore.

A secção de Ferramentas e Armas de Fogo do laboratório

central do FBI estudara o ramo cortado. As lâminas que haviam cortado a madeira eram espessas e pouco inclinadas: tratava-se de certeza de um alicate de corte para metal.

A secção de Documentos transmitira o desenho gravado na

casca ao Departamento de Estudos Asiáticos de Langley. Graham sentou-se numa caixa de embalagem e leu cuidadosamente o relatório. Os Estudos Asiáticos pensam que o desenho era um carácter chinês que significava «bateste» ou ainda «bateste na cabeça» - é uma expressão usada por vezes nos jogos a dinheiro. Este sinal possuía um significado «positivo» ou «benéfico». Os especialistas da secção indicavam ainda que o carácter aparecia igualmente numa das peças de mah-jong. Era a marca do Dragão Vermelho.

127 - CAPÍTULO 13

Washington, quartel general do FBI. Crawford falava ao telefone com Graham, que se encontrava no aeroporto de Birmingham, quando a sua secretária entrou no gabinete e lhe chamou a atenção. - O Dr. Chilton, do Hospital de Chesapeake, no 2706. Diz que é muito urgente. Crawford acenou com a cabeça. - WilI, não desligues. - Accionou as teclas do telefone. -

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- Frederick Chilton, Sr. Crawford, estou no ... - Diga, doutor. - Tenho aqui uma mensagem, ou antes, dois bocados de uma mensagem, que parece ter sido enviada pelo homem que matou as duas famílias, em Atlanta e ... - Onde é que a encontrou? Na cela de Hannibal Lecter. Está escrita em papel higiénico e tem marcas de dentes. - É capaz de a ler sem lhe tocar? Chilton fez um esforço para se acalmar e começou a ler:

Caro Dr. Lecter:

Gostava de lhe poder dar uma ideia de como me sinto feliz por ver que se interessa por mim. E logo que soube da existência dos seus numerosos correspondentes, disse para -Mim pró-

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prio: «Será que poderei atrever-me?» pois bem, atrevi-me. Tenho a certeza de que não lhes diria quem eu sou mesmo se o soubesse. Além disso, o corpo que ocupo presentemente não tem qualquer importância. O que é importante é a minha transformação. Sei que só o senhor me poderá compreender. Tenho comigo algumas coisas que gostava de lhe mostrar. Talvez um dia, se as circunstâncias o permitirem. Espero que possamos corresponder-nos ...

- Sr. Crawford, há um buraco porque o papel foi cortado

nesta zona. Continuo.

Há anos que o admiro e tenho a colecção completa dos

artigos que a imprensa lhe consagrou. Pela minha parte penso que são bastante injustos. Tão injustos como os que escreveram a meu respeito. Gostam muito de dar alcunhas humilhantes. « O Dentuças. » Seria possível encontrar-se expressão menos apropriada? Sentia-me envergonhado por saber que lia u ma coisa destas e não fazia ideia de que suportara os mesmos insultos da imprensa. O investigador Graham interessa-me imenso. Tem um ar especial para um chui, não concorda? Não é muito bonito, mas tem um ar decidido.

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Devia ter-lhe ensinado a meter-se nos seus assuntos. Perdoe-me pelo papel. Escolhi-o porque se dissolve rapidamente, isto para o caso de ter de o engolir.

- Senhor Crawford, falta uma passagem completa. Vou ler-lhe o final.

Se receber notícias suas, da próxima vez envio-lhe possivelmente qualquer coisa húmida. Entretanto, receba a consideração e respeito do seu

Admirador Fervoroso.

Seguiu-se um longo silêncio à leitura de Chilton.

129 Ainda aí está? Estou. Lecter sabe que o senhor tem essa mensagem? Ainda não. Transferimo-lo para um calabouço para fazermos a limpeza da sua cela. Em vez de utilizar um pano para limpar a sanita, o empregado tirou folhas de papel higiénico do distribuidor. A mensagem estava escondida entre as folhas. Trouxe-ma logo. Trazem-me sempre tudo o que encontram. - Neste momento onde é que Lecter está? - Continua no calabouço. - Do sítio onde está consegue ver a cela? - Deixe-me pensar ... Não, é impossível. - Bom. Não desligue, doutor. - Crawford deixou Chilton em espera. Durante vários segundos olhou fixamente para os pequenos indicadores luminosos do aparelho. Pescador de homens, via a sua bóia subir a corrente. Retomou o seu contacto com Graham. - WilI, há uma mensagem, provavelmente do Dentuças, escondida na cela de Lecter em Chesapeake. Parece mais uma carta de um admirador. Quer a aprovação de Lecter e está interessado em ti. Faz perguntas. - Como é que se supSe que Lecter lhe irá responder?

- Ainda não se sabe. Uma parte do texto foi arrancada,

outra rasurada. Somos capazes de ter a possibilidade de assistir a uma troca de correspondência, desde que Lecter não saiba que estamos ao corrente. Quero enviar a mensagem ao laboratório e quero revistar de alto a baixo a sua cela, mas acho que é um pouco arriscado. Se Lecter

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suspeita de qualquer coisa, não deixará de encontrar um meio de prevenir esse bandalho. É preciso que eles se correspondam, mas entretanto precisamos dessa mensagem. - Crawford explicou a Graham onde é que Lecter se encontrava de momento e como é que a mensagem fora descoberta. - Daqui até Chesapeake são duzentos quilómetros e não posso estar à tua espera. Que é que dizes? - Dez vítimas num mês ... não temos possibilidades

de estar com demoras. Estou de acordo em que é preciso ir para a frente. - Eu também estou completamente de acordo - disse Crawford.

130

- Encontramo-nos dentro de duas horas. Crawford chamou a sua secretária. - Sara, arranje-me um helicóptero. Telefone para a polícia municipal ou para os Marines, estou-me nas tintas, mas ande depressa. Dentro de cinco minutos estou na cobertura. Ligue para os Documentos, diga-lhes para prepararem uma maleta. Peça a Herbert para organizar uma equipa especializada em buscas. Na cobertura dentro de cinco minutos. Restabeleceu a comunicação com Chilton. - Dr. Chilton, vamos ter de fazer uma busca à cela

de Lecter sem que ele saiba. Precisamos da sua ajuda. Já contou isto a alguém? - Não. - Onde está o empregado que descobriu a mensagem? - Está no meu gabinete.

- Mantenha-o junto de si e diga-lhe para estar calado.

Lecter já saiu há muito tempo da cela? - Há cerca de meia hora. - É mais do que o normal? - Não, ainda dá. Mas como não é preciso mais do que meia hora para limpar a cela, dentro em breve vai interrogar-se sobre o que se passa. - Bom, vai fazer o seguinte: chame o vigilante, o engenheiro, enfim a pessoa responsável pelo edifício. Ele que corte a água e que abra os disjuntores no corredor de Lecter. Faça que ele passe diante do calabouço com ferramentas na mão.

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Deve mostrar-se muito apressado e tão preocupado que não seja capaz de responder a perguntas. Compreendido? Se ele quiser explicações, eu dou-lhas pessoalmente. Cancele hoje o despejar dos baldes de lixo, se a recolha ainda não tiver passado. E sobretudo não toque na mensagem.Vamos para aí. Em seguida Crawford ligou para o responsável da secção de Análises Científicas. - Brian, tenho uma mensagem e há fortes hipóteses de que venha do Dentuças. É uma prioridade absoluta. Tem de voltar para o lugar onde estava dentro da próxima hora, sem qualquer marca. Passará pelos Cabelos e Fibras, pelas Impressões e pelos Documentos, antes de ir parar às suas mãos. Deve estabelecer uma coordenação com os diferentes serviços. De acordo? Sim, eu levo-a de secção em secção.

Estava bastante calor no elevador - os vinte e seis graus impostos pela administração federal -, quando Crawfard desceu da cobertura com a mensagem, os cabelos despenteados pelas correntes de ar produzidas pelo helicóptero. Com o rosto inundado de suor, dirigiu-se para a secção de Cabelos e Fibras. É um serviço com instalações modestas, calmo e ao

mesmo tempo cheio de trabalho. A sala comum encontra-se apinhada de caixas cheias de provas enviadas pelos serviços de polícia de todo o país: adesivos que fecharam bocas ou amarraram pulsos, tecidos rasgados ou sujos, lençóis de leito mortuário.

Crawford avistou Beverly Katz através do vidro que dava

para uma pequena sala de exames, enquanto procurava abrir caminho entre as caixas que se encontravam por todo o lado. Ela tinha umas calças de criança penduradas por cima de uma mesa recoberta por uma folha de papel branco. + luz crua da sala, raspava as calças com uma espátula metálica, passando e repassando sobre as bandas de veludo, escovando o pêlo no sentido normal e no sentido inverso. Uma chuva de poeira e de areia caiu sobre o papel. Ao mesmo tempo, mais lentamente do que a areia e mais rapidamente do que a poeira, caiu igualmente um cabelo frisado. Inclinou a cabeça e contemplou-o

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com o seu olhar de lince. Crawford. conseguia ver os seus lábios a mexerem-

se. Sabia o que ela dizia: «Apanhei-te.» Dizia sempre a mesma coisa. Crawford bateu no vidro. Ela saiu da sala ao mesmo tempo que tirava as luvas. - Ainda não foi fotocopiado? - Não. - Bom, vou instalar-me na sala aqui ao lado.

132

Calçou um novo par de luvas enquanto Crawford abria a maleta. Os dois pedaços da mensagem tinham sido colocados entre

duas folhas de plástico. Beverly Katz viu a marca dos dentes e dirigiu um olhar rápido a Crawford.

Este acenou com a cabeça: estas marcas correspondiam ao

molde da dentadura do assassino, que levara com ele para Chesapeake. Através do vidro viu-a pegar na mensagem com uma

pinça flexível, segurando-a sobre uma folha de papel branco. Estudou-a com uma lupa de grande aumento e em seguida sacudiu-a delicadamente. Bateu na pinça com uma espátula e em seguida examinou o papel branco à lupa. Crawford olhou para o relógio. Katz prendeu a mensagem com uma outra pinça para a poder voltar e observar o outro lado. Pinças quase que da grossura de um cabelo permitiram-lhe retirar algo minúsculo. Fotografou os bordos rasgados em grande plano e em seguida voltou a colocá-la na maleta. Juntou-lhe um par de luvas brancas. As luvas brancas significam que existe uma interdição formal de tocar no objecto; devem acompanhá-lo enquanto as impressões não forem investigadas. - Aqui está - disse ela, entregando a maleta a Crawford. Encontrei um fragmento de pêlo ou de cabelo que não chega a medir um milímetro. Alguns grãos azuis. Vou começar já com o trabalho. Que é que me traz? Crawfard estendeu-lhe três envelopes sobre os quais se encontrava marcado: cabelos do pente de

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Lecter; pêlos de barba da sua máquina eléctrica; cabelos do empregado de limpeza. Até breve - disse Katz. - E parabéns pelo seu novo penteado.

No serviço de Impressões Ocultas, Jiminy Price fez uma

careta quando viu que se tratava de papel higiénico poroso. Debruçou-se sobre o ombro do técnico que regulava o laser de heliocádinio para tentar detectar uma impressão e torná-la fluo-

133 rescente. Pontos brilhantes apareceram no papel, manchas de suor e mais nada. Crawford quis fazer uma pergunta, depois hesitou e esperou sob a luz azulada. - Sabemos que houve três pessoas que a manipularam

sem luvas. É isso? - perguntou Price. - É verdade, o empregado, Lecter e Chilton.

- O fulano que limpa as sanitas provavelmente limpou as

mãos. Quanto aos outros ... que raio de papel! - Price colocou a mensagem diante da luz; na sua velha mão manchada a pinça não tremia. - Podia colori-lo Jack, mas não te garanto que haja tempo para fazer sair as manchas de iodo. - E a ni-hidrina? Também a podias aquecer. Em circunstâncias normais, Crawfórd não se teria atrevido a pôr questSes de ordem técnica, mas neste caso procurava desesperadamente um meio de conseguir resultados. Esperava que Price lhe respondesse com um ar resmungão, mas o velho disse-lhe com uma voz lúgubre: - Não, não era possível lavá-lo. Lamento, Jack, mas

não consigo descobrir-te impressões digitais, não há nenhuma. - Merda - disse Crawford. O outro voltou-se. Crawford colocou a mão sobre o

ombro ossudo de Price. - Não te preocupes, Jimmy, sei perfeitamente que,

se houvesse alguma, a tinhas encontrado. Price não respondeu. Já estava a desembalar os objectos referentes a um outro caso. Neve carbónica

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fumegava num cesto onde Crawford deitou as luvas brancas. Com o estômago apertado pela desilusão sofrida, Crawford apressou-se a dirigir-se ao serviço de Documentação, onde era esperado por Lloyd Bowinan. Tinham ido buscá-lo ao tribunal e esta brusca interrupção quebrara a sua concentração, o que fazia que pestanejasse como alguém que acaba de acordar.

- Antes de mais, quero felicitar-te pelo teu penteado.

Vejo que arrancaste em quarta velocidade - disse Bowman, que, com uma mão ágil, transferiu a mensagem para o seu plano de traba-

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lho. - Quanto tempo é que tenho? - Vinte minutos, no máximo. Os dois pedaços da mensagem pareciam irradiar sob as lâmpadas de Bowinan. O mata-borrão aparecia em verde-escuro por um longo rasgão da parte superior. - O que é importante, fundamental mesmo, é saber

como é que Lecter lhe ia responder - disse Crawford quando Bowinan acabou a sua leitura. - As instruções para uma resposta encontravam-se provavelmente na parte que falta. - Enquanto falava, Bowinan regulava cuidadosamente as lâmpadas, os filtros e uma pequena câmara de vídeo. - Aqui diz: «Espero que possamos corresponder-nos-» e o buraco começa a seguir. Lecter riscou o papel com um lápis de bico redondo e a seguir dobrou-o e rasgou a maior parte. - Não tem nada para cortar. Bowinan fotografou a marca dos dentes bem como o verso da mensagem sob üma luz extremamente oblíqua; quando fazia rodar a lâmpada em volta do papel, a sombra dançava de uma parede à outra e as mãos desenhavam no ar estranhos arabescos.

- Agora já é possível apertá-lo um bocado. - Bowinan

colocou o texto entre duas placas de vidro para alisar o bordo rasgado do buraco. As fibras estavam ligeiramente tingidas de tinta vermelha. Murmurava em voz baixa. Na terceira vez, Crawford conseguiu entender o que ele dizia: «Talvez sejas manhoso mas

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para manhoso, manhoso e meio.» Bowinan colocou filtros numa pequena câmara de vídeo e em seguida focou a mensagem. Diminuiu a luz da sala, deixando apenas a luminosidade baça de uma lâmpada e o azul-esverdeado do ecrã de controlo. As palavras «Espero que possamos corresponder-nos»

e o rasgão apareceram no ecrã em grande plano. A mancha de tinta desaparecera mas eram visíveis nos bordos fragmentos de escrita. - Os corantes azóicos das tintas de cor são transparentes aos infravermelhos - disse Bowinan. - Isto aqui podia ser a barra transversal de um T. Ali também e ainda ali. No principio podia ser a barra vertical de um M ou de um N, ou talvez de

135 um R. - Bowrnan pegou numa fotografia e voltou a acender a luz. - Jack, só há dois meios de comunicação, o telefone e os jornais. Lecter pode receber chamadas telefónicas? - Pode, mas a rotina é demasiado demorada e deve

passar obrigatoriamente pela central telefónica do Hospital. - Portanto, a única coisa que temos é o jornal.

- Sabemos que este queridinho lê o Tattler. Foi nesse

jornal que apareceu o artigo sobre Graham e Lecter. Tanto quanto sei, mais nenhum jornal falou no assunto. - Temos três T e um R em Tattler. Os anúncios classificados? Valia a pena verificar. Crawford ligou para a biblioteca do FBI e em seguida transmitiu as suas instruções para o escritório de Chicago. Quando terminou, Bowrnan entregou-lhe a maleta. - O Tattler sai esta noite - disse Crawford. - É impresso em Chicago à segunda e à quinta. Vamos arranjar as provas dos anúncios classificados. - Devia ter conseguido encontrar mais alguma coisa

- disse Bowman. Comunicas imediatamente para Chicago tudo o que conseguires. PSes-me ao corrente no meu regresso do Hospital disse Crawford já a caminho da porta.

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CAP+TULO 14

A cancela do metro de Washington cuspiu de volta o bilhete de Graham e este saiu do edifício para a tarde abrasadora, carregando a sua maleta de voo.

O Edifício J. Edgar Hoover parecia-se com uma imensa

gaiola erguendo-se acima da nuvem de calor da Décima Rua. O FBI mudara-se para este novo edifício depois de Graham ter deixado Washington. Nunca ali trabalhara. Crawford encontrou-se com ele no balcão das visitas situado na cave, para confirmar a validade das credenciais de Graham, emitidas à pressa. Este parecia cansado e mostrava-se impaciente enquanto assinava o registo. Crawford tentava imaginar como é que ele se sentiria, sabendo do interesse que o assassino demonstrava por ele. Graham recebeu um cartão magnético codificado, semelhante àquele que Crawfard trazia pendurado na lapela. Introduziu-o no leitor do portão e seguiu por um emaranhado de corredores pintados de branco. Crawfard transportava a sua maleta. - Esqueci-me de dizer a Sara para te mandar um

carro. Provavelmente assim foi mais depressa. Conseguiste

devolver a mensagem a Lecter sem problemas? - Consegui - disse. - Regressei há pouco.

Inundámos o chão do corredor. Procedeu-se como se tivesse rebentado um cano e houvesse um curto-circuito. Siramons estava connosco acaba de ser nomeado adjunto de segurança de Baltimore -,

137 tínhamo-lo a limpar o chão do corredor quando Lecter passou para a cela. Siminons pensa que ele não desconfia de nada. - No avião vinha a pensar se não terá sido Lecter

que escreveu a carta a ele próprio. - De início também pensei nisso antes de ver melhor

a mensagem. As marcas de dentes no papel condizem com as marcas de dentes encontradas nas vítimas. Além disso é escrita com esferográfica, uma coisa que

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não damos a Lecter. A pessoa que escreveu a carta leu o Tattler, e Lecter não recebe este jornal. Rankin e Willingliam viraram a cela do avesso. Fizeram um trabalho excelente, mesmo não tendo encontrado nada. Antes de começarem, tiraram fotografias com uma Polaroid, para no final deixarem tudo precisamente como estava antes. A seguir entrou o homem da limpeza, que fez o seu trabalho normal. - Se é assim, qual é a tua opinião? - Como prova material no sentido de uma identificação, a carta não nos serve para nada - disse Crawfard. - Podíamos talvez utilizá-la para estabelecermos nós o contacto, mas ainda não consegui ver muito bem como. Dentro de momentos teremos os resultados complementares do laboratório. - Conseguiste organizar as coisas de modo a ter o correio e o telefone no Hospital sob vigilância? - Somos informados sempre que Lecter se lembre de telefonar. No sábado de tarde fez um estupor de uma chamada numa linha directa. Disse a Chilton que ia telefonar ao advogado. - E o advogado, o que é que ele disse? - Nada. Separámos uma linha para ele na central telefónica e assim temos a escuta montada em permanência. A partir da próxima distribuição vamos verificar toda a correspondência. Felizmente não há qualquer problema ao nível das comissões rogatórias. Crawford parou diante de uma porta e introduziu na ranhura o seu cartão magnético.

- O meu novo escritório. Entra. O decorador utilizou o

resto da tinta que lhe sobrara de um barco de guerra que lhe fora confiado. Aqui está a mensagem. A fotocópia está à escala exacta.

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Graham leu-a duas vezes. A leitura do seu nome provocou-lhe um certo mal-estar.

- A biblioteca confirma que o Tattler é o único jornal

que publicou um artigo a teu respeito e de Lecter - disse Crawford enquanto preparava uma alka-seltzer. - Queres uma? Fazia-te bem. Foi publicado na

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segunda à noite. Estava nos escaparates em todo o país na terça - com excepção de alguns lugares como o Alaska e o Maine, por exemplo, que só o receberam na quarta. O Dentuças arranjou um - nunca antes de terça, de qualquer maneira. Leu-o antes de escrever a Lecter. Rankin e Willingliam ainda andam a vasculhar o lixo do Hospital à procura do envelope. Mas é um trabalho quase impossível. No Chesapeake não separam os papéis das ligaduras.

- Lecter não pode ter recebido a mensagem antes de

quarta-feira. Ele rasga a parte referente ao modo como há-de responder e risca a passagem referente a um acontecimento mais antigo. Aliás, gostava de saber por que é que também não a rasgou. - Estava no meio de um parágrafo cheio de elogios - disse Graham. - Não era capaz de o destruir! Foi por causa disso que não deitou a carta fora. - Esfregou as têmpôras.

- Bowinan está convencido de que Lecter vai publicar a

resposta no Tatteler. E tu, achas que lhe vai responder? - De certeza que sim. Gosta imenso de escrever e

tem correspondentes por toda a parte. - Se estão a utilizar o Tattler, Lecter não terá tempo de publicar a sua resposta no número desta noite, mesmo que a tenha enviado por correio expresso no dia em que recebeu a mensagem. Chester, do escritório de Chicago, está no Tatteler a verificar todos os anúncios. Estão neste momento a fazer a paginação. - Sobretudo é preciso que o Tattler não desconfie do que quer que seja - disse Graham.

- O mestre da tipografia pensa que Chester é um agente

imobiliário que tenta curto-circuitar os anúncios. Vende-lhe discretamente as provas logo que a página se encontra pronta. Para disfarçar pegamos em todos os anúncios classificados. Bom, admitamos que conseguimos descobrir a forma de resposta de Lec-

139 ter e que somos capazes de o imitar. Podemos enviar uma mensagem falsa ao Dentuças, mas o que é que lhe vamos dizer?

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- O essencial é fazê-lo comparecer num ponto de encontro, que pode ser um marco do correio - disse Graham. - É preciso atraí-lo com qualquer coisa que ele gostasse de ver. Um «elemento importante» de que Lecter teria tomado conhecimento depois de ter conversado comigo. Um erro que ele teria cometido e que esperávamos que o Dentuças viesse a repetir. - Era preciso ser idiota para cair numa coisa dessas. - Eu sei. Queres saber qual era o melhor isco? - Não faço ideia. - Simplesmente o próprio Lecter - disse Graham. - E como é que fazias isso? - Sei perfeitamente que não era fácil. Era preciso colocar Lecter sob controlo federal, e Chilton nunca aceitaria uma coisa dessas em Chesapeake, e fechá-lo na zona de alta segurança de um hospital psiquiátrico de Virgínia. E depois de estar lá, inventávamos uma evasão. Oh, valha-me Deus. - Enviávamos uma mensagem ao Dentuças no número seguinte do Tatteler. Lecter podia marcar-lhe um encontro. - Só gostava de saber se haverá alguém com vontade de se encontrar com Lecter. Mesmo o Dentuças! - Para o assassinar, Jack. - Graham ergueu-se. Não havia janelas no gabinete e deteve-se diante do aviso dos dez criminosos mais procurados, a única decoração da dependência. - Deste modo o Dentuças poderá absorvê-lo, torná-lo seu, vir a ser mais do que ele. - Estás muito seguro do que estás a dizer. - Não estou seguro de coisa nenhuma. Aliás, quem é

que poderia estar? Escreveu na sua mensagem «Tenho comigo algumas coisas que gostava de lhe mostrar». É possível que isto seja suficientemente sério e que não se trate de uma simples fórmula de delicadeza. - Não consigo imaginar o que ele possa ter para mostrar? As vítimas estavam intactas. Não faltava nada a não ser um pouco de

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pele e de cabelos que foram certamente ... como é

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que Bloorn disse? - Ingeridos - disse Graham. --- Só Deus sabe o que

ele pode ter para mostrar. Olha, Tremont, por exemplo, lembras-te da história dos disfarces de Tremont em Spokane? Mesmo amarrado a uma maca erguia o queixo para mostrar aos chuis de Spokane onde os tinha escondido. Não, Jack, não tenho a certeza de que Lecter consiga atrair o Dentuças. Estou só a dizer que é a nossa melhor hipótese.

- Vai ser um escândalo de todo o tamanho se as pessoas

suspeitarem que Lecter anda à solta. Os jornais vão ficar histéricos. Talvez seja a nossa melhor hipótese, mas vamos guardá-la para o fim. - É possível que não se aproxime do ponto combinado, mas de certeza que vai querer ver para ter a certeza de que Lecter não o traiu. Seria necessário observá-lo de bastante longe. Podíamos arranjar um sítio donde fosse possível ver a uma grande distância e de um número limitado de pontos, de modo a ser possível armadilhá-los. - Graham não se sentia convencido com esta proposta. - Os Serviços Secretos têm um espaço para anúncios

que nunca utilizam e que nos podiam ceder. Mas vai ser preciso esperar até à próxima segunda-feira se não publicarmos o anúncio já hoje. As rotativas arrancam às cinco horas, hora de Washington. Chicago fica portanto ainda com uma hora e um quarto para encontrar o anúncio de Lecter. Se houver um, evidentemente. - E a reserva de Lecter, a nota de encomenda que teria enviado ao Tatteler a encomendar o anúncio, não será possível consegui-lo mais rapidamente? - Chicago só pode ocupar-se do mestre da tipografia disse Crawford. - O correio fica no gabinete do gerente dos anúncios classificados. Vendem em seguida os nomes e endereços às firmas que efectuam vendas por correspondência e que enviam às pessoas solitárias prospectos oferecendo elixires do amor, produtos para decuplicar a virilidade, métodos para ultrapassar a timidez, enfim, estás a ver o gênero.

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Podíamos evidentemente apelar para o sentido cívico do gerente dos anúncios e pedir-lhe para estar calado, mas não me apetece correr o risco de ver o Tatteler cair em cima de nós. Era preciso ter um mandato especial para poder ler o correio deles. É assunto para ser pensado. - Se Chicago não encontrar nada, podemos sempre pôr

o nosso anúncio - disse Graham. - Se me enganei em relação ao Tatteler apaga-se tudo e começa-se de novo. - Está certo, mas se o Tatteler lhes serve, de facto, de meio de comunicação e se nos espalharmos na resposta, isto é, se lhe parecer estranha, estamos feitos. A propósito, não te perguntei nada a respeito de Birmingham. Encontraste alguma coisa? - Ocaso de Birmingham está encerrado de uma vez por todas. A casa dos Jacobi foi pintada e redecorada e está à venda. Aquilo que lhes pertencia está guardado em armazém, à ordem do executor do testamento. Estive a inspeccionar os caixotes. A gente com quem falei não conhecia os Jacobi muito bem. A única coisa que me disseram foi que pareciam na realidade muito ligados um ao outro. Andavam sempre de mão dada. E presentemente tudo o que resta são cinco caixotes num armazém. Lamento não ter podido ... - Deixa de te lamentares, agora estás metido nisto. - E a marca na árvore deu alguma coisa?

- «Bateste na cabeça», é,isso? Se queres que te diga,

para mim não tem qualquer significado, nem mesmo o Dragão Vermelho. everly sabe jogar mah-jong. É manhosa, mas não sabe o que isso quer dizer. De qualquer modo, os cabelos provam que não é chinês. - Cortou o ramo com um alicate de metal. Não vejo onde é que ... O telefone de Crawford começou a tocar. Respondeu

com meias palavras.

- Will, o laboratório tem os resultados da mensagem.

Vamos subir para o gabinete de Zeller. É maior e menos sinistro do que o meu. Indiferente ao calor ambiente, Lloyd Bowman apanhou-os no corredor. Trazia fotografias ainda húmidas e debaixo do braço um molho de folhas de

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datafax.

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- Jack, tenho de estar no tribunal às quatro e um quarto disse enquanto os ultrapassava. - É aquele caso de falsificação de Nilton Eskew e da sua amiguinha, Nan. Estou convencido de que ela era capaz de desenhar uma nota de banco em três tempos. Nestes dois últimos anos iam dando comigo em doido, fazendo os seus próprios traveller's cheques numa Xerox a cores. Achas que consigo chegar a tempo ou será melhor telefonar ao Ministério Público? - Vais conseguir - disse Crawford. - Já chegou toda

a gente. everly Katz, sentada num sofá no escritório de Zeller,

sorriu para Graham quando este entrou, preparando-se para lhe apresentar Price, que se encontrava ao lado dela. O chefe da secção de Análises Científicas, Brian Zeller, era jovem para o cargo, mas o cabelo já começava a rarear e usava lentes bifocais. Na estante que estava atrás da secretária de Zeller, Graham avistou o manual de ciência forense de H. J. Walls, a obra de Tedeschi Forensic Medicine, em três volumes, e uma edição antiga de The Wreck of the Deutschland, de Hopkins. - Tenho a impressão de que já nos encontrámos uma vez na universidade - disse ele. - Conhece toda a gente?... aptimo.

Crawford encostou-se ao canto da secretária de Zeller com

os braços cruzados. - Alguém tem novidades? Okay, encontraram alguma

coisa que possa indicar que a mensagem não veio do Dentuças? - Não - disse Bowman. - Falei com Chicago há poucos minutos para lhes dar uns números que encontrei escritos no verso da carta. Seis-seis-seis. Depois mostro-vos quando chegarmos a esse ponto. Chicago tem para analisar cerca de duzentos anúncios pessoais. - Estendeu a Graham um monte de folhas de cópias datafax. - Já as li e é a mesma história de sempre: ofertas de casamento, apelos para desaparecidos. Ainda não consegui saber como é que seremos capazes de reconhecer o anúncio se o virmos.

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Crawford abanou a cabeça. - Também não sei. É melhor começarmos por analisar

o papel. Um outro aspecto que temos de considerar é o de que Jimmy

143 Price fez tudo aquilo que era possível e não conseguiu descobrir nenhuma impressão. E tu, Bev, conseguiste alguma coisa? - Tenho uma hipótese muito vaga. O peso e a textura coincidem com as amostras de Hannibal Lecter. O mesmo se passa com a cor. Esta cor é nitidamente diferente da cor das amostras obtidas em Birmingham e Atlanta. Três grãos azuis e algumas partículas escuras foram encontradas pela equipa de Brian. Encarou Brian Zeller ao mesmo tempo que erguia as

sobrancelhas. - Os grãos eram de um detergente comercial

granulado disse ele. - Devem ter vindo das mãos do homem, quando ele limpou as mãos. Havia algumas partículas minúsculas de sangue seco. Não há dúvida de que é sangue, mas não há quantidade suficiente para determinar qual é o tipo. - As marcas dos bordos dos pedaços de papel dão ideia de perfurações - continuou Beverly Katz. - Se conseguirmos encontrar o rolo na posse de alguém e ainda não tiver sido rasgado mais nenhum bocado, será possível fazer um estudo comparativo. Recomendo que seja feito um aviso aos agentes para que estes não se esqueçam de tentar encontrar o rolo. Crawford acenou com a cabeça. - Bowman? Sharon, do meu gabinete, fez uma investigação sobre

o papel e encontrou amostras para poder comparar. É papel higiénico distribuído aos marinheiros e utilizado pelos campistas. A textura permite concluir que se trata de papel da marca Wedeker, fabricado em Minneapolis. É distribuído a nível nacional.

Bowrnan dispôs as suas fotografias num cavalete próximo

da janela. A sua voz era surpreendentemente profunda, atendendo à sua pequena estatura, e o

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laço que usava agitava-se levemente enquanto falava. - Considerando a caligrafia, verificou-se que se trata de uma pessoa que escreveu deliberadamente com a mão esquerda, em~ hora use normalmente a mão direita, e que escreveu propositadamente em letras maiúsculas. Pode ver-se facilmente pela incerteza do traço e pelo tamanho diferente das letras.

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»Os tamanhos diferentes levam-me a concluir que o nosso homem terá possivelmente uma certa dose de astigmatismo não corrigido. »A tinta de ambas as partes da carta parece vir do mesmo tipo de esferográfica, azul-marinho à luz natural, embora se note uma pequena diferença com filtros coloridos. Usou duas esferográficas e tudo indica que mudou de caneta enquanto escrevia a parte da carta que falta. Nota-se perfeitamente a altura em que a primeira começou a falhar. A primeira caneta não era usada frequentemente - estão a ver a mancha que fez quando ele começou a escrever? Deve ter sido guardada sem tampa e de bico para baixo num copo para lápis ou noutro recipiente qualquer, o que sugere uma situação de quem normalmente trabalha a uma secretária. Nota-se ainda que a superfície sobre a qual escreveu era suficientemente macia para nos ser permitido concluir que poderia ser um mata-borrão. Um mata-borrão que poderá ter impressões se for encontrado. Gostava que o assunto do mata-borrão fosse considerado no relatório a ser elaborado pela Beverly. Bowman mostrou uma fotografia que tinha mandado fazer do verso da carta. A ampliação exagerada fazia que o papel apresentasse um aspecto enevoado, com depressões e zonas sombreadas. - Ele dobrou a carta para escrever a parte final, incluindo aquela que mais tarde foi rasgada. Neste aumento do verso, a luz oblíqua revela algumas impressões. Podemos distinguir «666 e». É muito possível que tenha sido nesta altura que ele voltou a ter problemas com a esferográfica e precisou de escrever por cima. Só consegui notar isso com esta fotografia de elevado contraste. Pelo menos até agora não há nenhum «666» em nenhum dos anúncios.

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»A estrutura das frases é ordenada e não se nota qualquer vestígio de divagação. As dobras sugerem que a carta foi enviada num envelope de formato clássico. Estas duas manchas escuras são manchas de tinta de impressão. Possivelmente a carta foi enviada dentro de um impresso qualquer.

- É mais ou menos isso - disse Bowman. - Se não tiveres

mais perguntas, Jack, acho que é melhor ir andando para o tribunal. Volto logo que tenha prestado depoimento.

145 - Afunda-os bem - disse Crawford. Graham estudou a coluna de anúncios pessoais do Tattler: «Senhora atractiva com aparência de rainha, jovem com 52 anos, procura cristão do signo de Leão, não fumador, com idade compreendida entre os 40 e os 70. Sem filhos por favor. Amputados são bem-vindos. Assunto sério. Enviar fotografia com a primeira carta.» Perdido na dificuldade e no desespero dos anúncios, não se apercebeu de que os outros se tinham ido embora até Beverly Katz falar com ele.

- Desculpe, Beverly. O que é que disse? - Olhou para os

seus olhos brilhantes e rosto de aspecto extremamente agradável.

- Estava a dizer que me sinto contente por ter voltado,

Campeão. Está com bom aspecto. - Obrigado, everly.

- Saul anda numa escola de culinária. Ainda não está em

forma mas podia ir lá a casa um dia destes para lhe fazer um teste. - Irei, não me esqueço. Zeller dirigiu-se para o seu laboratório para ver como é que corriam as coisas. Crawford e Graham foram deixados sozinhos. De vez em quando olhavam para o relógio.

- Faltam quarenta minutos para as rotativas do Tattler

começarem a rolar - disse Crawford. - Vou verificar o correio deles. Que é que achas? - Força. Crawford ligou para Chicago pelo telefone de

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Zeller e deu o recado. - WilI, se Chicago acertar no alvo, temos de estar preparados com um anúncio substituto. - Vou prepará-lo. - Pela minha parte vou tratar de arranjar um ponto de encontro. - Crawfard ligou para os Serviços Secretos e falou durante algum tempo. Quando acabou, Graham ainda estava a escrever.

- Okay, o local de recolha de correio é ideal - disse

finalmente Crawford. - É no exterior de um serviço de extintores de incêndio nos arredores de Annapolis. É território que pertence a

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Lecter. O Dentuças vai concluir que se trata de qualquer coisa que Lecter sabe. As pessoas interessadas passam por lá para receber recados e correio. O nosso homem pode ficar a observar instalado num parque do outro lado da rua. O Serviço Secreto jura a pés juntos que o local é óptimo. Prepararam aquele local para apanhar um falsificador, mas depois chegou-se à conclusão de que já não era preciso. A direcção é esta. E a mensagem? - Temos de pôr duas mensagens na mesma edição. A primeira avisa o Dentuças de que os seus inimigos estão mais próximo do que o que ele possa pensar. Diz-lhe que cometeu um erro grave em Atlanta e que, se comete o mesmo erro, está feito. Diz-lhe que Lecter lhe mandou por correio «informações confidenciais» baseadas naquilo que eu lhe disse sobre o que estávamos a fazer, o modo como nos encontramos extremamente próximos, as pistas que temos. E encaminha o Dentuças para uma segunda mensagem que começa com «a sua assinatura». - A segunda mensagem começa com «Admirador Fervoroso ... » e contém a direcção do local de recebimento de correio. Temos de o fazer desta maneira. Mesmo considerando a linguagem perifrástica da primeira mensagem, vai ser o suficiente para excitar alguns lunáticos ocasionais. Não conseguindo descobrir a direcção não conseguem também encontrar a caixa postal e já não se corre o risco de que lixem as coisas.

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- óptimo. Estupendo. Queres esperar no meu escritório

enquanto as coisas se desenvolvem? - Prefiro fazer qualquer coisa. Preciso de falar

com Brian Zeller. - Então vai. Se precisar de ti, sei onde te posso encontrar. Graham encontrou o chefe de secção na Serologia. - Brian, podes fazer-me um favor? - Com certeza, o que é? - As amostras que usaste para identificar o grupo

sanguíneo do Dentuças. Zeller olhou para Graham por cima dos óculos. - Há qualquer coisa no relatório que não tenhas compreendido?

147 - Não. - Há qualquer coisa que esteja pouco clara? - Não. Qualquer coisa incompleta? - Zeller pronunciou a palavra como se tivesse um gosto detestável.

- O teu relatório estava óptimo, era impossível esperar

melhor. Trata-se apenas do facto de querer ter as provas nas minhas mãos.

Ah, com certeza, podemos fazer isso. - Zeller acreditava que todos os investimentos no terreno mantinham as superstições de um caçador primitivo. Sentia-se contente por poder fazer humor com Graham. - Está tudo resumido no final.

Graham seguiu-o ao longo dos armários cheios de aparelhos

e equipamento. - Estás a ler Tedeschi. - Estou - disse Zeller por cima do ombro. - Como

sabes, não fazemos aqui medicina forense, mas Tedeschi tem uma série de assuntos com muito interesse. Graham. Will Graham, foste tu que escreveste aquela monografia sobre a determinação da ocasião da morte provocada por insectos, não foste? Ou não se trata do mesmo Graham? - Fui eu que escrevi. - Uma pausa. - Tens razão, na opinião de Tedeschi, Mant e Zvorteva são melhores no caso de insectos.

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Zeller ficou surpreendido por ouvir o seu raciocínio ser pronunciado em voz alta. - Não há dúvida de que têm melhores fotografias e

uma tabela das vagas de invasão. Isto sem ofensa. - Com certeza que não. São melhores, eu próprio

lhes disse. Zeller tirou frascos e diapositivos de um armário e do

frigorífico, colocando tudo na bancada. - Se quiseres perguntar-me alguma coisa, estou no

lugar onde me encontraste. A luz da objectiva do microscópio fica deste lado. Graham não queria saber do microscópio. Não punha em dúvida as conclusSes de Zeller. Na realidade não sabia ao certo o que é que procurava. Ergueu os frascos e as lamelas à luz, bem

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como um envelope transparente que continha dois cabelos louros encontrados em Birmingham. Um segundo envelope continha três cabelos encontrados na Sr a Leeds. Na mesa em frente de Graham havia saliva, cabelos e sêmen. Mas havia também um vazio onde tentava descortinar uma imagem, um rosto, qualquer coisa que pudesse substituir o pesadelo informe que o atormentava. De um altifalante no tecto surgiu uma voz de mulher.

- Graham, Will Graham, ao gabinete do agente especial

Crawford. Alerta vermelho. Encontrou Sara de auscultadores colocados na cabeça enquanto ia escrevendo à máquina e Crawford que espreitava por cima do ombro dela para ler o que escrevia. - Chicago encontrou a encomenda de publicação de um anúncio que mencionava o 666 - disse-lhe Crawfard num murmúrio pelo canto da boca. - Estão agora a ditá-lo à Sara. Já disseram que parte dele se parece muito com um código qualquer. As linhas escritas iam surgindo na máquina de escrever de Sara.

Caro Peregrino, Sinto-me muito honrado ...

Page 137: Thomas Harris   Dragão Vermelho

- É ele, é ele - disse Graham. Lecter chamou-lhe peregrino quando esteve a falar comigo.

... você é muito belo

- Meu Deus, - disse Crawford. Ofereço 100 orações pela sua segurança. Encontrará consolo em João 6:22, 8:16, 9:1; Lucas 1:7, 3:1; Gálatas 6.11, 15:22; Actos 32; Revelação 18:7, Jonas 6:8...

A dactilografia diminuiu de velocidade enquanto Sara repetia cada par de números para o agente em Chicago. Quando ela terminou, a lista de referências das escrituras enchia um quarto de página. Estava assinado «Que sejas abençoado, 666».

149 - Acabou - disse Sara. Crawford pegou no telefone. - Okay, Chester, como é que as coisas se passaram

com o chefe da secção de anúncios?... Não, fizeste bem ... Uma completa ostra, certo. Não saias de perto do telefone, volto a telefonar-te. - Código - disse Graham. - Tinha de ser. Temos vinte e dois minutos para cozinhar uma mensagem se formos capazes de descodificar isto. O encarregado da tipografia precisa de dez minutos de pré-aviso e trezentos dólares para meter o anúncio à pressão nesta edição. Bowman tem um canto no seu gabinete onde podes trabalhar. Se quiseres posso falar para a Criptografia em Langley por causa da descodificação. Sara, manda um telex com o texto do anúncio para a secção de Criptografia da CIA. Vou avisá-los de que vai a caminho. Bowman colocou a mensagem na sua secretária, alinhando-a exactamente com os cantos do mata-borrão. Limpou lentamente os óculos sem armação, durante um tempo que a Graham pareceu uma eternidade. Bowman tinha reputação de ser rápido. - Temos vinte minutos - disse Graham. - Compreendo. Ligaste para Langley? - Foi Crawfard que ligou.

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Bowman leu a mensagem várias vezes, mirou-a de todas as

maneiras possíveis, até de lado e de pernas para o ar, e percorreu as margens com o dedo. Tirou uma Bíblia da estante. Durante cinco minutos os únicos sons que se ouviam eram a respiração dos dois homens e o restolhar das folhas de papel de seda. - Não - disse ele. - Não vamos conseguir acabar a tempo. É melhor usarmos o tempo que temos para qualquer coisa que possas fazer. Graham mostrou-lhe as mãos vazias. Bowman rodou na cadeira até ficar de frente para Graham e tirou os óculos. Tinha uma mancha cor-de-rosa de cada lado do nariz. - Tens a certeza absoluta de que a carta que Lecter recebeu foi a única comunicação que teve do Dentuças?

150

- Tenho. - Então o código parece ser bastante simples.

Precisam apenas de se proteger contra a curiosidade de leitores eventuais. Fazendo uma medição a partir das perfurações na carta que Lecter recebeu pode concluir-se que faltam cerca de três polegadas. Não dá muito espaço para instruções que se pretendesse enviar. Os números não correspondem à grelha do alfabeto penitenciário o código de batidas. Estou convencido de que se trata de um livro de código. Crawford juntou-se à conversa. - Livro de código? - Parece que sim. O primeiro numeral, estas «lOO

orações», podia ser o número da página. Os pares de números nas referências das escrituras podiam representar a linha e a letra. Mas o pior é descobrir qual é o livro. - Não é a Bíblia? - Não, não é a Bíblia. De início também pensei que fosse assim. Mas foi o «Gálatas 6:11 » que me convenceu do contrário: «Vede a extensa carta que vos escrevi com as minhas próprias mãos.» Poderíamos dizer que batia certo, mas trata-se apenas de uma coincidência, porque logo a seguir vem «Gálatas 15:2». Os Gálatas têm só seis CAPÍTULO s. A mesma coisa se passa com «Jonas 6:8», Jonas tem quatro CAPÍTULO s. Não foi a Bíblia que ele

Page 139: Thomas Harris   Dragão Vermelho

USOU.

Talvez o título do livro possa estar oculto na parte

clara da mensagem de Lecter - disse Crawford. Bowman abanou a cabeça. - Acho que não. - Então foi o Dentuças que se referiu ao livro que deveria ser usado. Deve ter feito menção na carta que escreveu a Lecter - disse Graham. - Tudo leva a crer que sim - disse Bowman. - E se déssemos um aperto a Lecter? Num hospital de alienados tenho a impressão de que as drogas ...

- Já se tentou o amital de sódio, há três anos, para

tentar descobrir onde é que ele enterrara um estudante de Princeton -

151 disse Graham. - Deu-lhes a receita para um molho. Além disso, se o apertarmos, perdemos a ligação. Se o Dentuças escolheu o livro é porque se trata de qualquer obra que ele sabia que Lecter tem na cela. - Tenho a certeza de que não encomendou nenhum, nem pediu nenhum emprestado a Chilton - disse Crawford. - O que é que os jornais disseram a este respeito, Jack? Acerca dos livros de Lecter.

- Que ele tem livros de medicina, livros de psicologia,

livros de culinária. - Então tem de ser qualquer coisa standard numa destas áreas, qualquer coisa tão básica que o Dentuças tem a certeza de que Lecter possui - disse Bowman. - Precisamos de uma lista dos livros de Lecter. Tem alguma?

- Não - Graham ficou a olhar para os sapatos. - Podia

ligar a Chilton ... Espere. Rankin e Willingliam tiraram fotografias para poderem voltar a pôr tudo no mesmo sítio. - É capaz de lhes dizer que venham ter comigo e que tragam as fotografias que tiraram aos livros? - disse Bowman enquanto arranjava a pasta. - Aonde? - + biblioteca do Congresso. Crawford tentou ainda uma vez contactar a Criptografia da CIA. O computador em Langley

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continuava sistemática e progressivamente a proceder a substituições números-letras, utilizando uma imensidade de grelhas de alfabetos. Sem qualquer progresso. O criptógrafo concordou com Bowman em que provavelmente deveria ter sido utilizado um livro de código. Crawford olhou para o relógio. - WilI, temos três possibilidades de escolha, mas

temos de decidir agora. Podemos retirar o anúncio de Lecter do jornal e, para já, as coisas ficam como estão. Podemos substituí-lo pela nossa mensagem em linguagem clara, convidando o Dentuças a dirigir-se à caixa postal. Ou podemos deixar que Lecter publique o anúncio.

- Tens a certeza de que ainda podemos retirar o anúncio

de Lecter do Tattler? 152

- Chester está convencido de que o mestre da tipografia, por quinhentos dólares, era capaz de fazer milagres.

- Detesto ter de pôr uma mensagem em linguagem clara,

Jack. O mais certo é Lecter nunca mais ouvir falar dele.

- Tens razão, mas também tenho medo de deixar seguir o

anúncio de Lecter sem saber o que é que ele diz - disse Crawford. - O que é que Lecter podia dizer-lhe que ele já não saiba? Se ele descobre que temos uma impressão parcial de um polegar e que as suas impressões não constam de qualquer ficheiro, podia raspar a pele do polegar, mudar os dentes e no tribunal dar uma gargalhada monstra. - A questão do polegar não estava mencionada no processo que Lecter viu. É melhor deixarmos seguir a mensagem de Lecter. Pelo menos tem a vantagem de encorajar o Dentuças a voltar a contactá-lo. - E se isso o encoraja a fazer mais qualquer coisa do que se limitar simplesmente a escrever?

- Era o suficiente para nos pôr doentes durante muito

tempo - disse Graham. - Mas temos de o fazer.

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Em Chicago, quinze minutos mais tarde as grandes rotativas do Tattler começaram a rolar, aumentando de velocidade até conseguirem levantar uma nuvem de pó na sala de tipografia. O agente do FBI que aguardava, envolvido pelo cheiro da tinta e pelo calor abafado das máquinas, pegou num dos primeiros exemplares que surgiram das rotativas. Os cabeçalhos incluíam títulos como «Transplante de cabeça!» e «Astrónomos conseguem avistar Deus!». O agente teve o cuidado de verificar que o anúncio pessoal de Lecter estava publicado no local próprio, e expediu o jornal por correio expresso para Washington. Havia de ver mais tarde o mesmo jornal e recordar-se da impressão do seu polegar sujo de tinta na primeira página, mas isso seria anos depois, ao visitar com os filhos a sala de provas célebres, numa visita que fizeram à sede do FBI.

153 CAPÍTULO 15

Uma hora antes de amanhecer, Crawford acordou de um sono profundo. Viu o quarto às escuras, e sentiu o traseiro de sua esposa encostado confortavelmente contra os seus rins. Não compreendeu por que é que acordou, até que o telefone tocou uma segunda vez. Levantou o auscultador sem pressas. - Jack, é o Lloyd Bowman. Tenho a chave do código.

Tens de saber imediatamente do que é que se trata. - Okay, Lloyd. - Com as pontas dos pés Crawfard procurava os chinelos. - Diz: «A casa de Graham é em Marathon, Florida.

Defenda-se. Mate-os a todos.» - Porra. Tenho de sair. - Eu sei. Crawford dirigiu-se para a secretária sem sequer se preocupar em vestir o roupão. Telefonou duas vezes para a Florida, uma vez para o aeroporto, e a seguir telefonou a Graham para o hotel. - WilI, Bowman acabou de decifrar a mensagem. - O que é que diz? - Digo-te já. Mas primeiro tens de me ouvir. Não há qualquer problema. Tomei todas as providências, portanto faz-me o favor de te

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manteres ao telefone enquanto falar contigo. - Diz-me já. - É a direcção da tua casa. Lecter deu ao filho da mãe a direcção da tua casa. Espera, Will. O departamento do xerife tem

154

neste momento dois carros a caminho de Sugarloaf. A lancha da alfândega de Marathon vigia o lado do mar. O Dentuças não era capaz de ter feito o que quer que fosse em tão pouco tempo. Aguenta. Consegues resolver as coisas muito mais depressa comigo a ajudar-te. Ouve agora o que vou dizer-te. » Os ajudantes do xerife não vão assustar a Molly.

Vão limitar-se a fechar a estrada que vai para tua casa. Dois ajudantes vão aproximar-se o suficiente para vigiarem a casa. Podes telefonar-lhe quando ela acordar. Vou buscar-te dentro de meia hora. - Já não me apanhas aqui. - O primeiro avião não parte antes das oito. Torna-

se muito mais rápido trazê-los para cá. A casa do meu irmão em Chesapeake está vaga e à disposição. Tenho um bom plano, WilI, espera e ouve o que te digo. Se não estiveres de acordo, eu próprio te levo ao avião. - Preciso de algumas armas. - Arranjamo-las depois de te ir buscar.

Molly e Willy foram dos primeiros a sair do avião no Aeroporto Nacional, em Washington. Ela avistou Graham no meio da multidão, não sorriu, mas voltou-se para Willy e disse qualquer coisa, enquanto caminhavam apressadamente na frente da torrente de turistas que regressavam da Florida. Olhou para Graham de alto a baixo e aproximou-se dele, dando-lhe um beijo ao de leve. Os dedos morenos com que lhe tocou no rosto estavam gelados. Graham sentiu que o rapaz os observava. Apertou-lhe a mão com o braço estendido. Enquanto caminhavam para o carro, Graham disse um gracejo sobre o peso da mala de Molly. - Eu levo a mala - disse Willy.

Um Chevrolet castanho com placas de Maryland seguiu-os

enquanto saíam do parque automóvel.

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Graham atravessou a ponte em Arlington, enquanto lhes indicava os monumentos a LincoIn e Jefferson e logo a seguir o

155 monumento a Washington, antes de virarem para este em direcção a Chesapeake Bay. Dez milhas depois de terem saído de Washington, o Chevrolet colocou-se a par deles na pista do lado de dentro e o condutor olhou para eles, ao mesmo tempo que punha uma mão em concha na boca, e uma voz, vinda não se sabia de onde, soou dentro do carro. - Fox Edward, não são seguidos. Façam boa viagem. Graham pegou no microfone que se encontrava oculto

no painel do carro. - Roger, Bobby, muito obrigado. O Chevrolet voltou a deixar-se ficar para trás, ao mesmo tempo que fazia sinal de que ia inverter o sentido de marcha.

- Foi só para termos a certeza de que não éramos seguidos

por nenhum carro da imprensa ou por qualquer outro carro disse Graham. - Compreendo - disse MoIly. Quase que ao fim da tarde estacionaram num restaurante ao lado da estrada e comeram caranguejos. Willy foi espreitar o tanque das lagostas. - Detesto toda esta situação, MoIly. Perdoa-me -

disse Graham. - Agora anda atrás de ti? - Não temos nada que nos garanta isso. Lecter limitou-se a sugerir-lhe que o fizesse, dizendo mesmo que o fizesse o mais rapidamente possível. - É uma situação que me deixa doente e desorientada.

- Eu sei que tens razão. Na casa do irmão de Crawfard

estás perfeitamente em segurança com Willy. Ninguém neste mundo sabe que vais para ali a não ser eu e Crawford. - Para já não queria falarem Crawford. - É um lugar agradável, vais ver. Inspirou profundamente e quando deixou escapar o ar parecia que a irritação se desvanecera com o

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ar que tinha expirado, deixando-a cansada e ao mesmo tempo calma. Sorriu-lhe com um ar astuto. - Chiça, já sei que vou dar em doida durante algum tempo. Temos de aturar algum dos Crawfard?

156

- Nem um. - Afastou o cesto do pão para lhe pegar na mão. - O que é que Willy sabe sobre tudo isto? Praticamente tudo. A mãe de um dos seus amigos, Torrany, comprou no supermercado uma porcaria de um jornal qualquer e levou-o para casa. Tommy mostrou-o a Willy. Havia uma data de coisas a teu respeito e, ao que parece, bastante distorcidas. Acerca de Hobs, o lugar para onde foste depois disso, Lecter, tudo. Deixou o miúdo preocupado. Perguntei-lhe se queria falar sobre o assunto. Só me perguntou se eu estava ao corrente do que se passara. Disse-lhe que sim, que tu e eu já tínhamos falado uma vez a esse respeito, que me contaras tudo antes de nos termos casado. Perguntei-lhe se queria que esclarecesse alguma coisa. Disse-me que te havia de perguntar a ti cara a cara. - Ainda bem. É óptimo para ele. Que jornal era, o Tattler? - Não sei, julgo que sim.

- Obrigadinho, Freddy. - O facto de se ter lembrado de Freddy Lounds fê-lo ter um acesso de ira que o obrigou a levantar-se. Foi à casa de banho lavar a cara com água fria.

Sara ia ao gabinete de Crawford para lhe dar as boas-noites quando o telefone tocou. Pousou a carteira e o guarda-chuva para atender. - Gabinete do agente especial Crawford... Não, o Sr. Graham não está no escritório, mas deixe-me ... Espere, tenho todo o gosto em ... Sim, amanhã à tarde está aqui, mas deixe-me ... O tom da voz dela chamou a atenção de Crawford, que

se aproximou da secretária. Segurava no auscultador com um ar incrédulo. - Perguntou por Will e disse que talvez voltasse a telefonar amanhã à tarde. Tentei impedi-lo de desligar.

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- Quem? - Disse: «Diga ao Sr. Graham que é o Peregrino.»

Foi o que o Dr. Lecter chamou ao ... - Dentuças - disse Crawford.

157 Enquanto Molly e Willy desfaziam as malas, Graham foi ao supermercado. Comprou meloas e alguma fruta. De regresso, parou em frente da casa do outro lado da rua e deixou-se ficar sentado por alguns minutos, as mãos ainda a agarrarem o volante. Sentia-se envergonhado porque, por causa dele, Molly fora obrigada a sair da casa de que gostava e a vir viver no meio de estranhos. Crawfórd fizera o melhor que lhe fora possível. Não se tratava de nenhuma daquelas casas federais, seguras, mas sem qualquer identidade, onde os braços das cadeiras iam embranquecendo com a transpiração. Era uma vivenda agradável, recentemente pintada de branco, com hortênsias que floresciam emoldurando as escadas, resultado de mãos cuidadosas e de um certo bom gosto. O quintal descia em declive até à Chesapeake Bay, onde se avistava uma balsa que se encontrava amarrada.

Por detrás das cortinas via-se o pulsar da luz azul-esverdeada da televisão. Graham sabia que Molly e Willy estavam a ver o desafio de baseball. O pai de Willy fora um jogador de baseball e por

sinal até bastante bom. Molly conhecera-o no autocarro da escola e casaram-se ainda andavam na universidade. Enquanto ele permaneceu na equipa dos Cardinals, vagabundearam por todos os sítios onde se realizavam jogos da Liga do Estado da Florida. Levavam Willy com eles e passaram momentos felizes. Quando deixou de ser um simples suplente, actuou com segurança e eficácia nos seus dois primeiros jogos. Pouco depois começou a sentir dificuldade em engolir. O cirurgião tentou operá-lo, mas havia metástases que o minaram completamente. Morreu cinco meses depois, quando Willy tinha seis anos.

Willy via baseball sempre que podia. Molly via baseball

quando se sentia preocupada. Graham não tinha chave e teve de bater à porta.

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- Eu abro - ouviu-se Willy dizer. - Espera. - O rosto de Molly apareceu por entre as cortinas. - Podes abrir. Willy abriu a porta. No punho fechado, meio oculto

pela perna, empunhava uma matraca.

158

Graham não acreditava nos seus olhos. O miúdo devia tê-la trazido na mala. Molly pegou no saco que ele trazia. ; Queres café? Há gin mas não é da marca de que tu

gostas. Quando ela foi para a cozinha, Willy pediu a Graham para

irem até ao jardim. Da varanda das traseiras viam-se as luzes de presença dos barcos ancorados na baía. - WilI, há alguma coisa que eu precise saber para

poder proteger a mãe?

- Aqui vocês estão os dois perfeitamente em segurança

Willy. Lembras-te do carro que nos seguiu desde o aeroporto, para se certificar de que ninguém nos vigiava? Ninguém conseguirá descobrir onde é que tu e a mãe estão. - Esse doido quer matar-te, não quer? - Não temos ainda a certeza disso. De qualquer modo, não me sentia tranquilo por ele saber a nossa direcção. - Vais matá-lo? Graham fechou os olhos por instantes.

- Não. O meu trabalho é simplesmente o de o encontrar.

Vão interná-lo num hospital de doidos para o poderem tratar e impedir que ele ataque mais pessoas. - A mãe do Tominy comprou aquele jornal, Will. Dizia que mataste um tipo em Minnesota e que estiveste num hospital para doentes mentais. Nunca ouvi falar disso. É verdade? É. Comecei por falar com a mãe sobre isto, mas depois achei que era melhor perguntar-te a ti directamente. - Aprecio a tua franqueza. Não era apenas um hospital de doenças mentais; tratam lá qualquer

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doença. - A diferença parecia importante. - Estive no pavilhão psiquiátrico. Queres saber tudo por ter casado com a tua mãe? - Prometi ao meu pai que tomava conta dela e hei-de

fazê-lo. Graham sentia que dissera a Willy o suficiente. Era

melhor não lhe dizer de mais.

159 As luzes apagaram-se na cozinha. Viu a silhueta

vaga de Molly através da porta de rede e sentiu a importância do seu julgamento. O que acontecesse com Willy teria certamente influência no coração dela. Era nítido que Willy já não sabia o que é que lhe

havia de perguntar. Graham deu-lhe uma ajuda. - O caso do hospital foi depois daquilo que se passou com Hobbs. - Disparaste contra ele? - Disparei. - Como é que aconteceu? - Para começar, Garrett Hobbs era louco. Atacava

raparigas do liceu e ... matava-as. - Como? Com uma faca; bom, um dia encontrei nas roupas de uma das raparigas um bocadinho de apara de metal. Era o tipo de apara que faz uma máquina de roscar, lembras-te de quando montámos o chuveiro no pátio? » Tive de investigar uma quantidade enorme de instaladores de tubagem de vapor, de canalizadores e de outras pessoas. Levou imenso tempo. Hobbs tinha deixado a sua carta de demissão numa obra que eu estava a investigar. Vi-a e achei ... estranho. Já não estava a trabalhar em sítio nenhum e tive de o procurar em casa. - Ia a subir as escadas da casa onde Hobbs tinha o apartamento. Um agente fardado ia comigo. Hobbs deve ter-nos visto subir. Ia a meio caminho do lanço de escadas para o seu apartamento quando ele, da porta, nos atirou com a mulher, que veio cair em cima de nós já morta. - Ele tinha-a morto?

- Tinha. Foi por isso que pedi ao agente que ia comigo

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para telefonar para o comando de intervenção especializado neste género de coisas. Mas nessa altura ouvi crianças que gritavam. Quis esperar, mas não fui capaz. - Entraste no apartamento? - Entrei. Hobbs segurava uma rapariga diante dele e dava-lhe golpes com uma faca. Matei-o.

160

- A rapariga morreu? - Não. - Ficou bem?

Depois de algum tempo, sim. Agora já não tem qualquer

problema. Willy digeriu isto lentamente. Vinda de um dos barcos de recreio que se encontravam ancorados, ouvia-se uma música ténue. Graham podia poupar Willy à descrição do que se passara, mas não conseguia evitar o reviver mais uma vez todas aquelas cenas. A Sr a Hobbs no lanço de escadas, caída sobre ele, esfaqueada tantas vezes. Ver que ela tinha morrido, ouvir os gritos no apartamento, libertar-se dos pequenos dedos tintos de sangue, atirar-se contra a porta antes que ela se feche. Quando consegue entrar, a visão de Hobbs a segurar a própria filha enquanto lhe cortava o pescoço, a miúda que se defendia, tentando proteger a garganta com o queixo, a 38 que o ia desfazendo aos bocados enquanto ele continuava a cortar sem se deixar ir abaixo. Hobbs sentado no chão a gritar e a rapariga num estertor aflitivo. Segurar a rapariga e ver que lhe tinha cortado a traqueia, mas que não lhe tinha atingido as artérias. A filha que olhava para ele com os olhos esgazeados e o pai sentado no chão e a gritar: «Estás a ver? Estás a ver?», até cair morto. Foi nessa altura que Graham perdeu a fé na 38. - Willy, o caso de Hobbs incomodou-me muito. Compreendes, não conseguia esquecer-me daquilo e revivia a cena continuamente. Fiquei de tal maneira que praticamente não era capaz de pensar em mais nada. Pensava que pudesse talvez ter agido de uma outra maneira. Até que chegou uma altura em que deixei de sentir o que quer que fosse. Não era capaz de comer e deixei de falar às pessoas.

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Apanhei mesmo uma depressão. Foi nessa altura que o médico me pediu para ir para o hospital, e eu fui. Passado algum tempo já conseguia distanciar-me de tudo aquilo. A filha de Hobbs veio visitar-me. Já estava boa e falámos imenso. Finalmente consegui pôr o problema de lado e voltei ao trabalho.

161 - Quando se mata alguém, mesmo que seja necessário,

dá para se ficar assim doente?

- Willy, é uma das coisas mais terríveis que existem no

mundo. - Olha, vou dar um salto à cozinha. Queres que te

traga alguma coisa, uma coca? - Willy gostava de fazer coisas a Graham, mas fazia sempre que tudo parecesse casual, como se houvesse outra coisa mais importante que tivesse de fazer. Nada de uma deslocação propositada com essa finalidade ou qualquer coisa no gênero. - Está bem, uma coca.

A mãe devia vir até cá fora para ver a iluminação.

Ainda nessa noite, Graham e Molly sentaram-se na cadeira de balouço na varanda das traseiras. Caía uma chuva leve e as luzes dos barcos projectavam halos granulosos no nevoeiro. A brisa que soprava da baía fazia que ficassem com pele de galinha. Isto ainda é capaz de demorar um bocado, não é? - disse Molly. - Espero que não, mas pode acontecer. - WilI, a Evelyn disse que me podia tomar conta da

loja esta semana e mais quatro dias da próxima semana. Mas tenho de regressar a Marathon, nem que seja por um dia ou dois, por causa dos vendedores. Podia ficar com a Evelyn e com o Sam. Precisava de ir fazer compras a Atlanta. Tenho de ter tudo preparado para Setembro. - A Evelyn sabe onde tu estás? - Só lhe falei em Washington. - aptimo. - É difícil conseguir ter qualquer coisa, não é? É raro conseguir-se, e mais difícil conservar o que se tem. É um estupor de um mundo.

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- A quem o dizes. - Vamos voltar a Sugarloaf, não vamos? Se Deus quiser.

162

- Tenta resolver as coisas de modo que isto não demore muito. Não vai demorar, pois não? - Não. - Vais sair cedo? Tinha estado a falar meia hora ao telefone com Crawford. - Um bocadinho antes de almoço. Se de facto tens de ir a Marathon, há umas coisas que temos que combinar de manhã. Willy pode ir pescar. - Ele tinha coisas para te perguntar acerca do outro. - Eu sei e não o censuro por isso. - Raios partam esse repórter. Como é que ele se chama? - Lounds. Freddy Lounds. - Tenho a certeza de que o detestas. Não devia ter falado no assunto., Vamos para a cama que eu esfrego-te as costas.

Uma certa dose de ressentimento invadiu por momentos a

mente de Graham. Justificara-se diante de um garoto de onze anos. O Willy disse que estava tudo bem, que compreendia que ele tivesse necessitado de se tratar. Agora era ela que lhe ia esfregar as costas. Vamos para a cama

Quando estiveres debaixo de tensão tenta manter a boca

fechada. - Se quiseres meditar um bocadinho deixo-te sozinho disse ela. Não queria pensar. Não havia qualquer dúvida a esse

respeito. - Esfregas-me as costas e eu esfrego-te outra coisa...

disse ele. - Vamos a isso, parceiro.

O vento arrastara a chuva miúda da baía e às nove da

manhã o solo libertava nuvens de vapor. Os alvos mais distantes na carreira de tiro do departamento do xerife pareciam agitar-se no ar pesado.

Page 151: Thomas Harris   Dragão Vermelho

O director da carreira de tiro observou com o binóculo

até se ter convencido de que o homem e a mulher no extremo mais distante da linha de fogo estavam a cumprir todas as regras de segurança.

163 As credenciais do Departamento de Justiça que o

homem mostrara quando pediu para usar a carreira de tiro diziam: «Investigador.» Podia ser qualquer coisa. O director não concordava que o ensino de tiro não fosse feito por um instrutor qualificado. No entanto, tinha de admitir que o federal sabia o

que estava a fazer. Estavam só a usar um revólver .22, mas estava a ensinar à mulher tiro de combate no estilo Weaver, o pé esquerdo levemente avançado, o revólver seguro firmemente nas mãos, com uma tensão isométrica nos braços. Disparava contra o alvo de silhueta que se encontrava sete jardas à frente dela. Incansavelmente, tirava a arma da bolsa exterior da carteira a tiracolo. A situação repetiu-se até se chegar a um ponto em que o director da carreira já não podia olhar para aquilo.

Uma alteração no som dos disparos fez que o director

voltasse a pegar no binóculo. Agora usavam protectores de ouvidos e ela servia-se de um revólver atarracado de cano curto. Reconheceu o som de cargas mais leves. Conseguia ver a arma que ela agarrava firmemente e interessou-se. Foi-se deslocando ao longo da linha de fogo até que parou a algumas jardas deles. Queria examinar a arma, mas não era uma boa altura para interromper. Teve oportunidade de a examinar quando ela parou para retirar as cápsulas vazias e introduzir mais cinco projécteis alinhados numa placa de aço. Estranha arma para um federal. Era um Bulldog .44 Special, curto e feio, em que o orifício do cano era simplesmente aterrador. Fora extensivamente modificado por MagNa Port. O cano era ventilado próximo da mira para ajudar a mantê-

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la baixa no recuo. O percussor era reforçado e o punho era anatómico. Estava convencido de que era especialmente adaptado para ser carregado a alta velocidade. Um raio de uma arma diabólica quando era carregada com aquilo que o federal suspeitava. Tentava imaginar como é que a mulher se aguentaria com aquilo.

164

As munições no balcão que se encontrava por detrás deles apresentavam uma progressão interessante. Primeiro, via-se uma caixa de balas semiocas de carga leve. A seguir, viam-se projécteis normais de ponta endurecida, e por último estava qualquer coisa sobre a qual o director da carreira já ouvira falar, mas que raras vezes vira. Uma fila de projécteis de segurança Glaser. As pontas pareciam-se com borrachas de lápis. A seguir à ponta encontrava-se uma cápsula de cobre contendo carga número doze suspensa em teflon líquido. Este projéctil ligeiro fora concebido para se deslocar a tremenda velocidade e esmagar-se no alvo libertando a carga. Na carne os resultados eram devastadores. O director lembrava-se mesmo dos números. Em noventa glasers disparados a distância média, todos os noventa provocaram uma paragem imediata. Em oitenta e nove dos casos a morte foi instantânea. Um homem sobreviveu, o que deixou os médicos admirados. O projéctil Glaser tinha ainda uma vantagem sob o ponto de vista da segurança: não havia ricochetes e não conseguia atravessar uma parede, não correndo, portanto, o risco de matar alguém que se encontrasse na sala ao lado. O homem era muito gentil com a mulher, ao mesmo tempo que a ia encorajando, mas parecia sentir-se profundamente triste sobre qualquer coisa.

A mulher disparara carregadores completos e o director

verificava com agrado que aguentava perfeitamente o recuo da arma, e mantinha ambos os olhos abertos e sem pestanejar. É certo que levava cerca de quatro segundos a disparar o primeiro tiro, sacando a arma da bolsa, mas três acertavam no círculo central. Nada mau para uma principiante. Não havia dúvida de que possuía um certo talento.

Page 153: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Já regressara à torre havia algum tempo quando ouviu o

barulho diabólico dos glasers a serem disparados. Disparava os cinco de rajada. Não se podia dizer

que fosse procedimento standard dos federais.

O director tentava imaginar que raio é que eles teriam

visto na silhueta do alvo que os levasse a que fossem disparados os cinco glasers.

165 Graham regressou à torre para devolver os protectores de ouvidos, tendo deixado a sua aluna sentada num banco, cabeça baixa, os cotovelos assentes nos joelhos. O director pensou que ele se devia sentir contente com os resultados que ela tinha obtido e disse-lhe isso mesmo. Ela fizera progressos enormes num único dia. Graham agradeceu-lhe com um ar ausente. A expressão do seu rosto deixou o director confundido. Parecia um homem que tivesse testemunhado uma perda irreparável.

166

CAP+TULO 16

O interlocutor, o Peregrino, dissera a Sara que talvez

voltasse a telefonar na tarde seguinte. Na sede do FBI foram tomadas algumas medidas para receber a chamada. Quem era o Peregrino? Lecter não -era. Crawfard encarregara-se de se certificar sobre esse ponto. Seria o Peregrino o Dentuças? Era possível, pensou Crawford. As secretárias e telefones do gabinete de Crawfard haviam sido mudados durante a noite para um gabinete mais amplo do outro lado do hall. Graham permanecia à porta de uma cabina à prova de

som. Atrás dele, na cabina, estava o telefone de Crawford. Sara limpara-o Com a secretária e uma mesa adicional ocupadas com o espectrógrafo de impressão de voz, gravadores e calculador de stress e everly Katz sentada na sua cadeira, Sara

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precisava de encontrar qualquer coisa que fazer. No grande relógio de parede faltavam dez minutos

para o meio-dia. O Dr. Alan Bloom e Crawfard permaneciam junto de Graham. Tanto um como o outro procuravam aparentar um ar despreocupado, com as mãos nos bolsos. Um dos técnicos sentara-se em frente de everly Katz tamborilando com os dedos na secretária, até que um franzir de sobrancelhas de Crawford fez que ele parasse.

167 A secretária de Crawford estava apinhada com dois

novos telefones, uma linha aberta para o centro de comutação electrónica da Bell System e uma linha directa para o centro de comunicações do FBI. - Quanto tempo é necessário para localizar uma chamada? perguntou o Dr. Bloom. - Com o novo sistema de comutação é muito mais rápido do que se possa pensar - disse Crawford. - Talvez um minuto, se todo o sistema for electrónico, um pouco mais, se for uma central electromagnética. Crawfórd ergueu a voz para que todos o ouvissem. - Se ele chegar a telefonar, tenham cuidado porque vai ser muito rápido. Temos de estar com atenção para que não haja erros. Queres ensaiar de novo, Will? - Certo. Quando chegarmos à altura em que eu falo, quero fazer-lhe algumas perguntas, Doutor. Bloom chegara depois dos outros. Tinha programada uma conferência em Quântico, ao fim do dia, na Secção de Ciência do Comportamento. Bloom sentiu o cheiro de cordite que exalava a roupa de Graham. - Okay - disse Graham. - O telefone toca. O circuito fecha-se imediatamente e começa a busca no Bell System, mas o gerador de tonalidade continua a tocar, de modo que ele não sabe que já estamos em linha. Isso dá-nos cerca de vinte segundos de vantagem. - Apontou para o técnico. - Gerador de tonalidade desligado no final do quarto toque, compreendeu? O técnico acenou com a cabeça.

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- No final do quarto toque. - A seguir Beverly pega no telefone. A sua voz é

diferente daquela que ele ouviu ontem. Não haverá reconhecimento de voz. Beverly deverá parecer chateada. Ele pergunta por mim. everly diz-lhe: «Tenho de tentar encontrá-lo, importa-se que o deixe em linha?» Pronta para isso, ev? - Graham pensou que era melhor não ensaiarem de novo as falas. A repetição podia fazer que viessem a tornar-se impessoais. - Certo, a linha estará aberta para nós, morta para ele. Estou convencido de que vai

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passar mais tempo em linha, à espera, do que na realidade a falar.

- Tem a certeza de que não lhe quer dar a música de fundo? - perguntou o técnico. - Porra, nem pensar nisso - disse Crawfard. - Damos-lhe cerca de vinte segundos de espera em linha e a seguir Beverly volta a falar e diz-lhe: «O Sr. Graham já vem atender o telefone. Vou ligá-lo agora.» A seguir pego eu no telefone. - Graham voltou-se para o Dr. Bloorn. - Como é que o senhor lidaria com ele, Doutor? - Ele vai esperar que você se mostre céptico e que

de facto tenha dúvidas de que seja ele. No seu lugar demonstrava-lhe uma certa dose de cepticismo delicado. Faria mesmo uma diferenciação nítida entre o aborrecimento das falsas chamadas e o significado, a importância, de uma chamada de uma pessoa real. As chamadas falsas são fáceis de reconhecer porque lhes falta a capacidade de compreender o que se passou, coisas desse gênero. » Faça-o dizer qualquer coisa que prove na realidade que é ele. - O Dr. Bloorn olhou para o chão enquanto massajava a nuca. - Você não faz ideia do que é que ele quer. Talvez procure compreensão, talvez tenha uma ideia fixa a seu respeito como seu adversário e tudo não passe de um desafio, veremos. Tente determinar o seu estado de espírito e dê-lhe aquilo de que ele está à procura, um pouco de cada vez. Seria perfeitamente ridículo fazer-lhe um apelo para que nos viesse ajudar, a menos que note que é disso que ele está à espera.

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» Se ele for paranóico vai percebê-lo rapidamente. Nesse caso alinharia em concordar com as suas queixas de que se sente ofendido. Deixe-o desabafar. Se ele continuar a desabafar, talvez se esqueça de há quanto tempo é que está a falar. É tudo o que lhe posso dizer. - Bloom pôs a mão no ombro de Graham e falou-lhe calmamente. - Não se esqueça de que isto não é nenhuma conversa de chacha nem nenhuma treta; pode conseguir levá-lo a fazer o que nós queremos. Esqueça-se dos conselhos e das regras e faça aquilo que lhe parecer que está certo.

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Tinha começado a espera. Meia hora de silêncio era mais do que suficiente. - Chamada ou não chamada, temos de decidir o que é

que vamos fazer ao sair daqui - disse Crawfard. - Queres tentar? - Não consigo ver nada melhor - disse Graham. - Isso dava-nos duas possibilidades de o apanharmos, uma espera na tua casa em Keys e a caixa postal. O telefone estava a'tocar. Gerador de som ligado. No Bell System começou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador e everly pegou no telefone. Sara estava à escuta. - Gabinete do agente especial Crawfard. Sara abanou a cabeça. Conhecia a pessoa, um dos velhos amigos de Crawfard do Departamento de ãlcool, Tabaco e Armas de Fogo. Beverly livrou-se dele rapidamente e interrompeu a busca. Toda a gente no edifício do FBI sabia que era preciso deixar a linha livre. Crawford começou a rever mais uma vez os detalhes do assunto da caixa postal. Sentiam-se ao mesmo tempo aborrecidos e tensos. Lloyd Bowman apareceu para lhes mostrar como os pares de números das escrituras se encaixavam na página 100 da brochura A Alegria de Cozinhar. Sara distribuiu café em copos de papel. O telefone estava a tocar. O gerador de som entrou mais uma vez em funcionamento e o Bell System iniciou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador. everly pegou no telefone.

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- Gabinete do agente especial Crawford. Sara estava a acenar a cabeça num gesto afirmativo. Grandes acenos de cabeça. Graham foi para a sua cabina e fechou a porta. Conseguia ver os movimentos dos lábios de everly. Premiu o botão «Hold» e ficou a olhar para o ponteiro dos segundos no relógio de parede. Graham conseguia distinguir o seu rosto no receptor polido. Duas imagens distorcidas no bocal e no auscultador. A camisa

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cheirava a cordite, recordação da carreira de tiro. Não desligues. Meu Deus, fazei que ele não desligue. Passaram-se quarenta segundos. O telefone que estava na sua mesa estremeceu levemente quando tocou. Deixa-o tocar. Mais uma vez. Quarenta e cinco segundos. Agora. - Fala Will Graham, em que é que posso ajudá-lo? Um riso em tom baixo. Uma voz abafada: - Irá saber mais tarde. - Pode dizer-me por favor quem é que fala? - A sua secretária não lhe disse? - Não, meu caro senhor, mas faz-me interromper uma reunião. ... - Se me disser que não quer falar com o Peregrino, desligo imediatamente. Sim ou não? - Sr. Peregrino, se tiver qualquer problema que eu tenha possibilidades de resolver, tenho o maior prazer em falar consigo. - Tenho a impressão de que o problema é seu, Sr. Graham. Peço desculpa mas não estou a compreender. O ponteiro dos segundos mareava quase que uma volta completa.

Tem sido um rapaz muito ocupado, não tem? - disse o interlocutor. - Demasiado ocupado para continuar ao telefone se não me disser o que é que pretende. - Os nossos pontos de interesse coincidem: Atlanta

e Birmingham. - Sabe alguma coisa a esse respeito? Um riso suave.

- Se sei alguma coisa a esse respeito? Está

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interessado no Peregrino? Sim ou não. Se me mentir desligo já.

Graham via Crawfard através do vidro. Tinha um telefone

em cada mão. - É evidente que sim. Mas está a ver, costumo

receber imensas chamadas e a maior parte delas são de pessoas que dizem que sabem uma data de coisas. Tinha passado um minuto.

171 Crawford pousou um dos telefones e rabiscou

qualquer coisa num pedaço de papel.

- Ficava admirado se soubesse o número de pretendentes

que tenho de atender - disse Graham. - Falo com eles alguns minutos e vejo logo que não têm capacidade até para entender o que é que se está a passar. Não concorda comigo? Sara encostou uma folha de papel ao vidro para que Graham conseguisse ler. Dizia: «Cabina telefónica em Chicago, busca em marcha.» - Vamos combinar uma coisa, o senhor diz-me qualquer coisa que saiba sobre o Peregrino e talvez eu lhe diga se tem razão ou não - disse a voz abafada. - Vamos directos ao assunto de que estamos a falar

- disse Graham. Estamos a falar sobre o Peregrino. - Como é que eu posso saber se o Sr. Peregrino fez qualquer coisa em que eu possa estar interessado? Fez? - Digamos que sim. - O senhor é o Peregrino? - Tenho a impressão de que isso é uma das coisas que não lhe vou dizer. - É amigo dele? - Mais ou menos. - Então prove-mo. Diga-me qualquer coisa que mostre como o conhece bem. O senhor primeiro. Mostre-me primeiro o que é que sabe. Um riso nervoso. - Logo que se engane, desligo. - Está certo, o Sr. Peregrino é dextro.

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- Isso não tem qualquer dificuldade. Passa-se o mesmo com a maior parte das pessoas. - O Sr. Peregrino não é compreendido. - Deixe-se de tretas, por favor. - O Sr. Peregrino é muito forte fisicamente. - Sim, acho que o pode dizer.

Graham olhou para o relógio. Minuto e meio. Crawford

fez-lhe um gesto de encorajamento.

172

Não lhe digas nada que o faça mudar de opinião. O Sr. Peregrino é branco e tem, digamos, cerca de um metro e oitenta de altura. Estou a ver que ainda não me disse nada. Começo a duvidar se o conhece. - Quer parar de falar?

- Não, mas disse que se tratava de uma troca. E estou a

ver que estou a falar sozinho., - Acha que o Sr. Peregrino é doido? Bloom abanava a cabeça a dizer que não. - Acho que alguém que pode ser tão cuidadoso como ele é, não pode ser doido. Acho que é diferente. Muita gente pensa que ele é doido e a única razão que vejo para isso é o facto de ele ainda não ter deixado que se soubesse grande coisa a seu respeito. - Descreva exactamente o que é que acha que ele fez à Sr a Leeds e talvez eu lhe diga se está certo ou errado. - Não me apetece fazer isso. Adeus.

O coração de Graham deu um salto, mas ainda conseguia

ouvir respirar no outro extremo da linha. - Não quero falar nisso até que ... Graham ouviu a porta da cabina telefónica em Chicago bater ao ser aberta violentamente e o telefone cair fazendo um ruído surdo. Murmúrios de vozes e as pancadas do telefone suspenso do cordão. Toda a gente ouvia os mesmos ruídos nos altifalantes. - Não se mexa. Nem sequer pestaneje. Ponha as mãos

na nuca e saia lentamente da cabina, de costas. Lentamente. Afaste as mãos, e encoste-as ao vidro.

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Graham sentia-se invadir por um alívio agradável. - Não estou armado, Stan. O meu bilhete de

identidade está no bolso do peito. Isso faz cócegas. Ouviu-se uma voz alta ao telefone. - Com quem é que estou a falar? - Will Graham, FBI. - Fala o sargento Stanley RiddIe, Departamento de Polícia de Chicago. - E logo a seguir num tom irritado. - É capaz de fazer o favor de me dizer que raio é que se está a passar?

173 - O senhor é que tem que me dizer. Deteve um homem? - Claro que sim. Freddy Lounds, o repórter. Conheço-o há dez anos ... Toma a tua agenda, Freddy ... Tem alguma acusação contra ele?

O rosto de Graham estava pálido. Crawfard estava

vermelho. O Dr. Bloom observava a rotação das bobinas do gravador. - Está a ouvir-me? - Sim, tenho uma acusação contra ele. - A voz de

Graham parecia estrangulada. - Obstrução da justiça. Leve-o e detenha-o para ser ouvido pelo procurador-geral da

República. De repente Lounds estava ao telefone. Falava rápida e

claramente, depois de ter tirado as bolas de algodão de dentro da boca. - WilI, ouça ... - Diga o que tiver que dizer ao procurador-geral da República. O sargento Riddle que venha ao telefone. - Sei umas coisas ... - Riddle que venha ao telefone! A voz de Crawfard apareceu na linha. - Deixa-me falar a mim, Will. Graham desligou com um gesto violento, o que fez que toda a gente que conseguia ouvir os altifalantes desse um salto. Saiu da cabina e abandonou a sala sem olhar para ninguém. - Lounds, você arranjou um sarilho dos diabos, meu

caro disse Crawfard. - Quer apanhá-lo ou não? Eu posso ajudá-lo. Deixe-

me

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falar só um minuto. - Em face do silêncio de Crawford, Lounds procurou apressar-se. - Ouça, você acaba de demonstrar como precisa desesperadamente do Tattler. Antes não tinha lá muito a certeza, mas agora é diferente. E a prova está nessa história do anúncio do Dentuças. Se assim não fosse, você não tinha vindo de peito feito para fisgar esta chamada. óptimo. O Tattler está aqui à sua disposição. Tudo aquilo que você quiser. - Como é que você descobriu? - O chefe da secção de anúncios veio falar comigo

Disse-me que o Departamento de Chicago tinha mandado aquele manequim para verificar os anúncios. O vosso rapaz retirou cinco

174

cartas dos anúncios recebidos. Disse que estava a investigar um caso de «fraude postal». Fraude postal uma fava. O chefe da secção de anúncios tirou fotocópias das cartas e dos envelopes antes de os ter entregue ao vosso homem.

» Estive a analisá-las. Sabia que tinha tirado cinco

cartas para poder camuflar aquela que ele queria na realidade. Levou-me um dia ou dois para verificar tudo. A resposta estava no carimbo do envelope do Chesapeake. O número de código postal correspondia ao da zona do Hospital Psiquiátrico Chesapeake. Descobri logo que só podia ter sido o seu amigo de cu cabeludo. Quem mais é que poderia ter sido? » No entanto tinha que me certificar. Foi por causa disso que telefonei, para me certificar se saltava em cima do Peregrino com unhas e dentes, e foi o que aconteceu. - Cometeu um erro enorme, Freddy. - Você precisa do Tattler e eu posso pô-lo à sua disposição. Anúncios, editorial, monitorização, correio recebido, qualquer coisa. Basta que me diga. E além disso sou capaz de ser discreto. Pode ter a certeza de que sim. Deixe-me entrar no jogo, Crawford. - Não há nada onde eu o possa deixar entrar. - Okay, então não há qualquer problema se alguém se lembrar de pôr seis anúncios pessoais na próxima edição. Todos destinados ao Sr. Peregrino e

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assinados todos da mesma maneira. - E eu espeto-lhe com um processo e uma acusação

formal por obstrução da justiça.

- E tudo isto se pode espalhar para todos os jornais do

país. - Lounds sabia que a conversa dele estava a ser gravada. Já não se importava. - Juro-lhe por Deus que o faço, Crawford. Sou capaz de destruir as suas hipóteses antes de destruir as minhas. - Temos a acrescentar a transmissão de uma ameaça

como resposta ao que acabei de lhe dizer. - Deixe-me ajudá-lo, Jack. Pode crer que sou capaz. - Vá para a esquadra, Freddy. Agora deixe-me falar com o sargento.

175 O Lincoln Versailles de Freddy Lounds cheirava a

tónico capilar e loção para a barba, peúgas e charutos, e o sargento da polícia sentiu-se feliz quando conseguiu sair do carro ao chegarem à esquadra. Lounds conhecia o capitão que comandava a esquadra e a maior parte dos agentes. O capitão serviu café a Lounds e telefonou para o gabinete do procurador-geral, para «tentar esclarecer toda aquela merda.» Não apareceu nenhum assistente federal por causa de Lounds. Meia hora depois, este recebeu uma chamada telefónica de Crawford no gabinete do comandante da esquadra. Depois disso, estava livre para se poder ir embora. O capitão acompanhou-o ao carro. Lounds sentia-se enervado e a sua condução era rápida e incerta, enquanto cruzava o Loop em direcção a este, a caminho do seu apartamento com vista sobre o lago Michigan. Havia várias coisas que ele queria esclarecer nesta história e sabia que era capaz. Dinheiro era uma delas e sabia que havia de vir do jornal. Nas trinta e seis horas a seguir à sua captura ia verificar-se um aumento instantâneo da tiragem. Uma história exclusiva na imprensa diária ia ser um furo jornalístico. Ia ter a satisfação de ver a imprensa regular - o Chicago Tribune, o Los Angeles Times, o santificado

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Washington Post e o sagrado New York Times correr atrás do seu material com direitos reservados, seguindo as suas instruções e garantindo-lhes os créditos que ele pretendia. E depois, ver os correspondentes desses augustos jornais, que tinham o hábito de o olhar de cima, que se recusavam a beber um copo com ele, a roerem-se de inveja. Para eles, Lounds era um pária porque seguira princípios diferentes. Se ele tivesse sido um incompetente, um louco sem mais nenhum meio de rendimento, era possível que os veteranos da imprensa regular lhe tivessem perdoado o facto de trabalhar no Tattler, do mesmo modo que se perdoa a um atrasado mental. Mas Lounds era bom. Tinha as qualidades de um bom repórter: inteligência, coragem e uma vista apurada. Tinha uma enorme vitalidade e tinha paciência.

176

Havia contra ele o seu comportamento, o que fazia que fosse detestado pelos directores de notícias, isto para além de ser incapaz de se manter afastado das suas histórias. Em Lounds havia a necessidade desesperada de ser notado, o que muitas vezes o fazia cometer erros. Era coxo, feio e de pequena estatura. Tinha dentes de cavalo e os seus olhos de rato tinham o brilho de cuspo no asfalto. Trabalhara dez anos na imprensa regular até se ter convencido de que nunca ninguém o mandaria a lado nenhum, nem mesmo à Casa Branca. Verificou que os seus editores se serviriam dele, que o utilizariam até chegar a altura em que não passaria de um boneco rebentado e bêbado, que passaria os seus últimos dias sentado a uma secretária, inútil, caminhando a passos largos para uma cirrose ou para qualquer outra coisa igualmente triste. Queriam a informação que ele pudesse obter, mas não queriam'~Freddy. Pagavam-lhe de acordo com o topo da escala, o que não se podia dizer que fosse muito quando tinha de comprar mulheres. Batiam-lhe nas costas e diziam-lhe que tinha montes de coragem, mas recusavam-se a inscrever o seu nome num dos lugares do parque de estacionamento. Uma noite, em 1969, quando se encontrava no

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escritório a refazer um artigo, Fredlly teve a sua epifania. Frank Larkin encontrava-se próximo dele, a receber

uma reportagem ao telefone. No jornal onde Freddy trabalhava, receber reportagens ao telefone era o prato forte dos velhos repórteres que aí trabalhavam. Frank Larkin tinha cinquenta e cinco anos, mas parecia que tinha setenta. Os seus olhos pareciam ostras e de meia em meia hora ia ao armário para beber. Do sítio onde se encontrava, Freddy conseguia sentir-lhe o cheiro. Larkin levantou-se e arrastou-se até ao intercomunicador, falando num murmúrio gutural com o editor de notícias, uma mulher. Freddy tinha o hábito de ouvir as conversas das outras pessoas. Larkin pediu-lhe que mandasse buscar um penso higiénico da máquina que se encontrava no quarto de banho das senhoras. Tinha que os usar no traseiro, que sangrava.

177 Freddy parou de escrever. Tirou o artigo da

máquina, colocou novo papel e escreveu uma carta de demissão. Uma semana depois estava a trabalhar no Tatteler. Começou como editor de casos de cancro, com um vencimento que andava próximo do dobro do que ganhava antes. A administração mostrava-se impressionada com a sua conduta. O Tatteler podia permitir-se pagar-lhe bem porque

os casos de cancro eram extraordinariamente lucrativos. Um em- cada cinco americanos morria de cancro. Os

parentes dos moribundos, arrasados, fatigados de tanto rezarem, tentavam lutar contra um carcinoma devastador com pancadas nas costas, pudim de banana e anedotas que tinham o gosto amargo do fel, e acolhiam qualquer coisa que lhes trouxesse uma esperança.

Os analistas de mercado demonstravam que um cabeçalho

directo, como «Nova cura para o cancro» ou «Medicamento milagroso para o cancro», aumentava as vendas nos supermercados de qualquer edição do

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Tatteler em cerca de vinte por cento. Podia verificar-se uma queda de seis pontos nessas vendas quando a história era publicada logo a seguir ao cabeçalho, na primeira página, o que permitia que os clientes a lessem logo no escaparate, enquanto a caixa totalizava o preço das compras. Os analistas de mercado chegaram à conclusão de que o ideal era publicar o cabeçalho a cores na primeira página e o artigo nas páginas centrais, o que fazia que fosse muito mais difícil manter o jornal aberto ao mesmo tempo que se conduzia o carro das compras e se manejava a carteira. A história standard não devia ter mais de cinco parágrafos, em tom optimista, em letra de corpo dez, diminuindo progressivamente o corpo da letra até referir que a «droga milagrosa» não se encontrava disponível ou que a investigação animal ainda só agora tinha começado. Freddy ganhou o seu dinheiro com estas histórias e

as histórias venderam montes de exemplares do Tattler.

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Para aumentar o número de leitores havia ainda os anúncios de venda por correspondência de medalhSes milagrosos e de roupas que curavam. Os fabricantes destes artigos pagavam um prêmio para poderem ter os seus anúncios publicados próximo da história semanal sobre o cancro.

Muitos leitores escreviam para o jornal pedindo mais

informações. Com isto obtinham-se rendimentos adicionais, vendendo os seus nomes a um «evangelizador» da rádio, um sociopata que só sabia gritar e que lhes escrevia a pedir dinheiro, usando envelopes com um carimbo que dizia: «Alguém que você ama morrerá a não ser que ... » Freddy Lounds era bom para o Tatteler e o Tattler era bom para ele. Presentemente, após onze anos a trabalhar para o jornal, ganhava razoavelmente. Fazia mais ou menos aquilo que lhe apetecia e gastava o dinheiro divertindo-se. Dentro das suas possibilidades, vivia tão bem quanto lhe era possível.

Da maneira como as coisas estavam a correr, acreditava

que era capaz de aumentar os seus rendimentos com

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as tiragens, além dos direitos que pudessem surgir por causa de um eventual filme. Tinha ouvido dizer que Hollywood era um lugar excelente para tipos obnóxios e com dinheiro. Freddy sentia-se bem. Desceu a rampa em direcção à garagem subterrânea do edifício onde morava e estacionou no seu lugar reservado com um chiar de borracha dos pneus. Ali, na parede, encontrava-se pintado o seu nome em letras de um pé de altura, assinalando o seu local privativo: «Sr. Frederick Lounds.» Wendy já tinha chegado - o seu Datsun estava estacionado no lugar a seguir ao seu. óptimo. Tinha vontade de a levar consigo na sua viagem a Washington. Enquanto subia no elevador ia assobiando uma melodia em voga.

Wendy estava a fazer-lhe as malas. Toda a vida tinha vivido no meio de malas, o que lhe proporcionava sempre bom trabalho. Impecável nos seus jeans e camisola estampada, os cabelos castanhos apanhados num rabo de cavalo que lhe caía da nuca,

179 podia confundir-se perfeitamente com uma rapariga do campo se não fosse a sua extrema palidez e as suas formas. O aspecto de Wendy era quase uma caricatura da puberdade. Olhou para Lounds com olhos de quem já não se surpreende com nada. Viu que ele estava a tremer. - Andas a trabalhar demasiado, Roscoe. - Gostava de

lhe chamar Roscoe e o que era certo era que a ele lhe agradava, embora não soubesse dizer porquê. - Em que ligação vais, no avião das seis? - Trouxe-lhe uma bebida e tirou de cima da cama um fato de duas peças e a pasta para que ele se pudesse deitar. - Posso levar-te ao aeroporto. Só tenho de ir para o clube depois das seis. Wendy City era o bar topless onde ela trabalhava e já não era obrigada a dançar. Lounds tinha sido um dos responsáveis pela situação. - Quando me telefonaste parecias a Toupeira Morocco disse ela. - Quem? - Sabes perfeitamente quem é, aparece na televisão

ao

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sábado de manhã, é muito misteriosa e ajuda o Esquilo Agente Secreto. Era o programa que costumávamos ver quando tiveste a constipação ... Hoje conseguiste uma coisa importante, não conseguiste? Não cabes dentro de ti. - Podes crer que sim. Hoje arrisquei-me e valeu a

pena. Consegui uma oportunidade que deve ser estupenda. - Tens tempo para uma soneca antes de arrancares. Estás a ir-te abaixo.

Lounds acendeu um cigarro. Embora já estivesse outro no

cinzeiro, que ardia lentamente. - Sabes uma coisa? - disse ela. - Aposto que, se acabasses a bebida e te deitasses, eras capaz de dormir um bocadinho. O rosto de Lounds, comprimido como um punho contra a nuca dela, descontraiu-se por fim, tornou-se de repente flexível, do mesmo modo como um punho fechado se transforma numa mão. As suas tremuras tinham passado. Contou-lhe tudo num murmúrio, com a boca quase que colada ao vale dos seus volumosos seios, enquanto ela, com um dedo, desenhava oitos na sua nuca.

180

- Só mostra como tu és inteligente, Roscoe - disse ela.

Mas agora vais dormir. Acordo-te quando forem horas para o avião. Está descansado porque há-de correr tudo bem. Quando tudo tiver acabado havemos de nos divertir à grande. Murmuraram os locais que haviam de visitar. Até que ele adormeceu.

CAPÍTULO 17

O Dr. Alan Bloom e Jack Crawford sentavam-se em cadeiras de dobrar, a única mobília que tinha deixado no gabinete de Crawfard. - O bar está vazio, Doutor. O Dr. Bloom estudava a face simiesca de Crawford enquanto tentava adivinhar o que é que viria a seguir. Para além das indisposições de Crawfard e da sua mania de tomar Alka-Seltzer, o Dr. Bloom conseguia distinguir nele uma inteligência fria como gelo.

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- Onde é que foi Will? - Foi dar um passeio para se acalmar - disse

Crawford. Odeia Lounds. - Teve medo de perder Will quando Lecter divulgou o

seu endereço? Pensou que ele pudesse voltar para a sua família? - Por momentos fiquei convencido disso. Foi uma coisa que o abalou muito. - É compreensível - disse Bloom. - Depois verifiquei que não lhe é possível voltar

para casa, nem Molly e Willy, não há qualquer hipótese sem que o Dentuças esteja afastado do caminho. - Conhece a Molly? - Conheço. É estupenda, gosto dela. É evidente que

o desejo dela era ver-me no inferno. Para já tenho de me manter afastado. - Está convencida de que você se está a servir do Will?

182

Crawford olhou para o Dr. Bloom com um olhar astuto.

- Tenho uns assuntos para discutir consigo. São coisas

que temos de verificar em conjunto. Quando é que tem de estar em Quântico? - Só na terça de manhã. É a única coisa que tenho

de fazer. - O Dr. Bloom era leitor convidado da Secção de Ciência do Comportamento na Academia do FBI. - Graham gosta de si. Não é capaz de imaginar que

você possa ter algum jogo escondido a respeito dele - disse Crawford. A observação de Bloom de que estava a usar Will tinha-o atingido.

E não tenho. Nem sequer me daria ao trabalho de tentar disse Bloom. - Sou tão honesto com ele como seria com qualquer paciente. - Exactamente. - Não, quero ser seu amigo e sou--o na realidade.

Jack, estou habituado a observar por causa da minha

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especialidade. Lembre-se, no entanto, que, quando você me pediu um estudo sobre ele, eu recusei. - Foi Petersen, do andar de cima, que pediu o estudo. - Foi você que o pediu. Não interessa, se alguma

vez tiver de fazer qualquer coisa a Graham, se houver mesmo qualquer coisa que possa beneficiar terapeuticamente outros, fá-lo-ei de uma forma tão impessoal que será totalmente irreconhecível. Se alguma vez fizer qualquer coisa de natureza acadêmica, só será publicada postumamente. - Depois de si ou depois de Graham? O Dr. Bloom não respondeu. - Uma coisa que eu notei, e sobre a qual sinto uma certa curiosidade: você não é capaz de estar sozinho numa sala com Graham, pois não? Sempre se conseguiu desembaraçar muito bem, mas nunca esteve frente a frente com ele. Qual é a razão disto tudo? Acha que ele é médium, é isso? - Não, é um eideteker, tem uma memória visual absolutamente extraordinária, mas não penso que seja médium. Se assim fosse, nunca deixaria que Duke lhe fizesse um teste, embora

183

isso possa não ter qualquer significado. Detesta ser examinado e testado, mas passa-se o mesmo comigo. - Mas ... - Will quer pensar nisto como se se tratasse de um simples exercício intelectual e dentro da limitada definição da ciência forense, isso é que é na realidade. É bom nesse campo, mas acho que há pessoas tão boas como ele. - Não muitas - disse Crawford.

- Além disso tem uma coisa que só se pode classificar

como empatia pura e projecção - disse o Dr. Bloom. - Pode concordar com o seu ponto de vista, ou com o meu, e mesmo talvez com outros pontos de vista que o aterrorizem e que possam deixá-lo doente. É um dom que se torna muito desconfortável, Jack. A percepção é uma ferramenta que pode ser usada nos dois sentidos.

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- Por que é que você nunca está sozinho com ele? - Porque tenho uma certa curiosidade profissional a

seu respeito e era coisa de que ele se apercebia num instante. É muito rápido. - Se o apanhasse a espreitar era capaz de baixar as persianas. - É uma analogia, desagradável mas não deixa de ser exacta. Já teve a sua vingança, Jack. Vamos ao que interessa. E de uma forma resumida. Não me sinto muito bem. - Uma manifestação psicossomática, provavelmente - disse Crawford. - Neste momento é um problema com a minha vesícula. O que é que você pretende? - Tenho um «médium» que me permite falar com o Dentuças. - O Tattler - disse Bloom. - Isso mesmo. Acha que haverá algum meio de o empurrarmos para um caminho autodestrutivo com aquilo que lhe possamos dizer? - Levá-lo ao suicídio? - O suicídio calhava-me mesmo bem.

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- Tenho dúvidas. Em certos casos de doenças mentais isso pode ser possível. Neste caso, tenho dúvidas. Se ele fosse autodestrutivo não era tão cuidadoso, não se protegia tão bem. Se ele fosse um esquizofrénico paranóico clássico, você seria capaz de o influenciar para que ele se tornasse visível. Podia mesmo levá-lo a fazer mal a si próprio. De qualquer modo, não era capaz de o ajudar. - O suicídio era um inimigo mortal de Bloom. - Não, estou convencido de que não - disse Crawford. Acha que conseguíamos enraivecê-lo? Por que é que quer saber? Para que fim? - Deixe-me fazer-lhe esta pergunta: era possível

enraivecê-lo e fixar a sua atenção? - Já está fixado em Graham como seu adversário, e

você sabe disso. Não se disperse. Está decidido a safar o pescoço de Graham, não está? - Acho que tenho de o fazer. Ou-é assim ou ele vai meter água no dia 25. Ajude-me. - Não estou lá muito certo de que você saiba o que está a pedir.

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Conselhos, é o que eu estou a pedir. Não me refiro a mim - disse o Dr. Bloom. - É o que

você está a pedir a Graham. Não quero que Interprete isto mal, eu normalmente não diria uma coisa destas, mas acho que tem de o saber: o que é que você pensa que constitui uma das mais fortes motivações de Wili? Crawford abanou a cabeça, indicando que não sabia. - É medo, Jack. O homem tem de se defrontar com uma quantidade enorme de medo. - Porque se feriu? - Não, não na sua totalidade. O medo surge com a imaginação, é uma penalização, é o preço da imaginação.

Crawfard ficou a olhar para as suas mãos duras cruzadas

sobre o estômago. Corou. Era embaraçoso falar sobre isso. - Certo. Não se preocupe por me dizer que ele tem medo. Não sou tão burro como isso, Doutor. - Nunca pensei que você o fosse, Jack.

185 - Nunca o enviaria lá para fora se não fosse capaz

de o proteger. Okay, se não o pudesse proteger a oitenta por cento. Ele não é mau. Não é o melhor, mas é rápido. Ajuda-nos a pescar o Dentuças, Doutor? Já morreu uma data de gente. - Só se Graham souber na sua totalidade o risco que tem à sua frente e o assumir voluntariamente. Quero ouvi-lo dizer isso.

- Sou como o senhor, Doutor. Nunca o engano. Ou pelo

menos não o faço mais do que é costume fazermos uns aos outros.

Crawford encontrou Graham no pequeno gabinete de trabalho que ficava próximo do laboratório de Zeller, onde se tinha instalado e que estava cheio de fotografias e de artigos pessoais das vítimas. Crawford esperou até que Graham pousasse o Law Enforcement Bulletin que estava a ler. - Deixa-me dar-te uma ideia do que está organizado para o dia 25. - Não precisava de dizer a Graham que o próximo dia 25 seria dia de lua

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cheia. - É o dia em que ele vai repetir a gracinha? - Sim, se tivermos qualquer coisa que corra mal nesse dia. - É quase certo.

- De ambas as vezes foi num sábado à noite. Birmingham,

28 de Junho, lua cheia, e calhava num sábado à noite. A 26 de Julho, em Atlanta, foi um dia antes da lua cheia, mas também foi num sábado à noite. Desta vez a lua cheia calha numa segunda-feira, 25 de Agosto. Parece que gosta dos fins-de-semana, mas, mesmo assim, estaremos prontos a partir de sexta-feira. - Prontos? Estaremos prontos?

- Correcto. Sabes como é que vem no manual: a maneira

ideal de investigar um homicídio? - Nunca vi nada feito dessa maneira - disse Graham. Isso nunca funciona assim. - Não. Praticamente nunca. No entanto seria estupendo se fôssemos capazes de o fazer: mandar um homem. Apenas um. Deixá-lo ir para o local. Está equipado com um transmissor e vai

186

falando continuamente. Tem o lugar todo por conta dele pelo tempo que quiser. Só ele ... só tu. Seguiu-se uma longa pausa. - Que é que estás a querer dizer-me? - A começar a noite de sexta-feira, 22, temos um Grumman Gulfstream em alerta permanente na Base da Força Aérea de Andrews. Consegui-o emprestado do Ministério do Interior. Tem o equipamento básico de laboratório montado. Ficaremos a aguardar: eu, tu, Zeller, Jimmy Price, um fotógrafo e dois elementos da Secção de Interrogatórios. Logo que a chamada chegue, estamos a caminho. Podemos estar em qualquer ponto do Leste ou do Sul numa hora e quinze minutos. - E os residentes? Não são obrigados a cooperar. Não vão esperar. - Estamos a cobrir todos os chefes de polícia e departamentos de xerifes. Um por um. Estamos a pedir que as ordens sejam transmitidas a todos os despachantes e oficiais de serviço. Graham abanou a cabeça.

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- Tretas. Eles não colaborariam. Nem podiam. - O que nós pedimos não é tanto quanto isso. Pedimos que, quando e se chegar um relatório, os primeiros agentes em cena se desloquem para inspeccionar. O pessoal médico vai a seguir e certifica-se de que ninguém ficou vivo. Se assim for, voltam a sair. Barreiras de estradas e interrogatórios, podem fazer como eles quiserem, mas a cena fica selada até que nós cheguemos. Quando nós aparecermos, tu entras. Tens o transmissor. Só falas para nós quando sentires que vale a pena, não faças nada quando vires que não é necessário ou não tem interesse. Leva o tempo que quiseres. A seguir entramos nós. - As pessoas de lá não vão esperar. - Evidentemente que não. Vão mandar alguns elementos dos Homicídios. Mas de qualquer modo, o pedido sempre terá algum efeito. Vai reduzir muito o tráfico no local e vais encontrar as pistas frescas. Frescas. Graham inclinou a cabeça para trás, encostando-a à cadeira, e ficou a olhar para o tecto.

187 - Evidentemente - disse Crawfard - que ainda temos treze dias antes desse fim-de-semana. Bolas, Jack. - Bolas porquê? - disse Crawford. - Parece que queres matar-me. - Não estou a compreender. - Não finjas. O que tu decidiste foi usar-me como

isco porque não tinhas mais nada. É por causa disso que, antes que faças a pergunta, vais dizer-me exactamente até que ponto vai ser perigoso desta próxima vez. E deixa-te de psicologia barata, que só é boa para ser usada num estupor de um idiota qualquer. Que é que achas que eu diria? Estás preocupado com medo de que já não tenha tomates desde aquilo que aconteceu com o Lecter? - Não. - Não posso censurar-te pelo-facto de teres pensado isso. Ambos conhecemos gente a quem isso aconteceu. Detesto a ideia de ser obrigado a andar com um colete Kevlar, com a coronha da arma a sair de um

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dos bolsos. Mas, porra, agora estou metido nisto até aos cabelos. Não podemos ir para casa enquanto ele andar à solta. - Nunca pensei que o fizesses. Graham viu que ele era sincero. - Há mais qualquer coisa, não há? Crawford não disse nada.

Molly, nem penses. De maneira nenhuma. Meu Deus, WilI, nem era capaz de te pedir uma coisa dessas.

Graham ficou a olhar para ele por momentos. - Oh, pelo amor de Deus, Jack. Decidiste fazer o jogo de Freddy Lounds, não foi? Tu e o Freddy fizeram um acordo.

Crawford ficou a olhar para uma pinta que tinha na

gravata. Por fim ergueu o olhar para Graham. - Bem sabes que é a melhor maneira de lhe lançar o anzol. O Dentuças vai passar o Tattler de fio a pavio. Quem mais é que nós temos? - E tinha de ser Lounds a fazê-lo?

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É ele que trabalha no Tattler. Então o programa é mandar umas bocas no Tattler a respeito do Dentuças e depois damos-lhe um tiro. Achas que isto é melhor do que a caixa postal? Não vale a pena responderes a isso, sei que é. Falaste com Bloom a este respeito? - Só de passagem. Vamos os dois encontrar-nos com ele. E com Lounds. Vamos desenvolver a operação da caixa postal ao mesmo tempo. - E a respeito da encenação? Tenho a impressão de

que tenho lhe sugerir qualquer lugar que tenha uma boa vista, ao ar livre. Um lugar qualquer de onde ele se possa aproximar. Não estou a vê-lo como atirador especial. Pode ser que me engane, mas não estou a imaginá-lo com uma espingarda. - Vamos ter vigias fixos nos pontos elevados. Estavam os dois a pensar a mesma coisa. O colete Kevlar conseguia deter os projécteis de nove milímetros do Dentuças e a sua faca, antes que Graham fosse atingido. Não havia qualquer modo de o proteger contra um tiro na cabeça, se um atirador

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escondido tivesse a oportunidade de disparar. - Falas tu com o Lounds. Não me apetece fazer isso.

- Ele precisa de te entrevistar, Will - disse Crawford

suavemente. - Tem de te tirar a fotografia. Bloom tinha avisado Crawford de que este ia ser o

ponto mais difícil.

189 CAPÍTULO 18

Quando chegou a altura, Graham surpreendeu tanto Crawford como Bloom. Parecia ansioso por se encontrar com Lounds e, apesar dos frios olhos azuis, tinha uma expressão afável. O facto de se encontrar na sede do FBI tivera um efeito positivo no comportamento de Lounds. Era delicado quando se lembrava de o ser e fazia o seu trabalho rapidamente e em silêncio. Graham irritou-se uma única vez: recusou-se frontalmente a que Lounds pudesse ver o diário da,Sr.' Leeds ou qualquer correspondência particular de ambas as famílias. Quando a entrevista começou, respondeu às perguntas de Lounds de uma maneira civilizada. Ambos os homens consultaram notas tiradas na conferência que tinham tido com o Dr. Bloom. As perguntas e as respostas foram muitas vezes reconstruídas.

Alan Bloom estava convencido de que era difícil

esquematizar as coisas até ao mais ínfimo pormenor. Por último resolveu-se a expor simplesmente as suas teorias sobre o Dentuças. Os outros ouviam como estudantes de karate numa aula de Anatomia. O Dr. Bloom referiu que o comportamento do Dentuças

e a sua carta indicavam um esquema de projecção de ilusSes que o compensavam de sentimentos intoleráveis de inadaptação. O estilhaçar dos espelhos relacionava esses sentimentos com a sua aparência.

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A objecção do assassino ao nome «Dentuças»* era baseada

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nas implicações psicológicas do nome. Bloom acreditava que ele tinha um conflito homossexual inconsciente, um medo terrível de ser gay. A opinião de Bloom era reforçada por uma curiosa observação que tinha sido feita na casa dos Leeds: as marcas de dobras e manchas de sangue tapadas indicavam que o Dentuças tinha vestido uns shorts a Charles Leeds depois de ele ter morrido. O Dr. Bloom acreditava que ele tinha feito aquilo para salientar a ausência de interesse que tinha em Leeds. O psiquiatra falou dos fortes elos de ligação que

se encontram entre os comportamentos agressivos e sexuais de sádicos logo na primeira fase da sua vida. Os ataques selvagens contra mulheres, executados na presença das suas famílias, representavam nitidamente ataques a uma figura maternal- Bloom, andando de um lado para o outro, dizendo metade das coisas quase que para ele próprio, classificava o indivíduo como «filho de um pesadelo». Crawfard baixou os olhos, sentindo a compaixão que havia na sua voz.

Na entrevista com Lounds, Graham fez afirmações que nenhum investigador faria e às quais nenhum jornal daria crédito. Especulou dizendo que o Dentuças era feio, impotente com pessoas do sexo oposto, e afirmava falsamente que o assassino tinha molestado sexualmente as suas vítimas masculinas. Graham disse que o Dentuças era a maior anedota que tinha conhecido em toda a sua vida e sem dúvida o resultado de uma relação incestuosa. Salientou ser evidente que o Dentuças não era tão inteligente como Hannibal Lecter. Prometeu fornecer ao Tattler mais indicações e pontos de vista sobre o assassino, à medida que lhe ocorressem. Disse mesmo que muitos agentes da lei não concordavam com ele, mas enquanto dirigisse a investigação, o Tattler podia ter a certeza de que teria da parte dele todas as informações disponíveis.

* No original, «Tooth Fairy» [Fada do Dente].

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Lounds tirou uma quantidade enorme de fotografias. A fotografia de base tinha sido tirada no «esconderijo de Graham em Washington», um apartamento que ele tinha pedido emprestado até «conseguir esmagar o Dentuças». Era o único lugar onde conseguia «encontrar solidão» na «atmosfera agitada» da investigação. A fotografia mostrava Graham em roupão de banho sentado a uma secretária, trabalhando a altas horas da noite. Representava uma «concepção de artista» do Dentuças absolutamente grotesca. Atrás dele podia ver-se através da janela parte da cúpula do Capitólio iluminada. Mais importante ainda, no canto inferior esquerdo da janela, desfocado, mas legível, distinguia-se o anúncio de um motel conhecido do outro lado da rua. Se quisesse, o Dentuças podia encontrar o apartamento. Na sede do FBI, Graham foi fotografado junto a um espectrómetro de massa. Não tinha nada que ver com o caso, mas Lounds achou que dava um certo toque. Graham chegou ao ponto de concordar em que lhe tirassem uma fotografia com Lounds, em que este o entrevistava. Tiraram esta fotografia diante dos imensos armeiros da secção de Armas de Fogo e Ferramentas. Lounds empunhava uma automática de nove milímetros do mesmo tipo da arma do Dentuças. Graham apontava para o silenciador de fabrico caseiro. Feito de um pedaço de tubo de antena de televisão.

O Dr. Bloom ficou surpreendido quando viu que, antes de

Crawfard disparar a máquina fotográfica, Graham colocava uma mão no ombro de Lounds num gesto amistoso de camaradagem. A entrevista e as fotografias deviam ser publicadas

no Tattler a publicar no dia seguinte, segunda-feira, 11 de Agosto. Logo que reuniu todo o material, Lounds partiu para Chicago. Disse que queria ele próprio supervisionar a composição. Combinou encontrar-se com Crawford na terça de tarde a cinco quarteirSes da armadilha. A partir de terça-feira, quando o Tatteler se encontrava em todas as bancas, encontravam-se

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montadas duas armadilhas para o monstro.

192

Graham passaria a ir todas as noites à sua «residência

temporária» mostrada na fotografia do Tatteler. Na mesma edição, um anúncio pessoal codificado convidava o Dentuças a deslocar-se a uma caixa postal em Annapolis, que passou a estar vigiada durante vinte e quatro horas por dia. Se ele desconfiasse da caixa postal, podia pensar que o esforço para o apanhar tinha sido concentrado aí. A partir daí, Graham passaria a ser um alvo muito mais atraente, raciocinou o FBI. As autoridades da Florida forneceram uma vigilância permanente em Sugarloaf Key. Havia um ar de descontentamento entre os caçadores - duas operações de primeira grandeza ocupavam mão-de-obra que podia ser utilizada noutros trabalhos, e a presença de Graham todas as noites na armadilha limitava os seus movimentos na área de Washington. Embora Crawford. pensasse que esta era a melhor maneira de proceder, o plano era demasiado passivo para o seu gosto. Tinha a sensação de que estavam a brincar com eles próprios na escuridão da lua, com menos de duas semanas antes que ela se erguesse novamente como lua cheia. O domingo e a segunda passaram de uma forma curiosamente agitada Os minutos arrastavam-se e as horas parecia que voavam.

Na segunda-feira de tarde, Spurgen, chefe de instrutores SWAT em Quântico, circundou o bloco de apartamentos. Graham viajava ao seu lado e Crawford seguia no assento de trás. - O tráfico de peSes diminuiu cerca das sete e um quarto. É a hora a que toda a gente se prepara para jantar - disse Spurgen. Com um corpo compacto e peludo e o boné de baseball puxado para trás, parecia-se mais com um jogador. - Amanhã a noite, quando atravessar a linha de caminho de ferro da B&O, dê-nos um sinal na banda livre. Tente fazê-lo entre as oito e trinta e as oito e quarenta. - Entrou no parque dos apartamentos. - Esta disposição não é uma maravilha, mas podia ser pior. Amanhã à noite vai estacionar aqui. A partir daí

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vamos mudar todas as

193 noites o local onde vai estacionar, mas será sempre deste lado. São setenta e cinco jardas para a entrada dos apartamentos. Vamos a pé. Spurgen, baixo e de pernas arqueadas, caminhou à

frente de Graham e de Crawfard.

Anda à procura de lugares onde possa apanhar o bandido,

pensou Graham. - Provavelmente será no caminho a pé que a coisa acontecerá, se chegar a acontecer - disse o chefe da SWAT. Veja, daqui temos uma linha directa do seu carro até à entrada dos apartamentos, um caminho natural passando pelo centro do parque. Fica tão longe quanto possível da linha de carros que estarão aqui durante todo o dia. Será obrigado a caminhar em campo aberto para se aproximar. Ouve bem? Perfeitamente - disse Graham. - Demasiado bem neste parque. Spurgen tentou descobrir qualquer coisa no rosto de Graham, mas não encontrou nada que conseguisse reconhecer. Parou no meio do parque.

- Vamos reduzir levemente a intensidade de iluminação

destes candeeiros para tornar mais difíceis as coisas para um homem munido de uma espingarda. - Também será mais difícil para a sua gente - disse Crawford.

- Dois dos nossos têm sistemas Startron de visão nocturna - disse Spurgen. - Além disso, vou pedir-lhe para pulverizar os seus casacos com um spray incolor que lhe vou dar, Will. Apropósito, não se esqueça de que esteja o calor que estiver, tem de usar permanentemente colete à prova de bala. Certo?

- De acordo. - O que é? - É Kevlar... o quê, Jack? Segunda oportunidade? - Segunda oportunidade - disse Crawford. - É quase certo que se dirigirá a si, provavelmente vindo da retaguarda, ou poderá pensar em dirigir-se-lhe, voltando-se para

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194

disparar quando o tiver ultrapassado - disse Spurgen. - Já por sete vezes que disparou à cabeça, não foi? Viu que isso funciona. Tentará fazer o mesmo consigo se lhe der tempo para tanto. Não lhe dê tempo para isso. Depois de lhe mostrar umas coisas na entrada e no patamar, vamos à carreira de tiro. Tem dúvidas? É capaz de proceder como eu lhe disse? - Ele é capaz - disse Crawford.

Na carreira de tiro, Spurgen era uma sumidade. Obrigou

Graham a colocar tampSes e protectores de orelhas e apresentava-lhe alvos que lhe surgiam dos mais variados ângulos. Sentiu-se aliviado porque Graham não usava o 38 regulamentar, mas preocupava-o o flash que saía do cano. Trabalharam durante duas horas. Insistiu em verificar o cilindro do 44 de Graham quando este acabou de disparar.

Graham tomou um chuveiro e mudou de roupa para se

libertar do cheiro do fumo da pólvora, antes de se meter a caminho para a sua última noite livre com MoIly e Willy.

Depois de jantar, levou a esposa e o enteado ao

supermercado, onde fez uma considerável escolha de melSes. Preocupou-se em que se abastecessem abundantemente - a última edição do Tattler ainda estava nos escaparates junto às caixas e fazia votos para que Molly não visse a edição seguinte na próxima manhã. Não lhe queria dizer o que se estava a passar.

Quando ela lhe perguntou o que é que ele queria para o

jantar na semana seguinte, teve de lhe dizer que estaria ausente, que tinha de voltar a Birmingham. Era a primeira verdadeira mentira que alguma vez lhe tinha dito, e a consciência disso fazia-o sentir-se imensamente desconfortável. Ficou a olhá-la no seu cirandar pelos corredores do supermercado: Molly, a sua irrequieta e linda esposa, com a sua incessante vigilância no despiste de caroços, a sua insistência em exames médicos periódicos para ele e para Willy, o seu medo controlado do escuro, o seu conhecimento,

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adquirido à custa de muito sacrifício, de que tempo é felicidade. Conhecia o valor dos seus dias. Podia reter um momento pelo seu valor. Tinha-o ensinado a aproveitar tudo o que lhe surgia.

195 Pachelbel's Canon enchia o quarto inundado de sol onde se tinham conhecido e havia um sentimento de exultação impossível de ocultar - mesmo assim, o medo pairava no ar como a sombra de uma fera: era demasiado bom para durar muito. Molly, nas suas deslocações nos corredores do supermercado de um lado para o outro, mudava frequentemente a carteira que trazia a tiracolo de um ombro para o outro, como se a arma que trazia na bolsa exterior pesasse demasiado.

Graham ocupou-se finalmente dos melSes, blasfemando

enquanto procedia à sua escolha, escandalizando-se ele próprio com a sua linguagem. Carregados de modos diferentes, com mentiras, armas e artigos de mercearia, os três constituíam uma pequena e curiosa tropa. Molly pressentiu um rato, mas não disse a Graham

até as luzes se apagarem. Teve um pesadelo com pegadas que se dirigiam para uma casa onde os quartos mudavam constantemente.

196

CAPÍTULO 19

Há uma tabacaria para jornais no Aeroporto Internacional de Lambert, em Saint Louis, que tem a maior parte dos jornais publicados nos Estados Unidos. Os jornais de New York, Washington, Chicago e Los Angeles são transportados por via aérea, pelo que podem ser comprados no próprio dia em que são publicados. Como acontece em muitas tabacarias, esta faz parte de uma cadeia onde é costume haver também, juntamente com as revistas standard e os jornais, alguma quinquilharia. Quando foi feita a entrega do Chicago Tribune, às dez horas de segunda-feira à noite, um molho de jornais Tattler atados encontrava-se no chão. O molho ainda estava morno no meio.

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O empregado da tabacaria trabalhava em frente das estantes, distribuindo os Tribune. Tinha imenso que fazer. Já era hábito os empregados de serviço durante o dia não executarem a parte do serviço que lhes competia. No meio de toda esta azáfama apercebeu-se da presença de um par de botas pretas com fecho de correr. Um turista. Não, as botas apontavam para ele. Alguém que queria realmente alguma coisa. O empregado da tabacaria queria acabar de arranjar os seus Tribune, mas a atenção insistente do cliente fê-lo ficar irritado. O seu negócio era directo. Não precisava de ser amável. - O que é que deseja - disse ele, falando sem se levantar. - Dê-me um Tattler.

197 - Tem de esperar até eu desatar o molho. As botas não se afastaram. Estavam demasiado próximas. - Já lhe disse que tem de esperar até que eu desate

o molho. Compreendeu? Não vê que estou a trabalhar? Uma mão, um lampejo de aço brilhante e a corda do molho que se partiu com um som estranho. Um dólar que caiu no chão à sua frente. Uma cópia fresca do Tattler tirada do meio do molho fez que as outras caíssem para o chão. O empregado pôs-se de pé. Tinha o rosto congestionado. O outro afastava-se com o jornal debaixo do braço. - Hei! hei, você. O homem voltou o rosto para ele. - Eu? - Sim, você. Disse-lhe que ...

- Disse-me o quê? - Aproximava-se até ficar demasiado

próximo. - Disse-me o quê? Normalmente um negociante consegue, com modos rudes, intimidar os seus clientes, mas havia qualquer coisa de terrível na calma deste. O empregado olhou para o chão. - Tenho de lhe dar o troco. Dolarhyde voltou-lhe as costas e afastou-se. O rosto do empregado da tabacaria ficou a arder por mais de meia hora. É isso, este gajo também esteve

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aqui a semana passada. Se ele aqui volta digo-lhe onde é que ele deve ir. Tenho uma coisa especial debaixo do balcão para os espertinhos. Dolarhyde não olhou para o Tattler enquanto estava no Aeroporto. A mensagem que Lecter lhe mandara na última quinta-feira deixara-o confuso. Evidentemente que o Dr. Lecter tivera razão quando lhe disse que ele era lindo, e era excitante ler uma coisa dessas. Ele era lindo. Sentiu-se satisfeito pelo receio do Doutor em relação ao polícia. Lecter parecia não ser capaz de compreender muito melhor do que o público. No entanto, estava em pulgas por saber se Lecter lhe tinha mandado uma outra mensagem. Só ia ver quando chegasse a casa. Dolarhyde tinha orgulho no seu autocontrolo.

198

Enquanto conduzia, pensava no que se passara com o empregado da tabacaria. Houve uma altura em que teria pedido desculpa por ter incomodado o homem e não voltaria a pôr os pés na tabacaria. Durante anos tinha aceitado toda a merda que as outras pessoas lhe tinham dado. Mas isso acabara. O homem podia ter insultado Francis Dolarhyde: mas não podia enfrentar o Dragão. Fazia tudo parte do renascer.

+ meia-noite o candeeiro da sua secretária ainda estava

aceso. A mensagem do Tattler fora descodificada, para depois a amachucar e deitar para o chão. Pedaços do Tattler estavam espalhados por todos os lados, depois de Dolarhyde ter recortado os artigos para o seu diário. O grande volume permanecia aberto diante da pintura do Dragão, a cola ainda a secar nos pontos em que tinham sido colados novos artigos. Por baixo deles, recentemente fixado, havia um pequeno saco de plástico que, por enquanto, ainda se encontrava vazio. A legenda ao lado do saco dizia: «Com estes ele ofendeu-me.» Mas Dolarhyde já não estava à secretária. Estava sentado nas escadas da cave, envolvido pela humidade da terra e do bolor. A luz da lanterna eléctrica percorreu as mobílias protegidas com panos, as costas poeirentas dos

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grandes espelhos que outrora tinham estado pendurados na casa e que agora jaziam de encontro às paredes, a arca contendo a sua mala de dinamite. A luz da lanterna deteve-se numa forma alta, envolvida em panos, uma das muitas que se encontravam no canto mais distante da cave. Teias de aranha roçaram-lhe o rosto quando se dirigiu para lá. O pó que se levantou quando tirou a cobertura de pano fê-lo espirrar. Reteve as lágrimas enquanto fazia que a luz se reflectisse na velha cadeira de rodas em carvalho que tinha destapado. Era de costas altas, pesada e forte, uma das três que se encontravam na cave. O condado tinha-as fornecido à avó em 1940, na altura em que ela dirigia um lar naquela própria casa.

199 As rodas chiaram enquanto empurrava a cadeira pelo soalho. Apesar do seu peso, transportou-a facilmente pelas escadas acima. Quando chegou à cozinha oleou as rodas. As pequenas rodas da frente ainda chiavam, mas as rodas de trás tinham bons rolamentos e giravam livremente com um pequeno toque do seu dedo.

A ira devastadora que sentia abrandou um pouco enquanto

ouvia o som produzido pelo movimento das rodas. Sem reparar, Dolarhyde começou a imitar o ruído produzido pelas rodas.

200

CAPÍTULO 20

Quando Freddy Lounds deixou o escritório do Tatteler, ao meio-dia de 'terça-feira, sentia-se cansado e desorientado. Tinha preparado o artigo para o Tattler durante a sua viagem de avião para Chicago e exactamente trinta minutos depois de ter chegado o artigo estava na composição. Durante o resto do tempo trabalhara continuamente

nos seus papéis, não recebendo qualquer chamada. Era bem organizado e conseguira assim um trabalho de base sólida em que se apoiar. Quando o Dentuças fosse apanhado, o furo estava garantido, bem como o crédito da sua

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captura. O material de base encaixaria perfeitamente. Conseguira fazer que três dos melhores repórteres do Tatteler estivessem prontos para arrancar ao menor sinal. Poucas horas depois da captura estariam em posição de poder investigar os detalhes sobre o modo como o Dentuças vivera. O seu agente falava em números muito elevados. O facto de discutir o projecto com ele antes de tempo era uma violação do acordo que tinha feito com Crawford. Para cumprir o que fora combinado, todos os contactos e memorandos deveriam ter uma data posterior à captura. Crawford tinha um argumento muito forte - gravara a ameaça de Lounds. A transmissão entre estados de uma ameaça era um crime passível de pronúncia, que não poderia ser englobado na protecção de que Lounds gozava. Lounds sabia também que

201 Crawfard, com um simples telefonema, podia causar-lhe problemas sérios com o Serviço de Impostos. Embora tivesse poucas ilusSes acerca do rigor do

seu trabalho, havia em Lounds alguma honestidade, o que lhe permitia desenvolver o seu projecto com um fervor quase que religioso. Sentia-se possuído por uma visão de uma melhor vida do lado onde ficava o dinheiro. Enterrado na lama onde sempre estivera atolado, as suas velhas esperanças ainda persistiam e começavam agora a agitar-se e a tentar erguer-se. Satisfeito por as suas máquinas e equipamentos de gravação se encontrarem prontos, meteu-se no carro a caminho de casa, para dormir três horas antes do voo para Washington, onde se ia encontrar com Crawford, próximo da armadilha. Um aborrecimento imprevisto na garagem subterrânea.

A carrinha preta estacionada no lugar ao lado do seu estava em cima da linha. Quase que ocupava o espaço claramente marcado com o letreiro «Mr. Frederick Lounds». Lounds abriu a sua porta com tanta força que esta

bateu na parte lateral da carrinha, deixando-lhe uma mossa e um arranhão. Aquilo havia de ensinar o

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filho da mãe a ter respeito pelos outros. Estava a fechar o carro quando a porta da carrinha se abriu atrás dele. Ia a voltar-se, já tinha quase que executado meia volta, quando o bastão achatado lhe bateu por cima da orelha. Ergueu as mãos, mas os joelhos não o aguentaram, ao mesmo tempo sentia uma enorme pressão que lhe exerciam no pescoço, faltando-lhe o ar. Quando conseguiu respirar de novo, inalou clorofórmio.

Dolarhyde estacionou a carrinha atrás da sua casa, desceu e parou por momentos para se espreguiçar. Durante todo o caminho desde Chicago tinha aguentado vento lateral e sentia os braços doridos. Observou o céu nocturno. A queda dos meteoros Perseid não devia tardar e não queria de modo nenhum perder o espectáculo. Revelação: ... e a sua cauda atingiu um terço das

estrelas do céu, fazendo-as cair sobre a terra ...

202

Os seus feitos noutros tempos. Precisava de ver o espectáculo e recordar-se. Abriu a porta das traseiras e procedeu à investigação de rotina da casa. Quando voltou a sair, trazia uma máscara feita com uma meia de senhora. ~ Ligou uma rampa à porta de trás da carrinha. Em seguida tirou Freddy Lounds. Este só tinha as cuecas, além de uma mordaça e uma venda. Embora estivesse só semiconsciente, não cambaleou. Mantinha-se sentado muito direito, a cabeça apoiada no encosto da velha cadeira de rodas de madeira de carvalho. Estava colado à cadeira com uma cola especial desde a cabeça até às solas dos pés. Dolarhyde levou-o para casa e colocou-o a um canto da sala, voltado para a parede, como se se tivesse comportado mal. - Tem frio? Quer um cobertor? Arrancou os guardanapos que tapavam os olhos e a boca de Lounds. Este nãO" respondeu. Desprendia-se dele um cheiro enjoativo a clorofórmio. - Vou buscar-lhe um cobertor - Dolarhyde tirou uma manta de viagem de um sofá e enrolou-a à volta de Lounds, tapando-o até ao pescoço. A seguir colocou-lhe um frasco de amoníaco debaixo do nariz.

Lounds abriu os olhos, conseguindo ver apenas a

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mancha indistinta das paredes. Tossiu e começou a falar. - Acidente? Estou muito ferido? Atrás dele soou a voz: - Não, Sr. Lounds. Vai ficar bom.

- Doem-me as costas. A minha pele. Tenho queimaduras?

Deus queira que não me tenha queimado. - Queimado? Queimado. Não. Deixe-se estar a

descansar. Venho já ter consigo. - Então deixe-me deitar. Ouça, preciso de telefonar para o meu escritório. Meu Deus, estou num aparelho especial. Tenho alguma coisa partida nas costas, diga-me a verdade? Ouviram-se passos que se afastavam. - O que é que eu estou a fazer aqui? - No final da frase o tom da pergunta subiu num tom agudo.

203 A resposta veio de uma certa distância atrás dele. - A recuperar, Sr. Lounds. Lounds ouviu passos que subiam uma escada. Ouviu

água a correr de um chuveiro. Agora sentia a cabeça menos pesada. Lembrava-se de que saíra do escritório e se metera no carro, mas a partir daí não se lembrava de mais nada. A parte lateral da cabeça latejava de uma forma insuportável e o cheiro de clorofórmio fê-lo tossir. Preso numa posição rigidamente erecta, receava ter um acesso de vómitos. Abriu a boca o máximo que podia e inspirou profundamente. Conseguia ouvir o bater do coração. Lounds queria convencer-se de que estava a dormir. Tentou erguer o braço do apoio da cadeira, fazendo força deliberadamente, até que a dor na palma da mão e no braço foi suficiente para o acordar, dissipando-lhe qualquer possível ideia de que fosse um sonho. Não estava a dormir. O cérebro começou a trabalhar a toda a velocidade. Fazendo um esforço conseguia ver os braços, embora só por alguns segundos de cada vez. Conseguiu ver como estava preso. Não era nenhum aparelho para proteger costas partidas. Não era nenhum hospital. Alguém o tinha apanhado. Teve a impressão de ouvir passos no andar de cima,

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mas também podiam ser as batidas do seu coração. Tentou pensar. Fez um esforço para pensar. Mantém-te frio e pensa, murmurou. Pensafriamente. As escadas rangeram quando Dolarhyde desceu. Sentiu o peso dele em cada passada. Uma presença

que agora se encontrava atrás dele.

Lounds pronunciou várias palavras antes de conseguir

ajustar o volume da voz. - Ainda não vi o seu rosto. Não fui capaz de o identificar. Não sei qual é o seu aspecto. O Tattler, trabalho para o The National Tattler, pagaria uma recompensa, uma grande recompensa por mim. Meio milhão, talvez um milhão. Um milhão de dólares. Atrás dele fez-se silêncio. A seguir ouviu-se um rangido das molas de um sofá. Estava então a sentar-se.

204

- Em que é que está a pensar, Sr. Lounds? PSe de lado a dor e o medo e pensa. Já. De uma vez

por todas. Para ganhar algum tempo. Para ganhar anos. Ainda não decidiu matar-me. Não me deixou ver o rosto. - Em que é que está a pensar, Sr. Lounds? - Não sei o que me aconteceu. - Sabe quem eu sou, Sr. Lounds? - Não. Não quero saber, acredite-me. - De acordo com a sua opinião, sou um tarado, um

prevertido de um falhado sexual. Um animal, como disse. Provavelmente liberto de um manicómio por um juiz benevolente. - Normalmente, Dolarhyde teria evitado o sibilante «s» de «sexual», mas na presença desta audiência, em que não havia o perigo de se rirem dele, sentia-se à vontade. - Agora já sabe, não sabe? Não mintas. Pensa depressa. - Sim. - Por que é que escreve mentiras, Sr. Lounds? Por

que é que diz que eu sou doido? Responda. - Quando uma pessoa ... quando uma pessoa faz coisas que os outros não conseguem compreender,

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chamam-lhe ... - Doido. - Chamam-lhe ... como fizeram aos Irmãos Wright. Vem tudo na história ... - História. Compreende qual é a minha missão, Sr.

Lounds? Compreender. Ali estava uma oportunidade. Uma

oportunidade. - Não, mas penso que terei uma oportunidade de compreender e então também todos os meus leitores poderão compreender. - Sente-se privilegiado? - Não há dúvida de que é um privilégio. Mas tenho de lhe confessar, de homem para homem, que me sinto aterrorizado. A concentração é extremamente difícil quando nos sentimos aterrorizados. Se tem uma ideia brilhante, não tem necessidade de me aterrorizar para que eu me sinta impressionado. - De homem para homem. De homem para homem. Noto

que utiliza essa expressão num sentido de franqueza, Sr. Lounds.

205 Mas, está a ver, eu não sou um homem. Comecei por ser um homem, mas pela graça de Deus e pela minha própria vontade, tornei-me outro e mais do que um homem. Diz que está aterrorizado. Acredita que Deus está aqui presente, Sr. Lounds? - Não sei. - Neste momento está a rezar-Lhe? - Algumas vezes rezo. Tenho de confessar que normalmente só rezo quando me sinto aterrorizado. - E Deus vem em seu auxílio?

- Não sei. Depois de a altura passar não penso nisso. E

no entanto devia fazê-lo. - Devia. Hm-hmmmm. Há tantas coisas que devia compreender. Dentro em pouco vou ajudá-lo a compreender ... Dá-me licença por uns momentos? - Com certeza. Passos a saírem da sala. O ruído do abrir de uma

gaveta da cozinha. Lounds fizera a cobertura de muitos assassínios cometidos em cozinhas, onde as coisas estavam à mão. Os relatórios da polícia eram capazes de modificar completamente o modo como se

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viam as cozinhas. Ouviu-se o barulho de água a correr. Lounds pensava que devia ser noite. Crawford e Graham estavam à espera dele. De certeza que já tinham dado pela sua falta. Uma grande e profunda tristeza pulsou por momentos em sintonia com o seu medo. Enquanto sentia a respiração atrás dele, conseguiu apanhar pelo canto do olho um lampejo de branco. Uma mão possante e pálida. Segurava uma chávena de chá com mel. Lounds sorveu-o por uma palha. - Era capaz de fazer uma grande reportagem - disse entre dois sorvos. - Tudo aquilo que quiser dizer. Descreva as coisas da maneira que quiser ou então não descreva nada, não diga nada. - Shhh. - Um dedo bateu-lhe no topo da cabeça. As

luzes aumentaram de intensidade. A cadeira começou a rodar. - Não. Não quero vê-lo. - Oh, mas tem de ver, Sr. Lounds. O senhor é um repórter. Está aqui para fazer uma reportagem. Quando eu o voltar, abra os

206

olhos e olhe para mim. Se não os abrir garanto-lhe que lhe agrafo as pálpebras na testa.

Um ruído de boca húmida, um estalo e a cadeira rodou.

Lounds ficou voltado para a sala com os olhos fechados. Um dedo bateu-lhe insistentemente no peito. Um toque nas pálpebras. Olhou. Para Lounds, que se encontrava sentado, parecia-lhe muito alto, de pé diante dele no seu quimono. Uma máscara com uma meia de senhora encontrava-se enrolada até ao nariz. Virou as costas a Lounds e deixou cair o roupão. Os potentes músculos das costas flectiram-se sob a brilhante tatuagem da cauda desenhada ao longo da parte inferior das costas e que se enrolava à volta da perna.

O Dragão voltou a cabeça lentamente, olhou para Lounds

por cima do ombro e sorriu de um modo infernal. - oh, meu querido Senhor Jesus - disse Lounds.

Page 191: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Lounds encontrava-se agora no meio da sala, voltado para o ecrã. Dolarhyde, atrás dele, tinha voltado a vestir o roupão e tinha colocado a dentadura que lhe permitia falar. - Quer saber quem é que eu sou? Tentou acenar com a cabeça; a cadeira arrepanhou-lhe o escalpe. - Mais do que qualquer outra coisa, mas tinha medo de perguntar. _ Olhe. O primeiro slide era a gravura de Blake, o grande Homem-Dragão, asas abertas e cauda a chicotear o ar, pousado sobre a Mulher Vestida de Sol. Está a ver agora? - Estou. Rapidamente Dolarhyde foi passando os outros slides. Click. A Sr a Jacobi viva. - Está a ver? - Sim. Click. A Sr a Leeds viva. - Está a ver? - Estou.

207 Click. Dolarhyde, o Dragão ao ataque, músculos flectidos e tatuagem da cauda em evidência, na cama dos Jacobi. - Está a ver? Sim. Click. A Sr a Jacobi à espera. - Está a ver? - Sim. Click. A Sr.a Jacobi depois do que se passou. - Está a ver? Sim. Click. O Dragão ao ataque. - Está a ver? - Sim. Click. A Sr.' Leeds à espera, o corpo do marido ao lado dela. - Está a ver? - Sim.

a Click. A Sr. Leeds depois do que se passou, mascarada

com sangue. - Está a ver? Sim. Click. Freddy Lounds, uma amostra de um fotógrafo do Tattler. - Está a ver? - Oh, meu Deus. - Está a ver? - Oh, meu Deus. - Está a ver? - Por favor, não. - Não o quê?

As palavras saíram-lhe como uma criança que está a falar a chorar.

Eu não. Não o quê? Você é um homem, Sr. Lounds. Você é um homem? - Sou. - Quer dizer com isso que eu sou alguma espécie de maricas?

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208

Meu Deus, não. O senhor é maricas, Sr. Lounds? Não. Vai escrever mais mentiras a meu respeito, Sr. Lounds? Oh, não, não. Por que é que escreveu mentiras, Sr. Lounds? Foi a polícia que me disse. Fiz aquilo que eles me disseram.

- Citou Will Graham. - Foi Graham que me disse as mentiras, Graham. - E agora vai dizer a verdade? Sobre mim. Sobre o

meu trabalho. A minha transformação. A minha arte, Sr. Lounds. Isto é arte? - Arte. O medo no rosto de Lounds fazia que Dolarhyde se sentisse livre para falar e sentia-se à vontade para voar pelas sibilantes e fricativas; explosivas eram as suas grandes asas rendilhadas. - Você disse que eu, que vejo mais além do que você, sou louco. Eu, que impulsionei o mundo muito mais do que você, sou louco. Ousei muito mais do que você. Imprimi o meu único selo na terra tão fundo que perdurará muito mais do que a sua poeira. A sua vida comparada com a minha é muito menos do que o rasto de um caracol numa pedra. Um pequeno rasto de muco prateado a entrar e a sair das letras no meu monumento. - As palavras que Dolarhyde tinha escrito no seu diário vinham-lhe agora à mente em catadupa. - Eu sou o Dragão e você chama-me louco? Os meus movimentos são seguidos e registados tão avidamente como os de uma famosa estrela convidada. Sabe alguma coisa sobre a estrela convidada em 1054? Evidentemente que não. Os seus leitores seguem-no como uma criança segue com um dedo o rasto de um caracol, e percorrendo as mesmas fatigadas evoluções de raciocínio. Regresse ao seu diminuto crânio e à sua cara de parvo como um caracol segue o seu próprio rasto de regresso a casa. » Diante de mim, você é um caracol ao sol. Está na presença de um grande renascido e não é capaz de reconhecer nada. Você é menos do que uma formiga acabada de nascer.

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209 » Está na sua natureza fazer uma única coisa correctamente: diante de mim você treme e tem razão para isso. Medo não é aquilo que você me deve, Lounds, você e todos os outros basbaques. Você deve-me reverência. Dolarhyde manteve-se de pé com a cabeça baixa, o polegar e o indicador apoiados na ponta do nariz. A seguir abandonou a sala.

Ele não tirou a máscara, pensou Lounds. Ele não tirou a

máscara. Se ele volta sem a máscara, sou um homem morto. Deus meu, estou todo molhado. Tentou voltar os olhos para a porta de saída, procurando adivinhar os sons que se ouviam nas traseiras da casa. Quando Dolarhyde voltou ainda tinha a máscara. Trazia com ele uma lancheira e dois termos. Para o seu regresso a casa. - Segurou um dos termos. Gelo, vamos precisar disso. Antes de sairmos ainda temos de gravar umas coisas. - Pendurou um microfone na manta de viagem, junto do rosto de Lounds. - Repita comigo. Gravaram durante cerca de meia hora. Finalmente, disse: - É tudo, Sr. Lounds. Trabalhou muito bem. - Deixa-me agora ir embora? - Falta pouco. No entanto há ainda qualquer coisa que vai fazer que eu o ajude a compreender melhor e a lembrar-se. Dolarhyde afastou-se. - Quero compreender. Quero que saiba como lhe agradeço o facto de me libertar. Pode ter a certeza de que, daqui para a frente, serei perfeitamente justo. Dolarhyde não podia responder. Tinha mudado a dentadura. O gravador estava de novo a trabalhar. Sorriu para Lounds, um sorriso onde sobressaíam as manchas acastanhadas da dentadura. Colocou a mão no coração de Lounds e, inclinando-se como se fosse beijá-lo, trincou-lhe os lábios, cuspindo-os para o chão.

210

CAP+TULO 21

Page 194: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Madrugada em Chicago, um ar pesado e um céu cinzento e

muito baixo. Um guarda de segurança saiu do átrio do edifício do Tattler e parou na curva, fumando um cigarro e esfregando a nuca. Estava sozinho e no silêncio que se fazia sentir conseguia ouvir o click da mudança de luzes dos semáforos no cimo da colina, a um bom quarteirão de distância. A cerca de meio quarteirão a norte das luzes, fora

da vista do guarda, Dolarhyde agachava-se ao lado de Lounds, nas traseiras da carrinha. Arranjou a manta que o envolvia, de modo a esconder-lhe a cabeça. Lounds sentia dores enormes. Parecia que se encontrava em estado de choque, mas a mente trabalhava a toda a velocidade. Havia coisas de que tinha de se lembrar. A venda estava esticada sobre o nariz, o que lhe permitia ver os dedos de Dolarhyde que lhe verificavam a mordaça. Dolarhyde vestiu um casaco de enfermeiro, colocou um termo no colo de Lounds e empurrou-o para fora da carrinha. Quando travou a cadeira de rodas e se virou para voltar a pôr a rampa dentro da carrinha, Lounds conseguiu ver a extremidade do pára-choques da carrinha pela parte de baixo da venda.

Voltou-se um pouco, vendo a parte de baixo do pára-choques ... Era isso, a matrícula. Foi só um instante, mas Lounds gravou-a na mente.

211 Deslocavam-se agora. Rebordos de passeios. Mais uma esquina e uma curva. Papel que restolhava debaixo das rodas.

Dolarhyde parou a cadeira de rodas num ponto que lhe

servia de abrigo, entre um recipiente de lixo e um camião estacionado. Deu um esticão na venda. Lounds fechou os olhos. Um frasco de amoníaco debaixo do nariz. A voz suave, muito próxima, a seu lado. - Consegue ouvir-me? Estamos a chegar. - Tirou-lhe

a venda. - Pestaneje se está a ouvir-me. Dolarhyde abriu-lhe um olho com o polegar e o indicador. Lounds estava a olhar o rosto de

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Dolarhyde. - Eu disse-lhe uma mentira. - Dolarhyde bateu no termo. De facto não tenho os seus lábios, em gelo. - Afastou a manta ao mesmo tempo que abria o termo. Lounds retesou os músculos quando sentiu o cheiro

da gasolina que lhe empolava a pele na parte inferior dos antebraços e que produzia toda uma série de ruídos estranhos na cadeira de rodas. Sentia o frio da gasolina que se lhe espalhava pelo corpo, os vapores iam-lhe invadindo a garganta, enquanto rolavam em direcção ao centro da rua. - Gostas de ser o animal de estimação de Graham,

Freeeddyyyyy? Incendiado e empurrado, rolou em direcção ao Tattler, as rodas da cadeira produzindo um eeek, eeek, eeekeeekeeek insuportável. O guarda olhou no momento em que um grito cuspiu a mordaça, em chamas. Viu a bola de fogo que se aproximava, ressaltando nos buracos do pavimento, deixando um rasto de fumo e de faíscas, as chamas alongando-se para a retaguarda como duas asas, imagens desfocadas que passavam num relance pelas montras das lojas. Mudou de direcção, embateu num carro estacionado e voltou-se em frente do edifício, uma roda ainda a girar loucamente, chamas por todo o lado, os braços em chamas erguidos na posição de defesa de todos os queimados. 212

O guarda correu de novo ao átrio. Lembrou-se de repente

se tudo aquilo não iria explodir, se não deveria afastar-se das janelas ... Accionou o alarme de incêndios. Que mais é que podia fazer? Tirou o extintor de incêndios da parede e olhou para fora ... Ainda não tinha explodido. O guarda aproximou-se cautelosamente através do fumo gorduroso que se espalhava em camadas baixas sobre o pavimento e, finalmente, cobriu Freddy Lounds de espuma.

213 CAP+TULO 22

Page 196: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Estava combinado que Graham deixasse o apartamento em Washington que se encontrava vigiado às cinco e quarenta e cinco da manhã, muito antes do engarrafamento de trânsito de todos os dias. Crawfard telefonou-lhe enquanto estava a fazer a barba. - Bom dia.

- Nem por isso - disse Crawfard. - O Dentuças apanhou

Lounds em Chicago. - Oh, que porra. - Ainda não morreu e pediu para falar contigo. Já não se aguenta muito tempo. - Eu vou. - Encontra-te comigo no aeroporto. É o voo 245 da United. Parte dentro de quarenta minutos. Podes voltar esta noite para o apartamento, se ainda valer a pena continuar com isso.

O agente especial Chester do FBI de Chicago estava à

espera deles no Aeroporto O'Hare, sob um leve aguaceiro. Chicago é uma cidade habituada às sirenes. O tráfico à frente deles afastou-se com relutância enquanto Chester disparava pela auto-estrada, a luz vermelha do tejadilho colorindo de tons rosados a chuva que fustigava o pára-brisas. Ergueu a voz para se conseguir fazer ouvir acima do ruído da sirene.

214

- O Departamento de Polícia de Chicago diz que ele foi apanhado na garagem do prédio onde mora. Tudo aquilo que sei é em segunda mão. Hoje não somos muito populares aqui pelas redondezas. - O que é que se conseguiu saber? - perguntou Crawford. - Praticamente tudo, a armadilha, a história completa. - Lounds conseguiu vê-lo? - Não ouvi nenhuma descrição. O Departamento de Polícia de Chicago emitiu um pedido de captura cerca das seis e vinte da manhã, com a indicação de uma chapa de matrícula. - Conseguiu contactar o Dr. Bloom e dar-lhe o meu recado?

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- Falei com a esposa, Jack. O Dr. Bloom vai ser operado a um rim esta manhã. - Era o que me faltava - exclamou Crawford. Chester estacionou debaixo do alpendre de entrada

do hospital. Voltou-se no assento, olhando para trás. - Jack, WilI, antes de vocês subirem ... Ouvi dizer

que essa besta acabou com Lounds. Devem estar preparados para isso. Graham acenou com a cabeça. Durante toda a viagem para Chicago tinha tentado afastar a ideia de que Lounds ia morrer antes de conseguir vê-lo. O corredor do Centro de Queimados Paege era um tubo

de mosaicos imaculados. Um médico de elevada estatura, com um rosto que era curiosamente um misto de velho e de rapaz, conduziu Graham e Crawford para longe do grupo de pessoas que se encontrava à porta do quarto de Lounds. - As queimaduras do Sr. Lounds são fatais - disse o médico. - Posso ajudá-lo aliviando-lhe as dores e é isso que farei. Inalou as chamas e tem a garganta e os pulmSes danificados. É possível que não volte a estar consciente. Nas condições em que se encontra até era uma bênção.

» No caso de ganhar consciência de novo, a polícia

pediu-me para lhe tirar o tubo da garganta, para que possa eventualmente responder a qualquer pergunta. Concordei em tentar isso na condição de que seja muito rápido.

215 » Neste momento os seus pólos nervosos

periféricos encontram-se anestesiados pelo fogo. Mas, se ele viver o suficiente, terá dores insuportáveis. Tentei explicar isto à polícia e quero fazer a mesma coisa com os senhores: interromperei qualquer tentativa de perguntas para o anestesiar, logo que ele me peça. Compreenderam? - De acordo - disse Crawford. Com um aceno para o agente que se encontrava à porta, o médico cruzou as mãos atrás da bata branca de laboratório que envergava e afastou-se como um fantasma.

Page 198: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Crawford olhou para Graham. - Sentes-te bem? - Estou bem. Estive com a equipa da SWAT. A cabeça de Lounds encontrava-se soerguida na cama.

O cabelo e as orelhas tinham desaparecido e compressas sobre os olhos sem vista substituíam as pálpebras queimadas. As gengivas estavam recobertas de bolhas. A enfermeira que se encontrava a seu lado afastou

um suporte de soro para que Graham se pudesse aproximar. Lounds cheirava como um estábulo incendiado. - Freddy, é Will Graham. Lounds retesou a nuca contra a almofada. - O movimento é apenas reflexo, não se encontra consciente - explicou a enfermeira. O tubo de inalação que lhe mantinha aberta a garganta em chaga e cheia de bolhas produzia um som de passagem de ar em simultâneo com o respirador. A um canto encontrava-se sentado um pálido sargento detective, com um gravador e um bloco de apontamentos no colo. Graham só deu por ele quando o ouviu falar.

- Lounds mencionou o seu nome na sala de emergências

antes de lhe colocarem o inalador. - Você estava lá? - Cheguei mais tarde. Mas tenho gravado tudo aquilo

que ele disse. Quando o trouxeram tinha dado ao bombeiro o número de uma chapa de matrícula. A seguir perdeu a consciência e

216

veio nessas condições durante toda a viagem de ambulância, mas quando chegou à sala de emergências recuperou os sentidos durante cerca de um minuto, quando lhe deram uma injecção no peito. Alguns elementos do Tattler tinham seguido a ambulância, estavam presentes. Tenho uma cópia da fita que eles gravaram. - Deixe-me ouvi-la. O detective pôs o gravador a trabalhar. - Julgo que quer usar o auscultador de ouvido - disse com um ar absolutamente inexpressivo.

Page 199: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Accionou o botão. Graham começou a ouvir vozes, ruídos metálicos: «... eh! coloquem-no no três», a pancada de uma maca numa porta giratória, uma tosse áspera e o grasnar de uma voz, alguém que falava sem lábios. «Hentuças.» «Freddy, conseguiste vê-lo? Qual é o aspecto dele,

Freddy?» «Wendy? Hur havor Wendy. Graham aranjou-he àto. O coiro

sabia. Graham aranjou-he àto. O coiro identificou-he hor hausa da fotohrafia em que hareço um animal de estimação. Wendy?» Um ruído como o de aspiração de um tubo. A voz de

um médico: «Acabou. Com licença. Saiam do caminho. Já.» E foi tudo. Graham inclinava-se sobre Lounds enquanto Crawford ouvia a gravação.

- Procuramos a chapa de matrícula - disse o detective.

Conseguiu compreender aquilo que ele estava a dizer? - Quem é Wendy? - perguntou Crawford. - Essa pega que está no hall. A loura das mamas grandes. Tem feito tudo para o ver. Não sabe de nada.

- Por que é que não a deixa entrar? - perguntou Graham,

que se encontrava ao lado da cama. Estava de costas para eles. - Não são permitidas visitas. - O homem está a morrer.

- E acha que eu não sei isso? Estou aqui desde quando

faltava um quarto de hora para a merda das seis da manhã ... desculpe-me, enfermeira.

217

- Descanse por uns minutos - disse Crawfard. - Vá tomar um café e lavar a cara. Ele não consegue dizer nada. Se disser, estou aqui e tenho o gravador. - Okay, acho que é isso que vou fazer. Quando o detective saiu, Graham deixou Crawford ao lado da cama e aproximou-se da mulher

Page 200: Thomas Harris   Dragão Vermelho

que estava na sala de espera. - Wendy? - Sim. - Se tem a certeza de que quer entrar eu levo-a comigo. - Quero. Talvez fosse melhor dar primeiro um jeito

ao cabelo.

- Não vale a pena - disse Graham. Quando o polícia voltou, não tentou fazer que ela

saísse. Wendy, da Wendy City, segurava a mão de Lounds, que mais

se assemelhava a uma garra enegrecida, enquanto o olhava fixamente. Um pouco antes do meio-dia mexeu-se levemente. - Vais ficar bem, Roscoe - disse ela. - Ainda havemos de passar uns momentos formidáveis como nos velhos tempos. Lounds agitou-se mais uma vez e morreu.

218

CAP+TULO 23

O capitão Osborne dos Homicídios de Chicago tinha um

rosto acinzentado e pontiagudo, fazendo lembrar uma raposa de pedra. Havia exemplares do Tattler espalhados por toda a secção. Um deles encontrava-se na sua secretária. Não convidou Crawfard e Graham a sentar-se. - Tinham combinado algum trabalho com Lounds em Chicago?

Não, estava planeado que ele fosse a Washington - disse

Crawfard. - Tinha uma reserva para o avião. De certeza que verificou isso. - Sim, foi uma das coisas que verificámos. Deixou o escritório ontem cerca da uma e meia. Quando foi apanhado na garagem do edifício onde morava deviam ser cerca de duas menos dez. - Havia alguma coisa na garagem?

- As chaves dele foram empurradas com o pé para debaixo

do carro. Não existe nenhum empregado na garagem, a porta abre por feixe rádio e entraram logo a seguir

Page 201: Thomas Harris   Dragão Vermelho

a alguns carros, quando ela ainda se encontrava aberta. Ninguém viu o que se passou. Vai ser refrão que eu hoje vou ter de ouvir não sei quantas vezes. Estamos a trabalhar no assunto do carro. Podemos ajudá-lo nesse assunto?

- Vocês podem ter os resultados logo que eu os receba.

Está muito calado, Graham. No jornal fartou-se de falar. - Também pouco apanhei de tudo aquilo que você disse.

219

- Está chateado, capitão? - perguntou Crawford. - Eu? Por que é que havia de estar? Investigámos

uma escuta telefónica para vocês e apanhámos a merda de uma repórter. A seguir dizem-me que não têm nenhuma acusação contra ele. Arranjam não sei que acordo com ele e lixamo-nos por causa da sua página de escândalos. E agora os outros jornais acabam de o adoptar como se fizesse parte da sua equipa. » Por último temos a sorte de conseguir um assassínio do Dentuças exactamente aqui em Chicago. Não há dúvida de que é uma maravilha. «O Dentuças em Chicago», rapazes. Antes da meia-noite vamos arranjar pelo menos uns seis acidentes domésticos com arma de fogo, o parceiro que tenta entrar em casa perdido de bêbado e a mulher que ouve um ruído, não está com meias medidas e bang ... Talvez o Dentuças goste de Chicago, decida ficar por aí a divertir-se um bocado.

- Podemos decidir uma de duas coisas - disse Crawfard.

Bater com a cabeça na parede, chamar o comissário de polícia e o procurador-geral e juntar-lhe todos os sacanas, os do seu lado e os do meu lado. Ou podemos sentar-nos e tentarmos ver qual é a melhor maneira para apanharmos esse filho da mãe. Eu sei que esta operação era minha e caiu na merda. Alguma vez imaginou que isto podia acontecer aqui em Chicago? Não quero lutar consigo, capitão. Queremos apanhá-lo e ir embora. O que é que decide? Osborne mexeu em várias coisas que tinha em cima da secretária, um suporte de lápis, a

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fotografia de um miúdo com cara de raposa, vestindo uma farda de uma banda musical qualquer. Recostou-se na cadeira, franziu os lábios e expirou o ar lentamente. - Para já quero um café. Vocês também querem? - Eu aceitava - disse Crawfard. - E eu também - confirmou Graham. Osborne distribuiu os copos de plástico. Apontou para as cadeiras.

- O Dentuças tinha de ter uma carrinha ou um carro de

caixa aberta para andar com Lounds na cadeira de rodas de um lado para o outro - disse Graham. Osborne acenou com a cabeça.

220

- A matrícula que Lounds viu foi roubada de uma carrinha de reparação TV em Oak Park. Roubou uma placa comercial, pelo que se destinava de certeza a uma carrinha ou a um carro de caixa aberta. Substituiu a matrícula no veículo de reparação TV por outra matrícula também roubada, de modo que não se notasse tão depressa. Muito escorregadio este rapaz. Há uma coisa de que temos a certeza: fanou a matrícula da carrinha de reparações TV ontem de manhã, pouco depois das oito e trinta. A primeira coisa que o condutor da carrinha fez ontem foi meter gasolina e usou cartão de crédito. O empregado copiou a matrícula correcta para o talão, pelo que esta teve de ser roubada depois disso. - Não houve ninguém que tivesse visto um carro de

caixa aberta ou uma carrinha? - perguntou Crawford.

- Nada. O guarda do Tattler não viu pevide. Desculpa-se

por ter estado a ver um combate de luta livre na televisão, pelo que não deu conta de nada. Os primeiros a chegar ao Tattler foram os bombeiros. Tinham-se deslocado apenas por causa do fogo. Investigámos todos os trabalhadores nocturnos na vizinhança do Tattler e na vizinhança do local onde o empregado das reparações TV tinha trabalhado na terça de manhã. Espero que alguém o tenha visto a palmar a chapa de matrícula. - Gostava de ver a cadeira de rodas outra vez -

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disse Graham. - Está no nosso laboratório. Vou telefonar a avisá-

los. Osborne fez uma pausa. - Lounds foi um estuporzinho muito corajoso, têm de concordar. Lembrar-se da chapa de matrícula e ser capaz de cuspi-la, no estado em que estava. Ouviram aquilo que ele disse no hospital? Graham fez um aceno com a cabeça. - Não quero estar a ser chato mas gostava de ter a certeza de que o compreendemos da mesma maneira. Como é que vocês o interpretaram? - disse Osborne. Graham citou num tom monótono: - Dentuça. Graham arranjou-me isto. O coiro sabia. Graham arranjou-me isto. O coiro identificou-me por causa da fotografia em que pareço um animal de estimação.

221 Osborne não fazia ideia de como é que Graham se sentia a este respeito. Fez outra pergunta. - Estava a referir-se à fotografia que você tirou com ele e que apareceu no Tattler? - Não podia ser outra. - Onde é que ele teria ido arranjar essa ideia? - Lounds e eu tivemos algumas discussões. - Mas na fotografia você e Lounds pareciam tão amigos. O Dentuças mata primeiro o animal de estimação, é isso?

- É isso. - A raposa de pedra era muito rápida, pensou

Graham. - É pena não o ter conseguido apanhar. Graham não respondeu. - Tínhamos calculado que Lounds estivesse connosco quando o Dentuças visse o Tattler - disse Crawfard. - Aquilo que ele disse tem mais algum significado

para vocês, qualquer coisa que seja possível utilizarmos?

Graham estava muito longe e por isso teve de repetir

mentalmente a pergunta de Osborne antes de responder. - Sabemos por aquilo que Lounds disse que o

Page 204: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Dentuças viu o Tattler antes de o ter atacado, certo? - Acho que sim. - Se aceitar a ideia de que foi por causa do Tattler que ele entrou em acção, não concorda que foi obrigado a montar todo o esquema à pressa? A notícia surgiu no jornal segunda à noite, terça, não sabemos a que horas, provavelmente na terça de manhã, já está em Chicago a roubar chapas de matrícula, e na terça à tarde já está em cima de Lounds. O que é que isto lhe diz? - Ou soube disso antes ou então não veio de muito

longe disse Crawfard. - Ou leu a notícia aqui em Chicago ou a viu em qualquer lugar na segunda à noite. Não se esqueça de que estava à espera de que o jornal saísse para ver a coluna de anúncios pessoais. - Ou já aqui estava ou veio de carro de um sítio qualquer relativamente próximo - disse Graham. - Atacou Lounds demasiado depressa e usou uma cadeira de rodas que não podia ter 222 transportado num avião, nem sequer é dobrável. E também temos a certeza de que não veio de avião para aqui para roubar uma carrinha à chegada, roubar chapas de matrícula para ela e ainda por cima dar uma volta para encontrar uma cadeira de rodas de um modelo muito antigo. Tinha de ter uma velha cadeira de rodas ... uma cadeira nova não serviria para aquilo que ele fez. Graham estava de pé, distraído com o cordão da persiana, enquanto olhava para a parede de tijolos que se avistava em frente através da janela. - Ou já tinha a cadeira de rodas ou sempre soube onde é que a podia encontrar. Osborne ia fazer uma pergunta, mas a expressão do

rosto de Crawfard deu-lhe a entender que devia aguardar. Graham dava nós no cordão da persiana. As suas mãos

não estavam firmes.

- Sempre soube onde é que ela estava. . . -

concluiu Crawford.

- Um-hmm, - disse Graham. - É fácil de ver

Page 205: Thomas Harris   Dragão Vermelho

como as coisas se passaram ... a ideia começa com a cadeira de rodas. Vendo e pensando na cadeira de rodas. Foi daí que a ideia partiu, quando começou a pensar no que é que havia de fazer com aqueles cabrSes. Freddy a deslizar em chamas pela rua fora deve ter sido cá um espectáculo. Acha que ficou a ver? - Talvez. De certeza que visualizou tudo antes de o

ter feito, na altura em que decidia a atitude que ia

tomar. Osborne olhou para Crawfard. Crawford era duro. Osborne

sabia que Crawford era duro e que concordava com isto. - Se ele tinha a cadeira ou se sempre soube onde é

que ela estava... podemos verificar nos lares das redondezas disse Osborne. - Era perfeita para imobilizar Freddy - disse Graham. - Durante muito tempo. Durou mais ou menos quinze horas e vinte e cinco minutos - disse Osborne. - Se ele só quisesse dar cabo do Freddy, podia ter feito isso na garagem - disse Graham. - Podia tê-lo queimado dentro do carro. Queria falar com Freddy ou torturá-lo durante um bocado.

223 - Ou o fez nas traseiras da carrinha ou então

levou-o para algum lado - disse Crawford. - Atendendo ao espaço de tempo, diria que o levou para algum lado.

- Tinha de ser um lugar que fosse seguro. Se o tivesse

amarrado bem, não ia chamar muito as atenções entrando e saindo de um lar - disse Osborne.

- No entanto isso era muito arriscado - disse Crawford.

Além disso implicava um certo trabalho de limpeza. Partamos do princípio de que ele tinha a cadeira, tinha acesso à carrinha e tinha um lugar seguro para onde o pudesse levar e ocupar-se dele. Não acham que tudo isso indica ... a casa dele? O telefone de Osborne tocou. Resmungou enquanto pegava no auscultador.

- O quê?... Não, não quero falar com a gente do

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Tattler ... Bom, é melhor que não sejam só tretas. Pode ligá-la ... Capitão Osborne, sim ... A que horas? Quem é que atendeu o telefone inicialmente, na central? Tire-a da central, por favor. Diga-me de novo o que é que ele disse ... Mando um agente dentro de cinco minutos.

Osborne ficou a olhar pensativamente para o telefone

depois de ter desligado. - A secretária de Lounds recebeu uma chamada há cerca de cinco minutos - disse. - Jura que era a voz de Lounds. Disse qualquer coisa, qualquer coisa que não apanhou bem, como «a força do grande Dragão Vermelho». Foi aquilo que ela pensa que ele disse.

224

CAPÍTULO 24

O Dr. Frederick Chilton encontrava-se no corredor, em

frente da cela de Hannibal Lecter. Junto de Chilton estavam três corpulentos auxiliares. Um deles trazia uma camisa-de-forças e cintas de prisão para as pernas e o outro uma lata de Mace. O terceiro transportava uma espingarda de pressão

de ar carregada com um dardo tranquilizador. Lecter estava a consultar um mapa-planta estendido em cima da mesa e ia tomando notas. Tinha ouvido os passos que se aproximavam. Ouviu atrás de si o ruído da culatra a fechar-se, mas continuou a ler, não dando qualquer sinal de que sabia que Chilton se encontrava ali. Chilton tinha-lhe mandado os jornais cerca do meio-dia e deixou-o esperar até à noite, mantendo-o na expectativa sobre o castigo que lhe ia dar por ter ajudado o Dragão. - Dr. Lecter - disse Chilton. Lecter voltou-se. - Boa noite, Dr. Chilton. - Fez de conta que não

dava pela presença dos guardas. Olhava só para Chilton. - Vim buscar os seus livros. Todos os seus livros. - Compreendo. Posso perguntar-lhe por quanto tempo é que tenciona guardá-los? - Isso depende da sua atitude.

Page 207: Thomas Harris   Dragão Vermelho

- Essa decisão é sua? - Sou eu quem nesta casa decide sobre os castigos a aplicar.

225 - Com certeza que é. Aliás não é o tipo de coisas

que Will Graham lhe pedisse para fazer. - Volte-se para a rede e vista isto, Dr. Lecter. E olhe que não lhe peço duas vezes.

- Com certeza, Dr. Chilton. Espero que seja o tamanho

trinta e nove, o trinta e sete aperta-me muito no peito. Lecter vestiu a camisa-de-forças como se se tratasse de

um fato para jantar. Um dos auxiliares estendeu os braços através da barreira e apertou-lha nas costas. - Ajudem-no a deitar-se no beliche - disse Chilton. Enquanto os auxiliares esvaziavam as estantes, Chilton limpava os óculos e revolvia os papéis pessoais de Lecter com uma esferográfica. Lecter observava-o do canto da cela que se encontrava na sombra. Curiosamente, mesmo com a camisa-de-forças, tinha um porte de certa elegância.

- Por baixo da pasta amarela- disse Lecter calmamente

-pode encontrar um talão de devolução que o Archives lhe enviou. Trouxeram-no por engano com algum do correio que recebi deles, e lamento tê-lo aberto sem ter reparado no envelope. Peço desculpa. Chilton ficou corado. Disse para um dos auxiliares. - Acho melhor tirarmos a tampa da sanita do Dr.

Lecter. Chilton olhou para o mapa-planta. Lecter tinha escrito a

sua idade no topo: quarenta e um. - E o que é que temos aqui? - perguntou Chilton. - Tempo - disse Lecter.

O chefe de secção Brian Zeller levou a mala do correio e as rodas da cadeira de rodas para a Análise Instrumental, caminhando tão depressa que fazia assobiar as abas da sua gabardina. Os elementos da equipa, que tinham recebido

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ordem para aguardar depois de o turno diurno ter terminado, conheciam aquele assobio muito bem: Zeller estava cheio de pressa.

Já tinha havido demasiados atrasos. O correio, completamente arrasado, depois de o seu voo de Chicago se ter atrasado devido ao mau tempo e em seguida desviado para Filadélfia, tinha aluga-

226

do um carro e conduzido durante todo o caminho até ao laboratório do FBI em Washington. O laboratório da polícia de Chicago era eficiente, mas havia análises para as quais não se encontrava equipado. Zeller preparava-se para as fazer. Junto do espectrómetro de massa pousou algumas películas da pintura da porta do carro de Lounds. Beverly Katz, que estava na secção de Cabelos e Fibras, recebeu as rodas para partilhar a sua análise com os outros elementos da secção. A última paragem de Zeller foi na pequena sala aquecida onde Liza Lake se debruçava sobre um cromatógrafo de fase gasosa. Estava a fazer uma análise de cinzas referente a um caso de fraude ocorrido na Florida, observando o ponteiro a traçar as linhas pontiagudas de um gráfico sobre o papel que se ia movendo lentamente. - Gás Ace para isqueiro

disse ela. - Foi com isso que ele ateou o fogo. - Já

tinha examinado tantas amostras que podia distinguir as marcas, sem ser preciso consultar o manual. Zeller desviou os olhos de Liza Lake e censurou-se asperamente por sentir prazer em estar no gabinete. Pigarreou e estendeu-lhe as duas pequenas latas brilhantes. - Chicago? - perguntou ela. Zeller acenou com a cabeça. Ela verificou o estado das latas e o selo das tampas. Uma das latas continha cinzas da cadeira de rodas; a outra, material carbonizado de Lounds. - Há quanto tempo se encontra nas latas? - Mais ou menos seis horas - disse Zeller. - Vou dispersá-lo.

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Furou a tampa com uma seringa resistente e extraiu o ar

que se encontrava dentro da lata juntamente com as cinzas, injectando esse ar directamente no cromatógrafo de fase gasosa. Procedeu a ajustamentos meticulosos. + medida que a amostra se movia ao longo da coluna da máquina, o ponteiro oscilava nervosamente na larga banda de papel para gráficos.

227 - Sem chumbo... - disse ela. - É gasohol, gasohol sem chumbo. Não há muitos vestígios. Folheou rapidamente um molho de gráficos de amostras. - Ainda não tenho elementos para lhe indicar uma marca. Deixe-me repetir a análise com pentano e depois entro em contacto consigo. - óptimo -disse Zeller. O pentano ia dissolver os fluidos que se encontravam nas cinzas, fraccionando-se no cromatógrafo logo no início e deixando os fluidos para uma análise mais em detalhe.

Cerca da uma da manhã, Zeller tinha conseguido tudo o que lhe fora possível. Liza Lake conseguira determinar o tipo de gasohol: Freddy Lounds fora queimado com o Servco Supreme. Uma escovadela paciente das fendas do rasto da cadeira de rodas permitira descobrir dois tipos de fibras para carpeta lã e sintética. O bolor na sujidade dos rastos indicava que a cadeira estivera armazenada num lugar frio e escuro. Os outros resultados eram menos satisfatórios. As películas de tinta não eram da pintura original. Examinadas no espectrómetro de massa e comparando depois com o catálogo nacional de tintas automóveis, concluía-se que a tinta era de elevada qualidade, da marca Duco, pertencente a um lote fabricado durante o primeiro trimestre de 1978, para venda a diversas cadeias comerciais de venda de tinta para automóveis.

Zeller convencera-se de que seria possível determinar a

marca do veículo e o ano aproximado de fabrico. Enviou os resultados por telex para Chicago. O Departamento de Polícia de Chicago queria as suas rodas de volta. A embalagem das rodas era

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demasiado incómoda para ser enviada pelo correio. Zeller meteu na bolsa os relatórios escritos do laboratório, algum correio que tinha chegado e uma encomenda que tinha vindo para Graham.

- Expresso federal é que eu não sou - disse o correio,

quando teve a certeza de que Zeller já não o podia ouvir.

O Departamen to de Justiça mantém diversos pequenos apartamentos próximo do Tribunal do Sétimo Distrito, para serem utili-

228

zados por juristas e por técnicos especiais que se deslocam para testemunhar quando o Tribunal se encontra em sessão. Graham ficou instalado num desses apartamentos e Crawfard noutro que ficava em frente, do outro lado do hall. Chegou às nove da noite, cansado e encharcado. Não comera nada desde o pequeno-almoço que tinham servido no avião de Washington, mas o pensamento de comida fazia-o sentir-se enjoado.

Aquela quarta-feira chuvosa tinha finalmente terminado.

Fora o pior dia da sua vida de que se conseguia recordar. Com Lounds morto tudo parecia indicar que ele seria o próximo, e durante o dia Chester tinha observado se alguém o seguia; enquanto esteve na garagem de Lounds, enquanto permaneceu à chuva no pavimento esburacado onde Lounds fora queimado. Com as luzes dosflashes a cegarem-no, declarou à imprensa que se sentia «muito deprimido com a perda do seu amigo Frederick Lounds». Também ia ao funeral. Iam igualmente vários agentes federais e polícias, na esperança de que o assassino aparecesse para verificar o desgosto de Graham. Presentemente não sentia nada que fosse capaz de definir, apenas uma náusea fria e uma ocasional vaga de alegria doentia por não ter sido ele quem fora queimado até à morte em vez de Lounds. Graham tinha a impressão de que não fora capaz de

aprender nada em quarenta anos: apenas ficara cansado. Preparou um martini generoso e bebeu-o enquanto se

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despia. Bebeu outro depois de ter tomado um chuveiro, enquanto via as notícias. «Uma armadilha do FBI para apanhar o Dentuças deu

mau resultado e um repórter veterano morreu. Voltaremos com detalhes nas Notícias Testemunhadas logo a seguir.» Antes de o noticiário ter terminado já se referiam ao assassino como sendo «o Dragão». O Tattler tinha espalhado a informação por todas as redes noticiosas. Graham não estava surpreendido. A edição de quinta ia vender-se muito bem. Preparou um terceiro martini e telefonou a Molly.

229 Ela tinha visto as notícias da televisão às seis e às dez e lera o Tattler. Sabia que Graham servira de isco numa armadilha. - Devias ter-me dito, Will. - Talvez, não. - Achas que agora ele vai tentar matar-te? - Mais dia, menos dia. Agora será muito difícil para ele porque nunca estou parado no mesmo sítio. Tenho protecção permanente, Molly, e ele sabe disso. Não vai haver problemas.

- Estás com a voz um bocadinho arrastada, não me digas

que estiveste a falar com o teu amigo do frigorífico? - Bebi dois copos. - Como é que te sentes? - Razoavelmente arrasado. - As notícias disseram que o FBI não tinha nenhuma protecção para o repórter. - Devia estar junto de Crawfard na altura em que o Dentuças lesse o jornal. - As notícias agora chamam-lhe «o Dragão». - É aquilo que ele se chama a ele próprio. - WilI, há uma coisa ... Queria pegar em Willy e sair daqui. E ir para onde? - Para casa dos avós dele. Já há muito tempo que

não o vêem e tenho a certeza de que ficavam contentes. - Oh , um-hmmm. Os avós de Willy tinham um rancho na costa do Oregon. - Aqui é assustador. Eu sei que temos de partir do

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princípio de que estamos em segurança, mas não estamos a dormir grande coisa. Talvez as lições de tiro me tenham excitado, não sei.

- Lamento, Molly. Quem me dera poder dizer-te como lamento.

- Vou sentir a tua falta. Vamos sentir ambos a tua falta. Molly já se tinha decidido. - Quando é que partes? - Amanhã de manhã. - E a loja? Evelyn quer ficar com ela. Ainda vou tratar das compras de Outono, só pela comissão, e a partir daí pode ficar com o que conseguir ganhar. - Os cães?

- Pedi-lhe que telefonasse para a Câmara, Will. Tenho

pena, mas talvez haja alguém que queira ficar com alguns deles. Molly, eu ... Se ficar aqui significasse que podia evitar que te acontecesse alguma coisa de mal, bem sabes que ficava sem hesitar. Mas não podes defender toda a gente, WilI, aqui não te estou a ajudar. Sabendo que nós os dois estamos lá, passas a preocupar-te só contigo. Não quero trazer o estupor desta pistola comigo para o resto da vida, Will. - Talvez consigas ir a Oakland para ver os A's. - Não era isso que queria dizer. Oh , porra, aquele silêncio estava a ser comprido de mais. - Olha, eu depois telefono-te - disse ela - ou melhor, o mais certo vai ser tu teres de me telefonar para lá. Graham teve a impressão de que qualquer coisa se rasgava dentro dele. Sentiu que lhe faltava o ar.

- Deixa-me ligar para o escritório para te arranjarem

tudo. Já fizeste alguma reserva? - Não usei o meu nome. Pensei que talvez os jornais ... - óptimo. Fizeste bem. Deixa-me arranjar-te alguém que te acompanhe na partida. Não era preciso passares pela porta de embarque e saías de Washington absolutamente limpa. Posso fazer isso? Deixa-me fazer isso. A que horas é que o avião parte?

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230

- Nove e quarenta. Voo 118 da American. - Okay, digamos, às oito e trinta ... atrás do Smithsonian. Há um parque. Estaciona aí o carro. Alguém se há-de encontrar contigo. Alguém a tentar ver se o relógio está a trabalhar quando sair do carro, okay? Está bem. Diz-me uma coisa, mudas em O'Hare. Podia ir ... Não, mudo em Minneapolis.

231 - Oh, Molly, talvez eu possa ir buscar-te quando

tudo isto tiver terminado! - Era estupendo. Estupendo. - Tens dinheiro que chegue? - O banco vai mandar-me algum por via telegráfica. - O quê? Para o Barclays no aeroporto. Não te preocupes. - Vou sentir a tua falta. - Eu também, mas a situação não é diferente da que temos agora. A mesma distância pelo telefone. O Willy manda-te um abraço. Dá-lhe um também. - Tem cuidado contigo, querido. Antes nunca lhe tinha chamado querido. Também nunca se tinha importado. Não ligava a nomes novos: querido, Dragão Vermelho. O agente de serviço do turno da noite em Washington ficou contente por poder preparar as coisas para Molly. Graham encostou o rosto ao vidro frio da janela e ficou a observar as bátegas de água a fustigarem o tráfico indistinto que se avistava lá em baixo na rua, que passava do cinzento para as súbitas cores dos anúncios que se iam acendendo e apagando. O rosto deixou no vidro a marca da testa, nariz, lábios e queixo. Molly fora-se embora. O dia terminara e restava-lhe apenas a noite para

enfrentar e a voz sem lábios que o acusava. A mulher de Lounds segurara o que lhe restava da mão até tudo ter terminado. Está? Fala Valerie Leeds. Lamento não poder atender

de momento ... - Também eu lamento - disse Graham. Graham encheu o copo mais uma vez e sentou-se

Page 214: Thomas Harris   Dragão Vermelho

à mesa junto à janela, olhando para a cadeira vazia que se encontrava em frente dele. Continuou a olhá-la até que o espaço à sua frente tomou uma forma humana preenchida com manchas e pontos que se moviam continua-

232

mente, uma presença como uma sombra no meio de poeira em suspensão. Tentou fazer que a imagem adquirisse coalescência, tentou vislumbrar um rosto. Não se moveria, não tinha qualquer consistência, mas, mesmo sem rosto, encarava-o com uma atenção palpável. - Eu sei que é difícil - disse Graham. Estava completamente embriagado. - Tens de tentar parar, aguentar até que te encontremos. Se quiseres fazer alguma coisa, foda-se, anda atrás de mim. Estou-me nas tintas. Depois será muito melhor. Encontrarão alguma coisa para te ajudar a parar. Para te ajudar a parar de quereres dessa maneira. Ajuda-me. Ajuda-me um bocadinho. A Molly partiu, o velho Freddy morreu. Agora o jogo é entre nós os dois. - Debruçou-se sobre a mesa, as mãos estenderam-se para tocar e a presença desvaneceu-se.

Graham deitou a cabeça na mesa, o rosto apoiado no braço.

Conseguia distinguir no vidro a marca da sua testa, nariz, boca e queixo à luz dos relâmpagos; um rosto com gotas que escorriam por ele ao longo do vidro. Sem olhos. Um rosto cheio de chuva. Graham fizera um esforço muito grande para tentar

compreender o Dragão. Por vezes, no silêncio que se respirava na casa das vítimas, os locais por onde o Dragão se movimentara tentavam falar. Algumas vezes Graham sentia-se próximo dele. Um sentimento que ele recordava de outras investigações tinha-o invadido nos últimos dias: o sentimento angustiante de que ele e o Dragão estavam a fazer as mesmas coisas a várias horas do dia, de que havia paralelos entre os detalhes quotidianos das suas vidas. Num sítio qualquer o Dragão estava a comer, ou a tomar chuveiro, ou a dormir, enquanto ele fazia o mesmo.

Graham fizera um esforço para o conhecer. Tentara vê-lo

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para lá do brilho deslumbrante dos slides e dos frescos, entre as linhas dos relatórios da polícia, tentara descobrir-lhe o rosto nos borrSes das impressões digitais. Tentara o mais que podia e sabia. Mas para começar a compreender o Dragão, para ouvir o frio gotejar na sua escuridão, para observar o mundo através da sua visão avermelhada, Graham teria de ver coisas que nunca poderia ver e deveria ter de voar através dos tempos ...

233 CAPÍTULO 25

Sprinffield, Missouri, 14 de Junho de 1938.

Marian Dolarhyde Trevane, cansada e cheia de dores, apeou-se de um táxi em frente do City Hospital. Enquanto subia os degraus era envolvida por um vento quente que lhe chicoteava os tornozelos. A mala que transportava tinha melhor aspecto do que o seu velho vestido desbotado, o mesmo acontecendo com a bolsa entrançada que comprimia contra o ventre dilatado. Na bolsa tinha duas moedas de um quarto de dólar e uma outra de dez cêntimos. Trazia Francis Dolarhyde no ventre. Disse ao empregado da recepção que se chamava Betty Johnson, uma mentira. Disse que o marido era músico, mas que não sabia onde é que parava, o que era verdade. Instalaram-na na secção de caridade do pavilhão da maternidade. Não olhou para as pacientes que se encontravam de ambos os lados. Olhou para as solas dos pés que ficavam do outro lado da coxia. Em quatro horas foi levada para a sala de partos, onde Francis Dolarliyde nasceu. O médico fez uma observação dizendo que «ele se parecia mais com um morcego de nariz achatado do que com um bebé», outra verdade. Tinha nascido com fissuras bilaterais no lábio superior e no palato duro e cartilagínio. A secção central da boca não era ancorada e era protuberante. O nariz era achatado.

234

Os supervisores do hospital decidiram aguardar algum

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tempo antes de o mostrar à mãe. Esperaram para ver se a criança conseguiria sobreviver sem oxigénio. Puseram-no numa cama nas traseiras do infantário, de tal modo que não pudesse ser observado da janela do corredor. Conseguia respirar, mas era incapaz de se alimentar. Com a deficiência que tinha no palato era incapaz de sugar. O seu choro no primeiro dia não era tão contínuo como o de um bebé dependente de heroína, mas era igualmente estridente. Na tarde do segundo dia o único som que era capaz

de produzir era um leve gemido agudo. Quando os turnos mudaram, às três da tarde, uma sombra enorme projectou-se sobre a sua cama. Prince Easter Mize, cento e trinta quilos, empregada de limpeza e auxiliar no pavilhão da maternidade, parou a olhar para ele, os braços cruzados sobre o peito. Em vinte e seis anos de trabalho na enfermaria tinha visto cerca de trinta e nove mil crianças. Esta conseguiria viver se comesse. Prince Easter não tinha recebido nenhumas instruções do Senhor para que deixasse esta criança morrer. E tinha dúvidas de que o hospital tivesse recebido qualquer coisa no gênero. Tirou do bolso uma tampa de borracha que era atravessada por um tubo curvo em vidro, para beber. Adaptou a tampa a uma garrafa de leite. Conseguia segurar o bebé e apoiar-lhe a cabeça na sua mão enorme. Encostou-o ao peito até ter a certeza de que ele sentia o bater do seu coração. Em seguida deitou-o de novo e introduziu-lhe o tubo pela garganta. Bebeu cerca de duas onças e adormeceu. - Um-hum - disse ela. Saiu de junto da criança e

dirigiu-se para o seu serviço de mudança de fraldas.

No quarto dia as enfermeiras mudaram Marian Dolarhyde Trevane para um quarto particular. Na prateleira do lavatório encontrava-se uma jarra com glicínias que tinha sido deixada pela ocupante anterior. Tinham-se aguentado muito bem. Marian era uma rapariga bonita e lentamente os sinais de inchaço do rosto iam desaparecendo. Olhou para o médico quando ele começou a falar com ela, a mão apoiada no ombro. Sentia

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235 o cheiro forte a sabonete das suas mãos e pensou nas rugas que ele tinha ao canto dos olhos até que começou a dar atenção ao que ele estava a dizer. Foi então que fechou os olhos e só os abriu quando lhe trouxeram o bebé.

Finalmente decidiu-se a olhar. Fecharam a porta quando

ela gritou. Depois deram-lhe uma injecção. No quinto dia abandonou o hospital sozinha. Não

sabia para onde é que havia de ir. Nunca mais poderia voltar para casa; a mãe tinha deixado isso bem claro. Marian Dolarhyde Trevane contava os passos entre os postes de iluminação. De três em três postes sentava-se na mala para descansar. Ao menos ainda tinha a mala. Em todas as cidades havia uma loja de penhores junto da estação dos autocarros. Aprendera isso nas viagens com o marido.

Em 1938, Springfield não era um centro para cirurgia plástica. Em Springfield usava-se a cara que se tinha e mais nada. Um cirurgião no City Hospital fez o melhor que lhe era possível por Francis Dolarhyde, primeiro fazendo a retracção da parte central da boca com uma banda elástica e em seguida fechando as fissuras do lábio por meio de uma técnica de tampa rectangular que presentemente se encontra fora de moda. Os resultados cosméticos não foram lá muito bons. O cirurgião debruçara-se sobre o problema, estudando tudo o que havia a esse respeito, e decidira, correctamente, que a reparação do palato duro da criança teria de esperar até que esta atingisse os cinco anos. Uma operação feita mais cedo iria distorcer o crescimento da face. Um dentista local oferecera-se como voluntário para fazer um obturador que tapava o palato da criança e lhe permitia alimentar-se sem inundar o nariz com os alimentos. A criança foi para o Lar de Crianças Abandonadas de Springfield durante ano e meio e em seguida para o Orfanato Morgan Lee Memorial. O reverendo S. B. «Buddy» Lomax era o director

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do Orfanato. O irmão Buddy chamou os outros rapazes e raparigas e disse-lhes

236

que Francis era leporino mas que deviam ter cuidado para nunca lhe chamarem isso. O irmão Buddy sugeriu que rezassem por ele.

A mãe de Francis Dolarhyde aprendeu a tomar conta dela

nos anos que se seguiram ao nascimento da criança. Marian Dolarhyde encontrou primeiro um trabalho como dactilógrafa no escritório de um dos patrSes de um estaleiro na máquina democrática de Saint Louis. Com a sua ajuda conseguiu anular o seu casamento com o ausente Sr. Trevane.

Nos papéis de anulação não se fazia referência à

existência de uma criança. Cortara relações com a mãe. («Não te criei para te pores debaixo desse traste irlandês», foram as últimas palavras da Sr.ª Dolarhyde para Marian, quando esta abandonou a casa na companhia de Trevane.) Um dia o ex-marido de Marian telefonou-lhe para o escritório. Sóbrio e contrito, disse-lhe que se emendara e queria saber se ele, Marian, e a criança, «que ele nunca tivera a alegria de conhecer», poderiam iniciar uma nova vida em conjunto. Parecia falido. Marian disse-lhe que a criança tinha nascido morta

e desligou. Apareceu na casa onde ela estava hospedada, de mala na

mão e completamente bêbado. Quando ela lhe disse para se ir embora, respondeu-lhe que a culpa era dela se o casamento falhara e a criança nascera morta. Chegou a pôr em dúvida se a criança seria dele. Desnorteada, Marian Dolarhyde explicou em detalhe a Michael Trevane «a coisa» de que ele era pai e disse-lhe que era bem-vindo se quisesse tomar conta dela. Recordou-lhe que na família Trevane havia dois casos de falha do palato.

Pô-lo na rua e disse-lhe para nunca mais lhe telefonar.

Não o fez. Mas anos mais tarde, embriagado e ao corrente do casamento rico que Marian fizera, e da

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vida desafogada que ela levava, telefonou à mãe de Marian.

Contou à Sr. Dolarhyde o que se passava com a criança deformada e disse-lhe que o defeito dos dentes provava que a falta hereditária era do lado dos Dolarhyde.

237 Uma semana mais tarde, um autocarro em Kansas City cortou Michael Trevane em dois. Quando Trevane disse à Sr a Dolarhyde que Marian tinha um filho escondido, ficou acordada a maior parte da noite. Alta e magra, sentada na sua cadeira de balouço, a avó Dolarhyde olhava para as chamas. Perto da madrugada começou um lento e propositado balançar. Algures no andar de cima da enorme casa, uma voz entrecortada falava no sono. O soalho por cima da avó Dolarhyde rangeu quando alguém se dirigiu à casa de banho. Uma pancada seca no tecto - alguém que caíra - e a

voz entrecortada gemendo com dores. A avó Dolarhyde nunca tirou os olhos das chamas. Balouçava-se com mais rapidez e, algum tempo depois, a voz deixou de gemer.

Quase no final dos seus cinco anos, Francis Dolarhyde

teve a sua primeira e única visita no Orfanato. Encontrava-se sentado num canto da cafetaria quando um rapaz mais velho o veio chamar para o levar ao gabinete do irmão Buddy. A senhora que se encontrava com o irmão Buddy era alta e de meia-idade, o rosto com uma enorme camada de pó-de-arroz, o cabelo num carrapito apertado. O rosto era de um branco doentio. Havia manchas amarelas no cabelo grisalho, nos olhos e nos dentes. O que chocou Francis e que ele sempre recordaria: a senhora sorriu com prazer quando viu o seu rosto. Era coisa que nunca acontecera antes. Mais ninguém voltaria a fazer uma coisa dessas. - Esta é a tua avó - disse o irmão Buddy. - Olá - disse ela. O irmão Buddy limpou a boca com a sua longa mão. - Diz «olá», anda.

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Francis aprendera a dizer algumas coisas tapando as narinas com o lábio superior, mas nunca tivera muitas ocasiSes para dizer «olá». «Lhaa» foi o melhor que conseguiu produzir.

238

A avó parecia ainda mais contente com ele. - És capaz de dizer «avó»? - Tenta dizer «avó» - disse-lhe o irmão Buddy. A impotência derrotou-o. Francis explodiu em

lágrimas. Ouviu-se o zumbido de uma vespa batendo descontrolada de

encontro ao tecto. - Deixa lá - disse a avó. - Aposto que és capaz de dizer o teu nome. Tenho a certeza de que um rapaz crescido como tu é capaz de dizer o seu nome. Di-lo para eu ouvir. O rosto da criança ficou brilhante de excitação. Os rapazes mais velhos tinham-no ajudado nisto. Queria agradar. Recompôs-se. - Cara de Cu - disse.

Três dias depois a avó Dolarhyde foi buscar Francis ao Orfanato e levou-o para casa. Começou imediatamente a ajudá-lo a aprender a falar. Concentraram-se numa simples palavra: «mãe».

Dois anos depois da anulação, Marian Dolarhyde conheceu e casou-se com Howard Vogt, um advogado de sucesso com sólidas ligações na máquina de Saint Louis e no que restara da velha máquina Pendergast de Kansas; City. Vogt era um viúvo com três filhos ainda novos, um

homem ambicioso e afável quinze anos mais velho do que Marian Dolarhyde. A única coisa que ele detestava era o Saint-Louis PostDispatch que lhe queimara a reputação no escândalo do registo de votos em 1936 para a eleição de governador. Em 1943, a estrela de Vogt elevava-se de novo nos céus da política. Era um candidato em formação para a legislatura do estado e fora mencionado como um possível candidato para a convenção constitucional estadual que se aproximava. Marian era uma boa anfitriã com mérito e atractiva e Vogt comprou-lhe uma bela casa em Olive Street, que era perfeita para as recepções.

Page 221: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Francis Dolarhyde vivia com a avó havia uma semana quando esta o levou lá.

239 A avó nunca tinha ido a casa da filha. A empregada

que atendeu à porta não a conhecia. - Sou a Sr.' Dolarhyde - disse ela empurrando a empregada. Nas costas viam-se umas três polegadas das cuecas saindo da saia. Conduziu Francis para uma grande sala de estar com uma lareira agradável.

- Quem é, Viola? - ouviu-se uma voz de mulher perguntar

do andar superior. A avó agarrou o rosto de Francis com a mão. Este sentia o cheiro do couro da luva. Um murmúrio imperioso. - Vai ver a mãe, Francis. Vai ver a mãe. Corre! Libertou-se dela, desviando-se do seu olhar. - Vai ver a mãe. Corre! - Agarrou-o pelos ombros e encaminhou-o para as escadas. A criança parou junto dos degraus e olhou para trás na direcção dela. Esta fez-lhe um gesto com o queixo na direcção do andar de cima. Na direcção do andar de cima, que não conhecia, e

da porta aberta do quarto.

A mãe estava sentada ao toucador, verificando o make-up

num espelho emoldurado com luzes. Estava a preparar-se para um comício político e não era conveniente pôr muito rouge. Estava de costas voltadas para a porta. - Mali - titubeou Francis, dizendo como lhe tinham ensinado. Esforçou-se por pronunciar correctamente. - Mali. Foi então que ela o viu no espelho. - Se estás à procura de Ned só está em casa às ... - Mali. - Aproximou-se, ficando iluminado pelas luzes. Marian ouviu a voz da mãe no rés-do-chão pedindo chá. Arregalou os olhos ao mesmo tempo que permanecia imóvel. Não se voltou. Apagou as luzes de make-up e desapareceu da frente do espelho. No quarto escurecido deu um pequeno gemido que terminou num soluço. Podia ter sido por causa dela

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ou talvez por causa dele. A partir desse dia a avó levou Francis a todos os comícios políticos e explicou quem ele era e de onde é que tinha vindo. Obrigava-o a dizer «olá» a toda a gente. Em casa não tinham ensaiado o «olá». O Sr. Vogt perdeu as eleições por mil e oitocentos votos.

240

CAPÍTULO 26

Na casa da avó, o novo mundo de Francis Dolarhyde era uma floresta de pernas cheias de varizes. Havia três anos que a avó Dolarhyde dirigia um lar quando ele veio viver com ela. O dinheiro tinha sido sempre um problema desde a morte do marido, em 1936; fora educada como uma senhora e não possuía qualificações especiais. Ficara apenas com uma grande casa e com as dívidas do seu falecido marido. Aceitar hóspedes estava fora de hipótese. O lugar era demasiado isolado para poder vir a ser uma casa de hóspedes com sucesso. Sentia-se ameaçada com a possibilidade de ter de deixar o lugar. O anúncio nos jornais do casamento de Marian com o influente Sr. Howard Vogt parecera à avó uma bênção do céu. Escreveu várias vezes a Marian pedindo auxílio, mas nunca recebeu resposta. De cada vez que telefonava, uma empregada dizia-lhe que a Sr a Vogt não estava. Finalmente, e com uma amargura imensa, a avó Dolarhyde fez um acordo com a Câmara e começou a receber idosos indigentes. Por cada um recebia uma determinada quantia além de pagamentos esporádicos dos familiares que a Câmara conseguia localizar. Foi extremamente duro até ter começado a receber pacientes particulares de famílias de classe média.

Entretanto, e durante todo esse tempo, nenhuma ajuda

viera de Marian - e Marian podia ter ajudado.

241 Agora Francis brincava no chão, no meio da floresta

de pernas. Brincava aos carrinhos com as peças de mah-

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jong da avó, empurrando-as por entre pés que mais faziam lembrar raízes retorcidas.

A senhora Dolarhyde obrigava os seus hóspedes a usarem

roupas lavadas, mas desesperava-se para conseguir que andassem calçados. Os idosos ficavam sentados todo o dia na sala de estar a ouvir rádio. A Sr.' Dolarhyde também lá tinha colocado um pequeno aquário para os distrair e um benemérito particular viera em seu auxilio para que ela pudesse forrar os soalhos de tacos de madeira com linóleo, necessário por causa das incontinências inevitáveis. Sentavam-se em fila nos sofás ou em cadeiras de rodas ouvindo o rádio, os olhos mortiços fixos nos peixes, em nada ou talvez em alguma coisa que já tinham visto há muito tempo.

Francis nunca mais se esqueceria do arrastar de pés no

linóleo nos dias quentes e cheios de zumbidos, do cheiro de guisado de tomates e couves que vinha da cozinha, do cheiro dos velhos que mais pareciam aparas de carne seca ao sol, e do eterno ruído de fundo do rádio:

Happy little washday song. Rinso white, Rinso bright.

Francis passava todo o tempo que podia na cozinha porque a sua amiga estava lá. A cozinheira, Queen Mother Bailey, crescera ao serviço da família do falecido Sr. Dolarhyde. Havia alturas em que trazia a Francis uma ameixa no bolso do avental, e costumava chamar-lhe «Pequeno Diabrete, sempre a sonhar». A cozinha era quente e segura. Mas à noite, Queen Mother Bailey ia para casa.

Dezembro de 1943.

Francis Dolarhyde, com cinco anos, estava deitado no seu quarto, no andar de cima da casa da avó. O quarto estava escuro como breu, com as suas pesadas cortinas encostadas às japonesas. Queria fazer chichi, mas tinha medo de se levantar no escuro.

242

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Chamou a avó que dormia num quarto do rés-do-chão. - Ahó, ahó. - O som assemelhava-se ao balido de um cabrito. Chamou até se sentir cansado. - Ahó, ahó. Por último não se conteve e molhou a cama; um calor inicial nas pernas e no traseiro, e depois a sensação de frio, a camisa de noite a colar-se ao corpo. Não sabia o que havia de fazer. Respirou fundo e voltou-se para a porta. Nada lhe aconteceu. Pôs os pés no chão. Ficou de pé às escuras, a camisa de noite colada às pernas, a cara em fogo. Correu para a porta. O puxador da porta bateu-lhe na sobrancelha, o que o fez cair sentado no meio do chão, completamente encharcado. Voltou a pôr-se de pé e correu pelas escadas abaixo, os dedos a agarrarem o corrimão, em direcção ao quarto da avó. Rastejando por cima dela às escuras e metendo-se debaixo da roupa, encostado a ela e novamente quente. A avó agitou-se, tensa, com os músculos das costas

onde ele apoiava o queixo endurecidos. - Nunca tinha vixto... - Um ruído na mesinha de cabeceira quando encontrou a dentadura, um ruído quando a colocou. Nunca tinha visto uma criança tão aborrecida e porca como tu. Sai, sai da minha cama. Acendeu o candeeiro da mesinha de cabeceira. Ele permanecia na carpeta a tremer. Passou-lhe o polegar por cima da sobrancelha. Quando o retirou tinha vestígios de sangue. - Magoaste-te?

Abanou a cabeça tão violentamente que gotas de sangue

caíram na camisa de noite da avó. - Já lá para cima. Vamos. Enquanto subia as escadas a escuridão voltou a envolvê-lo. Não podia acender as luzes porque a avó tinha encurtado os cordSes e só ela conseguia chegar-lhes. Não queria voltar para a cama molhada. Permaneceu às escuras aos pés da cama por um longo período. Pensou que ela não vinha. Os cantos mais escuros do quarto sabiam que ela não vinha. Mas afinal ela veio, puxando o curto cordão da luz do tecto, os braços ocupados com os lençóis que trazia com ela. Não lhe falou enquanto mudava a cama.

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243 Agarrou-lhe a parte de cima do braço, empurrando-o para o hall, em direcção ao quarto de banho. A luz ficava por cima do espelho e teve de se pôr em bicos de pés para a ligar. Deu-lhe uma esponja de banho, molhada e fria. - Tira a camisa de noite e lava-te. Cheiro de adesivo e o ruído metálico da tesoura brilhante. Cortou um pedaço de adesivo, fê-lo trepar para cima da tampa da sanita e fechou-lhe o corte que tinha sobre o olho. - Agora - disse ela. Encostava-lhe a tesoura à parte inferior do ventre, fazendo-lhe sentir o frio do metal. - Olha - insistiu. Agarrou-lhe na nuca, fazendo-o curvar-se para a frente para que pudesse ver o seu pequeno pênis em cima da lâmina inferior da tesoura aberta. Foi fechando a tesoura lentamente até que começou a magoá-lo. - Queres que o corte? Tentou olhar para cima para a encarar, mas a avó mantinha-lhe a cabeça na mesma posição. Soluçou e a saliva caiu-lhe na barriga.

Queres? Nah, ahó, nah, ahó. Dou-te a minha palavra de que se molhas a cama mais alguma vez to corto. Compreendeste? - Hin, ahó. - Mesmo às escuras podes encontrar o bacio e podes sentar-te nele como um rapaz ajuizado. Não tens de sair do quarto. Agora volta para a cama.

Eram cerca das duas da manhã quando o vento começou a

aumentar de intensidade, soprando o calor vindo de sudeste, partindo os ramos das macieiras que tinham secado e arrancando as folhas das que ainda estavam verdejantes. O vento arrastou uma chuva morna que fustigava a parte lateral da casa onde Francis Dolarhyde, com quarenta e dois anos de idade, dorme.

Está deitado de lado e chupa o polegar, o cabelo húmido

colado à testa e à nuca.

244

Entretanto acorda. Ouve a sua respiração no

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escuro e os pequenos ruídos das suas pálpebras que pestanejam. Os dedos cheiram levemente a gasolina. Tem a bexiga cheia. Na mesinha de cabeceira procura o copo que contém a dentadura. Dolarhyde pSe sempre a dentadura antes de se levantar. Diri ge-se agora para a casa de banho. Não acende a luz. Encontra sanita às escuras e senta-se nela como um rapaz ajuizado.

CAPÍTULO 27

A mudança na avó tornou-se evidente pela primeira vez no Inverno de 1947, quando Francis tinha oito anos, Deixou de tomar as refeições no quarto dela com Francis. Mudaram-se para a mesa comum na sala de jantar, onde presidia às refeições com os residentes mais antigos. A avó aprendera quando era rapariga a arte que faria dela uma anfitriã encantadora. Desembrulhou e poliu a campainha de prata que passou a colocar ao lado do prato. Manter uma refeição em movimento, vigiando o serviço, dirigindo as conversas, adaptando temas fáceis de conversa aos aspectos em que os mais tímidos se sentiam mais à vontade, salientando as melhores facetas dos mais brilhantes diante dos outros hóspedes, é uma arte notável que infelizmente se encontra em declínio. No seu tempo a avó era boa nesta arte, E de facto os seus esforços à mesa, de início abrilhantaram as refeições para os dois ou três residentes que eram capazes de uma conversação linear.

Francis sentava-se na cadeira de hóspedes no

outro extremo da avenida de cabeças que acenavam,

enquanto a avó conseguia fazer sobressair as

recordações daqueles que ainda mantinham um pouco

de memória. Exprimia um interesse delicado pela

lua-de-mel que a Sr a Floder tinha passado em

Kansas City, passava algumas vezes pelo ataque de

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febre-amarela que o Sr. Eaton tivera e ouvia

diplomaticamente a confusão dos sons ininteligíveis

dos outros.

246

- Não achas interessante, Francis? - disse ela, e tocou a campainha para servirem o prato seguinte. A alimentação era constituída por diferentes vegetais e almôndegas de carne, mas dividia o conjunto em diversos pratos, o que causava enormes problemas no trabalho da cozinha. Os incidentes à mesa nunca eram mencionados. Um toque de campainha e um gesto a meio de uma frase eram o suficiente para se tomar conta dos que se tinham engasgado, dos que tinham adormecido e até dos que se tinham esquecido de onde é que estavam. A avó mantinha o número máximo de pessoal que as suas posses lhe permitiam.

+ medida que a saúde da avó ia declinando, ia perdendo

peso, e começou a poder usar vestidos que há muito tempo se encontravam guardados. Alguns deles eram elegantes. No conjunto do seu aspecto e do seu penteado podia dizer-se que se parecia imenso com George Washington na nota de dólar. Na Primavera, os seus hábitos transformaram-se sensivelmente. Era ela quem dirigia a mesa e não permitia qualquer interrupção enquanto contava histórias dos seus tempos de rapariga em Saint Charles, revelando mesmo assuntos de natureza pessoal que serviam para inspirar e instruir Francis e os outros. Era um facto que em 1907 a avó tinha disfrutado uma época em que era a mais bela, tendo sido convidada para alguns dos melhores bailes ao longo do rio em Saint Louis. Havia nisto uma «lição objectiva» para todos eles, dizia ela. Olhava em especial para Francis, que cruzava as pernas debaixo da mesa. - Nasci numa altura em que pouco se podia fazer,

sob o

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ponto de vista médico, para ultrapassar os pequenos acidentes da natureza - disse ela. - Tinha um cabelo e uma pele maravilhosos e tirei toda a vantagem que me foi possível desse facto. Ultrapassei o problema dos meus dentes à custa da força de personalidade e de um espírito brilhante, de facto, com tanto sucesso que se tornaram a minha «marca de beleza». Acho que até se lhes poderia chamar a «minha marca registada de sedução». Não os trocava por nada deste mundo.

247 Explicava com amplos detalhes que não acreditava nos médicos, mas quando se tornou evidente que os problemas das gengivas lhe iam fazer perder os dentes, procurou um dos mais afamados dentistas no Midwest, o Dr. Feliz BertI, um suíço. Os «dentes suíços» do Dr. BertI eram muito populares dentro de uma certa classe de gente, dizia a avó, e ele tinha uma prática notável. Cantores de ópera com receio de que novas formas da boca lhes pudessem alterar o tom da voz, actores e outras pessoas com vida pública vinham de tão longe como São Francisco para serem tratados. O Dr. BertI era capaz de reproduzir exactamente os dentes naturais do paciente e tinha feito experiências com vários compostos e os seus efeitos de ressonância. Quando o Dr. BertI completou a sua dentadura, os dentes pareciam exactamente como antes. Usou-os com personalidade e não tinha perdido pitada do seu encanto especial, dizia ela com um sorriso astucioso. Se havia uma lição objectiva nisto tudo, Francis só conseguiu aperceber-se disso mais tarde; não haveria mais cirurgia para ele até que estivesse em condições de a pagar.

Francis era capaz de suportar as refeições porque havia

qualquer coisa que ele desejava e que sempre acontecia depois. O marido de Queen Mother Bailey vinha buscá-la todas as

noites no carro puxado por uma mula que ele usava para transportar lenha. Se a avó estava ocupada no primeiro andar, Francis conseguia ir com eles de carroça durante o caminho que levava até à estrada

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principal. Esperava durante todo o dia pelo passeio nocturno: sentado no banco da carroça ao lado de Queen Mother, observava o vulto alto e esguio do marido, em silêncio e quase que invisível na escuridão, as rodas de ferro da carroça esmagando o cascalho do caminho, que por vezes saltava em direcções inesperadas. Duas mulas, castanhas e por vezes enlameadas, as crinas esticadas como se fossem escovas, sacudindo o lombo com as caudas permanentemente em movimento. O cheiro de suor e pano de algodão fervido, de poeira e do couro dos arreios. Havia ainda o cheiro de fumo de

248

madeira queimada, nos dias em que o Sr. Bailey tinha estado a limpar novos terrenos, e por vezes, quando levava a caçadeira, podia ver-se um par de coelhos ou de esquilos que jaziam na caixa da carroça, esticados como se ainda estivessem a correr.

Nunca falavam durante o caminho que levava à estrada; o

Sr. Bailey falava só com as mulas. Os saltos da carroça atiravam o rapaz de encontro aos Bailey de uma forma que lhe agradava. Saltando da carroça no fim do caminho, fazia a sua promessa de todas as noites de ir directo para casa, e ficava a ver a lanterna da carroça que desaparecia na noite. Conseguia ouvi-los a conversar ao longe na estrada. Por vezes Queen Mother fazia rir o marido e ria-se com ele. De pé na escuridão era agradável ouvi-los e saber que não estavam a rir dele. Mais tarde havia de modificar o seu modo de pensar a esse respeito ...

A companheira ocasional de brincadeiras de Francis Dolarhyde era a filha de um rendeiro que vivia a alguma distância. A avó deixava-a vir brincar porque a divertia vestir a criança de vez em quando com as roupas que Marian tinha usado quando era pequena.

Era uma criança ruiva absolutamente apática e a maior

parte das vezes estava demasiado cansada para brincar.

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Uma tarde quente de Junho em que se cansara de caçar

escaravelhos com uma palha no pátio das galinhas, disse a Francis para lhe mostrar as suas partes privadas. Num canto entre o galinheiro e uma sebe baixa que

os ocultava das janelas do rés-do-chão da casa, fez-lhe a vontade. Ela mostrou-lhe igualmente as dela, ficando de pé, com a roupa interior de algodão à volta dos tornozelos. Quando ele se preparava para ver melhor, um galo sem cabeça surgiu da esquina, deslizando de costas e levantando nuvens de poeira. A rapariga, espantada, recuou involuntariamente quando foi salpicada de sangue nos pés e nas pernas. Francis deu um salto com as calças ainda descidas, no momento em que Queen Mother Bailey apareceu na esquina atrás do galo e os viu.

249 - Olha uma coisa, rapaz - disse ela calmamente - se querias ver como é que as coisas são, pronto, já viste. Agora vejam lá se encontram qualquer coisa que fazer. Ocupem-se com assuntos de crianças e mantenham as roupas vestidas. Tu e essa criança, ajudem-me a apanhar aquele galo. O embaraço das crianças passou rapidamente com a caça do galo. Mas a avó estava a observá-los da janela do primeiro andar ...

A avó viu Queen Mother entrar de novo. As crianças foram para o galinheiro. Esperou cinco minutos e foi silenciosamente atrás deles. Abriu a porta de repente e encontrou-os a apanhar penas para almofadas. Mandou a rapariga embora e conduziu Francis para

casa. Disse-lhe que o ia mandar de volta para o orfanato do

irmão Buddy, depois de o ter castigado. - Vai lá para cima. Vai para o teu quarto, tira as calças e espera por mim enquanto vou buscar a tesoura. Esperou enquanto ouvia em baixo os sons da ceia e os ruídos do carro da lenha e das mulas, quando o marido de Queen Mother chegou.

Mais próximo da manhã adormeceu e quando acordou em

sobressalto voltou a ficar à espera.

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A avó nunca chegou a vir. Possivelmente tinha-se esquecido. Esperou através da rotina dos dias que se seguiram,

lembrando-se muitas vezes durante o dia num sentimento de pavor absoluto. Nunca mais acabaria de esperar. Evitava Queen Mother Bailey, não falava com ela e não lhe dizia porquê: erradamente pensava que ela tinha contado à avó o que vira no pátio do galinheiro. Agora estava convencido de que o riso que ouvira, enquanto via afastar-se ao longe a lanterna da carroça, era a seu respeito. Não havia dúvida de que não podia acreditar em ninguém.

Era difícil estar deitado sem se mexer e tentar dormir quando tinha tanta coisa em que pensar. Era difícil estar ali deitado sem se mexer quando estava uma noite tão bonita.

250

Francis sabia que a avó tinha razão. Tinha-a magoado.

Tinha-a envergonhado. Toda a gente devia saber o que ele fizera, mesmo em Saint Charles. Não estava zangado com a avó. Sabia que gostava muito dela. Queria fazer as coisas como devia ser. Imaginou que os ladrSes estavam a assaltar a casa, que ele protegia a avó e que esta retirava o que tinha dito. - Afinal não és um filho do diabo, Francis. És o

meu rapazinho ajuizado. Imaginou um ladrão que queria entrar na casa. Um

ladrão que queria entrar na casa para mostrar à avó as partes privadas. Como é que Francis a podia proteger? Era demasiado pequeno para poder lutar com um ladrão crescido. Pensou sobre isso. Havia a machada de Queen Mother junto da lenha. Depois de ter morto a galinha, limpara-a com uma folha de jornal. Precisava de pensar a respeito da machada. Era a sua responsabilidade. Devia combater o mundo do escuro. Se ele de facto amava a avó, ele é que devia ser a coisa de que se tinha medo no escuro. Qualquer coisa de que o ladrão deveria ter medo. Desceu as escadas e encontrou a machada

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pendurada no prego. Tinha um cheiro estranho, semelhante ao cheiro que a banca tinha quando estavam a depenar frangos. Estava afiada e o peso dela ao empunhá-la dava-lhe uma certa confiança.

Dirigiu-se ao quarto da avó de machada na mão, para se

certificar de que não havia ladrSes. A avó estava a dormir. Estava muito escuro, mas ele sabia exactamente onde é que ela estava. Se houvesse um ladrão ouvia-o respirar, do mesmo modo que era capaz de ouvir a avó respirar. Conseguiria saber onde é que estava o pescoço dele, do mesmo modo como sabia onde é que estava o pescoço da avó. Era logo a seguir à respiração.

Se houvesse um ladrão, atacá-lo-ia em silêncio, como

devia ser. Levantaria a machada acima da cabeça, agarrando-a com ambas as mãos, daquela maneira. Francis parou ao lado dos chinelos da avó, que se encontravam ao lado da cama. A machada oscilou no escuro e esbarrou no metal do abat-jour do seu candeeiro de leitura.

251 A avó voltou-se na cama e produziu um ruído húmido com a boca. Francis ficou imóvel. Os braços tremiam-lhe com o esforço de manter a machada erguida. A avó começou a ressonar.

O afecto que Francis sentia quase que o fazia explodir.

Saiu do quarto. Estava ansioso por se sentir pronto para a proteger. Era preciso fazer qualquer coisa. Já não tinha medo da casa às escuras, mas abafava-o. Saiu pela porta das traseiras e ficou de pé a olhar

a noite brilhante, o rosto sem se voltar, arfando como se quisesse respirar a luz. Uma minúscula fatia da lua, distorcida no branco dos olhos que não se queriam voltar, apresentou-se em todo o seu esplendor quando finalmente se voltou e ela se pôde centrar nas pupilas. O afecto que sentia apertava-o de tal forma que não

se conseguia libertar dele. Caminhou em direcção ao galinheiro, em passos apressados, sentindo o frio do chão debaixo dos pés, o frio do metal da machada

Page 233: Thomas Harris   Dragão Vermelho

que lhe batia na perna, até que começou a correr antes que rebentasse ...

Francis, enquanto se lavava na bomba do pátio do galinheiro, sentia uma paz e um relaxamento que nunca sentira antes. Analisou os seus sentimentos cautelosamente e concluiu que a paz que sentia era duradoura e que o envolvia completamente. Aquilo que a avó amavelmente não tinha cortado ainda ali estava como um prêmio, quando lavou o sangue do ventre e das pernas. A sua mente estava límpida e calma. Tinha de fazer qualquer coisa em relação à camisa

de noite. O melhor era escondê-la debaixo dos sacos que se encontravam no fumeiro. A descoberta das galinhas mortas deixou a avó espantada. Disse que não lhe parecia ter sido feito por uma raposa. Um mês depois, Queen Mother encontrou mais uma quando foi buscar ovos. Desta vez a cabeça tinha sido arrancada. Quando estavam sentados à mesa, a avó disse que estava convencida de que alguém o fizera por despeito, alguém «a quem recusei ajuda». Disse ainda que telefonara ao xerife contando-lhe o que se tinha passado.

252

Francis, sentado em silêncio no seu lugar, abria e fechava a mão, recordando um olho que pestanejava contra a palma da mão. Algumas vezes, quando estava deitado, procurava por todo o corpo, com receio de se ter cortado. Algumas vezes, quando procurava por todo o corpo, tinha a impressão de que conseguia ver um pestanejar.

A avó estava a modificar-se rapidamente. Estava a tornar-se extraordinariamente implicativa e era incapaz de aguentar o pessoal. Embora tivesse falta de empregadas para o serviço do resto da casa, era da cozinha que ela se encarregava pessoalmente, dirigindo Queen Mother Bailey, em detrimento da alimentação. Queen Mother, que trabalhara toda a sua vida para os Dolarhyde, era o único elemento permanente do pessoal. Corada devido ao calor da cozinha, a avó movia-se

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sem descanso de uma tarefa para outra, deixando muitas vezes pratos meios-feitos, que nunca seriam servidos. Fazia guisado de restos de outras refeições, enquanto os vegetais iam apodrecendo lentamente.

Ao mesmo tempo tornou-se fanática a respeito de gastos.

Reduziu a quantidade de sabão e de lixívia para o tratamento da roupa, o que fez que aos poucos os lençóis começassem a ficar bastante encardidos. No mês de Novembro, contratou cinco mulheres negras, para ajudarem nos trabalhos da casa. Nenhuma delas se conseguiu aguentar. Na noite em que a última se tinha ido embora, a avó estava furiosa. Andava pela casa aos gritos. Até que foi à cozinha e viu que Queen Mother Bailey se esquecera de uma colher de chá de farinha em cima do balcão, quando estivera a preparar uns fritos. No vapor e no calor da cozinha, meia hora antes de jantar, dirigiu-se a Queen Mother e esbofeteou-a. Queen Mother, absolutamente chocada, deixou cair o que tinha na mão. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A avó esboçou o mesmo gesto mais uma vez. Uma enorme mão rosada empurrou-a.

253 - Nunca mais faça isso. Não está em si, Sr.'

Dolarhyde, mas nunca mais faça isso. Proferindo insultos em voz alta, a avó entornou com as mãos nuas uma panela de sopa que se encontrava em cima do fogão e que escorreu para a fornalha, enquanto se elevavam nuvens de vapor. Foi para o quarto, batendo com a porta. Francis ouvia-a praguejar no quarto e ao ruído dos objectos que ela atirava contra as paredes. Durante toda a noite não desceu do quarto. Queen Mother limpou a sopa que se entornara e deu de comer aos velhos. Guardou num cesto as poucas coisas que lhe pertenciam, vestiu um velho casaco de malha e pôs um boné na cabeça. Procurou Francis, mas não o conseguiu encontrar.

Já se encontrava na carroça quando viu o rapaz sentado

num canto do alpendre. Viu-a voltar a descer pesadamente e dirigir-se para ele.

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- Olha, meu diabinho, vou-me embora agora. Nunca mais

volto. Vou pedir à Sironia da mercearia que telefone à tua mamã. Se precisares de mim antes de a tua mamã aqui chegar, vai a minha casa. Afastou-se evitando tocar-lhe a face. O Sr. Bailey chicoteou as mulas. Francis ficou a observar a lanterna da carroça que se afastava. Já o tinha feito mais vezes, com um sentimento de tristeza e de vazio, desde que compreendera que Queen Mother o traíra. Agora já não se importava. Sentia-o contente. Uma frágil lanterna de querosene de uma carroça que se distanciava ao longe na estrada. Não era nada comparado com a lua. Tentou imaginar o que é que sentiria se matasse uma mula.

Marian Dolarhyde Vogt não apareceu quando Queen Mother

Bailey lhe telefonou. Veio duas semanas mais tarde, depois de um telefonema do xerife de Saint Charles. Chegou a meio da tarde, conduzindo ela própria um Packard de antes da guerra. Trazia luvas e chapéu. Um ajudante do xerife esperava-a na extremidade da propriedade e parou junto da janela do carro.

254

- Sr a Vogt, a sua mãe telefonou para o nosso escritório cerca do meio-dia, dizendo qualquer coisa acerca do pessoal que a andava a roubar. Quando aqui cheguei, vai-me desculpar mas ela estava completamente desvairada e as coisas pareciam ser bastante diferentes do que ela afirmava. O xerife pensou que o melhor era dar-lhe conhecimento antes de mais nada, está a compreender o que quero dizer? Atendendo que o Sr. Vogt é uma figura pública e tudo o mais. Marian estava a compreendê-lo. O Sr. Vogt era o comissário para as obras públicas em Saint Louis e não estava nas melhores graças do partido. _ Tanto quanto eu sei, ninguém mais cá veio - disse

o ajudante do xerife. Marian encontrou a mãe a dormir. Dois dos velhos ainda estavam sentados à mesa à espera do almoço. Uma mulher estava no pátio das traseiras,

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em cuecas. Marian telefonou ao marido.

- Com que frequência é que inspeccionam estes lugares?

... Nunca devem ter visto nada ... Não sei se alguns familiares se queixaram, estou convencida de que esta gente já não tem família ... Não. Não te metes nisto. Preciso de alguns negros. Arranja-me alguns negros ... e o Dr. Waters. Eu tomo conta disto. O doutor e um auxiliar vestido de branco chegaram

quarenta e cinco minutos depois, seguidos por um carro de caixa aberta que trazia a criada de Marian e mais cinco empregadas domésticas. Marian, o médico e o auxiliar encontravam-se no quarto da avó quando Francis chegou da escola. Este podia ouvir a avó a praguejar. Quando a transportaram para uma das cadeiras de rodas doJar tinha os olhos vítreos e um pedaço de algodão fixado no braço. Sem os dentes o rosto parecia esquálido e completamente diferente. O braço de Marian também tinha um penso; tinha sido mordida. A avó foi transportada no carro do médico, sentada

no banco de trás ao lado do auxiliar. Francis viu-os partir. Começou a dizer adeus, mas deixou cair a mão ao longo do corpo.

255 A equipa de limpeza de Marian esfregou e arejou a

casa, lavou tudo de alto a baixo e deu banho aos idosos. Marian trabalhou lado a lado com o pessoal e supervisou a preparação de uma refeição simples.

Só falou com Francis para lhe perguntar onde estavam as

coisas. A seguir mandou a equipa embora e chamou as

autoridades municipais. A Sr a Dolarhyde fora vítima de uma trombose, explicou. Já era noite quando os trabalhadores dos serviços sociais vieram buscar os pacientes num autocarro da escola. Francis pensou que também o iam levar. Esse ponto não foi discutido.

Finalmente só ficaram na casa Marian e Francis. Sentou-se

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à mesa da sala de jantar com a cabeça entre as mãos. Ele saiu e trepou para um ramo da macieira. Algum tempo depois, Marian chamou-o. Tinha feito

uma pequena mala com as suas roupas. - Tens de vir comigo - disse ela dirigindo-se para

o carro. - Entra. Não ponhas os pés no assento.

Afastaram-se no Packard, deixando no pátio a cadeira de

rodas vazia. Não houve nenhum escândalo. As autoridades

municipais disseram que, de facto, era uma pena, que a Sr.' Dolarhyde sempre conseguira manter as coisas a correr que era uma maravilha. Os Vogt safaram-se sem qualquer mácula.

A avó foi internada num sanatório privado de doenças

nervosas. Só catorze anos mais tarde Francis voltaria a casa com ela.

- Francis, tens aqui as tuas meias-irmãs e o teu meio-irmão - disse-lhe a mãe. Estavam todos na biblioteca dos Vogt. Ned Vogt tinha doze anos, Victoria treze e Margaret nove. Ned e Victoria olhavam um para o outro. Margaret olhava para o chão. Deram a Francis um quarto no cimo das escadas, na zona dos criados. Desde a eleição desastrosa de 1954 os Vogt nunca mais tinham empregado uma criada de quarto.

256

Foi matriculado na Escola Elementar Gerard Potter, que ficava relativamente perto de casa, o que permitia ir a pé, e que era suficientemente distante da escola privada que as outras crianças frequentavam, a Escola Episcopal. Nos primeiros dias as crianças dos Vogt ignoravam-no tanto quanto possível, mas no final da primeira semana Ned e Victoria foram chamá-lo ao cimo das escadas. Francis ouviu-os murmurar durante alguns minutos antes de o puxador da porta rodar. Quando viram que o fecho estava travado, bateram à porta. Ned disse:

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- Abre a porta. Francis abriu-a. Não voltaram a falar com ele enquanto inspeccionavam as suas roupas no guarda-fatos. Ned Vogt abriu a gaveta do pequeno toucador e foi tirando as coisas que encontrava com dois dedos: lenços de aniversário com «F. D.» bordado, um travão para uma guitarra, um escaravelho brilhante dentro de um frasco para comprimidos, um exemplar do Baseball Joe in the World Series, que já se tinha molhado, e um cartão a desejar-lhe as melhoras que era assinado: «A tua companheira de classe Sarah Hughes.» - Que é isto? - perguntou Ned. - Um travão. - Para que é que serve? - Para uma guitarra. - Tens uma guitarra? - Não. - Então para que é que o queres? - Eha do heu pai. - Não consigo compreender-te. Que é que disseste?

Fá-lo repetir o que disse, Ned. - Disse que era do pai. - Ned assoou-se a um dos lenços e voltou a pô-lo na gaveta. - Vieram hoje buscar os póneis - disse Victoria. Sentou-se na estreita cama. Ned sentou-se ao lado dela, as costas encostadas à parede, os pés em cima da colcha. - Acabaram-se os póneis - disse Ned. - Acabou-se a

casa do lago durante o Verão. Sabes porquê? Fala meu estuporzinho.

- perguntou Victoria.

257 - O pai está muito doente e já não ganha tanto

dinheiro disse Victoria. - Há dias em que já nem vai ao escritório. - Sabes por que é que ele está doente, meu estuporzinho? perguntou Ned. - Fala de modo que consiga compreender-te.

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- A avó diz que ele é um alcoólico. Compreendes isto, não compreendes? - Está doente por causa da tua cara horrível - disse Ned.

- Foi também por causa disso que as pessoas não votaram

nele - disse Victoria. - Rua - disse Francis. Quando se voltou para abrir

a porta, Ned deu-lhe um pontapé nas costas. Francis tentou esfregar os rins com ambas as mãos, o que fez que os dedos não fossem atingidos quando Ned lhe deu um pontapé no estômago. - Oh, Ned - disse Victoria. - Oh, Ned. Ned agarrou Francis pelas orelhas e segurou-o em

frente do espelho que se encontrava por cima da cómoda. - É por causa disto que ele está doente! - Ned bateu-lhe com a cara no espelho. - É por causa disto que ele está doente. - O espelho estava cheio de sangue e de muco. Ned largou-o e ele sentou-se no chão. Victoria olhou para ele com os olhos arregalados, segurando o lábio inferior entre os dedos. Deixaram-no ali. Tinha o rosto molhado de sangue e saliva. Os olhos estavam cheios de lágrimas por causa das dores, mas não chorou.

258

CAPÍTULO 28

Na noite de Chicago a chuva cai em bátegas, fustigando a cobertura da sepultura aberta de Freddy Lounds. Os trovSes tornam-se insuportáveis para Will Graham, que, com a cabeça a latejar, se arrasta da mesa para uma cama onde sabe que os sonhos se aninham escondidos por debaixo da almofada.

A velha casa acima de Saint Charles, enfrentando o vento, faz ecoar o seu longo gemido, que se eleva acima do sibilar da chuva contra as janelas e dos ecos dos trovSes. As escadas rangem na escuridão. Dolarhyde vem a descê-las, o quimono roçando o corrimão, os olhos bem abertos depois de ter acabado de dormir. O cabelo está húmido e perfeitamente penteado. Escovou as unhas. Move-se suave e lentamente,

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«carregando» a sua concentração como se se tratasse de uma chávena frágil. Um filme ao lado do projector. Dois assuntos. Outras bobinas encontram-se empilhadas no cesto dos papéis para serem queimadas. Separou dois, escolhidos entre as dúzias de filmes particulares que copiou na firma e que trouxe para casa para ver. Confortável na sua cadeira regulável, com um prato de queijo e de fruta a seu lado, Dolarhyde prepara-se para ver os filmes. O primeiro filme é sobre um piquenique feito no fim-de-semana do 4 de Julho. Uma família agradável: três crianças, o

259 pai com um pescoço de touro, metendo os seus dedos espessos no frasco dos pickles, e a mãe. As melhores imagens dela são no jogo de s oftball com os filhos dos vizinhos. Só quinze segundos com ela; sai da segunda base, enfrenta o pitcher, voltada para a placa, pés afastados pronta para partir em qualquer dos dois sentidos, os seios a oscilar debaixo do pullover quando se inclina com o peito para a frente. Uma interrupção irritante quando uma criança executa uma batida. A mulher de novo, regressando à base. Coloca um pé na almofada inflável que usam como base e fica de pé, as ancas tensas, notando-se a contracção dos músculos da perna de base. Dolarhyde observa interminavelmente as imagens da mulher. O pé na base, a saliência da pélvis, a contracção dos músculos sob os jeans justos. Pára na última imagem. A mulher e os filhos. Estão cansados e todos sujos. Abraçam-se e um cão agita-se no meio das suas pernas. Um estrondo terrível de trovão faz chocalhar os cristais do candelabro da avó. Dolarhyde estende a mão para pegar numa pêra. O segundo filme foi feito em vários segmentos. O título, A Casa Nova, surge escrito em moedas de cêntimo num cartão de uma caixa de camisas, fixado num banco a que falta uma das pernas. Começa com o pai a dirigir-se para o letreiro «Para venda» que se encontra no jardim. Pega nele e enfrenta a câmara com um sorriso embaraçado. Os bolsos estão

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virados do avesso. Uma imagem desfocada da mãe e de três crianças nos degraus da frente. É uma casa bonita. Uma mudança de imagem e surge a piscina. Uma criança dirige-se para a prancha de saltos, deixando pegadas húmidas nos mosaicos. Cabeças que surgem na água. Um cão pequeno nada em direcção da filha, as orelhas para trás, o focinho erguido, conseguindo distinguir-se o branco dos olhos. A mãe dentro de água segura-se à escada e olha para

a câmara. O cabelo negro encaracolado tem o brilho de azeviche, o traseiro esplendoroso destacando-se com um brilho húmido, as pernas indistintas agitando-se debaixo de água em golpes de tesoura.

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Noite. Uma vista da casa tirada do outro lado da piscina, com uma exposição péssima, as luzes reflectindo-se na água.

Interiores e a família que se diverte. Caixas por todos

os lados, juntamente com materiais de embalagem. Uma velha arca que ainda não foi guardada nas águas-furtadas. Uma das filhas pequenas está a experimentar as roupas da avó. Pôs um enorme chapéu de garden-party. O pai encontra-se no sofá. Está levemente embriagado. Agora deve ter sido o pai que pegou na câmara. Não está bem estabilizada. A mãe está no espelho, de chapéu. As crianças saltam à volta dela, os rapazes rindo e pregando partidas. A rapariga observa a mãe friamente, procurando escolher a altura em que deve intervir. Um close-up. A mãe volta-se e faz uma pose para a câmara, com um sorriso aberto, uma mão na nuca. É encantadora. Na garganta vê-se um camafeu.

Dolarhyde pára a imagem. Faz rodar o filme para trás.

Vezes sem fim ela volta-se do espelho e sorri. Com um modo ausente, Dolarhyde pega no filme do

jogo de softball e deita-o no cesto dos papéis. Tira a bobina do projector e olha para a etiqueta que se encontra na caixa: «Bob Sherman, Star Route 7, Box 603, Tulsa, Ok1a.»

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Também era uma viagem fácil. Dolarhyde coloca o filme na palma da mão e cobre-o com a outra, como se se tratasse de um pequeno ser vivo que pudesse tentar escapar-se. Dava-lhe a ideia de que se agitava na palma da mão como se fosse um grilo. Lembra-se da confusão, da pressa que tinha havido na casa de Leeds quando as luzes se acenderam. Teve de se ocupar do Sr. Leeds antes de ter acendido os projectores de cinema.

Desta vez quer que tudo se desenrole com uma sequência

mais suave. Era formidável conseguir deslizar pelo meio das pessoas adormecidas, parando a câmara aqui e ali. Depois podia atacar no escuro e sentar-se no meio deles, enquanto se deixava invadir pelo prazer de se molhar.

261 É possível fazer isso com filme infravermelho e sabe onde pode arranjar algum. O projector ainda está ligado. Dolarhyde deixa-se

ficar sentado, segurando ainda o filme na mão, enquanto no brilhante ecrã em branco outras imagens se movem para ele, ao som do longo gemido do vento. Não existe nele qualquer sentimento de vingança,

apenas amor e o pensamento da glória que há-de vir; o pulsar de corações que acelera ao mesmo tempo que se vai tornando cada vez mais débil, tal como passos que se diluíssem no silêncio.

Ele em acção. Ele em acção, cheio de amor, os Sherman

abrindo-se para ele. Não se lembra de modo nenhum do passado; pensa apenas na glória que há-de vir. Não pensa na casa da sua mãe. Na realidade, as suas memórias conscientes desse tempo são muito poucas e indistintas. Algures por alturas dos seus vinte anos, as memórias de Dolarhyde sobre a casa da mãe desapareceram, deixando apenas um rasto ténue na superfície da sua mente. Recorda-se de que só lá viveu um mês. Não se lembra de que o mandaram embora quando tinha nove anos por ter enforcado o gato de Vietoria.

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Uma das poucas imagens que conseguiu reter foi a própria imagem da casa, iluminada, vista da rua no crepúsculo de Inverno, quando ele passava da Escola Elementar Gerard Potter para a casa onde o tinham hospedado a uma milha de distância.

Conseguia recordar-se do cheiro da biblioteca dos Vogt,

bem como de um piano de cauda que se encontrava sempre aberto, onde a sua mãe se sentava para lhe dar as prendas de feriados. Não se recordava dos rostos nas janelas do primeiro andar, quando se afastou pelo passeio gelado, transportando os presentes úteis que lhe tinham sido dados debaixo do braço, tendo a sensação de que o queimavam como ferro em brasa; ansiando regressar a casa, uma casa que só existia na sua mente e que era muito diferente de Saint Louis. Com onze anos a sua vida de fantasia era activa e intensa e quando a pressão do seu amor o fez crescer para uma dimensão

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que não podia ser descrita, libertou-o. Atacava animais de estimação, analisando cuidadosa e friamente as consequências. Eram tão confiantes que se tornava fácil. As autoridades nunca o relacionaram com os pequenos farrapos sangrentos que eram encontrados nos pavimentos sujos das garagens. Aos quarenta e dois não se lembrava disso - nem se lembrava das pessoas que havia na casa da sua mãe - a sua mãe, as suas meias-irmãs ou o seu meio-irmão. +s vezes via-os quando dormia, nos fragmentos brilhantes de um sonho febril; diferentes e mais altos, rostos e corpos em cores brilhantes como se fossem papagaios, atacavam-no de uma forma encarniçada. Quando decidia reflectir, o que era raro, tinha muitas recordações agradáveis. Eram as recordações do seu serviço militar. Apanhado quando tinha dezassete anos a entrar pela janela da casa de uma mulher, com um propósito que nunca ninguém chegou a descobrir, foi-lhe dado a escolher entre alistar-se no Exército ou ser pronunciado. Escolheu o Exército. Depois do treino básico foi enviado para uma

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escola de especialistas em câmara escura e despachado para Saint Antonio, onde trabalhou nos filmes de treino do corpo médico no Brooke Anny Hospital. Os cirurgiSes no Brooke interessaram-se por ele e

decidiram melhorar-lhe o rosto. Executaram no nariz uma cirurgia plástica tipo Z, usando cartilagem da orelha para aumentar o comprimento da colunela, e repararam-lhe o lábio usando a técnica Abbé, o que arrastou uma audiência incrível de médicos para a sala de operações.

Os cirurgiSes sentiam-se orgulhosos com o resultado.

Dolarhyde recusou o espelho e olhou pela janela. Os registos na filmoteca provam que Dolarhyde requisitou imensos filmes, quase todos sobre traumas, e que os entregava logo no dia seguinte. Voltou a alistar-se em 1958 e na sua segunda licença conhecia Hong-Kong. Estacionado em Seul, Coreia, trabalhava na revelação de filmes que os pequenos aviSes de observação faziam ao

263 sobrevoarem o paralelo trinta e oito, por alturas de 1950. Conseguiu ter duas licenças em Hong-Kong. Em 1959 Hong-Kong e Kowloom eram capazes de satisfazer qualquer apetite. A avó conseguiu sair do sanatório em 1961, numa tranquilidade muito vaga provocada pela thorazine. Dolarhyde requereu, e foi-lhe concedida, a saída do serviço militar a título excepcional, dois meses mais cedo do que aquilo que estava programado, indo para casa para tomar conta dela. Para ele também foi um período curiosamente pacífico. Com o seu novo trabalho na Gateway, Dolarhyde podia contratar uma mulher para ficar com a avó durante o dia. + noite sentavam-se os dois na sala de visitas, sem dirigirem a palavra um ao outro. A única coisa que quebrava o silêncio era o trabalhar do velho relógio e o barulho produzido pelo seu carrilhão.

Viu a mãe uma única vez, no funeral da avó, em 1970.

Olhou para ela como se não a visse, o olhar fixo num ponto distante, com uns olhos amarelos extraordinariamente semelhantes aos dela. Procedeu

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como se fosse uma desconhecida. O seu aspecto surpreendeu a mãe. Um tronco bem

desenvolvido e muito elegante, um bronzeado esplêndido e um pequeno bigode que ela julgava ter sido resultado de um transplante.

Ela telefonou-lhe uma vez na semana seguinte e ouviu o

auscultador ser reposto lentamente no lugar. Depois da morte da avó, e durante nove anos, Dolarhyde não foi perturbado nem perturbou ninguém. O seu cérebro estava suave como uma semente. Sabia que estava à espera. De quê, não sabia. Um pequeno acontecimento, que acontece a qualquer um, informou a semente que se encontrava no seu cérebro de que o tempo tinha chegado: de pé junto a uma janela virada para norte, enquanto examinava um filme, notou o envelhecimento das mãos. Era como se de repente as suas mãos, que seguravam o filme, tivessem aparecido pela primeira vez diante dele e viu àquela luz do norte que a pele se tinha tornado flácida sobre os ossos e tendSes e que aparecia coberta por pequenos diamantes, tão pequenos como escamas de lagarto.

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Quando as expôs à luz sentiu-se invadido por um cheiro intenso de couve e tomates guisados. Estremeceu, embora a sala estivesse quente. Essa noite trabalhou mais duramente do que era habitual. Na parede do ginásio que Dolarhyde instalara nas águas-furtadas havia o único espelho de corpo inteiro que existia na casa. Podia observar o seu corpo à vontade porque usava sempre máscara. Observou-se cuidadosamente enquanto fazia sobressair os músculos. Aos quarenta podia ter tomado parte com sucesso em qualquer competição regional de musculação. Mas não se encontrava satisfeito.

Uma semana depois deu-se o caso da gravura de Blake.

Dominou-o instantaneamente. Viu-a numa fotografia a cores em tamanho grande no Times, ilustrando uma reportagem sobre uma retrospectiva de Blake no Tate Museum em Londres. O Brooklin Museu tinha enviado O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol para a

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exibição. O crítico do Times dissera: «Poucas imagens demoníacas na arte ocidental irradiam tal carga de pesadelo e de energia sexual ... » Dolarhyde não precisou de ler o texto para compreender isso. Trouxe a gravura consigo durante dias, fotografada e ampliada na câmara escura a altas horas da noite. A maior parte do tempo sentia-se agitado. Colocou a gravura ao lado do espelho na sala de pesos, e ficava a olhar para ela enquanto praticava. Só conseguia dormir depois de ter trabalhado até à exaustão e de ter visto os seus filmes médicos que o ajudavam no seu alívio sexual. Desde os nove anos que sabia que se encontrava só e

que estaria sempre só, uma conclusão que mais se acentuou por altura dos quarenta. Agora, que atingira os quarenta, sentia-se dominado por uma vida de fantasia com o brilho, a frescura e a prontidão típicos da infância. Conduziu-o a um passo de distância de «só». Na altura em que os outros homens viam e receavam o

seu isolamento, Dolarhyde começou a compreender-se a si próprio: estava só porque era único. Com o fervor da conversão viu que se trabalhasse nesse sentido, se seguisse as verdadeiras ur-

265 gências que tinha mantido durante tanto tempo em estado adormecido, se as cultivasse como inspirações que eram na realidade, poderia transformar-se.

A face do Dragão não era visível mas, incrivelmente,

Dolarhyde conseguiu saber como é que ela era. Vendo os seus filmes médicos na sala de visitas,

depois de ter acabado o treino físico, abriu as maxilas o mais que podia e colocou a dentadura da avó. Não se adaptava às suas gengivas distorcidas e rapidamente ficou com as maxilas doridas. Começou a trabalhar nas maxilas quando estava só, mordendo um bloco de borracha dura, até que os músculos da face sobressaíam, parecendo autênticas nozes. No Outono de 1979 Francis Dolarhyde levantou

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do banco uma parte considerável das suas economias e ausentou-se da Gateway, tirando três meses de férias. Foi para Hong-Kong e levou consigo os dentes da avó. Quando voltou, a ruiva Eileen e os outros trabalhadores da firma concordaram em que as férias lhe tinham feito bem. Estava calmo. Praticamente nem notaram que nunca mais usou os armários ou os chuveiros do pessoal - embora antes também não o fizesse muitas vezes. Os dentes da avó tinham voltado para o copo na mesinha de cabeceira. A sua nova dentadura estava fechada à chave na secretária do andar superior. Se Eillen tivesse podido vê-lo com a dentadura, diante do espelho, a nova tatuagem brilhando à luz crua do ginásio, de certeza que teria gritado. Uma única vez. Chegara a altura; não era preciso apressar-se. Tinha todo o tempo. Passaram-se cinco meses antes de ter escolhido os Jacobi. Os Jacobi foram os primeiros a ajudá-lo, os primeiros a começar a erguê-lo na glória da sua transformação. Os Jacobi eram melhores do que qualquer coisa, melhores do que qualquer coisa que ele alguma vez tivesse conhecido. Até surgirem os Leeds. E agora, à medida que crescia em força e glória, havia os Sherman e novas intimidades em infravermelho. Muito prometedor.

266 CAP+TULO 29

Francis Dolarhyde foi obrigado a sair do seu próprio

território na Gateway Filra para conseguir aquilo que pretendia. Dolarhyde era chefe de produção da maior divisão da Gateway - processamento de filmes particulares -, havendo no entanto mais quatro divisSes.

A recessão de 1970 tinha provocado uma quebra acentuada

na quantidade de filmes produzidos por particulares e começava a verificar-se uma competição crescente dos sistemas de gravação em vídeo. Gateway via-se forçada a diversificar-se. A firma criou departamentos em que os filmes eram

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transportados para videotape, em que se produziam cartas topográficas a partir de filmagem aérea e onde se preparavam os pequenos formatos de filmes comerciais incluídos nas pautas alfandegárias. Em 1979 foi posto um desafio à Gateway. A firma estabeleceu um contrato com o Departamento de Defesa e o Departamento de Energia para desenvolver e testar novas emulsSes para fotografia infravermelha. O Departamento de Energia precisava de filme sensível ao infravermelho para os seus estudos de conservação de calor. A defesa precisava do mesmo tipo de filme para reconhecimento nocturno. Nos finais de 1979 a Gateway comprou uma pequena companhia que ficava ao pé da porta, a Baeder Chemical, e iniciou aí o desenvovimento do projecto.

267 Na hora do almoço e debaixo de um céu azul-

metálico, Dolarhyde atravessou a rua dirigindo-se à Baeder e evitando cuidadosamente os reflexos que se produziam nos charcos do asfalto. A morte de Lounds tinha-o posto de excelente disposição. Na Baeder dava a impressão que toda a gente tinha

saído para almoçar. Encontrou a porta que queria no final de um labirinto de salas e corredores. A placa ao lado da porta dizia: «Materiais sensitivos infravermelhos a serem utilizados. Não são permitidas lanternas, é proibido fumar. Não são permitidas bebidas quentes.» Por cima da placa encontrava-se acesa uma lâmpada vermelha. Dolarhyde premiu um botão e instantaneamente a luz de aviso passou a verde. Entrou num vestíbulo de segurança entre duas portas e bateu com os nós dos dedos na porta interior. - Entre - ouviu-se uma voz de mulher dizer. Estava uma atmosfera fresca e a escuridão era absoluta. Ouvia-se o correr de água e o ambiente estava impregnado do cheiro familiar do revelador D-76 misturado com um leve vestígio- de perfume. - Chamo-me Francis Dolarhyde. Vim por causa do secador.

- Oh, óptimo. Peço desculpa, mas tenho a boca

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cheia. Estava a acabar de almoçar. Ouviu o ruído de papéis a serem amachucados e deitados num cesto.

- O Ferguson é que tinha pedido o secador - disse a voz no escuro. - Está de férias, mas eu sei onde é que deve ser montado. Tem algum em Gateway? - Tenho dois. Um é maior. Ele não indicou o espaço disponível. - Havia já algumas semanas que Dolarhyde vira um memorando sobre o problema do secador. - Eu mostro-lhe, se não se importar de esperar um bocadinho. - Eu espero. - Encoste as costas à porta - a voz adquiriu um tom que traduzia o hábito de dar estas instruções - dê três passos em frente, até sentir mosaico debaixo dos pés. Nessa altura vai encontrar um banco precisamente à sua esquerda.

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Encontrou-o. Agora estava mais perto dela. Conseguia

ouvir o roçar da sua bata de laboratório. - Obrigada por ter vindo - disse ela. Tinha uma

voz clara, embora com um leve matiz de dureza. - É o chefe do processamento no edifício grande, não é? - Um-humm. - O mesmo «Sr. D.» que se manda ao ar quando as

requisições são mal preenchidas? - Exactamente. - Sou Reba McCIane. Espero que aqui não haja problemas. - Este projecto já não é meu. Limitei-me a projectar a câmara escura quando o edifício foi comprado. Há seis meses que não venho aqui. - Para ele fora um longo discurso, mas mais fácil por se encontrar no escuro. - Só mais um minuto e acendo-lhe uma luz. Precisa de uma fita métrica? - Tenho uma. Dolarhyde achava estranhamente agradável falar com a mulher às escuras. Ouviu o ruído de uma bolsa a ser revolvida e o click de uma caixa de pó de arroz.

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Teve pena quando o timer tocou. - Já está. Agora vou pôr esta história no «buraco negro» disse ela. Sentiu uma corrente de ar frio, uma porta de um armário que se fechava sobre vedantes de borracha e o assobio de um sistema de fecho de vácuo. Quando ela passou, sentiu uma leve fragrância e uma deslocação de ar. Dolarhyde premiu os nós dos dedos contra o nariz, compôs uma expressão pensativa e esperou pela luz.

As luzes acenderam-se. Ela permanecia junto da porta

sorrindo mais ou menos na sua direcção. Sob as pálpebras semicerradas os olhos deslocavam-se levemente de um lado para o outro. Viu a bengala branca que ela tinha encostada a um canto. Tirou a mão do rosto e sorriu. - Posso tirar uma ameixa? - disse ele. Havia várias

em cima do balcão, junto do lugar onde tinha estado sentada.

269 - Com certeza, olhe que são muito boas. Reba McCIane devia ter cerca de trinta anos e o rosto era suave, embora com traços de energia e determinação que lhe eram dados por uma ossatura firme. Tinha uma pequena cicatriz em forma de estrela na cana do nariz. O cabelo era uma mistura de tons de trigo e de ouro avermelhado, cortado à pagem, o que lhe dava um tom levemente fora de moda, e o rosto e as mãos estavam agradavelmente cobertos de sardas provocadas pela exposição ao sol. Em contraste com os mosaicos e o aço inox da câmara escura possuía o brilho do Outono. Podia olhar para ela à vontade. O seu olhar podia percorrê-la tão livremente como o ar. Não havia nada que impedisse o seu olhar. Quando falava com uma mulher, Dolarhyde sentia muitas vezes na pele pontos mais quentes ou que chegavam a doer-lhe. Percorriam-lhe o corpo, dependendo do ponto para onde ele pensasse que a mulher estava a olhar. Mesmo quando uma mulher estava a olhar para outro lado, convencia-se de que estava a ver o seu reflexo. Procurava sempre evitar as superfícies reflectoras, conhecia os ângulos de

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reflexão do mesmo modo que um tubarão conhece as margens.

A sua pele agora estava fria. A dela estava arrepiada,

com gotas de suor na garganta e no interior dos pulsos. - Vou-lhe mostrar a sala onde ele o quer instalar - disse ela. - Podemos tirar as medidas. Foi o que fizeram. Agora queria pedir-lhe um favor -, disse Dolarhyde. - Okay.

- Precisava de algum filme infravermelho. Filme para

calor, sensível até cerca de mil nanómetros. - Vai ter de o conservar no frigorífico e voltar a pô-lo no frio depois de ter fotografado. - Eu sei. - Se me puder dar uma ideia das condições, talvez eu ... - Fotografias a cerca de oito pés, com um par de filtros Wratten sobre as luzes. - Parecia-se demasiado com um projecto

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de vigilância. - No Zoológico - acrescentou. - No mundo da escuridão. Querem fotografar os animais nocturnos. - Devem ser de facto horríveis se não é possível

usar infravermelho comercial. - Ummm-hmmmm. - Estou convencida de que o podemos ajudar. No entanto há uma coisa. Sabe que a maior parte do nosso material é abrangida pelo contrato DD. Terá de assinar por qualquer coisa que leve daqui.

Está bem. Quando é que precisa disso? - Cerca do dia 20. Mas não pode ser mais tarde. - Sei que não é preciso avisá-lo, quanto mais sensível é o filme, mais difícil se torna de manusear. Vai precisar de gelo seco, arrefecedores, tudo isso. Se quiser estar presente, cerca das quatro vão preparar algumas amostras. Poderá escolher a emulsão mais apropriada para aquilo que quer fazer. - Vou dar uma vista de olhos. Depois de Dolarhyde ter saído, Reba McCIane contou

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as ameixas. Tinha tirado uma. Estranho homem, o Sr. Dolarhyde. A sua voz não tinha traduzido nenhuma pausa de simpatia ou de preocupação quando tinha ligado as luzes. Talvez já soubesse que ela era cega. Melhor ainda, talvez se estivesse nas tintas para isso. Era uma possibilidade agradável.

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CAPÍTULO 30

Em Chicago estava a fazer-se o funeral de Freddy Lounds. O The National Tattler pagara por um serviço requintado, fazendo pressão para que as cerimónias tivessem lugar na quinta-feira, o dia a seguir ao seu falecimento. Deste modo, as fotografias da cerimônia poderiam ser publicadas na edição do Tattler de quinta à noite. As cerimônias do funeral foram demoradas, tanto na capela como no cemitério. Um pastor evangelista que trabalhava na rádio fez uma elegia interminável e cansativa. Graham procurou aproveitar o tempo estudando a multidão que se encontrava à sua volta. O coro contratado para actuar junto da sepultura procurou merecer o dinheiro que lhe tinham pago, enquanto as máquinas automáticas dos fotógrafos do Tattler zumbiam. Estavam presentes duas equipas de TV com câmaras fixas e postos móveis. Fotógrafos da polícia munidos de credenciais da imprensa fotografaram a multidão. Graham reconheceu diversos agentes à civil do Departamento de Homicídios de Chicago. Eram os únicos rostos que para ele significavam qualquer coisa. E havia Wendy, de Wendy City, a namorada de Lounds. Estava sentada debaixo do toldo próximo da urna. Graham quase não a reconhecia. A peruca loura estava penteada para trás, formando um carrapito, e envergava um fato preto de saia e casaco.

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Ergueu-se durante o último hino, avançou cambaleante, e ajoelhou-se pousando a cabeça na urna, os braços abertos apoiados na coroa de

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crisântemos, enquanto crepitavam os flashes dos fotógrafos. A multidão, enquanto se encaminhava para os portSes

do cemitério, pouco ruído fez sobre a relva esponjosa. Graham caminhava ao lado de Wendy. Uma multidão de todos aqueles que não tinham sido convidados espreitava por entre as barras da alta vedação em ferro. - Sente-se bem? - perguntou Graham. Pararam no meio das sepulturas. Os olhos estavam secos enquanto o fitava directamente. - Melhor do que você - disse ela. - Bebeu de mais, não bebeu?

Um bocadinho. Tem alguém a vigiá-la? A esquadra mandou gente para esse serviço. Arranjaram roupas civis no clube. Agora há muito que fazer. Mais lunáticos do que é habitual. - Lamento que tenha passado por isto tudo. Você

... Gostei muito de a ver no hospital. Admirei a sua coragem. Acenou com a cabeça.

- Freddy era um desportista. Não devia ter-se esforçado

tanto. Obrigada por me ter deixado entrar no quarto. - Tinha o olhar perdido na distância, pestanejava enquanto pensava, a sombra das pálpebras parecendo poeira de rocha. Encarou Graham. - Olhe, o Tattler vai dar-me algum dinheiro, já calculava isso, não é verdade? Por uma entrevista e por ter estado junto da sepultura. Estou convencida de que Freddy não se importava. - Ficava doido era se você não aproveitasse. - Também é o que eu acho. São uns estupores, mas pagam. O mais grave foi terem tentado obrigar-me a dizer que estava convencida de a culpa ser sua, empurrando deliberadamente esse lunático para cima do Freddy ao aparecer naquela fotografia como se fossem grandes amigos. Recusei-me. Se aparecerem com isso no jornal é tudo treta.

273 Graham não disse nada enquanto lhe observava o rosto. - É possível que não gostasse dele ... não tem importância. Mas se estivesse convencido de que isto podia acontecer, abatia o Dentuças, não

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abatia? - disse Wendy. É verdade, Wendy, havia de o apanhar. Já conseguiu saber alguma coisa? Os únicos rumores

que ouvi foram dessa gente.

- Temos pouca coisa. Algumas indicações do laboratório

que estamos a tentar seguir. Foi um trabalho limpo e teve muita sorte.

- E você? - Eu o quê? - Se tem sorte. Vai e vem. - Freddy nunca tinha sorte. Disse-me que se ia safar com isto. A mania dos grandes negócios por toda a parte. - E se calhar até ia ter. - Olhe uma coisa, Graham, quando lhe apetecer uma bebida, vá ter comigo. - Obrigado. - Mas mantenha-se sóbrio enquanto andar na rua. - Com certeza. Dois polícias abriram caminho para Wendy através da multidão de curiosos que se encontrava do lado de fora do portão. Um dos mirones envergava uma camisola onde se podia ler: «O Dentuças é uma recordação de uma noite.» Assobiou quando viu Wendy. A mulher que se encontrava ao lado dele deu-lhe uma bofetada. Um polícia corpulento instalou-se no 280ZX ao lado

de Wendy e esta mergulhou no tráfego. Um segundo polícia seguiu-os num carro sem marca. Na tarde quente, Chicago tinha o cheiro a queimado de um rastilho de foguete. Graham sentia-se só e sabia porquê; os funerais fazem muitas vezes despertar em nós o apetite sexual - é um meio certo de esquecer a morte.

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Junto dos seus pés passavam coroas de flores de um funeral, já secas, arrastadas pelo vento. Por instantes recordou-se do sussurrar das palmeiras acariciadas pelo vento do mar. Sentia um desejo enorme de regressar a casa, sabendo que não era

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possível, que não podia até que o Dragão estivesse morto.

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CAPÍTULO 31

A sala de projecções na Baeder Chemical era pequena cinco filas de cadeiras dobráveis com uma coxia ao centro. Dolarhyde chegou tarde. Deixou-se ficar na retaguarda de braços cruzados enquanto projectavam cartSes cinzentos, cartSes coloridos e cubos iluminados de diferentes maneiras, filmados com diferentes emulsSes infravermelhas. A sua presença perturbou Dandridge, o jovem encarregado. No trabalho, Dolarhyde apresentava um ar de autoridade. Era o especialista consagrado em câmara escura da companhia vizinha pertencente ao mesmo grupo, e era conhecido por ser um fanático da perfeição.

Há meses que Dandridge não o consultava, uma rivalidade

infantil que se arrastava desde que a Gateway comprara a Baeder Chemical. - Reba, dê-nos as características de revelação da amostra ... oito - disse Dandridge. Reba estava sentada na extremidade de uma fila, uma pasta pousada no colo. Falando numa voz clara, enquanto os dedos deslizavam na semi-escuridão ao longo das linhas, salientou as características do mecanismo de revelação - produtos químicos, temperatura e tempos, além dos procedimentos aconselhados antes e depois de filmar. Os filmes sensíveis aos infravermelhos devem ser manipulados em escuridão total. Fizera todo o trabalho de câmara escura, mantendo as diferentes amostras catalogadas por um código de tacto e elaborando o respectivo registo, tudo feito na escuridão. Era fácil calcular o valor que ela tinha para a Baeder. A projecção continuou até ao fim.

Reba deixou-se ficar sentada enquanto os outros saíam.

Dolarhyde aproximou-se cuidadosamente. Enquanto ainda havia outras pessoas na sala falou-lhe a uma certa distância. Não queria que ela se sentisse

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observada. - Pensei que não tinha conseguido - disse ela.

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- Tinha uma máquina avariada. Foi isso que me fez atrasar. As luzes estavam ligadas. De pé junto dela, observava o brilho do couro cabeludo na risca do cabelo. - Conseguiu ver a amostra 1000C? - Consegui. - Disseram que parecia em condições. É muito mais fácil de manusear do que a série 1200. Acha que lhe serve? - Julgo que sim. Junto dela estava a bolsa e uma gabardina leve. Recuou quando ela se deslocou ao longo da coxia, auxiliada pela bengala que empunhava. Não parecia esperar que a ajudassem. Não se ofereceu para a ajudar. Dandridge espreitou à porta. - Reba, minha querida, a Márcia tem de se pôr a andar. Achas que te consegues safar sozinha? Surgiram-lhe rosetas de cor no rosto. - Consigo desembaraçar-me perfeitamente, muito obrigada, Danny. - Dava-te boleia, miúda, mas também já estou atrasado. A propósito, Sr. Dolarhyde, era muito maçada se ... - Danny, sei ir sozinha para casa. - Controlou a irritação. As nuances de expressão poderiam denunciá-la, pelo que manteve o rosto descontraído. No entanto não era capaz de controlar o facto de corar. Observando-a com os seus frios olhos amarelados, Dolarhyde conseguia compreender perfeitamente a sua irritação; sabia que ela sentia a desajeitada preocupação de Dandridge como se lhe cuspissem no rosto.

277 Eu levo-a - disse, embora com um certo atraso. Obrigada, mas não é preciso. - Tinha pensado que ele se pudesse oferecer e a sua ideia era aceitar, mas não queria que ninguém se sentisse forçado a isso. Dandridge que fosse para o diabo

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mais toda aquela história, ia no estupor do autocarro e não se falava mais nisso, porra. Tinha o bilhete, sabia o caminho e poderia ir onde muito bem lhe apetecesse. Deixou-se ficar no quarto de banho das senhoras o

tempo suficiente para que os outros se fossem todos embora. O porteiro abriu-lhe a porta para a deixar sair. Seguiu um dos separadores do parque de estacionamento em direcção à paragem de autocarros, a gabardina pelas costas e a bengala batendo ritmicamente no eixo do separador, sentindo quando esta mergulhava por vezes nas poças de água que se tinham formado. Dentro da carrinha, Dolarhyde observava o seu trajecto. Os seus sentimentos provocavam-lhe um estado de inquietação; à luz do dia tornavam-se perigosos. Por momentos e sob o sol que descia lentamente no horizonte, os pára-brisas, as poças de água e as jantes metálicas dos pneus rivalizavam com a tesoura que empunhava nos reflexos produzidos. A bengala branca confortou-o. Afastou o reflexo da tesoura e arrumou-a, enquanto a recordação da sua impotência o tranquilizou. Pôs o motor a trabalhar. Reba McLane ouviu a carrinha atrás de si. Agora estava ao seu lado. - Obrigada pelo seu convite. Acenou com a cabeça, sorriu e continuou o caminho e

o bater rítmico da bengala. - Venha comigo. Obrigada, mas vou sempre de autocarro. - Dandridge é tolo. Venha comigo... - que mais é

que se poderia dizer? - para me ser agradável. Ela parou. Ouviu-o sair da carrinha. Normalmente as pessoas agarravam-na pelo braço, não sabendo que mais é que haviam de fazer. Os cegos não gostam de

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perder o equilíbrio tendo alguém que lhes agarra firmemente no braço. Torna-se desagradável para eles, perturbando-lhes a noção de peso. Como

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qualquer outra pessoa, não gostam de ser empurrados. Não lhe tocou. Momentos depois foi ela que disse: - É melhor se eu lhe agarrar o seu braço. Tinha uma larga experiência dos mais diversos braços, mas este surpreendeu os seus dedos. Era duro como uma pedra. Não fazia a menor ideia da concentração e da coragem que lhe foi necessária para que deixasse que ela o tocasse. A carrinha parecia ser grande e alta. Rodeada por ressonâncias e ecos diferentes dos de um carro, segurou-se ao bordo do assento até que Dolarhyde lhe apertou o cinto de segurança. A tira diagonal do cinto de segurança comprimia-lhe um dos seios. Deslocou-a de modo a ficar entre ambos. Pouco falaram durante o percurso. Enquanto esperavam nos sinais vermelhos podia olhar para ela.

Vivia no lado esquerdo de um dúplex, numa rua tranquila

próximo da Universidade Washington. - Entre e ofereço-lhe um copo. Em toda a sua vida Dolarhyde não chegara a estar numa dúzia de casas particulares. Nos últimos dez anos estivera em quatro: a sua, a de Eileen. por um curto espaço de tempo, a dos Leeds e a dos Jacobi. As casas das outras pessoas eram para ele qualquer coisa de estranho. Sentiu a carrinha oscilar quando ele saiu. A sua

porta abriu-se. O degrau da carrinha era muito alto. Ao descer, esbarrou levemente contra ele. Era como esbarrar com uma árvore. Era muito mais forte, muito mais sólido do que aquilo que tinha avaliado a partir da sua voz e das suas passadas. Sólido e ao mesmo tempo com um andar leve. Depois de passarem a porta da frente, Reba McLane pousou a bengala a um canto e encontrou-se de repente livre. Movia-se sem qualquer esforço, ligando a música, pendurando o casaco.

Dolarhyde teve de confirmar que ela era cega para se

sentir tranquilo. O facto de estar numa casa excitava-o.

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- Que tal um gin tónico? - Para mim só água tónica. - Prefere antes sumo? - Agua tónica. - Não gosta de álcool, pois não? - Não. - Venha para a cozinha. - Abriu o frigorífico. Apetece-lhe... - fez um inventário rápido com as mãos - uma fatia de tarte? Olhe que é muito picante, é dinamite autêntico. - Aceito. Tirou uma tarte inteira do congelador e colocou-a sobre o balcão. Percorreu os bordos da tarte com os dedos afastados até que sentiu que os dedos médios se encontravam numa posição às nove e às três. Em seguida reuniu os polegares e baixou-os sobre a superfície da tarte de modo a localizar o centro. Marcou o centro com um palito.

Dolarhyde tentou alimentar a conversa de modo a evitar

que ela sentisse como a olhava. - Há quanto tempo é que trabalha na Baeder? - Não

havia «ss» nesta frase. - Três meses. Não sabia? - Dizem-me muito pouca coisa. Ela sorriu. - Provavelmente pisou muitos calos quando organizou

as câmaras escuras. Não se esqueça de uma coisa, os técnicos adoram-no por causa disso. A canalização funciona e há montes de tomadas. Duzentos e vinte em todos os pontos onde precisar.

Colocou o dedo médio da mão esquerda no palito, o polegar

no bordo do estanho e cortou-lhe uma fatia de tarte, guiando a faca com o indicador esquerdo. Observava-a enquanto ela manuseava a faca brilhante. Era estranho poder olhar de frente para uma mulher tanto quanto lhe apetecesse. Quando não estamos sós, quantas vezes é que se pode olhar à vontade para onde queremos? Preparou para ela um gin tónico bem servido e foram os dois para a sala de estar. Passou a mão pela lâmpada de um candeeiro, sentiu que não estava quente e ligou-o.

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Dolarhyde comeu a fatia de tarte em três dentadas e sentou-se rigidamente no sofá, o cabelo revolto brilhando à luz da lâmpada, as mãos poderosas apoiadas nos joelhos. Ela recostou a cabeça no encosto da cadeira onde se encontrava sentada e colocou os pés numa otomana. - Quando é que vão fazer o filme no Zoológico? - Possivelmente na próxima semana. - Sentia-se contente por ter telefonado para o Zoológico e lhes ter oferecido o filme infravermelho: Dandridge podia lembrar-se de verificar.

- É um grande jardim zoológico. Fui lá com a minha irmã e

a minha sobrinha quando elas vieram ajudar-me a fazer a mudança. Há a área de contacto, está a ver. Dei um abraço ao lama. Foi agradável, mas se falarmos do aroma, meu Deus ... até ter mudado de blusa tinha a impressão de que era seguida constantemente por um lama.

Chamava-se a isto manter uma conversa. Tinha de dizer

alguma coisa ou então ir-se embora. - Como é que conseguiu entrar na Baeder? - Puseram um anúncio no Instituto Reiker, em Denver, onde eu estava a trabalhar. Um dia estava a verificar o boletim diário e aconteceu dar com este anúncio. Na realidade, o que aconteceu foi a Baeder ter-se visto obrigada a modificar as suas técnicas de contratação para conseguir manter o contrato que tinha com a Defesa. Conseguiram contratar seis mulheres, dois negros, dois mexicanos, um oriental, um paraplégico e eu, fazendo um total de treze contratos. Todos nós estamos classificados pelo menos em duas categorias, está a ver. seu trabalho na Baeder tem sido excelente. dos outros também. Aliás, a Baeder não dá nada de

graça.

E antes disso? - Estava a transpirar levemente. A conversa era difícil. No entanto, era bom poder olhar à vontade. Tinha umas pernas estupendas. Tinha dado um corte num tornozelo ao rapar os pêlos das pernas. A visão das pernas dela fazia que não

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sentisse força nos braços.

281 - No Instituto Reiker, em Denver, depois de ter saído do liceu, treinei durante dez anos pessoas que tinham acabado de cegar. Este é o meu primeiro emprego no exterior. - No exterior de quê?

- Cá fora, no mundo de todos os dias. Não nos podemos

esquecer de que o Reiker era como uma ilha. Ou seja, treinávamos as pessoas para viverem no mundo daqueles que podiam ver e no entanto nós não vivíamos nesse mundo. Falava-se demasiado. Chegou uma altura em que cheguei à conclusão de que tinha de ver como era. A minha ideia era frequentar um curso de terapia da fala para ajudar crianças com problemas de fala e de audição. E estou convencida de que um destes dias volto a virar-me para essa ideia. - Bebeu o último golo do copo. - Olhe uma coisa, tenho ali umas bolas de miolo de caranguejo que foram feitas pela Sar. Paul. São muito boas. Não devia ter servido a sobremesa em primeiro lugar. Quer provar? - Um-hmmm. - Sabe cozinhar? - Um-hmmm. Na testa dela surgiu uma leve ruga. Dirigiu-se para a cozinha. - E um café? - perguntou ela em voz alta. - Uh-huh. Falou de coisas insignificantes como os preços do supermercado, mas não obteve qualquer resposta. Voltou à sala de estar e sentou-se na otomana com os cotovelos apoiados nos joelhos.

- Vamos falar de um assunto só por instantes e depois

ésquecemo-nos daquilo que foi dito, combinado? Silêncio... - Já não sei há quanto tempo é que não diz nada.

Aliás, calou-se a partir do momento em que eu me referi à terapia da fala. A sua voz era suave mas firme. Não tinha qualquer laivo de compaixão. - Compreendo-o perfeitamente porque você fala bem e porque eu sou capaz de o ouvir. A maior parte das pessoas não prestam atenção. Passam a vida a perguntar-me o

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quê? o quê? Se não quer falar, tudo bem. Mas espero que queira falar. Porque você é capaz e eu estou interessada em ouvir o que você tiver para dizer. 282 Uninim. Acho óptimo - disse Dolarhydc suavemente.

Era nítido que esta pequena frase fora extraordinariamente importante para ela. Seria que o estava a convidar a aderir ao clube de categoria dupla a que ela e a chinesa paraplégica pertenciam? Tentava adivinhar qual seria a outra categoria.

A frase que ela proferiu a seguir foi para ele absolutamente incrível. - Posso tocar no seu rosto? Quero saber se está a sorrir ou de cenho carregado. - Uma situação estranha. - Quero saber se devo ou não calar-me. Ergueu a mão e esperou. Como é que ela se sentiria com os dedos arrancados à dentada? pensou Dolarhyde. Mesmo com a dentadura com que saía à rua podia fazê-lo tão facilmente como se trincasse um bocado de pão. Se apoiasse os pés no chão e se recostasse no sofá, agarrando-lhe o pulso com ambas as mãos, ela nunca conseguiria libertar-se a tempo. Crunch, crunch, crunch, crunch, talvez lhe deixasse * polegar. Para poder medir as tartes.

Agarrou-lhe no pulso com o polegar e o indicador e

virou-lhe * mão enérgica, mas com vestígios de um trabalho duro, para a examinar à luz da lâmpada. Tinha imensas pequenas cicatrizes e uma série de novas feridas e esfoladelas. Uma leve cicatriz nas costas da mão podia ter sido de uma queimadura. Demasiado perto de casa. Demasiado cedo para a sua transformação. Nessa altura já ela não estaria ali para ver.

Para pedir uma coisa daquelas, ela não devia saber nada a

seu respeito. Não se envolvia nos mexericos. - Dou-lhe a minha palavra de que estou a sorrir - disse. Nenhum problema com o «s». Era verdade que ostentava uma espécie de sorriso que expunha os seus dentes que usava em público. Moveu-lhe o pulso até lho deixar cair sobre o colo. A mão manteve-se sobre a coxa, semifechada, os dedos deslizando sobre o tecido, como se tivesse

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esperado pela reacção. - Acho que o café está pronto - disse ela. - Vou-me embora. - Tinha de ir. Regressar a casa para se descontrair.

283 Ela acenou com a cabeça. - Se o ofendi não era minha intenção. - Não pense nisso.

Deixou-se ficar na otomana, à escuta para ter a certeza

de que a porta ficara bem fechada quando ele saiu. Reba McLane preparou mais um gin tónico. Colocou no aparelho alguns discos de Segóvia e encolheu-se no sofá. Dolarhyde deixara no sofá uma depressão que ainda se encontrava morna. Permaneciam no ar vestígios da sua presença - a graxa dos sapatos, o cheiro de um cinto novo em couro, uma boa loção de barbear. Um homem intensamente fechado em si mesmo. No escritório ouvira poucos comentários a seu respeito - Dandridge a dizer para um dos seus parceiros «esse filho da mãe do Dolarhyde» e pouco mais. A privacidade era importante para Reba. Enquanto criança, tentando adaptar-se depois de ter perdido a vista, não tinha tido um mínimo de privacidade. Presentemente, quando se encontrava em público, nunca podia ter a certeza se era ou não observada. Era por isso que compreendia o desejo de privacidade de Francis Dolarhyde. Não sentira da parte dele qualquer vestígio de compaixão e isso era bom. Mas o gin também era.

De repente os discos de Segóvia pareceram-lhe demasiado

ruidosos. Mudou para música de baladas. Três meses duros numa cidade nova. O Inverno que se avizinhava com a dificuldade de se deslocar na neve. Reba McLane, enérgica e destemida, detestava a autocomiseração. Não podia ceder-lhe. Tinha consciência do sentimento de irritação que a invadia pela sua incapacidade, mas enquanto não fosse capaz de se livrar dele, decidira que o havia de fazer trabalhar a seu favor, preenchendo o seu desejo de independência e reforçando a sua determinação para tirar vantagem de tudo o que se

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lhe deparasse no dia-a-dia. + sua maneira, era uma dura. A fé em qualquer espécie de justiça natural não passava de uma luz fugaz no meio da noite;

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sabia disso. Fizesse o que fizesse, acabaria como toda a gente: deitada de costas com um tubo no nariz, pensando: «Isto é tudo?»

Sabia que nunca conseguiria alcançar a luz, mas havia

coisas que podia ter. Havia coisas para serem apreciadas. Sentia prazer em ajudar os seus alunos, e esse prazer era estranhamente ampliado pela sensação de que nunca seria recompensada ou punida por os ter ajudado. A ideia de fazer amigos trazia-lhe sempre o receio

das pessoas que procuram uma dependência e se agarram a ela. Estivera envolvida com alguns - os cegos atraem-nos, mas não deixam de constituir o inimigo. Envolvida. Reba sabia que atraía os homens fisicamente. Só Deus sabia quantos é que tinham sentido as suas mãos em resposta à atitude que tomaram depois de lhe agarrarem no braço. Gostava imenso de sexo, mas já há alguns anos que aprendera um princípio básico sobre os homens: sentiam-se aterrorizados quando se lhes deparava a possibilidade de terem de enfrentar uma responsabilidade. No seu caso esse medo aumentava sensivelmente. Detestava a ideia de homens a entrarem e a saírem da sua cama como se roubassem galinhas. Ralph Mandy vinha buscá-la para jantar. O medo da

vida dera-lhe uma atitude de tal modo cobarde que era incapaz de amar. Ralph tivera o cuidado de lho repetir imensas vezes, o que a levara a refugiar-se na defensiva. Ralph era divertido, mas não estava interessada em depender dele. Não lhe apetecia ver Ralph. Não se sentia com disposição para manter uma conversação entremeada dos comentários à sua volta das pessoas que a viam comer. Seria tão bom ser desejada por alguém com a coragem de se ir embora ou de ficar conforme lhe apetecesse, e que estivesse de acordo em que ela

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fizesse o mesmo. Alguém que não se preocupasse com ela. Francis Dolarhyde - tímido, com um corpo de atleta,

e além disso sincero. Nunca tinha visto ou tocado num lábio leporino e não possuía qualquer associação visual com o som. Pensava se Dolarhyde estaria convencido de que ela o compreendia facilmente porque «os cegos ouvem melhor do que as outras pessoas». Era uma convicção muito divulgada. Talvez lhe devesse ter explicado que isso não era verdade, que os cegos simplesmente prestam mais atenção àquilo que ouvem.

Havia tantas concepções erradas sobre os cegos. Gostava

de saber se Dolarhyde compartilhava a crença popular de que os cegos são mais puros de espírito do que as outras pessoas, de que são de certo modo santificados pela cruz que têm de carregar. Sorriu sozinha. Mais uma convicção que não correspondia à realidade.

286

CAPÍTULO 32

A polícia de Chicago trabalhava sob pressão dos media e

da «contagem decrescente» dos noticiários dos dias que faltavam para a próxima lua cheia: eram onze dias. As famílias de Chicago estavam aterrorizadas. Ao mesmo tempo, aumentou a audiência dos filmes de terror que há uma semana deviam ter terminado nos cinemas ao ar livre. Fascínio e horror. O empresário que inundara o mercado com camisolas dizendo «Dentuças» lançara um novo modelo com a inscrição «O Dragão Vermelho é uma recordação de uma noite». As vendas dividiam-se igualmente entre os dois modelos. O próprio Jack Crawfard, depois do funeral, foi obrigado a comparecer numa conferência de imprensa juntamente com responsáveis da polícia. Recebera ordens de cima para fazer que a presença federal se tornasse mais evidente; não a tornou mais audível uma vez que se manteve calado. Quando as investigações realizadas por muitos

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elementos pouco descobrem, têm a tendência para se curvarem sobre elas próprias, cobrindo o mesmo terreno repetidamente até não haver nada para encontrar. Apresentam a forma circular de um tufão ou de um zero. Onde quer que Graham se deslocasse encontrava detectives, máquinas fotográficas, um desfilar contínuo de agentes fardados e o incessante ruído de fundo dos rádios. Precisava de se manter firme.

287 Crawford, arrasado com a conferência de imprensa, encontrou Graham ao cair da noite, numa sala de júri absolutamente tranquila que não estava a ser usada, no andar por cima do gabinete do procurador-geral. Graham espalhou os seus papéis e fotografias no tampo de feltro verde da mesa de júri, iluminado por fortes lâmpadas suspensas a pouca altura. Tirara o casaco e a gravata e encontrava-se enterrado na cadeira a olhar para duas fotografias. Diante de si estava a fotografia emoldurada dos Leeds e ao lado, fixada numa pasta encostada a uma jarra, a fotografia dos Jacobi. As fotografias de Graham faziam lembrar a Crawford

as relíquias de um toureiro, prontas para serem instaladas num quarto qualquer de um hotel. Não havia qualquer fotografia de Lounds. Estava convencido de que Graham nem sequer pensava no caso de Lounds. Não queria aborrecer Graham. - Isto parece um gabinete de secretariado - disse

Crawford.

Deste cabo deles? - Graham estava pálido mas sóbrio.

Tinha na mão uma embalagem pequena de sumo de laranja. - Meu Deus. - Crawfard deixou-se cair numa cadeira. Tentar pensar numa situação daquelas é a mesma coisa que tentar mijar num comboio. - Há novidades?

- A única coisa importante que eu vi foi o comissário a

suar com as perguntas que lhe faziam e a coçar os tomates diante das câmaras de televisão. Se não acreditas, vê os noticiários das seis e das onze horas.

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- Queres sumo de laranja? Preferia beber arame farpado. - Melhor, mais fica para mim. - O rosto estava tenso. Os olhos demasiado brilhantes. - O que é que há sobre o gás? - Deus abençoe a Liza Lake. Há quarenta e um postos de venda do Servco Supreme no centro de Chicago. Os rapazes do capitão Osbome viraram tudo do avesso, à procura de vendas em contentores efectuadas a condutores de carrinhas. Para já não há nada, mas não foram ainda verificados todos os turnos. A Servco

288

tem mais de cento e oitenta postos, encontram-se espalhados por oito estados. Pedimos ajuda às jurisdições locais. Vai demorar um bocado. Se Deus atendesse ao meu pedido, o Fulano devia ter usado cartão de crédito. É uma possibilidade. - Deixa de ser se ele for capaz de aspirar por uma mangueira. - Pedi ao comissário para não se referir à possibilidade de o Dentuças viver nesta área. Já estão suficientemente aterrorizados. Se lhes dissesse isto, esta terra passava a parecer-se com a Corcia à noite quando os bêbados regressam a casa. - Ainda estás convencido de que ele está próximo? - E tu? Pelo menos é o que parece. - Crawford pegou no relatório de autópsia de Lounds e leu-o depois de ter colocado os seus óculos de meia-lua. - O ferimento na cabeça era mais antigo do que os ferimentos na boca. Cerca de cinco a oito horas, não se sentem muito seguros. Além disso, as feridas na boca já tinham várias horas quando ele chegou ao Hospital. Também sofreram queimaduras mas foi possível verificar dentro da boca. Reteve vestígios de clorofórmio no seu ... porra, em qualquer sítio das narinas. Achas que estava inconsciente quando o Dentuças o mordeu? Não, devia querer que estivesse acordado.

É o que eu penso. Muito bem, abate-o com uma pancada na

cabeça - isto na garagem. Tem de o manter tranquilo com o clorofórmio até chegar a qualquer sítio onde não haja problemas se houver barulho. Trá-lo de volta e chega aqui horas depois da dentada.

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- Podia ter feito isso tudo nas traseiras da carrinha

estacionada num sítio qualquer - disse Graham. Crawford massajava os lados do nariz com os dedos dando à voz um efeito de megafone. - Estás a esquecer-te das rodas da cadeira. Bev encontrou dois tipos de material de carpeta, lã e sintético. Sintético possivelmente da carrinha, se consideramos que não é normal ver-se um tapete de lã numa carrinha. Quantos tapetes de lã é que já viste em qualquer coisa que seja para alugar? Muito poucos de certeza.

289 O tapete de lã representa uma casa, Will. E a sujidade e o bolor eram de um lugar escuro onde a cadeira de rodas estava armazenada, uma adega com o chão todo sujo. - É possível. - Agora olha para isto. - Crawford tirou da pasta um mapa das estradas da Rand McNally. Tinha desenhado um círculo no mapa «Quilometragem dos Estados Unidos e tempo de condução». Freddy desapareceu durante cerca de quinze horas e os seus ferimentos ocorreram ao longo deste período de tempo. Vou tirar algumas conclusSes. Não gosto de fazer isto mas aqui vai ... de que é que te estás a rir? - Lembrei-me de quando fizeste aqueles exercícios em Quântico, quando o aluno disse que também concluíra não sei o quê.

Não me lembro disso. Aqui está ... Obrigaste-o a escrever «concluir» no quadro negro e sublinhaste a palavra várias vezes, ao mesmo tempo que lhe gritavas na cara: «Quando concluir está a fazer-nos parvos», foi o que lhe disseste, lembro-me perfeitamente. - Precisava de um raspanete para entrar na linha.

Agora olha para isto. Imagina que se meteu no trânsito de Chicago na terça à tarde, para sair da cidade com Lounds. Considera um par de horas para chegar com Lounds ao local para onde o levou, e o tempo de regresso. Não se podia ter afastado muito mais do que uma distância de Chicago equivalente a seis horas de condução. Muito bem, este círculo

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representa as distâncias que podiam ser percorridas com seis horas de condução. Repara que mesmo assim é impreciso porque em algumas estradas é possível andar mais depressa do que noutras. - Talvez ele tenha ficado aqui. - Certo, mas estes são os pontos mais distantes que

ele podia ter alcançado. - Quer dizer que o limitaste a Chicago ou dentro de

um círculo cobrindo Milwaukee, Madison, Dubuque, Peoria, Saint Louis, Indianápolis, Cincinnati, Toledo e Detroit, isto para citar só algumas localidades.

290

- Melhor do que isso. Sabemos que conseguiu um Tattler

rapidamente. Possivelmente na segunda à noite. - Podia ter conseguido isso em Chicago.

- Eu sei, mas quando sais da cidade, na segunda à noite, não encontras muitas localidades onde consigas encontrar o Tattler. Tens aqui uma lista do departamento de distribuição do Tattler, locais para onde o Tattler é enviado por avião ou por viatura, na segunda à noite, e que se encontrem dentro deste círculo. Repara que deixa de lado Milwaukee, Saint Louis, Cincinnati, indianápolis e Detroit. São enviados para os aeroportos e para cerca de noventa bancas que permanecem abertas toda a noite, sem contarmos as que temos em Chicago. Estou a usar os agentes em campo para procederem a verificações. Talvez algum dos empregados se recorde de um cliente com um aspecto fora de normal a quem tenha vendido um jornal na segunda à noite. - Talvez, Jack. Pelo menos é um bonito esforço. Não havia dúvida de que a mente de Graham estava

muito longe. Se Graham fosse um agente do quadro, Crawford tinha-o

ameaçado com uma transferência para o resto da vida para as ilhas Aleutas. Em vez disso, disse-lhe: - O meu irmão telefonou esta tarde. Disse-me que a Molly saiu da casa. - Eu sei.

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- Foi, de certeza, para algum lugar seguro? Graham estava convencido de que Crawfard sabia perfeitamente para onde é que ela tinha ido. - Para casa dos avós de Willy. - Ainda bem, vão ficar contentes por verem o miúdo. Crawfard aguardou. Não houve qualquer comentário da parte de Graham. Espero que esteja tudo bem. - Estou a trabalhar, Jack. Não te preocupes com isso. Não passou tudo de uma grande tensão nervosa por se encontrar ali.

Graham pegou num pequeno embrulho atado com uma corda,

que se encontrava debaixo de um monte de fotografias do funeral, e começou a desfazer o nó.

291 - O que é isso?

- Foi enviado por Byron Metcalf, o advogado dos Jacobi.

Brian Zeller reexpediu-o para mim. Não há problema. - Espera um minuto, deixa-me ver. - Crawford virou

o embrulho com os seus dedos peludos, até ter encontrado o carimbo e assinatura de S. F., «Semper Fidelis», Aynesworth, chefe da secção de Explosivos do FBI, certificando que o embrulho tinha passado à fluoroscopia. - Sempre verificações. Sempre verificações. - Verifico sempre, Jack. - Foi Chester que te trouxe isto? - Foi. - Verificou o carimbo antes de to entregar? Verificou-o e mostrou-mo. Graham cortou o fio. - São cópias de todo o processo dos Jacobi. Fui eu que pedi ao Metcalf para mas mandar, podemos comparar com os documentos dos Leeds quando os recebermos. - Tens um advogado a tratar disso. - Faz-me falta. Não conheço os Jacobi, Jack. Eram

novos na cidade. Fui a Birmingham um mês depois e aquilo que lhes pertencia estava em fanicos e parte desaparecera. Tenho um pressentimento em relação aos Leeds, o que já não se verifica no que respeita aos Jacobi. Preciso de os conhecer. Quero falar com gente em Detroit que os tenha conhecido e preciso

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de mais alguns dias em Birmingham. - Preciso de ti aqui. - Ouve uma coisa, Lounds foi um tiro directo. Conseguimos atiçá-lo contra o Lounds. A única relação com Lounds foi a que nós provocámos. Há poucas provas consistentes em relação a Lounds e a polícia está a tratar disso. Lounds não passava de uma dor de cabeça para ele, mas os Leeds e os Jacobi são aquilo de que ele precisa. Temos que descobrir a ligação que há entre eles. Se alguma vez o apanharmos será desta maneira.

- Temos portanto os papéis dos Jacobi para usarmos aqui

disse Crawfard. - Que é que procuras? Que tipo de coisas? - Qualquer porra que nos diga qualquer coisa, Jack. Para já, uma conclusão médica. - Graham tirou do embrulho o impresso

292

do imposto estadual de IRS. - Lounds estava numa cadeira de rodas: médico. Valerie Leeds tinha sido operada seis semanas antes de morrer, lembras-te do diário? Um pequeno quisto num dos seios: mais uma vez, médico. Já agora gostava de saber se a senhora Jacobi também foi operada. - Não me lembro de ter lido nada no relatório da autópsia a falar de operações. - Está bem, mas pode ter sido qualquer coisa que eles não descobriram. A sua história médica estava repartida entre Detroit e Birmingham. Pode ter-se perdido qualquer coisa. Se tinha feito qualquer coisa deverá haver um pedido de reembolso de desconto e talvez um pedido de reembolso por parte do seguro. - Qualquer enfermeiro itinerante, é nisso que estás

a pensar, actuando em ambos os lados, Detroit ou Birmingham e Atlanta?

- Se tivesses estado num hospital para doenças mentais

tinhas apanhado o jeito. Podias passar por enfermeiro e conseguies um emprego quando saísses - disse Graham. Queres jantar? - Mais tarde. Depois de comer dá-me a preguiça. Ao sair, da penumbra da porta, Crawfard olhou

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para trás na direcção de Graham. Não ficou preocupado com o que viu. As lâmpadas suspensas acentuavam as sombras no rosto de Graham, enquanto este se encontrava absorvido no seu trabalho e as vítimas olhavam para ele das fotografias. A sala cheirava a desespero. Seria melhor para o caso voltar a pôr Graham a trabalhar na rua? Crawfard não podia correr o risco de deixar que ele se queimasse por nada. E se houvesse qualquer coisa? Os excelentes instintos administrativos de Crawfard

não eram temperados por qualquer tipo de misericórdia. Aconselharam-no a deixar Graham sozinho.

293

CAPÍTULO 33

Quando chegou às dez da noite, Dolarhyde tinha trabalhado com os pesos quase até à exaustão, estivera a ver os seus filmes e tentara satisfazer-se. No entanto, continuava inquieto. A excitação palpitava-lhe no peito como um medalhão gelado quando pensava em Reba McLane. Não devia

pensar nela. Estendido na cadeira regulável, o tronco dilatado e

corado pelo esforço que tinha feito, via as notícias na televisão para saber dos progressos da polícia no caso de Freddy Lounds. Lá estava Will Graham em primeiro plano, com o coro à sua volta. Graham era esguio. Era fácil partir-lhe as costas. Melhor do que matá-lo. Partir-lhe as costas e torcer para ter a certeza. Podiam incluí-lo na próxima investigação.

Não havia pressa. Era melhor deixar que Graham fosse

vivendo nesse receio. Dolarhyde sentia-se agora invadido pela tranquilidade de um sentimento imenso de poder. O Departamento de Polícia de Chicago fez um certo barulho numa conferência de imprensa que deu. Para além da ladainha de como estavam a trabalhar duramente no caso, resumindo tudo aquilo que foi dito, chegava-se a uma única conclusão: não havia qualquer progresso no caso de Freddy. Jack Crawford fazia parte do grupo que se encontrava atrás dos

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microfones. Dolarhyde reconheceu-o por uma fotografia que tinha sido publicada no Tattler.

294

Um porta-voz do Tattler, ladeado por dois guarda-costas, declarou: «Este acto selvagem e sem qualquer sentido só fará que a voz do Tattler soe ainda mais alto.» Dolarhyde resmungou. Talvez assim fosse. O que era certo é que já conseguira silenciar a voz de Freddy. Os locutores dos noticiários chamavam-lhe agora «o Dragão». Os seus actos englobavam aquilo que a polícia tinha designado pelos «assassínios do Dentuças». Um progresso, sem qualquer dúvida. Só faltavam as notícias locais. Um atrasado mental qualquer estava a fazer uma reportagem do Jardim Zoológico. Compreendia-se perfeitamente que o tinham mandado para o exterior para se verem livres dele.

No momento em que Dolarhyde agarrou no controlo remoto

viu no ecrã alguém com quem falara ao telefone havia poucas horas: o director do Zoológico, Dr. Frank Warfield, que se mostrara encantado por receber o filme que Dolarhyde oferecera. O Dr. Warfield e um dentista estavam a tratar um

tigre com um dente partido. Dolarhyde queria ver o tigre mas o locutor encontrava-se na frente. Finalmente o repórter mudou de lugar. Recostado na cadeira, o olhar deslizando ao longo do seu poderoso tronco na direcção do écrã, Dolarhyde viu o enorme tigre inconsciente, estendido numa pesada mesa de trabalho.

Hoje iam preparar o dente. Dentro de alguns dias iam

colocar-lhe uma coroa, anunciou o idiota. Dolarhyde observava como trabalhavam calmamente entre as mandíbulas do focinho assustador do tigre. «Posso tocar-lhe no rosto?», disse Reba McLane. Desejara ter sido capaz de dizer qualquer coisa a Reba McLane. Desejara que ela tivesse feito mesmo uma parte insignificante daquilo que dissera. A sua vontade era que ela pudesse possuir

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uma centelha da sua glória. Mas não era possível conseguir isso e continuar a viver. Ela devia viver: tinha sido visto com ela e estava muito perto de casa. Tentara compartilhar com Lecter e Lecter tinha-o traído. No entanto, gostaria de compartilhar. Compartilhar

com ela só um bocadinho, de modo que pudesse continuar viva.

295 CAPÍTULO 34

- Eu sei que é política, tu sabes que é política, mas de qualquer modo é mais ou menos isso o que vais fazer - disse Crawford a Graham. Caminhavam ao fim da tarde pela State Street Mall na direcção do edifício do escritório federal. Faz o que estás a fazer, limita-te a escrever sobre o paralelismo que existe entre os casos e eu hei-de fazer o resto.

O Departamento de Polícia de Chicago pedira à secção de

Ciência do Comportamento do FBI uma descrição detalhada do perfil das vítimas. Responsáveis da polícia declararam que essa descrição seria usada na planificação de patrulhas extras durante o período de lua cheia. - A cobrir a retaguarda, é aquilo que eles estão a fazer disse Crawfard, brandindo o seu saco da Tater Tots. - As vítimas têm sido pessoas de posição, querem colocar as patrulhas em bairros onde essa gente vive. Sabem que vai haver muitas ondas a esse respeito, há muito que os patrSes têm lutado para conseguir mais elementos, muito antes até de Freddy se ter apagado. Se forem patrulhar os bairros da classe média superior e ele atacar o lado sul, que Deus tenha piedade dos responsáveis da cidade. Mas se isso acontecer, podem apontar o dedo aos estupores dos federais. Até consigo ouvi-los: «Disseram-nos para fazer desta maneira. Foi isso que eles nos disseram para fazer.» - Não acredito que a probabilidade de o ataque se realizar em Chicago seja superior à de qualquer outro lugar disse

296

Page 275: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Graham. - Não há qualquer motivo para pensar dessa maneira. É tudo uma palhaçada. Por que é que o Bloom não pode fazer o perfil? É um dos consultores da Ciência do Comportamento. - Não querem que seja feito pelo Bloom, querem que

seja feito por nós. Não tinham qualquer vantagem em recriminar Bloom. Além disso, ele ainda está no hospital. Recebi instruções para fazer isto. Houve alguém lá de cima que esteve ao telefone com a Justiça. Lá de cima dizem para ser feito. Queres fazê-lo ou não?

- Está bem. De qualquer maneira era isso que eu ia fazer. - É tudo o que sei - disse Crawford. - Limita-te a fazer isso.

Preferia regressara Birmingham. Não - disse Crawfard. - Fica comigo por causa

disto. A última réstea de luz da sexta-feira extinguiu-se a ocidente. Faltavam dez dias.

297 CAPÍTULO 35

- Não me quer dizer que gênero de «saída» é esta? - perguntou Reba McLane a Dolarhyde no sábado de manhã, depois de terem rodado em silêncio por mais de dez minutos. Tinha esperança de que fosse um piquenique. A carrinha parou. Ouviu que Dolarhyde descia a janela do seu lado.

- Dolarhyde - disse ele. - O Dr. Warfield deixou a indicação do meu nome. - Sim, senhor. Importa-se de colocar isto no pára-brisas quando sair da viatura? Seguiram lentamente em frente. Reba sentiu que a estrada fazia uma curva suave. O vento trazia odores estranhos e pesados. Ouviu-se o bramir de um elefante. - O Zoológico - disse ela. - Estupendo. - Tinha preferido um piquenique. Mas que é que isso interessava, isto também era bom. - Quem é o Dr. Warfield? - O director do Zoológico.

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- É seu amigo? Não. Fizemos um favor ao Zoológico dando-lhes o filme. Estão a retribuir. Como? - Vai tocar no tigre. - Não me arranje muitas surpresas! - Alguma vez chegou a ver um tigre?

298

Sentiu-se contente por ele fazer a pergunta. - Não. Lembro-me de ter visto um puma quando era pequenina. Era tudo o que tinham no Zoológico de Red Deer. Acho que era melhor falarmos sobre isto. - Estão a tratar dos dentes do tigre. Têm de o pôr a ... dormir. Se quiser pode tocar-lhe. - Vai haver muita gente, pessoas à espera? - Não. Não há espectadores. O Dr. Warfield, eu e mais uma ou duas pessoas. A TV há-de chegar na altura em que nos formos embora. Está interessada? - Uma urgência estranha na pergunta.

- Com certeza que sim, estou interessada! Muito obrigada

... é uma surpresa estupenda. A carrinha parou. - Ulun, como é que hei-de saber se ele está a dormir? - Faça-lhe cócegas. Se ele se rir, fuja. Ao caminhar, Reba tinha a sensação de que o chão da sala de tratamentos era forrado a linóleo. A sala era ampla e propagavam-se ecos em todos os sentidos. Do lado mais distante da sala chegava um foco de calor radiante. Um ritmo cadenciado de passos pesados e Dolarhyde guiou-a para um dos lados até que ela sentiu a pressão em garfo de um canto. Já lá estava. Sentia o cheiro. Uma voz. - Levantem. Com calma. Para baixo. Podemos deixar a correia debaixo dele, Dr. Warfield?

- Está bem. Forrem essa almofada com uma das toalhas

verdes e ponham-lha debaixo da cabeça. Quando tivermos terminado mando John chamá-los. Passos de alguém que se afastava. Esperou que Dolarhyde lhe dissesse qualquer coisa. Não disse. Ele já cá está - disse ela.

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- Pois está. Foi transportado por dez homens, preso por

correias. É grande. Dez pés. O Dr. Warfield está a auscultar-lhe o coração. Agora está a levantar-lhe uma das pálpebras.

Um corpo à sua frente fez de barreira contra os ruídos

que ouvia.

299 - Dr. Warfield, Reba McLane - disse Dolarhyde. Estendeu a mão em frente. Foi agarrada por uma mão grande e suave.

- Obrigada por me ter deixado vir - disse. - É um desafio. - Sinto-me contente por ter vindo. É uma alegria

que me dá. A propósito, estamos muito agradecidos pelo filme.

A voz do Dr. Warfield era de um homem de meia-idade,

profunda, culta, de um negro. Da Virgínia, calculou ela. - Estamos à espera, para termos a certeza de que

não há problemas com a respiração e com o coração, antes de o Dr. Hassler começar. Hassler está ali a ajustar o seu espelho de cabeça. Só cá para nós, que ninguém nos ouve, só usa aquilo para conseguir segurar o capachinho. Venha comigo para lho apresentar, Sr. Dolarhyde. - Vá à frente.

Ela estendeu a mão para Dolarhyde. O contacto tardou a

fazer-se e foi suave quando se realizou. A sua palma da mão humedeceu-lhe os nós dos dedos com suor.

O Dr. Warfield colocou-lhe a mão no braço e avançaram

lentamente ao mesmo tempo que descrevia o que ia acontecendo. - Está a dormir profundamente. Tem uma ideia geral?...

Descrevo-lhe tudo aquilo que quiser. - Fez uma pausa, inseguro sobre o modo como havia de pôr as coisas. - Lembro-me de que vi fotografias em livros quando era criança, e uma vez vi um puma num

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zoológico próximo de casa. - Este tigre é como se fosse um superpuma - disse.

O peito mais desenvolvido, uma cabeça mais maciça e uma estrutura e musculatura mais desenvolvidas. É um macho de Bengala com quatro anos de idade. Tem cerca de dez pés de comprimento, do nariz até à ponta da cauda, e pesa oitocentas e quinze libras. Está deitado sobre o lado direito, iluminado por lâmpadas potentes. - Consigo sentir as luzes. - É listado, riscas alaranjadas e negras, o laranja tão brilhante que dá a sensação que se dilui no ar à sua volta. De repente o Dr. Warfield verificou que estava a ser cruel ao falar de cores. Um olhar rápido para o rosto dela tranquilizou-o.

300

Está a uma distância de seis pés, consegue sentir o cheiro dele.

- Consigo. - O Sr. Dolarhyde deve ter-lhe contado que um

idiota qualquer o atacou através das grades com um dos machetes do nosso jardineiro. Com a lâmina cortou-lhe parte da crina na parte superior esquerda. Está pronto, Dr. Hassler? - Está óptimo. Vamos dar-lhe mais um minuto ou dois. Warfield apresentou o dentista a Reba. - Minha cara, é a primeira surpresa agradável que alguma vez tive de Frank Warfield - disse Hassler. - Talvez queira examinar isto, é um dente em ouro, mais exactamente um canino. - Colocou-lho na mão. - É pesado não é? Limpei-lhe o dente partido e fiz um molde já há alguns dias atrás. Hoje vou aplicar-lhe esta coroa. É certo que podia tê-lo feito com acrílico, mas acho que assim tem mais piada. O Dr. Warfield pode dizer-lhe que nunca perco uma oportunidade de me exibir. É desconsideração da parte dele não me deixar pôr um anúncio no lado de fora da jaula. ,Com os seus dedos sensitivos sentiu a coroa, curva

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e pontiaguda.

Um excelente trabalho! - Próximo dela sentia uma respiração lenta e profunda.

- Vai deixar os miúdos espantados quando ele bocejar

disse Hassler. - E estou convencido de que não vai tentar nenhum ladrão. Agora a parte divertida. Não está com medo, pois não? O musculoso cavalheiro que ali está observa-nos como um falcão. Está a obrigá-la a assistir a isto? - Não! Não, eu é que quis. - Estamos de frente para o seu dorso - disse o Dr. Warfield. - Encontra-se a dormir a uma distância de si de pouco mais de dois pés e meio, em cima de uma mesa de trabalho que lhe dá pelo peito. Vamos fazer uma coisa: vou colocar a sua mão esquerda - é dextra, não é? -, vou colocar a sua mão esquerda na beira da mesa e poderá explorar com a mão direita. Fico aqui mesmo ao seu lado.

301 E eu também - disse o Dr. Hassler. Estavam a divertir-se com tudo aquilo. Debaixo dos potentes holofotes o cabelo dela tinha o cheiro de serradura fresca exposta ao sol. Reba sentia o calor na parte superior da cabeça. Fazia-lhe doer levemente o couro cabeludo. Conseguia sentir o cheiro do cabelo aquecido, do sabonete de Warfield, de álcool e desinfectante e do gato. Teve uma leve tontura que lhe passou rapidamente. Agarrou a borda da mesa e estendeu a mão hesitante até que as pontas dos dedos tocaram o pêlo aquecido pelas luzes, a seguir uma zona mais fria e por último sentiram o calor constante que vinha de baixo. Colocou a mão aberta sobre a espessa pele e moveu-a suavemente, sentindo a pele deslizar sob a palma, os pêlos acamados num e no outro sentido, a depressão entre as amplas costelas, enquanto a mão subia e descia. Agarrou-lhe a crina e os pêlos saltaram-lhe entre os dedos. Na presença do tigre ficou corada e permitiu-se certos tiques característicos dos cegos, movimentos faciais inapropriados que nas suas aulas sempre criticara.

Warfield e Hassler viram-na esquecer-se de si

Page 280: Thomas Harris   Dragão Vermelho

própria e sentiram-se contentes. Dolarhyde, meio-oculto pelas sombras, observava a cena enquanto sentia uma sensação dolorosa nos músculos das costas. Uma gota de suor escorreu-lhe pelas costelas. - Do outro lado é só trabalho - disse-lhe Warfield junto do ouvido. Conduziu-a à volta da mesa, enquanto a mão dela agarrava a cauda. Dolarhyde sentiu uma súbita contracção dos músculos

do peito quando os dedos dela passaram pelos testículos. Agarrou-os na mão continuando em seguida o seu caminho.

Warfield ergueu uma pata enorme e colocou-lha na mão.

Sentiu a aspereza das almofadas e um leve cheiro do chão da jaula. Fez pressão num dos dedos para que a garra saísse. Os músculos dos ombros, pesados, mas flexíveis, enchiam-lhe as mãos.

302

Sentiu as orelhas do tigre, a largura da cabeça e, guiada cuidadosamente pelo veterinário, tocou na língua áspera. Um bafo quente levantava-lhe os pêlos dos antebraços. Por último, o Dr. Warfield colocou-lhe o estetoscópio nos ouvidos. As mãos pousadas sobre o peito que se agitava ritmicamente, o rosto voltado para cima, deixou-se invadir pelo bater do coração do tigre.

Enquanto se afastavam de carro, Reba McLane permanecia calada, o rosto corado, ainda sob o efeito da excitação. Voltou-se uma vez para Dolarhyde e disse lentamente. - Muito ... obrigada. Se não se importar, gostava imenso de tomar um martini. - Espere só um momento - disse-lhe Dolarhyde quando estacionaram no seu pátio.

Sentia-se contente por não terem ido para o apartamento

dela. Era discreto e seguro. - Não faça cerimônias. Leve-me para dentro e diga-me que está tudo em ordem. - Espere aqui.

Page 281: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Levou para dentro o saco da loja de bebidas e deu uma volta rápida de inspecção. Parou na cozinha por momentos, com as mãos a cobrir o rosto. Não estava seguro sobre o que fazia. Sentia o perigo, mas sabia que não vinha da mulher. Não podia olhar para o lado de cima das escadas. Precisava de fazer qualquer coisa e não sabia o quê. Devia levá-la de volta para casa. Antes da sua transformação não se atreveria a uma

coisa destas. Verificou naquele momento que podia fazer qualquer coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa. Voltou a sair, deixando-se envolver pela luz do sol poente e mergulhando na longa sombra azul da carrinha. Reba McLane apoiou-se no seu ombro até o pé ter tocado no chão.

Sentiu a imponência da casa. O eco da porta da carrinha a

fechar-se deu-lhe uma ideia da sua altura.

303 - Quatro degraus a partir da relva. A seguir há uma rampa - disse-lhe ele. Agarrou-lhe no braço. Um tremor que o atravessou. Através do algodão podia sentir nitidamente a transpiração. - Tem uma rampa. Para quê? - Gente idosa que aqui esteve. - Mas já cá não está. - Não. - Parece fria e muito alta - disse ela já na sala

de estar. Um ar de museu. E o que era aquilo, incenso? Ao longe ouvia-se o tiquetaque de um relógio. - É uma casa muito grande, não é? Quantos quartos tem? - Catorze. - É antiga. As coisas aqui são antigas. - Roçou por

um abat-jour com franjas e tocou-lhe com os dedos. O tímido Sr. Dolarhyde. Tinha perfeita consciência de que se sentira excitado por a ter visto com o tigre; estremecera como um cavalo quando ela lhe agarrou no braço para saírem da sala de tratamentos. Um gesto elegante em tudo o que tinha organizado.

Possivelmente também eloquente, não, estava bem

Page 282: Thomas Harris   Dragão Vermelho

certa. - Martini?

- Deixe-me ir consigo prepará-lo - disse ela tirando os

sapatos. Mediu com um dedo o vermute que deitou no copo. Acrescentou duas onças e meia de gin e duas azeitonas. Rapidamente ia tomando pontos de referência na casa - o tiquetaque do relógio, o zumbido do ar condicionado de janela. Próximo da porta da cozinha o soalho encontrava-se mais quente - a zona que fora iluminada pela luz do sol durante toda a tarde. Conduziu-a para a sua grande cadeira. Sentou-se no sofá. Havia uma carga no ar. De um modo semelhante à fluorescência no mar, representava uma ausência de movimento; descobriu um sítio para pousar a bebida, numa mesinha que se encontrava ao lado, enquanto ele punha música.

304

Para Dolarhyde a sala parecia-lhe diferente. Era a primeira companhia voluntária que alguma vez tinha tido em casa e agora a sala parecia-lhe dividida na parte dela e na parte dele. Quando a luz se extinguiu estava a tocar Debussy. Fez-lhe perguntas sobre Denver e ela respondeu-lhe

de modo ausente, como se estivesse a pensar noutra coisa. Descreveu-lhe a casa e o grande quintal ladeado de sebes. Não havia muita necessidade de falar. No silêncio que se fez enquanto mudava o disco, ela

disse-lhe: - Aquele magnífico tigre, esta casa, você é um homem

cheio de surpresas, D. Estou convencida de que ninguém o conhece como deve ser. - Perguntou-lhes? - A quem? - Aos outros. - Não. - Então como é que sabe que ninguém me conhece? A sua concentração no dobrar da língua fez que o

tom da pergunta parecesse neutro.

Page 283: Thomas Harris   Dragão Vermelho

- Oh, algumas das mulheres da Gateway viram-nos entrar

para a sua carrinha no outro dia. Nem imagina como estavam curiosas. De um momento para o outro passei a ter companhia na máquina da Coca-Cola. - O que é que querem saber? Tentara transformar a curiosidade ávida das mulheres numa espécie de humor que lhe fosse directamente dirigido. Mas não estava a dar resultado. Querem saber tudo - disse ela. - Acham-no muito misterioso e interessante. Vá lá, olhe que isto é um elogio. - Disseram-lhe qual é o meu aspecto? A pergunta foi posta num tom ligeiro, num modo absolutamente correcto, mas Reba sabia que ninguém leva tudo a brincar. Encarou o problema de frente.

- Não lhes perguntei. Mas de qualquer modo disseram-me

qual era a ideia que tinham a seu respeito. Quer ouvi-la? Tintim-por-tintim? Se não quiser, não me pergunte. - Tinha a certeza de que iria perguntar.

305 Não houve resposta. De repente Reba teve a sensação de que estava sozinha na sala, de que o lugar onde se encontrava estava mais vazio do que vazio, um buraco negro absorvendo tudo e não emanando nada. Sabia que não podia ter saído sem que ela o ouvisse. - Acho que lhe vou contar - disse ela. - Disseram que tem um aspecto limpo e enérgico, que lhes agrada. Disseram que tem um corpo notável. - Era evidente que não podia ficar por ali. - Disseram que era muito sensível por causa do seu rosto, mas que não devia ser. Okay, esta foi a observação mais profunda, feita pela Dentine, é Eileen que se chama, não é? - Eileen. Ah, um sinal de retorno. Sentia-se como um rádio-astrónomo. Reba era uma imitadora excelente. Poderia ter reproduzido a fala de Eileen com uma fidelidade espantosa mas era suficientemente prudente para não reproduzir as observações de quem quer que fosse a respeito de Dolarhyde. Citou Eileen como se estivesse a ler uma transcrição:

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- «Não é um rapaz com mau aspecto. Palavra que já saí com muitos rapazes com muito pior aspecto do que ele. De uma vez saí com um jogador de hóquei - parece que jogava nos Blues que tinha uma pequena cova no lábio por causa da ponte da gengiva se ter afundado. Os jogadores de hóquei quase todos têm coisas destas. Dá-lhes um aspecto de macho, estás a ver? O Sr. D. tem uma pele estupenda e nem imaginas o que eu dava por ter o cabelo dele.» Satisfeito? Oh, e ainda me perguntou se era tão forte como de facto parecia. - E?

- Disse que não sabia. - Despejou o copo e levantou-se.

Onde raio é que está, D. - Sabia quando ele se movia entre ela e um dos altifalantes. - Ah! Está aí. Quer que eu lhe diga o que penso a esse respeito? Encontrou-lhe a boca com os dedos e beijou-lha, comprimindo os lábios levemente contra os seus dentes salientes. Notou imediatamente que a sua rigidez era uma questão de timidez e não de aversão.

306

Ele estava espantado. - Agora quer dizer-me onde é que fica a casa de banho? Agarrou-lhe no braço e os dois atravessaram o hall. - Sou capaz de descobrir o caminho de volta. Na casa de banho alisou o cabelo e percorreu o topo do lavatório com os dedos, em busca de pasta dos dentes ou elixir dentífrico. Tentou encontrar a porta do armário de medicamentos, mas não havia porta, apenas suportes e prateleiras. Tocou cuidadosamente os objectos nas prateleiras, apercebendo-se de uma navalha, até que encontrou um frasco. Tirou a tampa, cheirou para verificar que era elixir dentífrico, e entornou algum. Quando voltou para a sala de estar ouviu um som conhecido - o zumbido de rebobinagem de um projector. - Tenho de acabar o meu trabalho de casa - disse

Dolarhyde estendendo-lhe um novo martini. - Com certeza - disse ela. Não sabia como é que havia de encarar a situação. - Se o estou a impedir de fazer o seu trabalho, é melhor ir-me

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embora. Os táxis vêm aqui? Começou a conduzi-la para a cadeira grande. Ela

sabia onde é que ficava o sofá e foi aí que se sentou. - Tem registo sonoro? - Não. - Posso conservar a música? - Um-hmmm. Sentiu que ele estava atento. Queria que ela ficasse, sentia-se apenas atemorizado. Não deveria estar. Tudo bem. Sentou-se. O martini estava deliciosamente fresco e ácido. Ele sentou-se na outra extremidade do sofá, o seu peso fazendo que o gelo tilintasse no copo. O projector ainda estava a rebobinar. - Acho que me vou esticar por uns minutos, se não

se importa - disse ela. - Não, deixe-se estar, tenho imenso espaço. Se eu adormecer, acorde-me, está bem? Deitou-se no sofá, segurando o copo em cima do estGmago; as pontas do cabelo roçaram-lhe a mão que mantinha apoiada no sofá ao lado da anca.

307 Accionou o comutador do controlo remoto e o filme começou. Dolarhyde queria ver o filme dos Leeds ou o dos Jacobi com a mulher na sala. Queria ter a possibilidade de olhar alternadamente para o ecrã e para Reba. Sabia que nunca conseguiria sobreviver a uma coisa destas. As mulheres viram-na entrar na carrinha. Nem sequer penses nisso. As mulheres viram-na entrar na carrinha. Ia ver o filme dos Sherman, a família que visitaria

a seguir. Veria a promessa de alivio a aproximar-se, fazendo-o na presença de Reba, olhando à vontade para ela. No ecirã, A Casa Nova, soletrada em moedas de cinco cêntimos na tampa de cartão de uma caixa de camisas. Uma fotografia à distância da Sir a Sherman e das crianças. Divertimento na piscina. A Sr.' Sherman segura a escada e olha para a máquina, o brilho húmido do peito que quase salta do fato de banho, as pernas de um tom pálido executando golpes de tesoura. Dolarhyde estava orgulhoso do seu

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autocontrolo. Pensaria neste filme e não no outro. Mas na sua mente começou a falar com a Sr a Sherman, da mesma maneira como tinha falado com Valerie Leeds em Atlanta. Estás a ver~me, sim É assim que te sentes por me veres, sim Brincadeiras com roupas velhas. A Sr a Sherman pôs o chapéu grande. Está diante do espelho. Volta-se com um amplo sorriso e faz uma pose para a câmara, a mão colocada na nuca. Tem um camafeu na garganta. Reba McLane agita-se no sofá. Pousa o copo no chão. Dolarhyde sente um peso e calor que o invade. Deitou a cabeça na sua coxa. A nuca tem um tom pálido e as luzes do filme desenham sobre ela arabescos fugitivos. Senta-se muito direito, mexe apenas o polegar para parar o filme e voltar ao início. No ecrã, a Sr a Sherman com o chapéu na cabeça, faz uma pose diante do espelho. Vira-se para a câmara e sorri. Estás a ver-me agora, sim. É assim que te sentes por me veres, sim. Sentes-me agora?, sim.

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Dolarhyde sente calor. As calças incomodam-no de uma forma insuportável. Sente calor. Através do tecido sente um bafo quente. Reba fez uma descoberta. Convulsivamentte acciona o comutador. Estás a ver-me agora, sim. É assim que te sentes por me veres, sim. Sentes isto?, sim. Reba desapertou-lhe as calças. Invade-o um sentimento de pânico; nunca teve uma erecção diante de uma mulher viva. Ele é o Dragão, não tem nada que ter receio. Dedos atarefados libertam-no. Oh! Sentes-me agora?, sim. Sentes isto?, sim. Sabes que eu sei, sim. Ouço o teu coração, sim. Tem de manter as mãos afastadas da nuca de Reba. Mantê-las afastadas. As mulheres viram-nos na carrinha. A mão agarra desesperadamente o braço do sofá. Os dedos rompem o tecido do sofá. Ouço o teu coração, sim.

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E agora a tentar saltar. Está a tentar saltar agora. Está a tentar sair, sim. E agora é rápido e leve e mais rápido e leve e ... Foi-se. Oh, foi-se. Reba repousa a cabeça na sua coxa e vira o rosto brilhante para ele. Com a mão acaricia-lhe o peito pela camisa entreaberta, transmitindo-lhe um calor agradável. - Meu Deus, ainda não te vieste, pois não? Uma mulher viva. Que estranho. Cheio de poder, do Dragão ou dele próprio, ergueu-a facilmente do sofá. Não pesava nada e era muito mais fácil de carregar porque não se encontrava inconsciente. Para o andar de cima não. Para o andar de cima não.

309 Depressa. Para qualquer sítio. Rápido. A cama da avó, o conforto do setim deslizando debaixo deles. - Oh, espera, eu tiro-as. Oh, agora rasgaram-se. Não interessa. Anda. Meu Deus, pá. É tão bom. Por favor não me ponhas por baixo, deixa-me ir para cima de ti e receber-te.

Com Reba, a sua única mulher viva, prisioneiro com ela

nesta bolha de tempo, sentiu pela primeira vez que tudo estava certo: era a sua vida que libertava, o seu eu para além de toda a mortalidade que enviava para a escuridão impenetrável dela, longe deste planeta de dor, atingindo longínquas distâncias harmónicas de paz e de promessa de repouso. Ao lado dela na escuridão, pousou a mão nela e apertou-a contra si para selar o caminho de retorno. Enquanto ela dormia, Dolarhyde, maldito assassino de onze, ouvia o tempo passar e mais uma vez o seu coração. Imagens. Pérolas barrocas voando através da escuridão amiga. Um very-light que tinha disparado na direcção da lua. Um grande fogo-de-artifício que vira em Hong-Kong chamado «O Dragão atira as suas pérolas». O Dragão. Sentia-se em estado de choque, sem forças. E durante toda a noite que passou ao lado dela escutava, com receio de se ouvir a si próprio descer as escadas vestido com o quimono.

Durante a noite ela mexeu-se uma vez,

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procurando, ensonada, até ter encontrado o copo na mesinha de cabeceira. Os dentes da avó chocalharam dentro do copo. Dolarhyde trouxe-lhe água. Ela abraçou-o na escuridão. Quando voltou a adormecer, tirou-lhe a mão que ela descansava na tatuagem e pô-la no seu rosto.

De madrugada dormiu como uma pedra. Reba McLane acordou às nove e ouviu a sua

respiração regular. Espreguiçou-se na enorme cama. Ele não se mexeu. Relembrou a disposição da casa, a sequência de tapetes e de soalho, a direcção do tiquetaque do relógio. Quando conseguiu uma

310

imagem definida, levantou-se em silêncio e dirigiu-se para a casa de banho. Depois do chuveiro interminável que ela tinha tomado ele continuava ainda a dormir. No chão encontrava-se a sua roupa interior em farrapos. Encontrou-a com o pé e guardou-a na bolsa. Enfiou o vestido de algodão pela cabeça, pegou na bengala e saiu para o exterior. Ele dissera-lhe que o pátio era grande e nivelado, cercado por sebes que tinham crescido de uma forma selvagem sem serem aparadas, mas mesmo assim procurou, de início, proceder com cuidado. A aragem da manhã era fresca e o sol estava quente. Permaneceu no pátio deixando que o vento lhe soprasse das mãos as sementes dos arbustos. O vento moldava-lhe o corpo, fresco do chuveiro que tomara. Ergueu os braços e o vento fez-lhe sentir a frescura da manhã nos seios e nos braços e por entre as pernas. Próximo zumbiam abelhas. Não tinha medo delas, talvez por isso a deixaram em paz. Dolarhyde acordou, admirado por instantes por não

se encontrar na sua cama no andar de cima. Os seus olhos amarelados arregalaram-se quando se lembrou. Voltou-se para a almofada ao lado como se fosse um mocho. Vazia. Andaria às voltas pela casa? O que é que ela podia encontrar? Ou tinha acontecido qualquer coisa

Page 289: Thomas Harris   Dragão Vermelho

durante a noite? Alguma coisa que fosse preciso limpar. Seria suspeito. Podia ter de fugir. Espreitou no quarto de banho e na cozinha. Na cave onde estava a sua outra cadeira de rodas. No andar de cima. Não queria subir as escadas. Tinha de ver. A sua tatuagem flectia-se à medida que subia as escadas. Do quadro que se encontrava no quarto o Dragão brilhou para ele. Não era capaz de permanecer no quarto com o Dragão. De uma janela do andar de cima viu-a no pátio. - FRANCIS. - Soube que a voz veio do seu quarto.

Soube que era a voz do Dragão. Este novo confronto com o Dragão desorientou-o. Sentiu o que se ia passar quando pela primeira vez colocou a mão no coração de Reba.

311 O Dragão nunca tinha falado antes com ele. Era aterrador. - FRANCIS, ANDA AQUI. Tentou não ouvir a voz que o chamava, que o chamava enquanto ele se apressava pelas escadas abaixo. O que é que ela poderia ter descoberto? Os dentes da avó tinham chocalhado no copo mas colocara-os de parte quando lhe trouxe água. Não podia ter visto nada. A fita de Freddy. Havia um leitor de cassettes na sala de visitas. Verificou-a. A cassette estava rebobinada até ao princípio. Não se lembrava se a rebobinara quando a transmitira por telefone para o Tatller. Ela não devia voltar à casa. Não sabia o que é que podia acontecer na casa. Podia ter uma surpresa. O Dragão podia descer as escadas. Sabia como era fácil ela começar a chorar.

As mulheres viram-na entrar na carrinha. Warfield ia

lembrar-se de os ter visto juntos. Vestiu-se à pressa. Reba McLane sentiu o fresco agradável da sombra do tronco de uma árvore e mais uma vez o calor do sol enquanto vagueava pelo pátio. Podia saber sempre onde é que se encontrava pelo calor do sol e pelo ruído do trabalhar do ar condicionado de janela. Aqui era fácil a navegação, a disciplina da sua vida. Voltou-se uma vez e mais uma vez,

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passando as mãos pelos arbustos e pelas flores desabrochadas. Uma nuvem ocultou o sol e ela parou, não sabendo a direcção para onde se encontrava voltada. Tentou ouvir o ar condicionado. Estava desligado. Sentiu um laivo de incerteza, mas a seguir bateu palmas e sentiu o eco tranquilizador da casa. Reba abriu a tampa do seu relógio de cristal e pelo tacto verificou as horas. Precisava de ir acordar D. Precisava de ir para casa. A porta de rede bateu. - Bom dia - disse ela. As chaves tilintaram enquanto ele se aproximava,

atravessando a relva. Aproximou-se dela cautelosamente, como se a deslocação de ar do seu movimento a pudesse derrubar, e verificou que ela não tinha medo dele.

312

Não parecia embaraçada ou envergonhada pelo que tinham feito durante a noite. Não parecia zangada. Não fugiu dele nem o ameaçou. Pensou se a razão não seria por não ter visto as suas partes privadas. Reba colocou os braços à volta dele, apoiando-lhe a cabeça de encontro ao peito. O coração dele batia num ritmo apressado. Conseguiu dizer «bom dia». - Passei um tempo estupendo, D. A sério? O que é que se devia responder? - óptimo.

Eu também. - Parecia que estava tudo bem. Tira-a daqui. - Mas preciso de ir agora para casa - estava ela a dizer. A minha irmã vem buscar-me para almoçar. Também podia vir, se quisesse.

- Tenho de ir para a fábrica - disse ele, modificando a

mentira que já tinha pronta. - Vou buscar a minha bolsa. Oh não. - Eu vou buscá-la. Quase que cego para com os seus próprios sentimentos, incapaz de os exprimir do mesmo modo que uma cicatriz não é capaz de adquirir a cor da pele circundante, Dolarhyde não sabia o que é que lhe

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tinha acontecido com Reba McLane, ou porquê. Sentia-se confuso, desnorteado com a nova carga de ser dois. Ela ameaçava-o, ela não o ameaçava. Havia o assunto da sua deslumbrante atitude de aceitação na cama da avó. Na maioria das vezes, Dolarhyde era incapaz de descobrir o que sentia até chegar o momento de actuar. Não sabia o que sentia em relação a Reba McLane. Enquanto a conduzia a casa, um desastre terrível

conseguiu esclarecê-lo um pouco. Depois de ter passado o Lindbergh Boulevard, na saída da Interestadual 70, Dolarhyde parou numa estação Servco Supreme para atestar a carrinha. O empregado era um homem corpulento e desmazelado, com um hálito a moscatel. Fez uma careta quando Dolarhyde lhe pediu para verificar o óleo.

313 A carrinha estava um quarto abaixo do nível. O empregado abriu a tampa da lata e colocou-a num funil que introduziu na tampa aberta do motor. Dolarhyde saiu para pagar. O empregado parecia entusiasmado na limpeza do pára-brisas; o pára-brisas do lado do passageiro. Limpou e voltou a limpar. Reba McLane sentava-se no assento de estofo alto, as pernas cruzadas, as saias acima dos joelhos. A bengala encontrava-se entre os dois assentos. O empregado continuou a limpeza do pára-brisas. Espreitava-lhe as pernas por entre a saia. Dolarhyde ergueu os olhos da carteira e apanhou-o. Estendeu a mão pela janela da carrinha e ligou em alta velocidade os limpa-pára-brisas, que foram chicotear as mãos do empregado. - Hey, tenha cuidado. - De um momento para o outro

o empregado ficou muito atarefado, tirando a lata de óleo do compartimento do motor. Sabia que fora apanhado e ostentava um leve sorriso quando Dolarhyde deu a volta à carrinha na sua direcção. - Seu filho da puta. - Passou rápido sobre o «s». - Que raio é que se passa consigo? - O empregado

tinha

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aproximadamente a altura e o peso de Dolarhyde, mas a musculatura estava muito longe de se poder comparar. Era novo para ter dentadura e não se preocupava com ela. A sua inexperiência desgostou Dolarhyde. - O que é que aconteceu aos seus dentes? - perguntou ele suavemente. - O que é que você tem com isso?

- Tirou-os para os dar ao seu amiguinho, seu estupor

ordinário? - Dolarhyde estava muito perto. - Desapareça-me da vista. Porco. Idiota. Escumalha. Doido. Com um empurrão de uma das mãos Dolarhyde atirou-o em voo de encontro à carrinha. A lata de óleo e o funil ressaltaram no asfalto. Dolarhyde apanhou~os.

314

- Não corra. Eu apanho-o. - Tirou o funil da lata e olhou para o seu bordo afiado. O empregado estava pálido. Havia qualquer coisa no rosto de Dolarhyde que nunca vira antes, em lado nenhum. Por instantes em que viu tudo vermelho, Dolarhyde visualizou o funil enterrado no peito do homem, despejando o seu coração. Viu o rosto de Reba através do pára-brisas. Estava a abanar a cabeça e dizia qualquer coisa. Procurava encontrar o punho para fazer descer a janela. - Alguma vez partiu alguma coisa, seu cara de cu? O empregado abanou a cabeça rapidamente. - Não tive qualquer intenção de ofender, palavra de

honra. Dolarhyde empunhou o funil curvo em metal diante do rosto

do homem. Segurou-o com ambas as mãos e os músculos do peito dilataram-se quando o dobrou em dois. Puxou o cinto do homem e deixou-lhe cair o funil na parte da frente das calças. - Guarde os seus olhos de porco para si. - Meteu o

dinheiro da gasolina no bolso da camisa do homem. -

Agora pode pirar-se - disse. - Mas em qualquer

altura o posso apanhar.

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315

CAPÍTULO 36 A fita chegou no sábado, num pequeno embrulho dirigido a Will Graham, sede do FBI, Washington. Tinha sido expedido por correio em Chicago, no dia em que Lounds fora morto.

O laboratório e as Impressões Latentes não encontraram

nada de interesse na cassette ou no papel de embrulho. Uma cópia da cassette seguiu para Chicago na mala

da tarde. A meio da tarde o agente especial Chester trouxe-a a Graham, que se encontrava na sala de júri. Com a cassette vinha uma nota de Lloyd Bowman:

O registo de voz confirma que se trata de Lounds. É óbvio que repetiu aquilo que lhe ditaram. Trata-se de umafita nova, fabricada nos últimos três meses, e que não tinha sido utilizada antes. A Ciência do Comportamento está a proceder a uma análise. Logo que esteja minimamente restabelecido, o Dr. Bloom deve ouvi-la, a decisão a este respeitofica ao seu critério. É evidente que o assassino pretende apanhá-lo. Estou convencido de que tentará fazê-lo vezes de

mais para o meu gosto.

Um voto de confiança seco, muito apreciado. Graham sabia que tinha de ouvir a fita. Esperou até Chester se ter ido embora. 316

Não queria ficar fechado naquela sala a ouvi-la. Era melhor a sala de audiências vazia - entrava uma réstea de sol pelas altas janelas. A mulher da limpeza passara por ali e ainda havia pó no ar, visível no contraste com os raios de sol.

O leitor de cassettes era pequeno e cinzento. Graham

colocou-o numa das mesas dos advogados e carregou no botão.

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A voz monótona de um técnico: «Processo 426238, artigo 814, etiquetado e registado, uma fita de cassette. Isto é uma gravação de uma gravação.» Uma mudança na qualidade de som. Graham agarrou-se com ambas as mãos à divisória da secção do júri. Freddy Lounds parecia cansado e aterrorizado. «Tive um grande privilégio. Vi ... vi maravilhado ... vi maravilhado e com espanto ... espanto ... o poder do Grande Dragão Vermelho.» A gravação original tinha sido interrompida com frequência à medida que era feita. A máquina apanhava o ruído do botão cada vez que se fazia a paragem. Graham viu o dedo no botão. O dedo do Dragão. «Menti a respeito dele. Tudo o que escrevi foram mentiras de Will Graham. Foi ele que me fez escrevê-las. Eu ... eu blasfemei contra o Dragão. E mesmo assim ... o Dragão é misericordioso. Agora desejo servi-lo ... Ele ... ajudou-me a compreender ... o seu esplendor e eu hei-de louvá-lo. Ele sabe que me fez mentir, Will Graham. Porque eu fui obrigado a mentir. Ele será mais ... mais misericordioso para mim do que para si, Will Graham. Apalpe por debaixo de si, Will Graham ... e sinta os pequenos nódulos no cimo da sua pélvis. Sinta a espinha entre eles ... é o local exacto ... onde o Dragão a partirá.» Graham manteve as mãos na divisória de separação. Raios me partam se vou fazer uma coisa dessas. Seria que o Dragão não conhecia a nomenclatura da zona ilíaca da espinha, ou preferiu não a utilizar? «Há muitas coisas... que terá de recear. Dos... meus próprios lábios aprenderá mais coisas que deverá recear.» Uma pausa antes do grito desgarrador. Pior ainda, o grito balbuciante de alguém sem lábios: «Seu ilho da hãe, ocê hrometeu.» Graham colocou a cabeça entre os joelhos até que as manchas brilhantes deixaram de lhe dançar diante dos olhos. Abriu a boca e respirou fundo. Passou-se uma hora antes de ter sido capaz de ouvir aquilo de novo.

Levou o leitor para a sala do júri e tentou aí

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ouvir de novo. Demasiado perto. Deixou o gravador a trabalhar e regressou à sala de audiências. Conseguia ouvir através da porta aberta. «Tive o grande privilégio ... » Estava alguém à porta da sala de audiências. Graham reconheceu o jovem empregado dos escritórios do FBI em Chicago e fez-lhe sinal para entrar. _ Chegou uma carta para si - disse o empregado. O

Sr. Chester disse-me para trazer a carta. Disse-me para verificar e deu indicações ao inspector dos correios para a passar à fluoroscopia. O empregado tirou a carta do bolso do peito. Papel espesso, de cor malva. Graham esperava que fosse de Molly. - Está selada, está a ver? - Obrigado. - Além disso é dia de pagamento. - O empregado estendeu-lhe o cheque. Na fita, Freddy gritava. O jovem pestanejou. - Desculpe - disse Graham. - Não percebo como é capaz de aguentar - disse o jovem. - Vá para casa - respondeu Graham. Sentou-se na divisão do júri para ler a carta. Precisava de um mínimo de alívio. A carta era do Dr. Hannibal Lecter.

Uma breve nota de parabéns por aquilo que conseguiu obter do Sr. Lounds. Admirei isso de uma forma extraordinária. Que astucioso que você é!

318

O Sr. Lounds ofendeu-me muitas vezes com as suas atitudes ignorantes mas pelo menos esclareceu-me sobre um ponto - o seu internamento num hospital para doenças mentais. O incompetente do meu advogado devia ter mencionado isso em tribunal, mas agora já não interessa. Sabe uma coisa, Will, você preocupa-se demasiado. Nem imagina como se havia de sentir muito mais confortável se se descontraísse. Nós não inventamos a nossa natureza, Will; é-nosfornecida juntamente com os pulmSes, o pâncreas e tudo o resto. Porquê lutar contra isso?

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Quero ajudá-lo, Will, e gostaria de começar por lhe perguntar o seguinte: quando se sentiu deprimido depois de ter disparado mortalmente contra o Sr. Garrett JacobHs, não foi o acto em si que o deitou abaixo, pois não? Na realidade, não será antes o caso de se ter sentido tão mal porque matá-lofoi uma sensação tão boa? Pense nisso mas nãofique preocupado. Por que é que

não havia de ser bom? Deve ser bom para Deus - Ele está constantemente a fazê-lo e não será que nós somos feitos à Sua imagem? Provavelmente leu nos jornais de ontem que na quarta-feira à noite, no Texas, Deus deixou cair o telhado de uma igreja em cima de trinta e quatro dos Seus adoradores exactamente quando se esganiçavam no canto de um hino. Julga que isso não soube bem? Trinta e quatro. Por que é que não havia de lhe dar Hobbs?

Na semana passada conseguiu cento e sessenta filipinos

num avião que se despenhou - não se importaria de lhe ceder o insignificante do Hobbs. Não lhe ia regatear um reles assassiniozito. Neste momento dois. Está tudo bem. Não se esqueça de ler os jornais. Deus está sempre

um passo à frente. Melhores cumprimentos do

Hannibal Lecter, M. D.

319 Graham sabia que Lecter estava absolutamente errado a respeito de Hobbs, mas por instantes pensou se Lecter não teria um bocadinho de razão no caso de Freddy Lounds. O inimigo dentro de Graham concordava com qualquer acusação.

Na fotografia do Tattler tinha posto a mão no ombro de

Freddy para confirmar que de facto lhe tinha dito todas aquelas coisas insultuosas sobre o Dragão. Ou a ideia dele tinha sido colocar Freddy numa posição de risco, mesmo que levemente? Não estava certo disso. O conhecimento certo de que não perderia de

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modo nenhum qualquer chance sobre o Dragão colocavam-no numa posição defensiva. - Estou mais que farto de vocês, seus filhos da

mãe - disse Graham em voz alta. Precisava de uma pausa. Telefonou a MoIly, mas ninguém atendeu o telefone na casa dos avós de Willy. - Provavelmente saíram com o estupor da casa rolante murmurou. Saiu para tomar café, em parte para se convencer a si próprio de que não pretendia esconder-se na sala do júri. Na montra de uma joalharia viu uma delicada pulseira de ouro antigo. Custou-lhe grande parte do seu ordenado. Pediu para a embrulharem e selou-a para a enviar por correio. Só quando verificou que se encontrava sozinho na estação dos correios é que escreveu a direcção de MoIly no Oregon. Graham ainda não se convencera, como MoIly já o fizera, de que dava presentes quando se encontrava irritado. Não lhe apetecia voltar ao trabalho na sala do júri, mas não tinha outra alternativa. O pensar em Valerie Leeds compeliu-o a isso. «Peço desculpa por não poder atender o telefóne», dissera Valerie Leeds. Desejava ter tido oportunidade de a conhecer.. Desejava. pensamentos vãos e infantis. Graham estava cansado, egoísta, ressentido, fatigado a ponto de se encontrar num estado mental muito semelhante ao de uma

320

criança, em que os padrSes de medida eram os primeiros que aprendera; em que a direcção «norte» era representada pela auto-estrada n.I 61 e «seis pés» era definitivamente a altura do seu pai.

Fez um esforço para se acalmar e analisar em detalhe o

perfil da vítima, que organizava a partir do monte de elementos amontoados à sua frente e das suas próprias observações. Afluência. Não deixava de ser um paralelo. Ambas as famílias eram afluentes. Estranho como Valerie Leeds poupava dinheiro em meias de vidro. Graham tentava imaginar se em criança teria sido

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pobre. Estava convencido de que sim; os seus próprios filhos eram levemente mimados. Graham tivera uma infância pobre, seguindo o seu pai das docas em Biloxi e Greenville até às docas no lago Erie. Sempre o novo aluno na escola, sempre o estranho. Existia nele um ressentimento semienterrado contra os ricos. Valerie Leeds podia ter sido uma criança pobre. Sentiu a tentação de observar mais uma vez o filme dela. Podia fazê-lo na sala de audiências. Não. Os Leeds não eram o seu problema imediato. Conhecia os Leeds. Não conhecia os Jacobi. A sua falta de um conhecimento íntimo dos Jacobi atormentava-o. O incêndio da casa em Detroit levara tudo álbuns de família, provavelmente até diários. Graham tentava conhecê-los através dos objectos que eles ambicionavam, compraram e usaram. Era tudo o que tinha. O processo dos Jacobi tinha três polegadas de espessura, e grande parte era constituída pela lista dos seus haveres salientava-se a aquisição de uma nova casa desde que tinham chegado a Birmingham. Olha para toda esta merda. Estava tudo no seguro, listado por números de série conforme era imposto pelas companhias de seguros. Podia acreditar-se num homem a quem ardera tudo e que se preocupava com montes de seguros prevendo um próximo acidente. O delegado Byron Metcalf mandara-lhe cópias a químico das declarações de seguro, em vez de fotocópias. As cópias a papel químico estavam esbatidas e era difícil lê-las.

321 Jacobi tinha um barco de ski, Leeds tinha um barco de ski. Jacobi tinha um triciclo, Leeds tinha uma bicicleta de montanha. Graham humedeceu o dedo para voltar a página. O quarto item da segunda página era um projector de filmes Chinon Pacific. Graham parou. Como era possível ter falhado isto? Examinara cada um dos caixotes de todas as paletas no armazém de Birmingham, alerta para qualquer coisa que lhe desse uma visão mais pessoal

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dos Jacobi. Onde é que estava o projector? Ia comparar de novo

a declaração de seguro com o inventário que Byron Metcalf preparara como executor testamentário ao armazenar os haveres dos Jacobi. Os artigos tinham sido verificados pelo supervisor do armazém que assinou o contrato de armazenagem. Levou-lhe quinze minutos para percorrer toda a lista de artigos armazenados. Nada de projector, câmara ou filme.

Graham recostou-se na cadeira e fitou o sorriso dos

Jacobi na fotografia à sua frente. Que raio é que fizeste com ele? Foi roubado? Foi roubado pelo assassino? Se o assassino o roubou, deixou uma pista? Meu Deus, dá-me uma pista visível. Graham já não se encontrava cansado. Queria verificar se faltava mais alguma coisa. Durante uma hora comparou o inventário do armazém com as declarações de seguro. Estava tudo em ordem, excepto aqueles preciosos artigos. Devia estar tudo incluído na lista que Byron guardava no cofre do banco em Birmingham. Os artigos estavam todos na lista. Com a excepção

de dois. «Caixa de cristal 4"xY com tampa de prata» aparecia na

declaração de seguro mas não estava na lista que se encontrava no cofre do banco. «Moldura em prata, T x 11 ", trabalhada com ramos de videira e flores» também não constava da lista do cofre. Roubados? Perdidos? Eram artigos pequenos que se escondiam facilmente. Normalmente os artigos de prata roubados eram

322

derretidos imediatamente. Era quase impossível encontrar-lhes a pista. Mas o equipamento de filmagem tinha números de série dentro e fora. Era uma pista que podia ser seguida. Seria o assassino o ladrão? Enquanto olhava para a fotografia manchada dos Jacobi, Graham sentiu a alegria inefável de uma nova pista. Mas quando viu a resposta, tudo lhe parecia vago, pequeno e desapontador.

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Na sala do júri havia um telefone. Graham ligou para os

Homicídios de Birmingham. Conseguiu falar com o graduado de serviço do turno das três às onze. - Reparei que no caso dos Jacobi manteve um registo

de todas as entradas e saídas depois de a casa ter sido selada. Foi assim não foi? - Deixe-me pedir a alguém para verificar - respondeu-lhe o graduado de serviço. Graham sabia que existia esse registo. Era o procedimento adequado para manter a indicação de toda e qualquer pessoa que entrasse ou saísse da cena do crime e Graham verificara com agrado que Birmingham adoptara esse procedimento. Esperou cinco minutos até que um amanuense pegou no telefone. - Okay, entradas e saídas, o que é que pretende saber? - Niles Jacobi, filho do falecido, está na lista? - Umm-hmmm, está, 2 de Julho, sete da tarde. Foi-lhe dada autorização para levantar artigos pessoais. - Diz se tinha alguma mala? - Não. Lamento. Quando respondeu ao telefone, a voz de Byron Metealf era áspera e a respiração pesada. Graham tentou imaginar o que é que estaria a fazer. - Espero que não o tenha vindo incomodar. - O que é que posso fazer por si, Will? - Preciso de uma pequena ajuda a respeito de Niles Jacobi. - O que é que ele agora fez?

- Estou convencido de que fanou meia-dúzia de coisas da

casa dos Jacobi depois de estes terem sido assassinados. - Ummm.

323 - Do inventário que se encontrava no banco falta

uma moldura em prata. Quando estava em Birmingham vi no quarto de Niles uma fotografia da família. Estivera antes numa moldura, podia ver-se as marcas que os bordos da molduradeixaram. - O estuporzinho. Dei-lhe licença para tirar

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as roupas e alguns livros que lhe faziam falta - disse Metcalf.

- Niles tem amizades caras. Este é o ponto fundamental

que eu investigo, no entanto, falta também um projector e uma câmara de filmar. Preciso de saber se ele os levou. Provavelmente foi isso que aconteceu, mas, se não foi, é muito possível que tenham sido levados pelo assassino. Nesse caso precisamos de saber os números de série para se investigar nas casas de penhores. Quanto à moldura, provavelmente já foi derretida. - Vai lembrar-se da «moldura» quando falar com ele. - Uma coisa: se Niles levou o projector, é possível

que tenha guardado o filme. Não conseguia nada com ele. Quero o filme. Preciso de o ver. Se o defrontar é muito capaz de negar e destruir o filme. - Okay - disse Metcalf. - O título de propriedade do carro reverteu a favor do Estado. Sou o executor, pelo que não tenho necessidade de um mandato. O meu amigo juiz não se importa de tratar da papelada por minha causa. Telefono-lhe depois. Graham regressou ao trabalho. Afluência. Era preciso colocar afluência no perfil que a polícia tinha delineado. Graham tentou imaginar se tanto a Sr a Leeds como a Sr a Jacobi iam às compras em roupas de ténis. Em algumas zonas era uma coisa que estava na moda. Noutras áreas era uma estupidez fazer uma coisa dessas porque era duplamente provocante excitando ao mesmo tempo o ressentimento de classe e a luxúria. Graham imaginava-as a empurrarem carrinhos do supermercado, saias curtas exibindo as coxas morenas, as pequenas bolas das peúgas a balançarem-se de um lado para o outro, passando pelo homem estranho com olhos de barracuda que comprava um almoço de carnes frias para trincar dentro do carro.

324

Quantas famílias havia ali tendo três filhos e um animal de estimação, e apenas uma fechadura vulgar a separá-las do Dragão enquanto dormiam? Ao tentar visualizar possíveis vítimas, Graham

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via gente inteligente e de sucesso morando em belas casas. Mas a pessoa que a seguir deparou com o Dragão não tinha filhos ou animal de estimação, e a sua casa não era elegante. A pessoa que a seguir deparou com o Dragão foi Francis Dolarhyde.

325 CAPÍTULO 37

O cair dos pesos no soalho das águas-furtadas ecoava por toda a casa. Dolarhyde fazia levantamentos muito superiores a tudo aquilo que até então fizera. O seu traje era diferente; calças de fato de treino ocultavam a sua tatuagem. A camisola estava pendurada sobre O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. O quimono estava pendurado na parede como a pele de uma cobra nas árvores por onde esta tivesse passado. Cobria o espelho. Dolarhyde não tinha qualquer máscara. Para cima. Duzentas e oitenta libras do solo ao peito num único movimento. Agora acima da cabeça. - EM QUE É QUE ESTãS A PENSAR? Espantado com a voz quase que deixou cair os pesos, oscilando debaixo deles. Para baixo. Os discos bateram e ressaltaram no solo. Voltou-se, os grandes braços pendentes, olhando na direcção da voz. - EM QUE É QUE ESTãS A PENSAR? Parecia vir de um ponto por detrás da camisola, mas o seu tom e volume arranhavam-lhe na garganta. - EM QUE É QUE ESTãS A PENSAR? Sabia quem falava e estava aterrorizado. Desde o início ele e o Dragão tinham sido um só. Estava a transformar-se e o Dragão era o seu ego superior. Os seus corpos, vozes e vontades eram um só. Agora não. Mudara desde Reba. Não penses em Reba.

326

QUEM É ACEITãVEL? - perguntou o Dragão. A Sr a ... erhman, Sherman. - Para Dolarhydc era difícil de pronunciar.

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- FALA, NãO CONSIGO COMPREENDER-TE. EM QUEM É QUE ESTãS A PENSAR? Dolarhyde, o rosto impassível, voltou-se para a barra. Para cima. Sobre a sua cabeça. Muito mais difícil desta vez. - A Sr a ... erhman molhada, dentro de água. - ESTãS A PENSAR NA TUA AMIGUINHA, NãO ESTãS? QUERES QUE ELA SEJA A TUA AMIGUINHA, NãO QUERES? O peso caiu com um baque surdo. - Eu hão tenho u'a ahiguinha. - O medo fazia que a

sua fala fosse mais difícil. Precisava de tapar as narinas com o lábio superior. - UMA MENTIRA ESTúPIDA. - A voz do Dragão era forte

e distinta. - ESQUECES-TE DA TRANSFORMAÇãO. PREPARA-TE PARA OS SHERMAN. LEVANTA OS PESOS. Dolarhyde agarrou a barra e fez um esforço. A sua mente esforçava-se em sintonia com o corpo. Desesperadamente tentou pensar nos Sherman. Obrigou-se a pensar no peso da Sr a Sherman nos seus braços. A Sr.' Sherman vinha a seguir. Era a Sr.'Sherman. Lutava no escuro com o Sr. Sherman. Agarrando-o até que a perda de sangue fizesse que o seu coração estremecesse como um pássaro. Era o único coração que ouvia. Não ouvia o coração de Reba. Não ouvia.

O medo minava a sua força. Trouxe o peso até às coxas,

mas não conseguiu dar a volta para o trazer à altura do peito. Imaginou os Sherman, à volta dele, os olhos vazios, enquanto ele desempenhava o papel do Dragão. Não prestava. Estava insensível, vazio. O peso caiu com um baque surdo. - NãO É ACEITãVEL. - A Sr a ... - NEM SEQUER ÉS CAPAZ DE DIZER «SENHORA SHERMAN».

NUNCA TENCIONASTE TOMAR OS SHERMAN. QUERES REBA MCLANE. QUERES FICAR COM ELA PARA SER A TUA AMIGUINHA, NãO QUERES? QUERES QUE SEJAM «AMIGOS».

327 Não. MENTIRA! Xó or algum tempo.

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Só POR UM BOCADINHO? SEU ESTUPOR DE LãBIO RACHADO, QUEM É QUE QUER SER SEU AMIGO? CHEGA AQUI, VOU MOSTRAR-TE AQUILO QUE TU ÉS. Dolarhyde não se moveu. - NUNCA VI UMA CRIANÇA TãO IRRITANTE E PORCA COMO

TU. CHEGA AQUI. Foi.

- TIRA A CAMISOLA. Tirou. - OLHA PARA MIM. O brilho do Dragão irradiava da parede. - TIRA O QUIMONO. OLHA PARA O ESPELHO. Olhou. Não podia evitar ou afastar o rosto da luz

escaldante. Viu-se de uma forma esquisita. - OLHA PARA TI. VOU DAR-TE UMA SURPRESA PARA A TUA AMIGUINHA. TIRA ESSE TRAPO. As mãos de Dolarhyde lutaram contra o cinto das calças do fato de treino. As calças do fato de treino rasgaram-se. Tirou-as com a mão direita e em seguida segurou os trapos com a mão esquerda. A sua mão direita arrancou os trapos que a mão esquerda, tremente, segurava. Atirou-os para um canto e deixou-se cair no tapete, enrolando-se sobre si próprio como uma lagosta pescada viva. Cruzou os braços sobre o peito num abraço, gemendo e arfando profundamente, a tatuagem a brilhar às luzes cruas do ginásio. - NUNCA VI UMA CRIANÇA TãO IRRITANTE E PORCA COMO TU. VAI AGARRã-LOS. - Aaayah- - APANHA-OS. Saiu da sala e voltou com os dentes do Dragão. - COLOCA-OS NA PALMA DA MãO. FECHA OS DEDOS E APERTA BEM OS MEUS DENTES. Os músculos peitorais de Dolarhyde dilataram-se.

328

- SABES COMO ELES PODEM MORDER. AGORA SEGURA-OS DEBAIXO

DA BARRIGA. FAZ QUE OS DENTES TE AGARREM A BARRIGA. - Não. - FAZ O QUE EU TE DIGO ... AGORA OLHA. Os dentes estavam a começar a magoá-lo. Saliva e lágrimas caíam-lhe sobre o peito. - Or havor.

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- ENCONTRAS-TE MUITO LONGE DA TRANSFORMAÇãO, ENCONTRAS-TE MUITO LONGE E EU HEI-DE CHAMAR-TE. ÉS CARA DE CU. REPETE. - Sou Cara de Cu. - Tapou as narinas com os lábios

para dizer as palavras. - DENTRO EM BREVE LIBERTAR-ME-EI DE TI - disse o

Dragão sem esforço. - VAI SER BOM? Bom. - QUEM SERã A PRóXIMA QUANDO CHEGAR A ALTURA? - A Sr a ... ehrinan ... Uma dor aguda invadiu Dolarhyde, dor e um medo atroz. - VOU RASGAR TUDO. - Reba, Reba, dou-te Reba. -A sua fala começava

a melhorar. - NãO ME DãS NADA. ELA É MINHA. SãO TODOS MEUS. REBA

MCLANE E OS SHERMAN. - Reba e a seguir os Sherman. A lei vai descobrir. - FIZ PLANOS PARA ESSE DIA. TENS DúVIDAS? - Não. - QUEM ÉS TU? - Cara de Cu. PODES ARRUMAR OS MEUS DENTES. SEU DESGRAÇADO E DÉBIL LãBIO RACHADO. IAS GUARDAR A TUA AMIGUINHA ESCONDIDA DE MIM NãO IAS? HEI-DE DESFAZ--LA EM BOCADOS E ESFREGã-LOS NA TUA CARA FEIA. SE ME CONTRARIAS ENFORCO-TE COM O ENORME INTESTINO DELA. SABES QUE O POSSO FAZER. COLOCA TREZENTAS LIBRAS NA BARRA. Dolarhyde acrescentou as placas à barra. Até àquele momento nunca levantara mais do que duzentas e oitenta libras.

329 - LEVANTA. Se ele não fosse tão forte como o Dragão, Reba morreria. Sabia que era assim. Esforçou-se até que a sala pareceu vermelha aos seus olhos esbugalhados. - Não consigo. - NãO, TU NãO PODES. MAS EU POSSO. Dolarhyde agarrou na barra. Curvou quando o peso

foi transmitido aos ombros.

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- ACIMA. - Acima da cabeça facilmente. - ADEUS, CARA DE

Cu - disse o Dragão orgulhoso, estremecendo à luz.

330

CAPÍTULO 38

Na segunda-feira de manhã Francis Dolarhyde não regressou ao trabalho. Saiu de casa à mesma hora, como sempre fizera. O seu aspecto era impecável, a sua condução absolutamente correcta. Colocou os óculos escuros quando fez a curva depois da ponte do rio Missouri e começou a conduzir tendo o sol de frente.

Ouvia-se o ruído que a sua caixa térmica fazia ao roçar

no assento a seu lado. Inclinou-se e colocou-a no chão, lembrando-se de que precisava de ir buscar o gelo seco e levantar o filme da ... Cruzava agora o canal do Missouri, a agua correndo debaixo dele. Olhou para as cristas de espuma no rio deslizante e de repente imaginou que era ele que andava enquanto o rio se mantinha estático. Sentiu que era invadido por um sentimento estranho e desconexo. Afroxou no acelerador.

A carrinha abrandou na pista exterior até parar. O

tráfico atrás dele ia-se acumulando com o inevitável concerto de buzinas. Não o ouviu. Sentado, deslizava lentamente em direcção a norte sobre o rio imóvel, encarando o sol nascente. Por debaixo dos óculos deslizavam-lhe lentamente lágrimas mornas que lhe iam caindo nos antebraços. Alguém lhe estava a bater à janela. Um condutor, o rosto pálido pela hora matutina e inchado do sono, saíra do carro que se

331 encontrava atrás. O condutor estava a gritar qualquer coisa do lado de lá da janela. Dolarhyde olhou para o homem. Da outra extremidade

da ponte aproximava-se o flash de uma luz azul. Sabia que devia continuar a conduzir. Pediu ao seu corpo para acelerar e foi obedecido. O homem que se

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encontrava ao lado da carrinha deu um salto para trás para evitar que as rodas lhe passassem por cima dos pés. Dolarhyde entrou no parque de estacionamento de um grande motel que ficava próximo do cruzamento da US 270. No parque encontrava-se um autocarro escolar, vendo-se através do vidro traseiro a campânula de uma tuba. Dolarhyde pensou se devia entrar no autocarro com

as pessoas mais velhas. Não, não era assim que as coisas deviam ser feitas. Olhou à volta, à procura do Packard da sua mãe. «Entra. Não ponhas os pés no assento» - dissera a sua mãe. Também não era isso. Estava no parque de estacionamento de um motel na

parte ocidental de Saint Louis, queria ser capaz de decidir e sentia-se impotente. Em seis dias, se pudesse esperar tanto tempo, iria matar Reba McLane. De repente produziu um som agudo através do nariz.

Talvez o Dragão quisesse apanhar primeiro os Sherman e

esperar mais uma lua. Não. Não queria. Reba McLane não sabia nada sobre o Dragão. Pensou

que estava com Francis Dolarhyde. Quisera entregar o seu corpo a Francis Dolarhyde. Deu as boas-vindas a Francis Dolarhyde na cama da avó. «Passei um tempo estupendo, D.» dissera Reba McLane

no pátio. Talvez gostasse de Francis Dolarhyde. Para uma mulher era uma coisa prevertida e desprezível. Compreendia que a devia desprezar por causa disso, mas, oh meu Deus, era tão bom! Reba McLane era culpada por gostar de Francis Dolarhyde. Culpada, sem sombra de dúvida.

332

Se não tivesse sido pelo poder da sua transformação, se não tivesse sido pelo Dragão, nunca teria sido capaz de a ter levado à sua casa. Não teria sido capaz de ter feito sexo. Ou teria?

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«Meu Deus, pá. É tão bom.» Era o que ela dissera. Tinha dito «pá».

A multidão do pequeno-almoço estava a sair do motel,

passando pela sua carrinha. Os seus olhares espantados passavam por ele como uma série de minúsculos pés. Precisava de pensar. Não podia ir para casa. Registou-se no motel, telefonou para o escritório e deu parte de doente. O quarto era ameno e tranquilo. A única decoração era constituída por más reproduções de barcos a vapor. Das paredes não chegava qualquer brilho. Dolarhyde deitou-se vestido. O estuque do tecto tinha fissuras brilhantes. A intervalos muito curtos levantava-se para ir urinar. Primeiro teve tremuras e depois suou. Passou-se uma hora. Não queria dar Reba McLane ao Dragão. Pensou no que

o Dragão lhe faria se não a entregasse. Um medo intenso surgiu em vagas; o corpo não pode suportar esta situação por períodos muito longos. Na calma pesada entre as vagas Dolarhyde conseguia pensar. Como é que ele podia evitar ter de a entregar ao Dragão? Havia uma solução que se lhe debatia no cérebro. Levantou-se.

O comutador da iluminação deu um estalo seco na casa de

banho forrada a azulejo. Dolarhyde olhou para o varão da cortina do chuveiro, um tubo sólido de uma polegada, aparafusado às paredes da casa de banho. Tirou a cortina do chuveiro e colocou-a sobre o espelho. Agarrando o tubo, pendurou-se com um braço, as pontas dos pés roçando o lado da banheira. Era suficientemente resistente. O seu cinto também era suficientemente resistente. Conseguia fazê-lo. Não tinha medo daquilo. Atou a ponta do cinto à volta do tubo num nó de marinheiro. A ponta da fivela formava uma pega. O cinto espesso não escorregava, mantinha-se absolutamente tenso.

333 Sentou-se na tampa da sanita e olhou para ele. Não conseguiria uma queda, mas podia remediar o

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assunto. Podia manter as mãos afastadas do laço até que estivesse suficientemente fraco para não ser capaz de erguer os braços.

Mas como é que ele podia ter a certeza de a sua morte

afectar o Dragão, agora que ele e o Dragão eram dois? Talvez não fosse possível. E como é que ele podia estar certo de que o Dragão a deixava então em paz? Podia levar dias antes de encontrarem o seu corpo. Ela tentaria imaginar onde é que ele podia estar. Entretanto, iria ela a sua casa para o procurar? Subir as escadas à sua procura e ter uma surpresa? O Grande Dragão levaria uma hora a espalhar os seus restos pelas escadas abaixo. Deveria telefonar-lhe a avisá-la? O que é que ela poderia fazer contra o Dragão, mesmo avisada? Nada. Podia restar-lhe a esperança de morrer rapidamente, a esperança de que na sua raiva ele a mordesse com a força suficiente. No andar de cima da sua casa, o Dragão aguardava em gravuras que ele tinha emoldurado com as suas próprias mãos. O Dragão aguardava em livros de arte e revistas sem conta, renascido de cada vez que um fotógrafo... fazia o quê? Na sua mente, Dolarhyde conseguia ouvir a poderosa voz do Dragão amaldiçoando Reba. Havia de a amaldiçoar primeiro, antes de a morder. Também havia de amaldiçoar Dolarhyde, dizendo-lhe que ele não era nada. - Não faça isso. Não ... faça isso - disse Dolarhyde para os azulejos que ecoavam à sua volta. Ouvia a sua propria voz, a voz de Francis Dolarhyde, a voz que Reba McLane compreendeu facilmente, a sua própria voz. Toda a vida se sentira envergonhado dela, tendo dito aos outros com essa mesma voz coisas ásperas e ordinárias. Mas nunca ouvira a voz de Francis Dolarhyde a amaldiçoá-lo. - Não faça isso.

A voz que ele agora ouvia nunca, nunca o amaldiçoara.

Repetira o ultraje do Dragão. A recordação envergonhava-o.

334

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Pensou que provavelmente não seria muito homem. Ocorreu-lhe que na realidade nunca determinara exactamente até que ponto isso se verificava, e agora sentia-se curioso a este respeito. Possuía um laivo de orgulho que lhe fora concedido por Reba McLane. Concluiu que morrer num quarto de banho era um fim muito triste. Que mais? Que outra maneira é que havia? Havia uma maneira e, quando lhe ocorreu, verificou

que era blasfémia. Mas era uma maneira. Andou de um lado para o outro no quarto, caminhou entre as camas e entre a porta e as janelas. Enquanto caminhava ia ensaiando o discurso. As palavras saíam correctamente quando respirava fundo entre as frases e não se apressava. Conseguia falar perfeitamente entre os acessos de medo. Tinha agora uma dessas crises, uma que o fazia vomitar. A seguir vinha a calma. Esperou por ela e, quando chegou, dirigiu-se apressadamente para ~o telefone e fez uma chamada para Brooklin.

Uma banda escolar juvenil estava a subir para o autocarro que se encontrava no parque de estacionamento do motel. As crianças viram Dolarhyde que se aproximava. Tinha de passar por elas para atingir a sua carrinha. Um rapazito gordo e de cara redonda, com o seu cinto Sam Browne todo retorcido, dilatou o peito e flectiu os bíceps depois de Dolarhyde ter passado. Duas raparigas sorriram. Ouviu-se o soar da tuba à janela do autocarro quando Dolarhyde passava, por isso este nem chegou a ouvir os risos atrás dele.

Passados cerca de vinte minutos, parou a carrinha na

estrada a trezentas jardas da casa da avó. Agarrou a chave da casa com a mão esquerda, enquanto segurava o volante com a direita. Com o nariz produziu um som agudo. E mais uma vez,

mais alto. Mais alto, ainda mais alto. Vai,

O saibro restolhou debaixo da carrinha quando seguiu em

frente, a casa tornando-se cada vez maior no pára-brisas. A carrinha deslizou para um dos lados em

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direcção ao pátio e Dolarhyde saiu correndo.

335 Já dentro de casa, sem olhar para a esquerda ou

para a direita, descendo a quatro as escadas da cave, lutando contra o cadeado da arca que se encontrava na cave, olhando para as suas chaves. As chaves da arca encontravam-se no andar de cima.

Nem sequer deu tempo a si próprio para pensar. Um silvo agudo através do nariz, tão alto quanto era capaz para neutralizar o pensamento, as vozes abafadas enquanto subia a escada a correr. Já na secretária, remexendo a gaveta à procura das chaves, não olhando para a gravura do Dragão aos pés da cama. - QUE É QUE ESTãS A FAZER? Onde é que estavam as chaves, onde é que estavam as chaves? - QUE É QUE ESTãS A FAZER? PãRA. NUNCA VI UMA CRIANÇA TãO IRRITANTE E TãO PORCA COMO TU. PãRA. O movimento de busca das mãos abrandou. - OLHA... OLHA PARA MIM. Agarrou a borda da secretária - tentou não se voltar para a parede. Desviou os olhos com dificuldade quando a cabeça se voltou contra a sua vontade. - QUE É QUE ESTãS A FAZER? - Nada.

O telefone estava a tocar, telefone a tocar, telefone a

tocar. Levantou-o, de costas para a gravura. - Olá, D., como é que está? - A voz de Reba McLane. Pigarreou. - Okay - pouco mais do que um murmúrio. - Tentei telefonar para o seu escritório. Disseram-me que estava doente, está com uma voz horrível. - Fale comigo. - Com certeza que falo consigo. Por que é que julga

que lhe telefonei? Que é que se passa? - Gripe - disse ele. - Vai ao médico?... Está? Perguntei-lhe se vai ao médico? - Fale mais alto. - Remexia numa gaveta, tentava a gaveta a seguir.

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- Tem problemas com a ligação? D., não devia estar aí

sozinho doente.

336

- DIZ-LHE PARA VIR ESTA NOITE E TOMAR CONTA DE TI. Dolarhyde quase que conseguiu tapar o micro com a mão. - Meu Deus, o que é que foi isso? Está alguém consigo? - É o rádio, mexi no botão errado. - Olhe uma coisa, D., quer que lhe mande alguém?

Não me parece bem. Vou eu própria. Vou pedir a Márcia que me dê uma boleia à hora de almoço.

- Não. - As chaves encontravam-se debaixo de um cinto

enrolado dentro da gaveta. Já as tinha. De costas para a parede disse ao telefone. - Estou bem. Vejo-a dentro em breve. Correu para as escadas. O fio de telefone foi arrancado da parede e o aparelho rolou pelas escadas atrás dele. Um grito de raiva selvagem. - ANDA Cã CARA DE CU. Para a cave. Na arca, ao lado da caixa do dinamite, estava uma pequena pasta com dinheiro em notas de banco, cartSes de crédito e cartas de condução em vários nomes, a sua pistola, faca e moca. Agarrou na pasta e correu para o rés-do-chão, pronto para lutar se o Dragão descesse ao seu encontro. Dentro da carrinha e conduzindo com dificuldade, saiu pelo pavimento de saibro.

Abrandou na auto-estrada e encostou à berma para vomitar

bílis amarela. Parte do medo dissipou-se. Continuando à velocidade legal, usando os sinais de luzes muito antes das mudanças de direcção, conduziu cuidadosamente em direcção ao aeroporto.

337

CAPÍTULO 39

Dolarhyde pagou o táxi em frente de um edifício de apartamentos na Eastem Parkway, a dois blocos do Museu de Brooklin. Foi a pé o resto do caminho. Passavam jovens por

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ele a caminho do Prospect Park. De pé na placa de tráfico próximo da estação de

metro IRT, tinha uma vista óptima do edifício da Greek Revival. Nunca visitara antes o Museu de Brooklin, embora já tivesse lido o guia - encomendara o livro quando lera pela primeira vez em letras minúsculas «Museu de Brooklin» por debaixo das fotografias de O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. Os nomes dos grandes pensadores, desde Confficio a Demóstenes, estavam gravados na pedra sobre a entrada. Era um edifício imponente com jardins botânicos ao lado, uma casa de repouso para o Dragão. O metro troava por debaixo da rua, fazendo-lhe vibrar as solas dos pés. Das grades de ventilação do metro exalava um ar viciado que vinha misturar-se com o cheiro da tinta corante do seu bigode. Faltava uma hora para fechar. Atravessou a rua e entrou. O empregado da secção de guarda de bagagens recebeu a mala que lhe entregou. - Esta secção está aberta amanhã? - perguntou. - Amanhã o Museu está fechado. - O empregado era

uma mulher corpulenta que envergava uma bata azul. Afastou-se dele.

338

As pessoas que vêm amanhã utilizam o depósito de bagagens.

Não. O Museu está fechado, o depósito de bagagens está

fechado. aptimo. - Obrigado. - Não tem de quê. Dolarhyde passou pelas enormes caixas de vidro no ãtrio Oceânico e no ãtrio das Américas, situados no rés-do-chão cerâmica dos Andes, armas primitivas, artefactos e máscaras imponentes dos índios da costa noroeste. Agora só faltavam quarenta minutos para que o Museu fechasse. Não havia mais tempo para se familiarizar com o andar térreo. Sabia onde eram as saídas e o elevador público.

Dirigiu-se para o quinto andar. Sentia que agora se

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encontrava mais próximo do Dragão, mas estava tudo certo - não iria acontecer dobrar uma esquina e deparar com ele.

O Dragão não estava em exposição ao público; o quadro

tinha sido fechado num compartimento escuro desde o seu regresso da Tate Gallery, em Londres. Ao telefone, Dolarhyde conseguira saber que O Grande Dra~ gão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol raras vezes era exibido. Tratava-se de uma aguarela e tinha mais de duzentos anos corria-se o risco de a luz o apagar lentamente.

Dolarhyde parou diante da obra de Albert Bierstadt Uma

Tempestade nas Montanhas Rochosas - Monte Rosalie 1866. Daquele ponto conseguia ver as portas fechadas do estúdio de pintura e do departamento de armazenagem. Era onde estava o Dragão. Não uma cópia nem uma fotografia: o Dragão. Era onde viria amanhã, onde tinha o seu encontro marcado. Percorreu o perímetro do quinto andar, passando pelas galerias de quadros, embora nem sequer reparasse neles. As saídas era aquilo que lhe interessava. Encontrou as saídas de incêndio e a escadaria principal e marcou a localização dos elevadores públicos. Os guardas eram homens de meia-idade, delicados, com sapatos de solas espessas, com anos de prática de permanecerem em

339 pé por horas intermináveis. Dolarhyde reparou que nenhum se encontrava armado, só um dos guardas do átrio trazia uma arma. Talvez fosse um dos guardas da noite. O aviso de que iam fechar foi feito pelo sistema de altifalantes. Dolarhyde deixou-se ficar no rés-do-chão junto à figura alegórica de Brooklin, enquanto observava a multidão que saía para o ameno fim de tarde de Verão. Continuavam a passar as pessoas que praticavam jogging, esperando pacientemente que a multidão atravessasse em direcção ao metro. Dolarhyde passou alguns minutos nos jardins

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botânicos. A seguir fez sinal a um táxi e deu-lhe o endereço de um armazém que descobrira nas Páginas Amarelas.

340

CAPÍTULO 40

+s nove da noite de segunda-feira, Graham pousou a pasta no chão à porta do apartamento de Chicago onde estava a morar enquanto procurava a chave no bolso. Tinha passado um longo dia em Detroit entrevistando pessoal e verificando registos de emprego num hospital onde a Sr a Jacobi trabalhara como voluntária antes de a família se ter mudado para Birmingham. Procurava um estranho, alguém que pudesse ter trabalhado em Ditroit e Atlanta ou em Birmingham e Atlanta; alguém com acesso a uma carrinha e a uma cadeira de rodas que tivesse conhecido as Sr a, Jacobi e Leeds antes de lhes ter assaltado as casas. Crawfard estava convencido de que a viagem era uma perda de tempo, mas animou-o. Crawfard tivera razão. Raios partissem o Crawfard. Tinha razão demasiadas vezes. Graham ouvia o telefone a tocar no apartamento. As chaves enfiaram-se no forro do bolso. Quando as conseguiu tirar, vinha com elas um bom bocado de linha. As moedas caíram-lhe por dentro da perna da calça e espalharam-se no chão. - Filho da mãe.

Ia a meio caminho do quarto quando o telefone deixou de

tocar. Talvez fosse MoIly a tentar ligar. Telefonou-lhe para Oregon. O avô de Willy atendeu, falando com a boca cheia.

No Oregon era hora de jantar.

341 - Peça só à Molly que me telefone quando tiver terminado - disse-lhe Graham. Estava no chuveiro com os olhos cheios de champô quando o telefone tocou de novo. Sacudiu a cabeça e dirigiu-se para o telefone, deixando atrás

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de si um rasto da água que lhe escorria do corpo.

Olá, Lábios de Fogo. - Seu diabo ordinário, fala Byron Metcalf, de Birmingham. - Desculpe. - Tenho boas notícias e más notícias. Tinha razão

sobre Niles Jacobi. Foi ele que tirou aqueles artigos da casa. Livrara-se deles, mas espremi-o por causa do haxe que lhe apanhei no quarto e ele abriu-se. Estas são as más notícias; julgo que você estava convencido de que o Dentuças os tinha roubado e que os escondera. » Quanto às boas notícias, apanhámos um bocado de filme. Ainda não o recebi. Niles diz que tem duas bobinas escondidas no assento do automóvel. Ainda o quer, não é verdade? - Com certeza que quero. - Bom, esse amigo íntimo, Randy, anda com o carro e ainda não o apanhámos, mas não vai demorar muito. Quer que lhe mande o filme no primeiro avião para Chicago e que lhe telefone quando lho expedir? - Se fizer favor. É estupendo, Byron, obrigado. - Não tem de quê.

Molly telefonou quando Graham estava quase a adormecer.

Depois de terem garantido um ao outro que estavam bem, não havia muito mais que pudesse ser dito. Willy estava a passar uns dias magníficos, disse

MoIly. Deixou que Willy desse as boas-noites. Willy tinha muito mais que dizer do que um simples

boa noite - contou a Will a novidade que o excitava: o avô comprara-lhe um pónei. Molly não lhe dissera nada a este respeito.

342

CAPÍTULO 41

+s terças, o Museu de Brooklin está fechado para o público, mas os estudantes de Belas-Artes e os investigadores podem entrar.

O Museu é muito prático para todos aqueles que queiram

fazer aí os seus estudos. O pessoal é competente e

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compreensivo; permite muitas vezes aos investigadores virem às terças, por entrevista marcada, para verem as obras que normalmente não são exibidas ao público. Francis Dolarhyde saiu do metro pouco depois das duas horas da tarde; levava debaixo do braço um bloco de notas, um catálogo da Tate Gallery e uma biografia de William Blake. Sob a camisa tinha também uma arma automática, uma matraca e uma faca. Um adesivo elástico segurava as armas contra o ventre liso. Isso não o impedia de abotoar o casaco de desporto. No bolso transportava um saco de plástico contendo um tampão embebido em clorofórmio. Na mão transportava um estojo de guitarra novo. No meio da Eastern Parkway, perto da entrada do metro, havia três cabinas telefónicas. Um dos aparelhos fora arrancado, mas mesmo assim havia um que funcionava. Introduziu as moedas e aguardou até ouvir Reba dizer «alô». Como ruído de fundo apercebia-se dos sons característicos do trabalho na câmara escura. - Bom dia, Reba - disse ele.

343 - Viva, D. Como é que se sente? Ouvia com dificuldade por causa das viaturas que passavam de um lado e do outro. Estou bem. - Dá a ideia de que você está numa cabina pública. Julguei que não queria sair de casa. - Preciso de lhe falar, mais logo. - De acordo, ligue-me ao fim da tarde. - Tenho necessidade de ... a ver. - Gostava imenso, mas esta noite é impossível. Tenho trabalho. Volta a ligar-me? - Sim. Se nada ... - Como? - Eu volto a ligar-lhe. - Espero que volte o mais depressa possível, D. - Com certeza. Adeus ... Reba. Perfeito. O medo escorria-lhe do plexo ao umbigo. Enxugou-se e atravessou a rua. +s terças entra-se no Museu de Brooklin por uma pequena porta situada no extremo do lado direito. Dolarhyde entrou atrás de quatro

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estudantes de História de Arte. Os estudantes colocaram os sacos e as pastas encostados à parede antes de apresentarem os passes de entrada. Um guarda sentado atrás de uma secretária fez o controlo dos passes. Dirigiu-se a Dolarhyde. - Tem entrevista marcada? Dolarhyde acenou com a cabeça. - Harper, das Reservas. - Faça o favor de assinar o registo. - O guarda estendeu-lhe uma esferográfica.

Dolarhyde já tinha uma esferográfica na mão. Assinou

«Paul Crane». O guarda ligou para um número interno. Dolarhyde

voltou as costas à secretária, estudando a Festa das Vindimas, o quadro de Robert Blum pendurado por cima da entrada, enquanto o guarda confirmava a entrevista. Pelo canto do olho viu um responsável

344

da segurança que ocupava o seu posto no átrio. Era aquele que se encontrava armado. - Ao fundo do átrio, junto do posto de vendas, há

um banco ao lado dos elevadores - disse o guarda. - Harper há-de vir buscá-lo. - Estendeu a Dolarhyde um passe em plástico rosa e branco. - Posso deixar aqui a minha guitarra? - Vá descansado, não tiro os olhos dela.

Com as luzes apagadas o Museu era diferente. As grandes

vitrinas pareciam mergulhadas numa espécie de crepúsculo. Dolarhyde aguardou três minutos junto do banco e Miss

Harper saiu do elevador público. - Sr. Crane? Sou Paula Harper. Era mais nova do que imaginara ao telefone quando lhe ligara de Saint Louis; uma mulher distinta, de uma beleza severa. Usava a saia e a blusa como se fosse um uniforme. - Telefonou a respeito da aguarela de Blake - disse ela. Vamos ao andar de cima e eu mostro-lha. Vamos no elevador do pessoal. Por aqui se faz favor.

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Conduziu-o através do armazém do Museu que se encontrava na penumbra e de uma pequena sala onde se alinhavam armas primitivas. Olhou rapidamente à sua volta para manter o sentido de orientação. Num dos cantos da secção da América havia um corredor que conduzia directamente ao pequeno elevador. Miss Harper premiu o botão. Cruzou os braços sobre o peito e aguardou. Os seus olhos, de um azul-claro, fixaram-se no passe cor-de-rosa sobre fundo branco pendurado na lapela de Dolarhyde.

Deram-lhe um passe para o sexto andar - disse ela. Não tem importância. Hoje não há guardas no quinto andar. Que tipo de investigação é que está a fazer? Até àquele momento Dolarhyde limitara-se a sorrisos

e acenos de cabeça. - Um estudo sobre Butts. - Sobre William Butts? Acenou com a cabeça.

345 - Não li muita coisa a respeito dele. Só se

consegue ouvir falar dele em anotações como tendo sido patrono de William Blake. Tem interesse? - Estou só no início. Vou ter de ir a Inglaterra. - Julgo que a National Gallery tem duas aguarelas que ele fez para Butts. Já as viu? - Ainda não. - O melhor é adiantar-se na parte escrita. Acenou com a cabeça. Entretanto chegou o elevador. Quinto andar. Estava levemente nervoso, mas o sangue continuava a circular-lhe nas pernas e nos braços. Dentro em breve seria apenas uma questão de sim ou não. Se corresse mal não deixaria que o levassem. Conduziu-o ao longo do corredor dos retratos americanos. Não era por aqui que ele viera antes. Era capaz de dizer onde é que estava. Estava tudo certo. Mas havia qualquer coisa que no corredor esperava por ele e quando se apercebeu disso estacou absolutamente imóvel.

Paula Harper apercebeu-se de que ele deixara de a seguir

e voltou-se.

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Mantinha-se rígido diante de um nicho que se encontrava

na galeria de retratos. Ela voltou atrás e viu para onde é que ele estava a olhar.

- É um retrato de George Washington pintado por Gilbert

Stuart - disse ela. Não, não era.

- Nas notas de dólar pode ver um retrato semelhante.

Chámam-lhe o retrato Landsdowne porque Stuart o fez para o marquês de Landsdowne, para lhe agradecer o apoio que lhe dera na Revolução Americana ... Sente-se bem, Sr. Crane? Dolarhyde estava pálido. Isto era pior do que todas as notas de dólar que alguma vez tinha visto. Washington, com os seus olhos encovados e a horrível dentadura, sobressaía da moldura. Meu Deus, parecia-se com a avó. Dolarhyde sentiu-se como uma criança apanhada com uma faca de borracha. - Sr. Crane, sente-se bem?

346

Responde ou estragas tudo. Ultrapassa isto. «Meu Deus,

pá. É tão bom.» ÉS O MAIS PORCO... Não. Diz qualquer coisa.

- Estou a fazer um tratamento de cobalto - disse ele. - Quer sentar-se por uns minutos? - Havia nele um

leve cheiro a medicamentos. - Não. Vamos andando. Isto está a passar. E não vais impedir-me, avó. Raios te partam, se já

não estivesses morta era agora que te matava. Se já não estivesses morta. Se já não estivesses morta. A avó já morrera! Estava morta agora, estava morta para sempre. «Meu Deus, pá, é tão bom.»

No entanto o outro ainda não estava morto e Dolarhyde

sabia disso. Seguiu Miss Harper através de uma nuvem de medo. Atravessaram a porta dupla do Estúdio de Pintura e Departamento de Armazenagem. Dolarhyde olhou

Page 321: Thomas Harris   Dragão Vermelho

rapidamente à sua volta. Era uma sala comprida e tranquila, bem iluminada e cheia de suportes rotativos com pinturas protegidas por envólucros. Ao longo da parede havia uma série de pequenos cubículos que serviam de gabinetes. A porta do cubículo no extremo da fila estava aberta e ouvia-se o matraquear de uma máquina de escrever. Apenas se via Paula Harper. Ela levou-o para uma mesa de trabalho da altura de um balcão e trouxe-lhe um banco. - Espere aqui. Vou-lhe buscar a pintura. Desapareceu atrás das estantes. Dolarhyde desabotou um botão na barriga. Miss Harper vinha ao seu encontro. Trazia uma caixa negra de pouca espessura, pouco maior do que uma pasta. Estava ali. Como é que ela tinha força para transportar a pintura? Nunca pensara nela como sendo plana. Vira as dimensSes nos catálogos, mas não prestara atenção. Tinha uma ideia de que fosse imenso. Mas era pequeno. Era pequeno e estava aqui numa sala tranquila. Nunca se apercebera da força que o Dragão adquiria na velha casa no meio do pomar.

347 Miss Harper estava a dizer qualquer coisa. é preciso mantê-la nesta caixa porque a luz desbotava-lhe as cores. E por essa razão que a maioria do tempo não se encontra em exibição. - Colocou a caixa em cima da mesa e abriu os fechos. Ouviu-se um ruído na porta dupla. Desculpe-me só um momento, tenho de ir abrir a porta ao Júlio. - Voltou a fechar a caixa e dirigiu-se para as portas de vidro levando a caixa com ela. Um homem com um carrinho de rodas esperava no exterior. Manteve as portas abertas enquanto ele entrava com o carrinho. - Está bem aqui? - Está sim, muito obrigada, Júlio. O homem foi-se embora. E ali vinha de novo Miss Harper transportando a sua caixa. - Peço desculpa, Sr. Crane. Hoje é dia de o Júlio limpar o pó e tirar as manchas de algumas molduras. - Abriu a caixa e retirou uma pasta em cartão branco. - Compreende que não lhe é permitido tocar-lhe. Sou eu que lha mostro, são as regras. Okay?

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Dolarhyde acenou com a cabeça. Não podia falar. Abriu a pasta e retirou a folha de plástico e a protecção. Ali estava. O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol - o dragão macho pousado sobre a mulher implorante, que se encontrava prostrada, dominada por uma volta da sua cauda. Era certo que era pequeno, mas transmitia um sentimento de poder. Espantoso. As melhores reproduções não faziam justiça aos detalhes e às cores. Dolarhyde viu isso claramente, apercebeu-se disso num instante - a escrita de Blake nas margens, duas manchas castanhas na borda direita do papel ... as cores eram muito mais fortes. Olha para a mulher presa na cauda do Dragão. Olha. Viu que o cabelo dela era precisamente da mesma cor do cabelo de Reba McLane.Viu que estava a vinte pés da porta. Sentiu vozes. «Espero que não te tenha chocado», disse Reba MeLane.

- Parece que usou giz em simultâneo com as aguarelas

estava Paula Harper a dizer. Permaneceu a um canto de modo a

348

poder ver o que ele estava a fazer. Os seus olhos nunca deixaram de fitar a pintura. Dolarhyde colocou a mão dentro da camisa. Algures um telefone estava a tocar. O barulho da máquina de escrever parou. Uma mulher enfiou a cabeça pela porta do último cubículo. - Paula, telefone para ti. É a tua mãe.

Miss Harper não voltou a cabeça. Os seus olhos nunca

deixaram a pintura e Dolarhyde. - Dás-lhe um recado? - disse ela. - Diz-lhe que

lhe telefono mais tarde. A mulher desapareceu no gabinete. Pouco depois ouvia-se de novo o barulho da máquina de escrever. Dolarhyde não podia aguentar mais. Dá tudo por tudo, agora. Mas o Dragão moveu-se primeiro. - NUNCA VI... - O quê? - Os olhos de Miss Harper estavam

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arregalados. ... um rato daquele tamanho! - Disse Dolarhyde enquanto apontava. - A subir por aquela estante! Miss Harper estava a voltar-se. - Onde? A moca deslizou-lhe da parte de dentro da camisa.

Mais com o pulso do que com o braço, deu-lhe uma pancada na parte de trás da cabeça. Curvou-se enquanto Dolarhyde conseguia agarrar-lhe na blusa e lhe colocava um pano com clorofórmio sobre o rosto. Produziu um único som, não muito alto, e ficou completamente inerte. Colocou-a no solo entre a mesa e as estantes de pinturas, pousou a pasta com a aguarela no chão e debruçou-se sobre ela. Lutando, agitando-se, a respiração ofegante e um telefone a tocar. A mulher saiu do último gabinete. - Paula? - Percorreu a sala com o olhar. - É a tua

mãe disse em voz alta. - Precisa de falar contigo agora. Dirigiu-se para a parte de trás da mesa. - Tomo conta do visitante se tu... - Foi então que os viu. Paula Harper inerte no chão, o cabelo sobre o rosto, e debruçado sobre ela, pistola na mão,

349 Dolarhyde metendo na boca o último bocado da aguarela. Erguendo-se, mastigando, correndo. No seu encalço.

Correu para o seu gabinete, bateu com a frágil porta,

agarrou no telefone que lhe escorregou e deixou-se cair de gatas no chão procurando agarrá-lo freneticamente, tentando marcar um número sem conseguir porque a linha estava ocupada, enquanto a porta saltava em estilhaços. O brilho do telefone desfez-se em mil cores luminosas quando recebeu a pancada na nuca. O receptor caiu no solo com estrondo. Dolarhyde no elevador do pessoal observava as luzes indicadoras que piscavam, a pistola apoiada no estômago e coberta pelos seus livros. Primeiro andar. Cá fora nas galerias desertas. Caminhava rapidamente, os sapatos produzindo um som

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estridente no pavimento do corredor. Uma volta no sentido errado e estava a passar pela zona das máscaras, a grande máscara de Sisuit, perdendo tempo, correndo agora pela zona dos grandes totens Haida e dando conta de que estava perdido. Na zona dos totens olhou para a esquerda, viu ao longe as armas primitivas e soube onde estava. Voltou a esquina do átrio. O recepcionista estava de pé junto do placard, a cerca de trinta pés do balcão de recepção.

O guarda armado estava mais perto da porta. O coldre

rangeu quando se baixou para limpar uma mancha na ponta do sapato. Se oferecerem resistência abate-o primeiro a ele.

Dolarhyde entalou a arma no cinto e apertou o casaco. Atravessou o átrio, tirando o passe da lapela. O recepcionista voltou-se quando ouviu os passos. Obrigado - disse Dolarhyde. Segurou o passe pela borda, deixando-o cair em cima do balcão. O guarda fez um aceno com a cabeça. - Importa-se de o colocar na ranhura, por favor? O telefone da recepção tocou. Era difícil agarrar o passe no tampo de vidro. O telefone tocou mais uma vez. Depressa.

350

Dolarhyde conseguiu agarrar o passe e introduziu-o na ranhura. Do monte de bagagens apanhou a sua caixa de guitarra. O guarda dirigia-se para o telefone. Já cá fora, caminhando apressado para os jardins botânicos, estava pronto a voltar-se e disparar se sentisse que o perseguiam. Dentro dos jardins e para a esquerda, Dolarhyde agachou-se num espaço entre uma pequena cobertura e uma sebe. Abriu a caixa da guitarra e retirou uma raqueta de ténis, uma bola de ténis, uma toalha, um saco de supermercado dobrado e um grande molho de salsa. Tremia com nervosismo enquanto despia o casaco e a camisa num único movimento e se desembaraçava das calças. Por baixo trazia uma camisola com os dizeres «Brooklin College» e umas calças de fato de treino. Enfiou os livros e a roupa no saco de supermercado, a seguir as armas, e no topo colocou

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o ramo de salsa. Limpou o punho e os fechos da caixa e atirou-a por cima da sebe. Atravessando os jardins, agora em direcção a Prospect Park, a toalha à volta do pescoço, veio ter ao Empire Boulevard. + sua frente encontravam-se praticantes de jogging. Enquanto seguia atrás deles pelo parque passaram os primeiros carros da polícia num lamento estridente. Nenhum dos praticantes de jogging lhes prestou atenção. Dolarhyde procedeu de igual modo. Alternou ojogging e o andar a passo, transportando o seu saco de supermercado e a raqueta, fazendo ressaltar no chão a sua bola de ténis, um homem que se acalmava depois de um exercício violento e que a caminho de casa passara pelo supermercado. Fez um esforço para andar mais devagar; não devia correr com o estômago cheio. Agora podia decidir sobre o seu andamento. Podia decidir sobre qualquer coisa.

351

CAPÍTULO 42

Crawford sentou-se na fila de trás da secção do júri a comer amendoins, enquanto Graham corria as persianas da sala do tribunal.

- Estou à espera de que me entregues o perfil ao fim da

tarde - disse Crawford. - Disseste-me que era na terça-feira. Hoje é terça-feira. - Vou acabá-lo. Quero ver isto primeiro. Graham abriu o envelope de correio expresso enviado por Byron Metealf e retirou o que vinha dentro - duas bobinas de filme enferrujadas, cada uma delas embrulhada num saco de plástico de sanduíche. - O Metcalf vai apresentar queixa contra Niles Jacobi? - Por roubo, não, de qualquer modo é ele que vai herdar, ele e o irmão de Jacobi - disse Graham. - Quanto ao haxe, não sei. O Ministério Público de Birmingham está com vontade de partir a louça.

- óptimo - disse Crawford.

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O ecrã desceu do tecto da sala de audiências para ficar

colocado em frente da secção do júri, um dispositivo que permitia mostrar facilmente aos jurados as provas filmadas. Graham preparou o projector. - Na verificação que fizemos das bancas de jornais, onde o Dentuças poderia ter conseguido rapidamente um exemplar do Tattler, recebi relatórios de Cincinnati, Detroit e um molho deles

352

Graham começou a projectar o filme. Era um filme de pesca. As crianças dos Jacobi sentadas na margem de um lago, com canas de pesca e anzóis.

Graham tentou não pensar neles dentro dos seus pequenos

caixSes a descerem à cova. Tentou imaginá-los apenas a pescarem. A bóia da rapariga estremeceu e desapareceu. Tinha picado. Crawfard esmagou o seu saco de amendoins. - Indianápolis está a fazer um trabalho extenuante

com perguntas aos jornais e a verificar todas as estações de serviço da Servco Supreme - disse ele. - Queres ver isto ou não queres? - disse-lhe Graham.

Crawford manteve-se calado até terem passado os dois

minutos que o filme levou a correr. - Espantoso, conseguiu apanhar uma perca - disse

ele. Agora o perfil ... - Jack, estavas emBirmingham logo depois de as coisas terem acontecido. Só lá fui um mês depois. Viste a casa quando ainda era a casa deles, eu não. Quando lá cheguei tinham retirado toda a mobília e estava completamente remodelada. Agora, pelo amor de Deus, deixa-me olhar para esta gente e a seguir acabo o perfil. Começou o segundo filme.

Uma festa de anos surgiu no ecrã da sala de audiências.

Os Jacobi estavam sentados à volta da mesa da sala de jantar. Estavam a cantar. Graham leu nos lábios «Parabéns a você». Donald Jacobi, de onze anos, olhava para a

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câmara. Estava sentado numa das extremidades da mesa com o bolo na frente dele. A luz das velas reflectia-se nos copos. Num dos lados da mesa estavam sentados o irmão e a irmã, que o viam soprar as velas. Graham agitou-se na cadeira. A senhora Jacobi, o cabelo escuro caindo em cascata, inclinou-se para a frente para sacudir o gato que saltara para cima da mesa.

353 Na cena seguinte via-se a Sr.' Jacobi que trazia um grande envelope para o filho. Do envelope pendia uma fita comprida. Donald Jacobi abriu o envelope e tirou um cartão de aniversário enorme. Voltou-se para a câmara e exibiu o cartão à sua volta dizia: «Feliz aniversário - siga a fita.»

Uma progressão em sobressaltos à medida que a câmara

seguia a procissão em direcção à cozinha. Uma porta presa com um gancho. A descida das escadas em direcção à cave, Donald à frente, a seguir os outros, seguindo a fita pelas escadas abaixo. A extremidade da fita estava amarrada ao guiador de uma bicicleta de dez velocidades.

Graham procurou imaginar por que é que não lhe deram a

bicicleta no exterior. Um salto brusco para a cena seguinte e a sua pergunta foi automaticamente respondida. No exterior, e podia ver-se agora perfeitamente, estivera a chover intensamente. O pátio estava cheio de água. A casa parecia diferente. Geehan, o agente de propriedades, mudara a cor quando remodelara a casa depois dos assassínios. A porta da cave estava aberta e surgiu o Sr. Jacobi transportando a bicicleta. Era a primeira imagem dele em todo o filme. Uma aragem despenteava o cabelo cuidadosamente alinhado sobre a sua calva. Pousou a bicicleta no chão cerimoniosamente. O filme terminou com as imagens de Donald a montar cautelosamente a bicicleta pela primeira vez. - É bastante triste tudo isto - comentou Crawford -

mas não é nada que não soubéssemos.

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Graham fez voltar ao princípio o filme da festa de anos. Crawford abanou a cabeça e começou a ler qualquer coisa

que tinha dentro da pasta com a ajuda de uma lanterna tipo lapiseira. No ecrã via-se mais uma vez o Sr. Jacobi a sair da

cave com a bicicleta. A porta fechou-se atrás dele. No gancho estava pendurado um cadeado. Graham parou a imagem. - Olha. Era para isto que ele queria a tesoura de corte, Jack, para cortar o cadeado e entrar na cave. Por que é que ele não foi por ali?

354

Crawford apagou a lanterna e por cima dos óculos olhou

para o ecrã.

- O que é que se passa? - Eu sabia que ele tinha uma tesoura de corte, utilizou-a para cortar o ramo que lhe dificultava a visão quando estava a observar do bosque. Por que é que não a usou para entrar pela porta da cave?

- Não podia. - Com um leve sorriso, Crawfard aguardou.

Adorava apanhar as pessoas em conclusSes precipitadas. - Tentou ao menos? Deixou alguma marca? Nem sequer cheguei a ver a porta. Quando lá cheguei Geehan tinha-a substituído por uma porta de aço com rebites. Crawford abriu as mandíbulas. - Partes do princípio de que foi instalada por Geehan. Mas não foi Geehan. A porta de aço já lá estava quando foram assassinados. Deve ter sido Jacobi que a colocou. Era um filho de Detroit e portanto um favorito dos rebites. - Quando é que Jacobi a colocou? - Não sei. Obviamente deve ter sido depois do aniversário do filho. Quando é que foi isso? Deve estar no relatório de autópsia, se o tens aqui. O seu aniversário foi a 14 de Abril, uma segunda-

feira respondeu Graham, enquanto olhava para o ecrã, o queixo apoiado na mão. - Preciso de saber quando é

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que o Jacobi mudou a porta. O couro cabeludo de Crawfard encheu-se de rugas que desapareceram quando conseguiu descortinar o ponto de vista. - Estás convencido de que o Dentuças marcou a casa

dos Jacobi quando ainda tinha a porta antiga com o cadeado - disse ele. - Trouxe uma tesoura de corte, não trouxe? Como é

que entras num local qualquer com uma tesoura de corte? perguntou-lhe Graham. - Cortas cadeados, barras ou correntes. O Jacobi não tinha portSes com barras ou correntes, pois não? - Não.

- Então quando para lá foi estava à espera de encontrar

um cadeado. Uma tesoura de corte não é muito pesada e não é com-

355 prida de mais. Deslocou-se à luz do dia e do sítio onde estacionou o carro ainda teve de caminhar um bom bocado até à casa dos Jacobi. Tanto quanto sei, dava-lhe a possibilidade de poder retirar-se rapidamente se alguma coisa lhe corresse mal. Nunca traria uma tesoura de corte se não soubesse que precisaria dela. Estava a contar com um cadeado. - Estás a partir do princípio de que ele marcou a

casa antes de Jacobi ter mudado a porta. Então aparece para os matar, espera no bosque ... - Do bosque não consegues ver este lado da casa. Crawfard acenou com a cabeça. - Espera no bosque. Vão para a cama e ele avança

com a tesoura de corte e encontra a porta nova com os rebites. - Digamos que ele encontra a nova porta. Estava tudo planeado e agora acontecia-lhe uma coisa destas - disse Graham erguendo os braços. - Está realmente chateado, frustrado, torna-se difícil entrar. É por causa disso que se decide por um trabalho rápido e ruidoso na porta do pátio. Foi um desastre a maneira como entrou. Acordou Jacobi e teve de abatê-lo nas escadas. Não é trabalho próprio do Dragão. Não é trapalhão a este ponto. É cuidadoso e não deixa nada para trás. Fez um

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trabalho limpo no modo como entrou na casa dos Leeds. - OkaY, está certo - respondeu Crawfard. - Se conseguirmos saber quando é que Jacobi mudou a porta, talvez seja possível estabelecer o intervalo entre a altura em que foi marcado e a altura em que foi morto. Pelo menos o tempo minimo que tenha decorrido. Parece que é útil sabermos isso. Talvez se adapte a qualquer tipo de intervalo que a convenção de Birmingham e o gabinete de visitantes nos mostrem. Podemos verificar de novo os alugueres de carros. Desta vez também vamos verificar as carrinhas. Vou falar com o gabinete de capipo de Birmingham. As palavras de Crawford devem ter sido imperiosas: em quarenta minutos exactos, um agente do FBI de Birmingham, com o agente de propriedades Geehan a reboque, estava a gritar com um carpinteiro que trabalhava na estrutura de uma nova casa. A informação do carpinteiro foi transmitida via rádio para Chicago.

356

- Na última semana de Abril - disse Crawford pousando o

telefone. - Foi quando eles colocaram a porta nova. Meu Deus, foi dois meses antes de os Jacobi terem sido atacados. Por que raio é que os teria marcado com dois meses de avanço? - Não sei, mas garanto-te que viu a Sr a Jacobi ou a família inteira antes de ter verificado a casa. A não ser que os tenha seguido desde Detroit, deve ter visto a Sr. Jacobi algures entre 10 de Abril, quando se mudaram para Birmingham, e o fim de Abril, quando a porta foi substituída. O gabinete está a seguir o caso no local?

- E os polícias também - respondeu Crawford. - Diz-me uma coisa: como é que ele sabia que havia uma porta interior entre a cave e a casa? Normalmente isso não acontece, especialmente no Sul. - Não há dúvida de que viu o interior da casa. - O teu amigo Metcalf conseguiu os documentos de

depósitos bancários? - Estou convencido de que sim.

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- Vamos verificar as chamadas que eles fizeram entre 10

de Abril e o fim do mês. Sei que as chamadas foram verificadas num período de um par de semanas antes dos assassínios, mas talvez não tenhamos andado suficientemente para trás. A mesma coisa no caso dos Leeds. - Estivemos sempre convencidos de que ele verificou a casa dos Leeds pelo interior - disse Graham. - Da avenida não conseguia ver o vidro da porta da cozinha. Existe uma porta de rede. Mas estava preparado com o corta-vidros. E não houve qualquer chamada de serviço nos três meses antes de terem sido assassinados. - Se a marcação foi feita a uma distância dessas, talvez não tenhamos verificado suficientemente para trás. Mas vamos fazê-lo agora. No entanto, no caso dos Leeds, quando se encontrava na avenida a ler os contadores na parte de trás da casa dos Leeds, dois dias antes de os ter assassinado, talvez os tenha visto entrar em casa. Pode ter olhado para dentro quando a porta da varanda estava aberta. - Não, as portas não se encontram alinhadas, lembras-te? Olha para aqui. Graham começou a projectar o filme sobre a casa dos Leeds. O pêlo-de-arame cinzento dos Leeds arrebitou as orelhas e correu para a porta da cozinha. Valerie Leeds e as crianças entraram carregando os sacos do supermercado. Através da porta da cozinha apenas a rede era visível. - Muito bem, queres pôr Byron Metcalf a trabalhar

nos documentos bancários de Abril? Qualquer tipo de chamada de serviço ou transacção que um vendedor porta a porta possa ter efectuado. Não, prefiro eu fazer isso enquanto tu trabalhas no perfil. Tens o número de Metcalf? O facto de ver os Leeds deixou Graham preocupado. Assim, foi sem pensar que disse a Crawfard três números de Byron Metcalf.

Passou os filmes de novo, enquanto Crawford utilizava o

telefone na sala do júri. Primeiro o filme dos Leeds. Havia o cão dos Leeds. Não tinha coleira, a

Page 332: Thomas Harris   Dragão Vermelho

vizinhança estava cheia de cães, mas o Dragão sabia qual era o cão deles.

E ali estava Valerie Leeds. A imagem dela chamou a

atenção de Graham. Havia a porta atrás dela, vulnerável com o seu grande painel de vidro. As crianças brincavam no ecrã da sala de audiências. Graham nunca se sentira tão próximo dos Jacobi como

se sentia dos Leeds. Naquela altura o filme sobre eles perturbou-o. Incomodava-o a consciência de que pensara nos Jacobi apenas como marcas de giz num chão ensanguentado. Havia as crianças dos Jacobi, sentadas no canto da mesa, a luz das velas de aniversário tremeluzindo nos seus rostos.

Por instantes Graham recordou-se do pingo de cera na

mesinha de cabeceira dos Jacobi, as manchas de sangue no canto do quarto dos Leeds. Alguma coisa ... Crawfard estava de regresso. - Metcalf disse-me para te perguntar ... - Não fales comigo!

358

Crawford não estava ofendido. Permaneceu imóvel e os seus pequenos olhos tornaram-se em fendas brilhantes.

O filme continuou, as suas luzes e sombras deslizando

pelo rosto de Graham. Quanto ao gato dos Jacobi. O Dragão sabia que era o gato dos Jacobi. Havia a questão da porta interior da cave. Havia a porta exterior da cave com o seu cadeado. O Dragão trouxera uma tesoura de corte.

O filme terminou. Finalmente a ponta saltou da bobina

agitando-se espasmodicamente no ar. Tudo aquilo que o Dragão precisava de saber estava contido nos dois filmes. Não fora exibido em público, não havia nenhum clube

de cinema, festival de fil...

Graham olhou para a caixa verde de aspecto familiar

Page 333: Thomas Harris   Dragão Vermelho

em que o filme dos Leeds fora recebido. Continha o nome e direcção deles. E ainda Gateway Filra, Saint Louis, Mo. 63102.

A sua mente sublinhou «Saint Louis», como o teria feito

com qualquer número de telefone que nunca tivesse visto. O que é que se passava com Saint Louis? Era um dos locais onde se podia comprar o Tattler na segunda-feira à noite, no mesmo dia em que saía da tipografia, o dia antes de Lounds ter sido raptado. - Oh, valha-me Deus - disse Graham. Agarrou os lados da cabeça com as mãos, como se pretendesse que os pensamentos não se escapassem. - Metcalf ainda está ao telefone? Crawford estendeu-lhe o telefone. - Byron, fala Graham. Ouça uma coisa, as bobinas do filme dos Jacobi que me enviou estavam em caixas?... Certo, certo, compreendo que não mas ia mandar. Há um ponto em que preciso desesperadamente de ajuda. Tem consigo os documentos dos movimentos bancários dos Jacobi? Okay, quero saber se há alguma parcela que se refira a revelação de filmes. Provavelmente emitido por um armazém. Se houver cheques para farmácias ou para armazéns de máquinas fotográficas, podemos descobrir onde

359

é que as transacções foram feitas. É urgente, Byron. Logo que possa explico-lhe. O FBI de Birmingham vai agora começar a passar em revista os armazéns. Se encontrar alguma coisa, informe-os imediatamente e logo a seguir a nós. Faz-me isso? Estupendo. O quê? Não, não o apresento à Lábios de Fogo. Os agentes do FBI de Birmingham inspeccionaram quatro armazéns de máquinas fotográficas antes de terem encontrado aquele onde os Jacobi tinham feito a transacção. O gerente disse que todos os filmes dos clientes eram enviados para revelação para um único sítio. Crawfard já vira o filme uma dúzia de vezes quando de Birmingham voltaram a telefonar. Recebeu a mensagem. Estranhamente formal,

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estendeu a mão para Graham. - É a Ga*teway - disse.

360

CAPÍTULO 43 Crawfard estava a dissolver uma alka-seItzer num copo de plástico quando a voz da hospedeira se fez ouvir no sistema de altifalantes do 727. - Passageiro Crawfard, por favor? Quando ergueu o braço, no seu lugar da coxia, ela

deslocou-se na sua direcção. _ Sr. Crawfard, importa-se de se deslocar ao cockpit, por favor? Crawfard demorou cerca de quatro minutos. Voltou a sentar-se no lugar ao lado de Graham. - O Dentuças esteve hoje em Nova Iorque. Graham franziu as sobrancelhas ao mesmo tempo que simulou uma dentada, fazendo o barulho correspondente. - Não. Limitou-se a dar umas pancadas na cabeça a

duas mulheres do Museu de Brooklin e agora ouve-me isto, comeu uma pintura. - Comeu-a?

É verdade, comeu. O Departamento de Obras Artísticas de

Nova Iorque atirou-se ao caso quando souberam o que ele comeu. Conseguiram duas impressões parciais no passe de plástico que lhe fora dado e transmitiram-nas a Price há pouco tempo. Quando Price as colocou em conjunto no ecrã trepou pelas paredes. Não há identificação, mas é o mesmo polegar que foi encontrado no globo ocular do miúdo dos Leeds.

361 - Nova Iorque - repetiu Graham. - Não quer dizer nada o facto de ter estado hoje em Nova Iorque. Pode continuar a trabalhar na Gateway. Se é esse o caso, hoje faltou ao trabalho. Torna as coisas mais fáceis. - O que é que ele comeu? - Um quadro intitulado O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. Dizem que foi pintado por

Page 335: Thomas Harris   Dragão Vermelho

William Blake. - O que é que há quanto às mulheres? - Bateu-lhes relativamente devagar com uma moca.

São jovens, pelo que se encontram no hospital apenas para observação. A mais velha teve de levar quatro pontos. Uma contussão ligeira. - Conseguiram fornecer uma descrição? - A mais nova foi capaz. Calmo, corpulento, cabelo

e bigode escuros estou convencido de que possivelmente usaria peruca. O guarda da porta disse a mesma coisa. Quanto à mulher mais velha, por aquilo que ela viu, o homem até podia ter usado um fato de coelho. - Mas não matou ninguém. - É estranho - disse Crawfard. - Seria mais compreensível se as tivesse apagado às duas, ficava com a garantia de um tempo de avanço e evitava que ambas pudessem fazer uma descrição dele. A Ciência do Comportamento telefonou para o hospital para falar com Bloom a este respeito. Sabes o que é que ele disse? Bloom respondeu que era possível que ele estivesse a tentar parar. 362

CAPÍTULO 44

Dolarhyde ouviu o ruído de descida dos flaps. As luzes de Saint Louis deslizavam lentamente por debaixo da asa negra. Debaixo dos seus pés o trem de aterragem rugiu com o escape do ar e fechou-se em posição com uma pancada seca. Rodou a cabeça de um lado para o outro para aliviar

a tensão no seu poderoso pescoço. Regressava a casa. Correra um grande risco e o prêmio que trazia era o

do poder para escolher. Podia escolher ficar com Reba McLane viva. Podia tê-la para falar com ela e podia ter a sua deslumbrante e inofensiva mobilidade na cama. Não precisava de temer a sua casa. Agora tinha o

Dragão no ventre. Podia ir para casa, dirigir-se para uma

Page 336: Thomas Harris   Dragão Vermelho

cópia do Dragão e rasgá-la, se lhe apetecesse. Não precisava de se preocupar pelo facto de sentir

amor por Reba. Se sentisse amor por Reba, podia atirar os Sherman para o Dragão, facilitando as coisas sob esse aspecto, voltar para Reba calmo e descontraído e tratá-la bem. Do aeroporto Dolarhyde telefonou para o apartamento dela. Não estava ainda em casa. Tentou a Baeder Chemical. A linha nocturna estava ocupada. Imaginou Reba a caminhar para a paragem do autocarro depois do trabalho, explorando o caminho com a bengala, a gabardina sobre os ombros.

363 Conduziu até ao laboratório de filmes através do tráfico de luzes nocturnas em menos de quinze minutos. Não estava na paragem do autocarro. Estacionou na rua que ficava da parte de trás da Baeder Chemical, junto à entrada que ficava mais próxima das câmaras escuras. Ficaria por ali esperando até que ela acabasse de trabalhar para a conduzir a casa. Sentia-se orgulhoso do seu novo poder que lhe permitia escolher. Tinha vontade de o usar. Havia coisas que podia ir pondo em ordem no seu gabinete enquanto esperava. Havia poucas luzes na Baeder Chemical. A câmara escura de Reba estava fechada. A luz por cima da porta não estava nem vermelha nem verde. Estava apagada. Tocou à campainha. Não houve resposta. Talvez tivesse deixado uma mensagem no seu gabinete. Ouviu passos no corredor. Dandridge, o supervisor da Baeder, passou pela área da câmara escura sem olhar para cima. Caminhava apressado, transportando debaixo do braço um maço espesso de dossiers de pessoal. Na testa de Dolarhyde surgiu-lhe uma pequena ruga. Dandridge estava a meio caminho do parque de estacionamento, dirigindo-se para o edifício da Gateway, quando Dolarhyde surgiu do edifício da Baeder e o começou a seguir. No parque de estacionamento encontravam-se duas carrinhas de entregas e meia-dúzia de carros.

Page 337: Thomas Harris   Dragão Vermelho

O Buick pertencia a Fisk, o director de pessoal da Gateway. O que é que eles estavam a fazer? Na Gateway não havia turno da noite. A maior parte

do edifício estava às escuras. Dolarhyde podia confirmar isso pelos sinais vermelhos indicadores da saída que se encontravam ao longo do corredor. Havia luzes do lado de lá da porta de vidro martelado do departamento de pessoal. Dolarhyde ouviu vozes, entre elas a de Dandridge e a de Fisk. Passos de mulher que se aproximava. A secretária de Fisk voltou a esquina no corredor à frente de Dolarhyde. Trazia registos da contabilidade. Estava cheia de pressa. Os registos eram

364

pesados, uma grande braçada deles. Bateu à porta do gabinete de Fisk com a ponta do pé. Will Graham abriu-lhe a porta. Dolarhyde estacou gelado na escuridão do hall. A

arma ficara na carrinha.

A porta do gabinete fechou-se de novo. Dolarhyde moveu-se rapidamente, os sapatos pisavam o chão sem qualquer ruído enquanto corria. Colou o rosto ao vidro da porta de saída e inspeccionou o parque de estacionamento. Um movimento qualquer sob os candeeiros de iluminação. Um homem que se desloca. Estava ao lado de uma das carrinhas de entrega e empunhava uma lanterna. Fazia qualquer coisa. Estava a cobrir de pó o espelho retrovisor exterior à procura de impressões digitais. Atrás de Dolarhyde, algures num dos corredores, ouvia--se os passos de um homem. Afasta-se da porta. Dobrou a esquina que se encontrava próximo dele e desceu as escadas em direcção à cave, encaminhando-se para a sala da fornalha, no outro lado do edifício. Pondo-se de pé numa das bancadas, conseguia espreitar pelas janelas que se encontravam por detrás das sebes, ao nível do pavimento exterior. Passou através de uma das aberturas e caiu em cima dos arbustos, apoiado nas mãos e nos joelhos, pronto a correr ou a lutar.

Page 338: Thomas Harris   Dragão Vermelho

Não houve qualquer movimento neste lado do edifício.

Pôs-se de pé, meteu uma mão no bolso e atravessou a rua. Correndo quando o passeio não estava iluminado, caminhando a passo quando os carros passavam por ele, deu uma longa volta circundando a Gateway e a Baeder Chemical. A sua carrinha estava estacionada junto ao passeio atrás da Baeder. Próximo dela não havia qualquer lugar onde se pudesse esconder. Atravessou a rua a correr e entrou, ao mesmo tempo que agarrava na mala.

Um carregador completo na automática. Meteu uma bala na

câmara e pousou a pistola na consola, cobrindo-a com uma camisola- Afastou-se conduzindo lentamente - não passando as luzes vermelhas -, dobrando a esquina devagar e mergulhando na confusão do tráfico.

365 Agora tinha de pensar, e era difícil pensar. Tinha de ser por causa dos filmes. Não sabia como,

mas Graham sabia a respeito dos filmes. Graham sabia onde. Não sabia quem. Se soubesse quem, não precisava dos registos de pessoal. Para que eram os registos da contabilidade? Por causa das faltas, era isso. Para comparar as faltas com as datas em que o Dragão atacara. Não, fora aos sábados, excepto no caso de Lounds. Faltas nos dias antes desses sábados; ele não deixaria passar isso em branco. E no entanto era um engano - a administração não arquivava os talSes do trabalho de compensação. Dolarhyde conduziu lentamente até ao Boulevard Lindberg, gesticulando com a mão livre, enquanto enunciava os diferentes pontos. Andavam à procura de impressões digitais. Não lhes dera qualquer hipótese com as impressões digitais - talvez com uma excepção quanto ao passe de plástico no Museu de Brooklin. Pegara nele cheio de pressa, praticamente pelas bordas. Eram capazes de ter uma impressão digital. Porquê procurar impressões digitais se não tinham nada para comparar?

Estavam a procurar impressões digitais naquela

Page 339: Thomas Harris   Dragão Vermelho

carrinha. Não havia tempo para ver se também estavam à procura de impressões digitais nos carros. Carrinha. O transporte de Lounds na cadeira de rodas. Fora uma indicação para eles. Ou talvez alguém em Chicago tivesse visto a carrinha. Na Gateway havia uma quantidade enorme de carrinhas, carrinhas privadas, carrinhas de entrega.

Não, Graham sabia apenas que ele tinha uma carrinha.

Graham sabia porque sabia. Graham sabia. Graham sabia. O filho da mãe era um monstro. Também iam tirar as impressões digitais de toda a

gente na Gateway e na Baeder. Se não o identificassem esta noite, amanhã faziam-no de certeza. Tinha de fugir o resto da vida com o seu rosto estampado em todos os boletins e avisos, nos correios e nas esquadras. Estava tudo a desmoronar-se. Diante deles era pequeno e vulnerável.

366

- Reba - chamou em voz alta. Agora Reba não conseguia

salvá-lo. Estavam a aproximar-se dele e não passava de uma lebre indefesa ... - LAMENTAS O FACTO DE ME TERES TRAíDO? A voz do Dragão rugiu vinda de dentro dele, profunda como a pintura aos bocados que se encontrava nas suas tripas. Não traí. Apenas queria escolher. Chamaste-me ... - Dã-ME O QUE QUERO E SALVO-TE. - Não, vou fugir. - Dã-ME O QUE QUERO E OUVIRãS O ESTALO DA ESPINHA DE GRAHAM A PARTIR-SE. Não. - ADMIRA AGORA O QUE FIZESTE HOJE. ESTAMOS PRóXiMO. PODEMOS VOLTAR A SER UM Só. SENTES-ME DENTRO DE TI? SENTES, NãO SENTES? - Sim. - E SABES QUE EU TE POSSO SALVAR. SABES QUE TE VãO MANDAR PARA UM LUGAR PIOR DO QUE O DO IRMãO BUI)DY. Dã-ME O QUE EU QUERO E TERãS A LIBERDADE. - Não. - VãO MATAR-TE. VAIS CONTORCER-TE NO CHãO. - Não. - QUANDO TIVERES PARTIDO ELA IRã FODER COM OUTROS,

ELA ...

Não! Cala-te.

Page 340: Thomas Harris   Dragão Vermelho

ELA IRã FODER COM OUTROS, COM GENTE BONITA, IRã pôr a sua...

- Pára. Cala-te. - ANDA MAIS DEVAGAR E Jã NãO DIGO MAIS NADA. Dolarhyde aliviou o pé do acelerador. - ASSIM ESTã BEM. Dã-ME O QUE EU QUERO E ISSO NãO

VAI ACONTECER. Dã-MO, E A PARTIR DE AGORA DEIXO-TE SEMPRE ESCOLHER, PODERãS ESCOLHER SEMPRE E FALARãS CORRECTAMENTE, QUERO QUE FALES CORRECTAMENTE, ABRANDA, ASSIM ESTã BEM, ESTãS A VER A ESTAÇãO DE SERVIÇO? ENCOSTA ALI E DEIXA-ME FALAR CONTIGO ...

367 CAPÍTULO 45

Graham saiu do gabinete e por momentos repousou os olhos no ambiente de luzes suaves do hall. Estava inquieto, enervado. Tudo isto estava a demorar demasiado tempo. Crawford estava a passar em revista tão depressa

quanto podia as fichas dos trezentos e tal empregados da Gateway e da Baeder - o homem era espantoso neste tipo de trabalho -, mas o tempo continuava a correr e seria impossível manter o segredo das diligências por muito mais tempo. Crawfard. reduzira a um mínimo o grupo de trabalho

da Gateway. «Queremos apanhá-lo e não espantá-lo», dissera-lhes Crawford. «Se conseguirmos identificá-lo esta noite, podemos apanhá-lo fora da fábrica, talvez em casa ou nas redondezas.»

O Departamento de Polícia de Saint Louis estava a

colaborar. O tenente Fogel dos Homicídios de Saint Louis chegou discretamente num carro sem marca, acompanhado de um sargento. Trazia uma máquina de fax. Ligada a um dos telefones da Gateway, dentro de momentos a máquina de fax estaria a transmitir a lista de empregados simultaneamente para a Secção de Identificação do FBI em Washington e para o Departamento de Veículos Automóveis do Missouri. Em Washington os nomes seriam verificados pelos registos de impressões digitais civis e criminais. Nomes de empregados da Baeder com

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estatuto especial de segurança eram assinalados para um manuseamento mais rápido.

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O Departamento de Veículos Automóveis procuraria os proprietários de carrinhas. Só quatro empregados estavam presentes - o director

de pessoal, Fisk, a secretária de Fisk, Dandridge, da Baeder Chemical, e o chefe da contabilidade da Gateway. Os telefones não foram usados para convocar os empregados para esta reunião nocturna na fábrica a uma hora tão tardia. Foram enviados agentes às residências, transmitindo-lhes a mensagem pessoalmente. «Olhem-nos bem de frente antes de lhes dizerem por que é que precisam deles», dissera Crawford. «E depois disso não os deixem usar o telefone. Estas notícias espalham-se rapidamente.»

Tinham contado com uma rápida identificação dos dentes.

Nenhum dos quatro empregados os reconheceu. Graham percorreu com o olhar os corredores iluminados com as débeis luzes vermelhas dos sinais de saída. Porra, não conseguia sentir-se tranquilo! Que mais é que ele podia fazer durante a noite? Crawfard pedira para que a mulher do Museu de Brooklin Miss Harper - lhe fosse enviada no primeiro avião logo que estivesse em condições de viajar. Provavelmente seria na manhã seguinte. O Departamento de Polícia de Saint Louis tinha uma carrinha estupenda para missões de vigilância. Podia sentar-se nela e observar os empregados que entravam. Se não conseguissem identificá-lo ainda durante a noite, todos os vestígios da operação seriam removidos da Gateway antes de o trabalho começar na manhã seguinte. Graham não se iludia - tinham tido sorte em terem conseguido um dia completo para trabalhar antes que a notícia se espalhasse para fora da Gateway. O Dragão estaria à espreita de qualquer coisa suspeita. E desapareceria.

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CAPÍTULO 46

Uma ceia tardia com Ralph Mandy parecera-lhe apropriada. Reba McLane sabia que mais tarde ou mais cedo era preciso dizer-lhe e não gostava de deixar assuntos pendentes.

Presentemente estava convencida de que Mandy calculava o

que estava para acontecer quando ela insistira nesta saída. Disse-lhe no carro quando ele a trazia de regresso a

casa: que não era grave, que tinha passado bons momentos com ele e que desejava continuar a ser sua amiga, mas que presentemente se encontrava envolvida com alguém. Era possível que se sentisse levemente ferido, mas por outro lado também se sentia aliviado. Era extraordinário neste gênero de coisas, pensou ela.

Quando chegaram à porta dela, não pediu para entrar.

Pediu para lhe dar um beijo de adeus, ao que ela acedeu alegremente. Abriu-lhe a porta e entregou-lhe as chaves. Esperou até que ela tivesse entrado e fechado a porta à chave.

Quando se voltou, Dolarhyde disparou-lhe um tiro na

garganta e dois no peito. Três plops da pistola com silenciador. Uma scooter faz mais ruído. Dolarhyde ergueu com facilidade o corpo de Mandy, depositou-o entre os arbustos e a casa e deixou-o aí ficar.

Para Dolarhyde, o ter visto Reba a beijar Mandy fora pior

do que uma punhalada. Mas depois do que se passara, a dor desvaneceu-se completamente.

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Ainda se parecia e falava como Francis Dolarhyde - o Dragão era um actor extraordinário; fazia muito bem o papel de Dolarhyde. Reba estava a lavar o rosto quando ouviu a campainha da porta. Tocou quatro vezes antes de ela ter conseguido chegar à porta. Tocou no cadeado, mas não o tirou. - Quem é?

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- Francis Dolarhyde. Abriu a porta ainda com o cadeado colocado. - Diga de novo. - Dolarhyde. Sou eu. Sabia que era ele. Tirou o cadeado. Reba não gostava de surpresas. - Julguei que tinha dito que me telefonava, D. - Eu sei. Mas acredite que isto é uma emergência - disse, comprimindo-lhe o pano embebido em clorofórmio contra o rosto enquanto entrava em casa. A rua estava vazia. A maior parte das casas estava

às escuras. Transportou-a para a carrinha. Do pátio viam-se os pés de Ralph Mandy que sobressaíam dos arbustos. Dolarhyde já não se preocupava com eles. Acordou durante a viagem. Estava deitada de lado, o rosto encostado ao tapete cheio de pó da carrinha, o ruído metálico da transmissão a ecoar-lhe junto ao ouvido. Tentou levar as mãos ao rosto. O movimento fez-lhe comprimir o peito. Os antebraços estavam amarrados. Tacteou-os com o rosto. Estavam amarrados dos cotovelos até aos pulsos com qualquer coisa que parecia ser uma tira de tecido macio. As pernas estavam amarradas da mesma maneira, dos joelhos até aos tornozelos. Tinha qualquer coisa na boca.

O quê... o quê?... D. estava à porta e a seguir...

Lembrava-se de ter desviado o rosto e da terrível força dele. Oh, meu Deus ... o que era aquilo?... D. encontrava-se à porta e logo a seguir encontrava-se semiasfixiada com qualquer coisa fria, tentava desviar o rosto, mas havia aquela enorme força que lhe imobilizava a cabeça.

371 Agora estava na carrinha de D. Reconheceu as ressonâncias metálicas. A carrinha estava em movimento. O medo invadiu-a. O seu instinto dizia-lhe para se manter calma, mas os fumos invadiam-lhe a garganta, o clorofórmio e a gasolina. Vomitou sobre a mordaça. A voz de Dolarhyde. - Já falta pouco. Sentiu que faziam uma curva e agora rolavam sobre saibro, ouvindo as pedras que ressaltavam nos

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guarda-lamas e na parte inferior do pavimento do carro. É louco. Tudo bem. É isso: louco. «Louco» é uma palavra que provoca sempre um sentimento de medo. O que é que se passava? Ralph Mandy. Devia tê-lo visto à porta de casa. Foi o que desencadeou tudo. Meu Deus, fazei que tudo se componha. Uma vez no Instituto Reiker um homem tentara esbofeteá-la. Ela estava quieta e ele não conseguia encontrá-la - também era cego. Mas este podia ver bem de mais. Prepara as coisas. Prepara-te para dar uma explicação. Meu Deus, podia ter-me morto com esta mordaça na boca. Meu Deus, podia ter morrido sem que ele fosse capaz de compreender o que eu estava a dizer. Prepara-te. Prepara-te e não digas coisas do gênero, de «Ei!». Diz-lhe que pode reconsiderar e que não há problema. Que não dizes nada. Procura ser passiva, tanto quanto te for possível. Se não conseguires ser passiva, espera até conseguires encontrar-lhe os olhos. A carrinha parou e oscilou quando ele saiu. A porta lateral que desliza quando a abrem. No ar o cheiro de relva e de pneus aquecidos. Grilos. Dirigia-se para a carrinha. Quando ele lhe tocou, instintivamente tentou libertar-se da mordaça e afastou o rosto. As pancadinhas suaves no ombro não impediram que deixasse de tremer. Mas uma bofetada brutal conseguiu o resultado esperado. Tentou falar mesmo com a mordaça. Pegou nela e transportou-a. Os passos que ecoavam na rampa. Agora sabia onde é que estava. A casa dele. Em que ponto da casa? + direita o tiquetaque

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do relógio. Carpeta e a seguir soalho. O quarto onde tinham feito amor. Sentiu que os braços a desciam, sentiu a cama por debaixo dela.

Tentou falar com a mordaça. Ele ia-se embora. Ruídos lá

fora. O bater da porta da carrinha. Aí vem ele. Pousando qualquer coisa no chão: recipientes metálicos. Sentiu o cheiro de gasolina. - Reba. - Não havia qualquer problema com a voz de

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D., mas estava calmo de mais. Terrivelmente calmo e estranho. Reba, não sei o que ... lhe hei-de dizer. Sentiu-se tão bem e não imagina o que eu fiz por si. E estava errado, Reba. Fez que eu me tornasse fraco e em seguida magoou-me. Ela tentou falar com a mordaça. - Se eu a desamarrar e deixar que se sente, mantem-

se calma? Não tente fugir. Posso apanhá-la. Mantem-se calma? Virou a cabeça na direcção da voz e acenou. Um toque de aço frio contra a pele, o roçar de uma

faca através de tecido e os braços estavam livres. Agora as pernas O rosto estava húmido quando lhe tirou a mordaça. Cuidadosamente e devagar sentou-se na cama. Faz o melhor que puderes. - D., não fazia ideia de que se preocupava tanto comigo. Sinto-me contente por dar conta dos seus sentimentos, mas assus tou-me com isto. Não houve resposta. Ela sabia que ele estava ali. - D., foi o velho idiota do Ralph Mandy que o irritou? Viu-o na minha casa? Foi isso, não foi? Estava a dizer-lhe que não o queria ver mais. Porque é consigo que quero estar. Nunca mais volto a ver Ralph. , - Ralph morreu - disse Dolarhyde.

- Acho que não deve ter gostado lá muito.

Nunca o magoei, D., nunca o quis fazer. Podemos ser amigos e foder, passar um bom bocado e esquecer isto tudo.

- Cale-se - disse ele calmamente. - Vou dizer-lhe uma

coisa. A coisa mais importante que alguma vez ouviu. Tão importante como o Sermão da Montanha. Tão importante como os Dez Mandamentos. Percebeu? Fantasia. Espero que esteja a assumir o papel de Jesus. - Sim, D. Eu ... - Cale-se. Reba, em Birmingham e Atlanta passaram-

se coisas notáveis. Sabe de que é que estou a falar? Ela abanou a cabeça negativamente. - Foi muito falado nas notícias. Dois grupos

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de pessoas foram mudados. Leeds e Jacobi. A polícia pensa que eles foram assassinados. Agora já sabe? , Começou a abanar a cabeça. E de repente sabia e lentamente fez um aceno de assentimento com a cabeça. - Sabe como é que chamam ao ser que visitou essa gente? Pode dizer. - O Dentu... Uma mão agarrou-lhe o rosto impedindo que continuasse a falar.

- Pense cuidadosamente e responda como deve ser. - É Dragão qualquer coisa. Dragão ... Dragão Vermelho. Estava próximo dela. Sentia a sua respiração no rosto. - EU SOU O DRAGãO. Deixando-se cair para trás, arrasada pelo volume e pelo tom terrível da voz, embateu contra a cabeceira da cama.

- O Dragão quere-a, Reba. Sempre quis. Eu não queria

entregá-la a ele. Hoje fiz uma coisa para que ele não pudesse tê-la. E estava errado. Este era D., ela podia falar com D. - Por favor. Por favor não deixe que ele me tenha.

Não era capaz disso, por favor não deixe que isso aconteça. Sou para si. Guarde-me para si. Gosta de mim, sei que gosta. - Ainda não decidi. Talvez não consiga evitar o ter de a entregar a ele. Não sei. Vou verificar se faz as coisas como eu lhe digo. É capaz disso? Posso contar consigo? - Vou tentar. Tentarei. Não me meta muito medo ou

então não sou capaz. Levante-se, Reba.'Ponha-se de pé junto da cama. Sabe em que parte do quarto é que está?

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Ela aquiesceu com um aceno de cabeça. - Sabe em que parte da casa é que está, não sabe? Deu uma volta à casa enquanto eu estava a dormir, não deu? - A dormir?

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- Não se faça de estúpida. Quando passámos a noite aqui. Andou pela casa, não andou? Encontrou alguma coisa esquisita? Qualquer coisa que tenha levado consigo e que tenha mostrado a alguém? Fez isso, Reba? - Limitei-me a ir até lá fora. Estava a dormir e fui até lá fora. Palavra. - Então sabe onde fica a porta principal, não sabe? Ela acenou com a cabeça. - Reba, apalpe o meu peito. Estenda as mãos lentamente. Tento os olhos? Os polegares e os dedos tocaram ao de leve de cada

lado da traqueia. - Não faça o que está a pensar ou dou cabo de si. Apalpe apenas o meu peito. Junto à garganta. Sente a chave na corrente? Tire-a pela cabeça. Com cuidado ... é isso. Agora vou ver se posso confiar em si. Vá fechar a porta da frente, feche-a à chave e volte a trazer-me a chave. Vá, siga. Espero aqui, não saio daqui. Não tente correr porque a

apanho. Agarrou a chave, a corrente a bater-lhe na coxa. Era

difícil deslocar-se de sapatos, mas não os tirou. O tiquetaque do relógio ajudou. Carpeta e a seguir soalho, carpeta de novo. A curva

do sofá. Segue para a direita. Qual é a minha melhor atitude? Qual? Continuar a

fingir ou atirar-me de caras? Será que os outros tambémfingiram? A respiração arfante fez que sentisse uma tontura. Não te deixes ir abaixo. Não morras. Tudo depende de a porta estar ou não aberta. Descobre onde é que ele está. - Estou a ir bem? - Sabia que estava. - São cerca de mais cinco degraus. - Não havia dúvida de que a voz vinha do quarto.

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Sentiu uma brisa no rosto. A porta estava meia aberta. Manteve o corpo entre a porta e a voz atrás dela. Introduziu a chave no orifício por debaixo do punho. Do lado de fora. Agora. Sair rapidamente e fechar a porta, rodando a chave. Descer a rampa, sem bengala,

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tentando lembrar-se onde é que a carrinha estava, correndo. Correndo. Em direcção a quê a uma sebe - agora gritando. Gritando: «Socorro. Socorro. Socorro, socorro.» Correndo sobre o cascalho. Muito distante o claxon de um camião. A auto-estrada ficava para aquele lado, um andar apressado, um passo quase que a correr até chegar a correr, tão rápido quanto podia, mudando de direcção quando sentia relva em vez de cascalho, seguindo pelo caminho fora.

Atrás dela passos pesados que se aproximavam rapidamente,

correndo no cascalho. Parou e pegou num punhado de cascalho, esperou até que ele se aproximasse e atirou-lhe as pedras, sentiu que elas batiam nele. Um empurrão no ombro fez que ela desse uma volta, um braço enorme debaixo do queixo, à volta do pescoço, apertando, apertando, o sangue que latejava nos ouvidos. Deu um pontapé para trás, atingiu uma canela ao mesmo tempo que tudo ficava cada vez mais calmo.

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CAP+TULO 47

Em duas horas ficou pronta a lista de empregados brancos do sexo masculino com idades entre vinte e cinquenta anos que possuíam carrinhas. Era uma lista com vinte e seis nomes. O DMV de Missouri informou sobre a cor dos cabelos

a partir das cartas de condução mas este aspecto não foi utilizado como factor de exclusão; o Dragão podia usar uma peruca. Miss Trillman, a secretária de Fisk, fez cópias da lista e distribuiu-a por toda a gente. O tenente Fogel estava a acabar de ler todos os nomes da lista quando o beeper começou a tocar. Fogel telefonou para a sede da polícia, mantendo

uma conversa em frases curtas, e em seguida colocou a mão no micro. - Sr. Crawford ... Jack, um indivíduo branco, do

sexo masculino, Ralph Mandy, trinta e oito anos, foi encontrado na Cidade Universitária há alguns

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minutos, morto a tiro, fica a meio da cidade, próximo da Universidade de Washington, foi no jardim de uma casa ocupada por uma mulher de nome Reba McLane. Os vizinhos dizem que ela trabalha para a Baeder. A porta dela não está fechada à chave e não está ninguém em casa.

Dandridge! - chamou Crawford. - Reba McLane, o que é que se passa com ela? - Trabalha na câmara escura. É cega. É de um lugar qualquer no Colorado...

377 - Conhece um tipo chamado Ralph Mandy? - Mandy? - disse Dandridge. - Randy Mandy? - Ralph Mandy, ele trabalha aqui? Uma verificação da lista demonstrou que não trabalhava. - Talvez seja uma coincidência - disse Fogel. - Talvez - respondeu Crawfard. - Espero que não tenha acontecido nada a Reba -

disse Miss Trillinan. - Conhece-a? - perguntou Graham. - Falei com ela várias vezes. - O que é que há com Mandy? - Não o conheço. O único homem com quem a vi, foi quando ela entrou na carrinha do Sr. Dolarhyde. - A carrinha do Sr. Dolarhyde, Miss Trillman? Qual

é a cor da carrinha do Sr. Dolarhyde? - Deixe ver, castanho-escuro ou talvez mesmo preto. - Onde é que o Sr. Dolarhyde trabalha? - perguntou Crawford.

É supervisor de produção - respondeu Fisk. Onde é que fica o seu escritório? Mesmo ao fundo do hall. Crawford voltou-se para falar com Graham, mas este

já estava em movimento. O gabinete do Sr. Dolarhyde estava fechado à chave.

Uma chave-mestra abriu a porta. Graham entrou e acendeu a luz. Ficou imóvel à entrada enquanto os seus olhos iam percorrendo o compartimento. Estava extremamente limpo. Não se viam nenhuns artigos pessoais. A estante só

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continha manuais técnicos. O candeeiro de mesa encontrava-se do lado esquerdo

da cadeira, pelo que se podia concluir que era dextro. Era preciso uma impressão do polegar esquerdo de um homem dextro.

- Vamos verificar a prancheta dele - disse a Crawford. De

certeza que usa o polegar esquerdo sobre a mola. Tinham começado a revistar as gavetas quando a agenda de secretária chamou a atenção de Graham. Folheou as páginas até

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voltar ao dia de sábado, 28 de Junho, a data do assassínio dos Jacobi. O calendário não estava marcado na quinta e sexta

antes desse fim-de-semana. Voltou a folhear até chegar à última semana de Julho. A quinta e sexta estavam em branco. Na quarta havia uma nota que dizia: «Am 552 3:45-6:15.» Graham copiou a anotação. - Tenho de saber para onde é que vai este voo.

- Deixa-me fazer isso, continua tu aqui com o serviço

disse Crawford. Dirigiu-se para um telefone do outro lado do hall. Graham estava a olhar para um tubo de fixador de dentaduras que se encontrava no fundo da gaveta da secretária, quando Crawford o chamou da porta. - Vai para Atlanta, WllI. Vamos apanhá-lo.

Lutou para se pôr de pé; mãos enormes nos seus ombros mantiveram-na na mesma posição. - Deixe-se estar sentada e quieta ou não consigo

afastá-lo de si - disse-lhe Dolarhyde.

CAP+TULO 48

ãgua fria no rosto de Reba, que lhe escorria também dos

cabelos. Entontecida. Qualquer coisa dura debaixo dela que a incomodava. Voltou a cabeça. Madeira debaixo dela. Uma toalha molhada e fria limpou-lhe o rosto.

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- Sente-se bem, Reba? - A voz de Dolarhyde estava calma. Tentou emitir um som. - Uhhhh. - Respire fundo. - Passou-se um minuto. - Acha que

se consegue pôr de pé? Tente pôr-se de pé. Conseguiu ficar de pé com o braço dele à volta dela. Sentiu o estômago às voltas. Ele esperou até que o espasmo lhe tivesse passado. - Suba a rampa. Lembra-se onde está? Ela acenou com a cabeça. - Tire a chave da porta, Reba. Entre. Agora feche a porta e pendure-me a chave ao pescoço. óptimo. Vamos só verificar se está fechada. Ouviu o ruído metálico do trinco. - Está bom. Agora vá. para o quarto, sabe o caminho.

Tropeçou e caiu de joelhos, a cabeça curvada. Ergueu-a

pelos braços e amparou-a até ao quarto. - Sente-se numa cadeira. Ela sentou-se. - Dáma agora.

380

Lutou para se pôr de pé; mãos enormes nos seus ombros mantiveram-na na mesma posição. - Deixe-se estar sentada e quieta ou não consigo

afastá-lo de si - disse-lhe Dolarhyde. A sua memória estava a regressar. Não queria. - Por favor, tente - disse-lhe ela. - Reba, para mim acabou tudo. Estava de pé a fazer qualquer coisa. O cheiro a gasolina era intenso. - Estenda a mão. Apalpe isto. Não o agarre, apalpe. Sentiu qualquer coisa que se parecia com narinas de aço, gorduroso da parte de dentro. O cano de uma arma. - É uma caçadeira, Reba. Calibre 12 Magnum. Sabe qual é o efeito? Ela acenou com a cabeça negativamente. - Deixe cair a mão. - A extremidade fria do cano apoiou-se-lhe na cavidade da garganta. - Reba, quem me dera ter confiado em si. Eu queria confiar em si. A voz soava como se estivesse quase a chorar. -

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Foi tão bom. Estava a chorar.

- Para mim também, D. Adorei. Por favor, não me

magoe

380

Está tudo acabado para mim. Não posso deixá-la para ele. Sabe o que ele lhe fazia? - Agora gritava. - Sabe o que ele lhe fazia? Mordia-a até morrer. É melhor se for comigo. Ouviu o raspar de um fósforo, sentiu o cheiro de enxofre, ouviu um whoosh. Calor no quarto. Fumo. Fogo. A coisa de que tinha mais medo. Fogo. Qualquer coisa era sempre melhor do que isso. Esperava que o primeiro tiro a matasse. Os músculos das pernas estavam tensos, preparada para correr.

- Oh, Reba, não consigo ficar aqui a vê-la morrer queimada. A ponta do cano deixou de estar apoiada na garganta. Ambos os canos dispararam ao mesmo tempo quando ela caiu de joelhos.

381 Os ouvidos zumbiam-lhe, julgava que tinha sido atingida, julgava que estava morta, sentiu mais do que ouviu o baque surdo no chão. Agora era o fumo e o crepitar das chamas. Fogo. O

fogo fez-lhe recuperar a noção da realidade. Sentiu calor nos braços e no rosto. Para fora. Pôs-se de pé, tropeçando num dos pés da cama ao mesmo tempo que se sentia sufocada. «Em caso de estares envolvida por fumo, caminha devagar», tinham-lhe dito. Não corras, podes tropeçar em qualquer coisa e morrer. Estava fechada por dentro. Fechada por dentro. Caminhando, arrastando-se passo a passo, os dedos aflorando o solo, encontrou pernas - a outra extremidade - encontrou cabelo, uma pala de cabelo, pôs a mão em qualquer coisa mole por debaixo do cabelo. Uma polpa indefinível, esquírolas de ossos e um olho no meio daquilo tudo.

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A chave à volta do pescoço ... depressa. Ambas as mãos na corrente, as pernas debaixo dela, puxa. A corrente partiu e ela caiu para trás, levantando-se logo em seguida. Voltou-se confusa. Tentando sentir, tentando ouvir acima do crepitar das chamas com os ouvidos entorpecidos. Lado da cama ... que lado da cama? Tropeçou no corpo, tentou escutar. Bong, bong, o bater das horas do relógio. Bong, bong, na direcção da sala de estar. Bong, bong, vira à direita. O fumo irritava-lhe a garganta. Bong, bong. Ali estava a porta. Debaixo do punho. Faz rodar o fecho. Abre a porta. Ar. Desce a rampa. Caída na relva. De novo apoiada nas mãos e nos joelhos, a rastejar. Pôs-se de joelhos para bater palmas, ouviu o eco da casa e rastejou no sentido oposto, respirando fundo, até conseguir pôr-se de pé, caminhar, correr até tropeçar em qualquer coisa, correr de novo.

382

CAPÍTULO 49

Localizar a casa de Francis Dolarhyde não foi coisa fácil. A direcção registada na Gateway era uma simples caixa postal em Saint Charles. O próprio departamento do xerife de Saint Charles teve de verificar um mapa de serviço do gabinete da companhia de electricidade para que pudesse confirmar. O departamento do xerife deu as boas-vindas ao SWAT

de Saint Louis do outro lado do rio e a caravana seguiu tranquilamente pela auto-estrada n.' 94. Um ajudante sentado ao lado de Graham no carro da frente indicava o caminho. Crawford, sentado no banco de trás, espreitava por entre os dois, enquanto chupava qualquer coisa que tinha num dente. Deparou-se-lhes tráfico ligeiro no extremo norte de Saint Charles, uma Pickup cheia de crianças, um autocarro Greyhound, um camião com reboque. Viram o brilho depois de terem passado o limite norte da cidade. - É ali! - disse o ajudante. - É o local! Graham acelerou. O brilho tornava-se mais intenso e

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oscilante enquanto deslizavam pela auto-estrada. Crawford fez estalar os dedos, pedindo o microfone. - A todas as unidades, é a casa dele que está a arder. Tenham cuidado. Pode vir a sair. Xerife, vamos montar aqui uma barragem na estrada, se estiver de acordo.

383 Uma espessa coluna de faúlhas e de fumo erguia-se a sudeste sobre os campos, espalhando-se agora por cima deles. - Aqui - disse o ajudante - vira para este caminho

de cascalho. Foi nessa altura que viram a mulher, em silhueta sobre o fundo de chamas, viram-na ao mesmo tempo que ela os ouviu e ergueu os braços na direcção deles. Foi nessa altura que o grande incêndio explodiu na vertical e a toda a volta, vigas a arder e molduras de janelas descrevendo arcos em câmara lenta na direcção da noite, a carrinha em chamas deitada de lado, o alaranjado das árvores em chamas terminando de repente numa explosão e em escuridão. O solo estremeceu quando o sopro da explosão fez oscilar os carros da polícia. A mulher estava estendida na estrada de rosto para baixo. Crawford, Graham e os ajudantes saíram correndo para ela enquanto choviam centelhas na estrada, enquanto outros seguiam em frente empunhando as suas armas. Crawfard recebeu Reba dos braços de um ajudante, que lhe sacudia as faúlhas dos cabelos. Segurou-lhe os braços, o rosto próximo do dela, vermelho pela luz que as chamas projectavam. - Francis Dolarhyde - disse ele. Abanou-a com suavidade. - Francis Dolarhyde, onde é que ele está? - Está ali - disse ela erguendo a mão enfarruscada

na direcção do calor e deixando-a cair logo em seguida. - Está ali dentro, morto. - Tem a certeza disso? - Crawford fitou os seus olhos sem vida.

- Eu estava com ele. - Conte-me por favor.

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- Disparou na própria cara. Coloquei as minhas mãos no rosto. Ateou fogo à casa. Disparou contra ele. Pus as mãos no rosto dele. Estava no chão. Coloquei as minhas mãos no rosto, e agora, posso sentar-me? - Pode - disse Crawfard. Regressou com ela ao assento da parte de trás do carro da polícia. Colocou o braço à volta dela e deixou que chorasse no seu ombro.

384

Graham ficou de pé no meio da estrada a observar as

chamas até o rosto ficar corado e coberto de suor. Os ventos dispersavam o fumo que ocultava parcialmente a lua. 385 CAPÍTULO 50

O vento da manhã era morno e húmido. Dispersava farrapos de nuvens sobre as chaminés enegrecidas do que tinha sido a casa de Dolarhyde. Um resto de fumo evolava-se sobre os campos. Algumas gotas de chuva atingiram brasas que explodiram com um puff em vapor e cinzas. Um carro dos bombeiros parou próximo com a luz giratória ainda em movimento. S. F. Aynesworth, chefe da secção de Explosivos do FBI, permaneceu junto de Graham, exposto à aragem que soprava das ruínas, enquanto se servia de café de um termo. Aynesworth franziu as sobrancelhas quando o chefe de bombeiros começou a inspeccionar as cinzas com um ancinho. - Graças a Deus que ainda está muito quente para ele ali dentro - disse ele pelo canto da boca. Tinha-se mostrado cuidadosamente cordial com as autoridades locais. Com Graham falou abertamente. - Tenho de revirar isto, porra! Dentro em breve este sítio vai estar pior do que o estupor de uma criação de perus quando os ajudantes especiais e outra gente do mesmo gênero acabarem de brincar aos detectives. Estarão completamente em baixo para que possam prestar alguma ajuda.

Aynesworth teve de se arranjar com o material

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que

transportara de avião até o seu adorado carro

antiexplosivos ter chegado de Washington. Tirou da

mala de um carro-patrulha um saco desbo-

386

tado dos Marine e desembrulhou a sua roupa interior Nomex, botas de amianto e fato-macaco. - Qual foi o aspecto quando aquilo foi pelos ares, Will? - Umflash de uma luz muito intensa que se desvaneceu logo a seguir. A seguir parecia mais escuro na base. Uma data de coisas atiradas pelos ares, caixilhos de janelas, partes planas do telhado e madeiros a arder que saltavam de todos os lados e iam cair nos campos em volta. Houve uma onda de choque e o sopro a seguir. Soprou de dentro para fora e depois voltou a sugar. Quase que deu a ideia de que tinha apagado o incêndio. - Quando as coisas estouraram estava a arder bem? - Estava, as chamas saíam pelo telhado e pelas janelas do andar de cima e do rés-do-chão. As árvores também estavam a arder. Aynesworth recrutou dois bombeiros locais para ficarem de vigia com uma mangueira e um outro, protegido com amianto, ficou próximo, equipado com uma linha de tracção, para o caso de qualquer coisa lhe cair em cima. Limpou as escadas da cave que agora se encontrava a céu aberto e desceu para o amontoado de madeiras enegrecidas. Só conseguia estar alguns minutos de cada vez. Fez oito viagens.

Depois de todo o esforço que fez, a única coisa que

conseguiu foi um bocado de metal plano, mas parecia que o achado o deixara feliz. Corado e banhado em suor, despiu o fato de amianto e sentou-se na borda do carro de bombeiros com o casaco de um dos elementos sobre os ombros. Colocou a peça de metal no solo e soprou a camada

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de cinza que ela tinha. - Dinamite - disse a Graham. - Veja aqui, está a

ver o entalhe no metal? Isto faz parte da pega direita de uma arca ou de um puxador de um armário. É o que provavelmente deve ser. Dinamite num armário. No entanto não estourou na cave. Para mim parece-me que terá acontecido no rés-do-chão. Está a ver aquele corte na árvore, onde foi atingida pelo tampo da mesa de mármore? Explodiu lateralmente. O dinamite estava

387 dentro de qualquer coisa que o preservou do fogo durante algum tempo. E quanto aos restos? É capaz de não haver grande coisa, mas pelo menos sempre ficaram vestígios. Temos montes de buscas para fazer. Havemos de o encontrar. Entrego-lho num saquinho.

No Hospital DePaul, Reba McLane adormecera finalmente com um sedativo, pouco antes da madrugada. Quis que a mulher polícia se sentasse na cama perto dela. Várias vezes durante a manhã acordou e estendeu o braço à procura da mão da agente. Quando pediu o pequeno-almoço foi Graham que lho trouxe. Qual a atitude a adoptar? +s vezes era mais fácil

para eles se agissem de uma forma impessoal. Com Reba McLane achou que não devia ser assim. Disse-lhe quem era. - Conhece-o? - perguntou à mulher polícia. Graham. apresentou as suas credenciais à agente. Ela não precisava delas. - Sei que é um agente federal, Miss McLane. Finalmente contou-lhe tudo. Tudo o que se passara durante o tempo que estivera com Francis Dolarhyde. Tinha a garganta inflamada e parava frequentemente para chupar gelo. Ele fez-lhe as perguntas desagradáveis e ela foi-

lhe respondendo à medida que elas surgiam, fazendo-lhe sinal a certa altura para que saísse enquanto a mulher polícia segurava a bacia para ela vomitar o

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pequeno-almoço. Quando regressou ao quarto estava pálida, o rosto suado e brilhante.

Fez-lhe a última pergunta, após o que fechou o bloco de

apontamentos. - Não volto a fazê-la passar por uma coisa destas - disse ele - mas gostaria de poder voltar a passar por aqui. Só para lhe dizer «olá» e ver como é que está. - Como é que podia ajudar?, alguém como eu?

388

Pela primeira vez viu-lhe lágrimas e verificou onde ela fora mais atingida. - Dá-nos licença por um minuto, minha senhora? -

disse Graham à mulher polícia. Pegou na mão de Reba. - Olhe uma coisa. Havia montes de coisas erradas com Dolarhyde, mas não há nada de errado consigo. Disse que era amável e atencioso para consigo. Acredito. Foi o que conseguiu retirar dele. Afinal de contas não conseguia matá-la nem conseguia vê-la morrer. As pessoas que estudam este tipo de coisas dizem que ele estava a tentar parar. Porquê? Porque você o ajudou. Possivelmente isso terá salvo algumas vidas. Não conviveu com um bandalho. Conviveu com um homem que tinha um bandalho às costas. Não há nada de errado consigo, miúda. Se se deixa convencer de uma coisa dessas é tolinha. Dentro de um dia ou dois passo por aqui para a ver. Passo a vida a olhar para polícias e de vez em quando tenho de mudar de cenário; tente dar um jeito ao cabelo enquanto está aqui. Ela abanou a cabeça e fez-lhe um gesto de adeus enquanto este se dirigia para a porta. Talvez tivesse um leve sorriso, não tinha a certeza.

Graham, telefonou a MoIly do gabinete do FBI em Saint

Louis. O avô de Willy atendeu o telefone. - É Will Graham, mamã - respondeu. - Olá Sr. Graham. Os avós de Willy tratavam-no sempre por Sr. Graham. - A mamã disse que ele se matou. Estava a ver o Donahue e interromperam para dar a notícia. Foi

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uma sorte danada. Poupou-lhe a si e aos rapazes uma data de chatices para o apanharem. E a nós contribuintes poupa-nos uma data de dinheiro do pagamento das facturas de toda essa actividade. Ele era mesmo branco? - Era. Louro. Parecia escandinavo. Os avós de Willy eram escandinavos. - Posso falar com MoIly, por favor? - Agora vai voltar à Florida? - Brevemente. A MoIly está aí?

389 - Mamã, ele quer falar com a Molly. Ela está na

casa de banho, Sr. Graham. O meu neto voltou a tomar o pequeno-almoço. Tem saldo para andar a cavalo com este ar estupendo. Devia ver aquele fedelho a comer. Aposto que já engordou umas dez libras. Aqui está ela. - olá. - Olá, artista. - Boas notícias, ahn? - Parece que sim.

- Eu estava lá fora no jardim. A mamã veio ter comigo e

disse-me que tinha visto na televisão. Quando é que soubeste? - A noite passada, já bastante tarde. - Por que não me telefonaste? - Pensei que a mamã estivesse a dormir. - Não, estava a ver o Johnny Carson. Nem sabes como

me sinto, Will. Estou tão contente por não teres tido de o agarrar. - Ainda vou estar aqui mais algum tempo. - Quatro ou cinco dias?

- Não tenho a certeza. Talvez nem tanto. Estou ansioso

por te ver, miúda. - Também estou ansiosa por te ver, quando tiveres

terminado tudo o que tens de fazer. - Hoje é quarta. Na sexta devo ... - WilI, a mamã convidou todos os tios e tias de Willy que vivem em Seattle na próxima semana, e ...

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- Porra para a mamã. A propósito, que raio é isso de mamã? - Quando Willy era muito pequenino não era capaz de dizer ... - Anda para casa comigo. - WilI, esperei por ti. Eles nunca têm oportunidade

de ver o Willy e mais alguns dias ... - Vem tu. Deixa o Willy aí e a tua ex-sogra pode enviá-lo num avião na próxima semana. Olha uma coisa, vamos parar em New Orleans. Há um local chamado ... - Acho que não. Tenho estado a trabalhar, só em part-time, neste armazém western que há na cidade, e tenho de lhes dar um pré-aviso por pequeno que seja.

390

Que é que se passa, Molly? Nada. Está tudo bem ... Senti-me tão triste, Will. Sabes que vim para aqui quando o pai de Willy morreu. - Dizia sempre «o pai de Willy» como se tratasse de qualquer coisa oficial. Nunca empregava o nome dele. - E estávamos todos juntos, consegui recompor-me, consegui recuperar a calma. Agora também consegui recuperar a calma, e eu ... - Há uma pequena diferença: não morri. Não estejas assim. - Assim como? Não esteja como? Estás fulo. Graham fechou os olhos por um momento. - Está? - Não estou fulo, Molly. Faz aquilo que quiseres.

Telefono-te quando as coisas por aqui estiverem arrumadas. - Podias vir até aqui. - Acho que não. - Por que não? Há montes de espaço. A mamã podia ... - Molly, eles não gostam de mim e tu sabes porquê. Sempre que olham para mim faço-lhes recordar. - Isso não é justo e também não é verdade. Graham estava muito cansado.

Okay, estão cheios de peçonha e fazem-me ficar doente,

pensa isso.

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- Não digas isso. - Querem o rapaz. Talvez também gostem de ti, até é capaz de ser verdade, se alguma vez chegam a pensar nisso. Mas querem o rapaz e aceitam-te por isso. Não me querem, mas também me estou nas tintas. Quero-te a ti. Na Florida. E ao Willy também, quando se sentir cansado do pónei. - Depois de teres dormido vais sentir-te melhor. - Tenho dúvidas. Olha, telefono-te quando souber aqui alguma coisa de concreto. - Combinado. - Desligou. - Merda - disse Graham. - Merda.

391 Crawfard enfiou a cabeça pela porta. - Será verdade que te ouvi dizer «merda»? - Ouviste. - Vá, alegra-te. Aynesworth telefonou do local. Tem qualquer coisa para ti. Disse que devíamos ir lá, ouvia-se muito mal, a transmissão estava cheia de interferências.

CAPÍTULO 51

Quando Graham e Crawford chegaram às ruínas enegrecidas

que tinham sido a casa de Dolarhyde, Aynesworth estava a deitar cuidadosamente cinzas em latas de tinta novas. Estava coberto de pó e via-se uma bolha enorme debaixo da orelha. O agente especial Janowitz dos Explosivos estava a trabalhar na cave. - Você é que é o Crawford? - Exacto. - Sou Robert L. Dulaney. Sou o juiz do tribunal de investigação e esta é a minha jurisdição. - Mostrou-lhe o seu cartão. Dizia: «Votem em Robert L. Dulaney.» Crawford esperou. - O seu homem tem provas que me devia ter entregue. Fez-me esperar quase uma hora. - Peço desculpa pelo incómodo, Sr. Dulaney. Limitou-se a seguir as minhas instruções. Por que é que não se senta no carro enquanto eu esclareço a situação? Dulaney seguiu-os. Crawfard voltou-se. Desculpe-me Sr. Dulaney. Vá sentar-se no seu carro.

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O chefe de secção Aynesworth ria-se, os dentes brancos a sobressaírem na face enfarruscada. Estivera a peneirar cinzas durante toda a manhã. - Como chefe de secção dá-me um gozo enorme ...

392 1 393

- Só para chateares o próximo, já sabemos disso - disse

Janowitz enquanto saía do buraco negro da cave. - Silêncio nas fileiras, índio Janowitz. Apanhe os artigos que têm interesse. - Atirou a Janowitz um conjunto de chaves de automóvel. Da mala de um Sedan do FBI, Janowitz trouxe uma caixa de cartão comprida. Uma caçadeira, a coronha queimada e os canos torcidos com o calor, estava presa com arames no fundo da caixa. Uma caixa mais pequena continha uma pistola automática enegrecida. - A pistola safou-se melhor - disse Aynesworth.

- A Balística é capaz de fazer qualquer coisa com ela. Anda Janowitz, vamos a isto. Do material que ele trazia, Aynesworth pegou em três sacos congeladores em plástico. - Frente e centro, Graham. - Por momentos o humor abandonou o rosto de Aynesworth. Era um ritual de caçador, como se estivesse a esfregar a testa de Graham com sangue.

- Foi de facto um espectáculo e peras. - Aynesworth

colocou os sacos nas mãos de Graham. Um dos sacos continha cinco polegadas de um fémur humano carbonizado e a parte redonda do osso da anca. Outro continha um relógio de pulso. O terceiro continha os dentes. A placa estava enegrecida e partida, só se encontrava ali metade, mas continha o inconfundível incisivo lateral aguçado. Graham pensou que era conveniente dizer qualquer coisa. - Obrigado. Muito obrigado. Sentiu por instantes uma tontura para logo em seguida se sentir invadido por uma descontracção agradável. - ... peça de museu - estava a dizer Aynesworth. - Temos de entregar tudo a esse gajo, não temos, Jack?

Page 363: Thomas Harris   Dragão Vermelho

- Temos. Mas ainda há alguns profissionais no gabinete do Sr. Dulaney. Vão fazer boas cópias. Vamos conseguir uma dessas cópias. Crawfard e os outros juntaram-se ao juiz ao lado do

seu carro.

394

Graham estava só junto da casa. Ouviu o vento que assobiava nas chaminés. Esperava que Bloom viesse aqui quando estivesse melhor. Estava convencido de que sim. Graham queria saber mais coisas sobre Dolarhyde. Queria saber o que acontecera ali, o que alimentara o Dragão. Mas para já, tinha que chegasse. Um corvo empoleirou-se no cimo de uma chaminé e assobiou. Graham assobiou em resposta. Ia para casa.

395 CAPÍTULO 52

Graham sorriu quando sentiu o impulso ascensional do jacto levá-lo para longe de Saint Louis, cruzando a pista do sol em direcção a sul para seguir por último em direcção a leste a caminho de casa. Molly e Willy estariam à sua espera. «Não vamos andar às voltas sobre quem é que é culpado e de quê. Estou à tua espera em Marathon, miúdo», dissera ela ao telefone. Com o tempo esperava poder vir a recordar-se dos

poucos bons momentos - a satisfação de ver gente a trabalhar, profundamente dedicada às suas especialidades. Estava convencido de que podia encontrar esta situação em qualquer parte, desde que se soubesse o que se procurava. Teria sido um pouco forçado agradecer a Lloyd Bowman e Beverly Katz, pelo que se limitou a dizer-lhes ao telefone que se sentia contente por ter trabalhado com eles mais uma vez.

Havia uma coisa que o preocupava levemente: o modo como

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se sentiu quando Crawfard em Chicago pousou o telefone e disse: «É a Gateway.» Possivelmente fora a mais intensa e selvagem alegria que alguma vez o invadira. Era inquietante saber que o momento mais feliz da sua vida surgira então naquela sala abafada de júri na cidade de Chicago. Mesmo antes de saber, ele sabia.

396

Não disse a Lloyd Bowman como é que se sentia; não tinha de o fazer. «Sabes, quando o seu teorema o fez trepar pelas paredes, Pitágoras ofereceu cem bois ao templo», disse Bowman. «Não há nada melhor, pois não? Não respondas, dura mais se não falares.»

+ medida que se aproximava de casa e de Molly, Graham

ficava mais impaciente. Em Miami teve de sair para embarcar no Aunt Lula, o velho DC-3 que voava para Marathon. Gostava do DC-3. Presentemente gostava de tudo.

O Aunt Lula fora construído quando Graham tinha cinco

anos e as suas asas estavam permanentemente sujas com uma camada de óleo que escorria dos motores. Tinha absoluta confiança nele. Correu para ele como se tivesse aterrado numa clareira da selva para o salvar. As luzes de Islamorada estavam a acender-se quando a ilha deslizou por debaixo da asa do avião. Do lado do Atlântico, Graham conseguia ver os flocos de espuma do topo das ondas. Poucos minutos depois estavam a descer em Marathon. Sentia-se como da primeira vez que chegara a Marathon. Dessa vez também viera no Aunt Lula e desde aí foi muitas vezes ao fim da tarde ao aeroporto para vê-lo chegar, lento e firme, os flaps descidos, centelhas a saírem dos exaustores e os passageiros em segurança por detrás das janelas iluminadas.

Também era agradável de ver quando levantava voo, mas

quando o velho aeroplano descrevia aquele grande arco em direcção a norte deixava-o triste e vazio e o ar tornava-se acre com as despedidas. Habituou-se

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a observar apenas as aterragens e os helicópteros. Tudo isto foi antes de Molly. Com um resmungo final o aparelho fez-se à pista. Graham viu Molly e Willy atrás da vedação, iluminados pelos candeeiros. Willy estava solidamente plantado diante dela. E ficaria ali até que Graham se juntasse a eles. Só então vaguearia por ali, examinando tudo aquilo que lhe interessasse. Graham gostava dele por causa disso.

397 Molly tinha a mesma altura de Graham, um metro e setenta e cinco. Um beijo ao mesmo nível em público dá uma alegria inesperada, possivelmente porque beijos ao mesmo nível normalmente são trocados na cama. Willy ofereceu-se para lhe transportar a mala. Em

vez disso Graham entregou-lhe a pasta.

A caminho de casa em Sugarloaf Key, Molly a conduzir,

Graham recordava-se das coisas que tinha apanhado pelos cabeçalhos, imaginando o resto. Quando chegaram a casa e abriu a porta do carro,

conseguiu ouvir o murmúrio do mar. Willy entrou em casa, segurando a mala acima da cabeça, enquanto a parte de baixo lhe batia nas pernas. Graham deixou-se ficar no pátio com um ar ausente, enquanto sacudia mosquitos do rosto. Molly colocou-lhe a mão no queixo. Acho que devias entrar antes que te comam completamente. Acenou com a cabeça. Tinha os olhos húmidos. Ela esperou mais um momento, colocou a cabeça de

lado e fitou-o, erguendo as sobrancelhas. - Martinis Tanqueray, bifes e acompanhamento até fartar. Por aqui, se faz favor ... e a conta da luz e a conta da água,

e uma conversa muito comprida com o meu filho -

acrescentou, falando pelo canto da boca.

398

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CAPÍTULO 53

Tanto Graham como Molly desejavam imenso que tudo voltasse a ser como dantes, que continuasse onde tinham parado. Quando viram que não era a mesma coisa, o conhecimento adquirido e não confessado vivia entre eles como uma companhia que não fosse desejada. Molly nunca lhe parecera com tão bom aspecto. Tentava ser boa para ele mas estivera no Oregon e

ressuscitara os mortos. Willy sentira essa sensação e comportava-se friamente com Graham, irritantemente polido. Chegou uma carta de Crawford. Molly trouxe o correio para dentro e não fez qualquer alusão. Continha uma fotografia da família Sherman, conseguida a partir do filme. Nem tudo se queimara, explicava a nota de Crawford. Uma busca dos campos à volta da casa tinha permitido descobrir esta fotografia, bem como mais meia-dúzia de coisas que a explosão atirara para longe do fogo. «Julgo que esta gente estava provavelmente no seu itinerário», escreveu Crawford. «Agora estão em segurança. Lembrei-me de que gostarias de ser informado.» Graham mostrou-a a Molly. - Estás a ver? É por causa disto - disse ele. - É

por

causa disto que valia a pena.

399

- Eu sei - respondeu. - Compreendo tudo isso, palavra que compreendo. Os peixes azuis saltavam ao luar. Molly preparou refeições, pescaram, fizeram fogueiras mas nada era como antes, nada era bom. O avô e a avó mandaram a Willy uma fotografia do

pónei, que ele pregou na parede do quarto. O quinto dia em casa era a véspera do dia em que

tanto Graham como Molly regressariam a Marathon para trabalhar. Pescaram e caminharam ao longo da baía

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até um local onde antes tinham sido felizes. Graham, decidira falar aos dois em conjunto.

A expedição não começou bem. Willy pôs expressamente de

lado a cana que Graham preparara para ele e levou a cana de liga metálica que o avô lhe dera. Pescaram em silêncio durante três horas. Por várias vezes Graham abriu a boca para falar, mas não lhe pareceu apropriado. Estava farto de sentir que não gostavam dele. Graham apanhou quatro peixes usando como isco moscas da areia. Willy não apanhou nada. Estava a lançar com uma enorme rapala e três anzóis corridos que o avô lhe dera. Estava a pescar depressa de mais, lançando ininterruptamente, recolhendo depressa de mais, até se encontrar imensamente corado e com a camisola colada ao tronco. Graham entrou na água, evitou a areia do rebentar de uma onda e voltou a sair com duas moscas da areia, as patas que sobressaíam das carapaças agitaram-se descontroladamente. - Que tal uma destas, sócio? - Estendeu uma das moscas da areia a Willy. - Vou usar a rapala. Era do meu pai, sabias? - Não. respondeu Graham. Olhou para Molly. Ela abraçou os joelhos e olhou para longe, fitando um pássaro que planava nos céus. Levantou-se e sacudiu a areia. - Vou preparar umas sandes - disse ela. Quando Molly se afastou, Graham sentiu-se tentado a falar a sós com o rapaz. Não. Willy devia sentir-se como a mãe se sentia.

400

Devia esperar até que ela viesse para ter os dois juntos. Desta vez era preciso fazê-lo. Molly não se demorara e estava de regresso sem as sandes, caminhando suavemente sobre a areia ondulada da baía.

- Jack Crawfard está ao telefone. Disse-lhe que ligavas

mais tarde, mas respondeu que era urgente - disse ela, olhando para uma das unhas. - É melhor apressares-te. Graham sentiu-se corar. Enterrou a extremidade da cana na areia e correu na direcção das dunas.

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Era mais perto do que ir à volta pela praia, desde que não se transportasse nada que pudesse ficar preso nos arbustos. Ouviu um som indistinto transportado pelo vento; alertado por um raspar metálico, observou o terreno enquanto passava por debaixo do velho cedro. Descortinou botas no meio dos arbustos, o reflexo de uma lente e uma sombra rápida de caqui que se movia. Olhou para os olhos amarelos de Francis Dolarhyde e

o medo fez-lhe bater o coração loucamente.

O ruído do accionamento de uma pistola, uma automática

que se prepara para disparar, e Graham pontapeou-a no momento em que o amarelo pálido do disparo se distinguia contra o sol, fazendo que a pistola fosse parar no meio dos arbustos. Graham de costas, uma sensação de ardência no lado esquerdo do peito, deslizou de cabeça pela duna abaixo em direcção à praia.

Dolarhyde deu um salto para cair em cima do estômago de

Graham com ambos os pés, a faca na mão, não erguendo a cabeça quando se ouviu o débil grito junto da borda de água. Segurou Graham com os joelhos, ergueu a faca bem alto e grunhiu enquanto a fazia descer num golpe violento. A lâmina falhou o olho de Graham e enterrou-se na face. Dolarhyde inclinou-se para a frente, colocando todo o seu peso no punho da faca para atravessar a cabeça de Graham.

A cana assobiou quando Molly a utilizou para chicotear

com violência o rosto de Dolarhyde. Os grandes anzóis rapala enterraram-se-lhe firmemente no rosto e o carreto fez um ruído metálico agudo enquanto ela recuava para voltar a atacar.

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Grunhiu, levou a mão ao rosto quando ela o atingiu, e os anzóis enterraram-se-lhe também na mão. Com uma das mãos livres, a outra presa no

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anzol que se encontrava enterrado no rosto, desenterrou a faca e correu atrás dela. Graham rolou sobre si próprio, pôs-se de joelhos, a seguir pôs-se de pé, os olhos alucinados e esvaindo-se em sangue, correu atrás de Dolarhyde, correu até desmaiar. Molly correu para as dunas com Willy à frente

dela. Dolarhyde aproximava-se, arrastando a cana. Ficou presa num arbusto, dando um puxão que o fez parar, sem sequer pensar em cortar a linha.

- Corre, bebé, corre bebé, corre bebé! Não olhes para

trás arfava ela. As pernas dela eram compridas e empurrava o rapaz à sua frente, o ruído de passos atrás deles aproximando-se cada vez mais. Tinham um avanço de cem jardas quando deixaram as dunas, setenta jardas quando alcançaram a casa. Tropeçando pelas escadas acima. Fechando Willy num armário. - Não saias daqui - disse a Willy. A descer de novo, indo ao seu encontro. Descendo em direcção à cozinha, ainda sem estar preparada, atrapalhada com o carregador. Esqueceu onde se encontrava, esqueceu o que tinha à sua frente, mas agarrou firmemente na pistola com as duas mãos e quando a porta explodiu para o lado de dentro abriu-lhe um buraco na coxa do tamanho de um ninho de ratos, e disparou-lhe directamente no rosto quando deslizava de encontro à porta e voltou a disparar-lhe no rosto quando ele caiu sentado no chão e correu para ele e voltou a disparar-lhe duas vezes no rosto quando ele rastejava na direcção da parede, o escalpe caído até ao queixo e o cabelo em chamas.

Willy rasgou um lençol e foi à procura de Will. As pernas tremiam-lhe e ao atravessar o pátio caiu por várias vezes. O xerife e os seus ajudantes e as ambulâncias chegaram mesmo antes de Molly ter pensado em chamá-los. Ela estava a tomar duche quan-

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do eles entraram em casa de pistolas apontadas.

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Esfregava avidamente os restos de sangue e de osso que tinha no rosto e no cabelo e não foi capaz de responder quando um ajudante tentou falar com ela através da cortina do chuveiro.

Finalmente um dos ajudantes pegou no telefone que ainda

se encontrava suspenso e falou com Crawfard, em Washington, que ouvira os tiros e os avisou do que se estava a passar. - Não sei o que se passa, estão a trazê-lo agora - disse o ajudante. Olhou pela janela na altura em que a maca passava. Não me parece que esteja lá muito bem - acrescentou.

403 - Está, está óptimo - respondeu Crawford. - A Molly também. Esteve aqui enquanto estavas a dormir. Dolarhyde morreu. WilI, dou-te a minha palavra de que morreu. Fui eu próprio que lhe tirei as impressões digitais e pedi a Price para comparar. Não há qualquer dúvida. Está morto.

CAPÍTULO 54

Na parede aos pés da cama havia um relógio com números

suficientemente grandes para que pudessem ser percebidos através das drogas e da dor. Quando Will Graham conseguiu abrir o olho direito avistou o relógio e soube onde é que estava - uma unidade de cuidados intensivos. Sabia olhar para o relógio, e esse movimento garantia-lhe que as coisas estavam a passar, que tudo passaria.

Era por isso que ele estava ali. Cautelosamente rodou o

olho. Era Molly que se encontrava a olhar pela janela. Estava magra. Tentou falar, mas uma dor intensa encheu-lhe o lado esquerdo da cabeça quando mexeu a maxila. A cabeça e o peito não funcionavam em simultâneo. Produziu um ruído quando ela abandonou o quarto. A claridade entrava pela janela quando eles o puxaram e viraram e lhe fizeram coisas que lhe deixaram tensos os músculos do pescoço. Uma luz amarela quando viu o rosto de Crawford debruçado sobre ele. Graham conseguiu pestanejar. Quando Crawfard sorriu conseguiu distinguir-lhe um bocado de

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espinafre entre os dentes. Estranho. Crawford mascava muitos vegetais. Com a mão, Graham fez um gesto de escrever sobre o

lençol. Crawfard colocou o bloco de apontamentos debaixo da mão

de Graham e pôs-lhe uma caneta entre os dedos. «Willy está bem?», escreveu.

404

Graham desenhou um ponto de interrogação no bloco. - Já iremos a isso. Vou estar por aqui, posso contar-te tudo quando te sentires melhor. Só me deram cinco minutos. «Agora», escreveu Graham. - O médico falou contigo? Não? Primeiro sobre ti: vais ficar bom. O olho encontra-se fechado só por causa da facada profunda que levaste no rosto. Já arranjaram as coisas, mas vai levar tempo. Tiraram-te o baço. Mas quem é que precisa do baço? Price deixou o dele em Burma, em 1941. Uma enfermeira tamborilou no vidro da porta. - Tenho de me ir embora. Por estes lados não respeitam credenciais, não respeitam nada. Quando o tempo chega ao fim limitam-se a pôr-te na rua. Até breve.

Molly estava na sala de espera da unidade de cuidados

intensivos. Muitas outras pessoas com um aspecto fatigado também ali aguardavam. Crawfard dirigiu-se a ela. Molly ... - Olá, Jack - respondeu ela. - Estás de facto com

um aspecto estupendo. Querem fazer-lhe cirurgia plástica do rosto? - Acho que não, Molly. - Olhaste para ele? - Olhei. - Sempre pensei que não era capaz de olhar para ele, mas consegui.

- Vai ficar bom. Foi o médico que me disse. Conseguem

fazer isso. Queres que alguém fique contigo, Molly? Trouxe PhyIlis comigo, ela ... - Não, não faças mais nada por mim. Voltou-se enquanto procurava um lenço de papel. Jack viu a carta quando ela abriu a bolsa: papel de carta de qualidade que já tinha visto antes.

Page 372: Thomas Harris   Dragão Vermelho

405 Crawfard detestava isto, mas tinha de o fazer. - Molly. - O que é? - Will recebeu uma carta? Recebeu. - Foi a enfermeira que ta deu? - Sim, deu-ma a mim. Também guardaram flores que foram enviadas por todos os seus amigos de Washington. - Posso ver a carta? - Dou-lha a ele quando se sentir com forças. - Por favor, deixa-me ver a carta. - Porquê? - Porque não tem necessidade de ter notícias ... dessa pessoa em particular. Qualquer coisa estava errada com a expressão do seu rosto e ela olhou para a carta e deixou-a cair, juntamente com a bolsa e tudo o resto. Um bâton rolou pelo soalho. Baixando-se para apanhar as coisas de Molly, ouviu os passos dela que se afastavam, abandonando a bolsa. Crawfard entregou-a a uma enfermeira. Ele sabia que seria praticamente impossível para

Lecter conseguir aquilo de que ele precisaria, mas com Lecter era melhor não facilitar. Pediu a um interno para passar a carta na fluoroscopia do departamento de raios X. Crawford abriu o envelope nos quatro lados com um canivete e examinou a superfície interior e a mensagem, à procura de qualquer mancha ou poeira - havia sempre possibilidades de conseguir obter diversos produtos no Hospital Chesapeake, mesmo sem considerar a existência da farmácia. Satisfeito, finalmente leu a nota:

Caro Will:

Aqui estamos nós, você e eu, sofrendo nos nossos hospitais. Você com as suas dores e eu sem os meus livros - o douto Dr. Chilton fez que assim acontecesse.

406

Vivemos numa época primitiva - não acha, Will? nem selvagem, nem civilizada. Meias medidas são a

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maldição de tudo isto. Qualquer sociedade racional ou me matava ou me devolvia os livros. Desejo-lhe uma convalescença rápida e espero que

não fique muito feio. Penso muitas vezes em si.

Hannibal Lecter.

~ ~ O interno olhou para o relógio. - Ainda precisa de mim? - Não - respondeu Crawford. - Onde fica o incinerador? Quatro horas depois, quando Crawfard voltou para uma nova visita, Molly não estava na sala de espera nem na unidade de cuidados intensivos. Graham estava acordado. Desenhou imediatamente no bloco um ponto de interrogação. «Como é que D. morreu?», escreveu por debaixo do sinal. Crawford contou-lhe. Graham ficou imóvel por mais

de um minuto. A seguir escreveu: «O que é que se passou?»

- Okay - respondeu Crawfard. - Saint Louis. Dolarhyde

deve ter procurado Reba McLane. Veio ao laboratório quando ainda lá estávamos e avistou-nos. Encontrámos as suas impressões digitais na janela aberta de uma sala de fornalha, só ontem é que soubemos disso. Graham bateu no bloco. «Corpo.» - Julgo que se trata de um tipo chamado Arnold Lang, não aparece. O seu carro foi encontrado em Meraphis. Foi examinado de uma ponta à outra. Devo ter informações dentro de minutos. Deixa-me contar-te as coisas de uma forma ordenada. » Dolarhyde sabia que estávamos ali. Na fábrica conseguiu safar-se e conduziu até uma estação Servco Supreme no cruzamento da Lindbergh e da US 27O. Arnold Lang trabalhava lá. » Reba McLane disse que Dolarhyde teve uma chatice com o empregado de uma estação de serviço no sábado antes deste último. Estamos convencidos de que se tratava de Lang.

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407 » Filou Lang e levou o corpo para casa. A seguir foi ter com Reba McLane. Estava a namorar com Ralph Mandy à porta de casa. Matou Mandy a tiro e atirou com o corpo para trás dos arbustos. A enfermeira entrou.

- Pelo amor de Deus, é um assunto de polícia - disse

Crawford. Tentou falar rapidamente enquanto ela o arrastava pela manga do casaco na direcção da porta. - Cloroformizou Reba McLane e levou-a para casa. O corpo estava lá - disse Crawfard. já no hall. Graham teve de esperar mais quatro horas para saber o resto. - Disse-lhe isto e mais aquilo, estás a ver, «mato-te ou não?», etc. - disse Crawford logo que entrou no quarto. - Já sabes a intenção da chave pendurada ao pescoço: era para ter a certeza de que ela apalpava o corpo. Deste modo ela podia dizer-nos que de facto tinha apalpado um corpo. A seguir as histórias do costume, «não suporto ver-te morrer queimada», diz-lhe ele, e estoura com a cabeça de Lang com um tiro de caçadeira.

» Lang era ideal. Além disso não tinha dentes. Talvez

Dolarhyde soubesse que a arcada da maxila sobrevive muitas vezes a incêndios, quem pode adivinhar o que ele sabia? Além disso, Lang não tinha arcada da maxila depois de Dolarhyde se ter ocupado dele. Disparou contra a cabeça de Lang e deve ter empurrado uma cadeira ou outra coisa qualquer para imitar o baque de um corpo a cair. Por último pendurou a chave no pescoço de Lang. » A seguir temos Reba, completamente desnorteada, à procura da chave. Dolarhyde mantém-se num canto a observar. Ela ainda tem os ouvidos a zumbir com o disparo da caçadeira. Não está em condições de ouvir estes pequenos ruídos. » Na altura em que ateou o incêndio não utilizou a gasolina. A gasolina estava na sala. Ela consegue sair de casa sem problemas. Se ela tivesse entrado em pânico agudo, se tivesse ido de encontro a uma parede ou qualquer outra coisa, ou se tivesse ficado sem ser capaz de se mexer, estou convencido de que lhe

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dava uma pancada para a fazer desmaiar e que a arrastava,para fora de casa. Para que o plano funcionasse ela tinha de sair de casa. Oh, porra, aí vem de novo a chata da enfermeira. Graham escreveu rapidamente: «E o veículo?» - Temos de considerar esse ponto - respondeu Crawford. Ele sabia que precisava de deixar a carrinha junto ~da casa. Não conseguia conduzir dois veículos e precisava de qualquer coisa para se escapar. » Fez o seguinte: obrigou Lang a atrelar o reboque da estação de-serviço à carrinha. Apagou Lang, fechou a estação de serviço e rebocou a carrinha para casa. A seguir estacionou o reboque numa estrada de terra nos campos por detrás da casa, regressou à carrinha e foi ver o que se passava com Reba. Quando ela saiu de casa dispôs o dinamite nos locais que tinha previsto, espalhou a gasolina à volta do fogo e raspou-se pelas traseiras. Voltou com o reboque à estação de serviço, estacionou-o e meteu-se no carro de Lang. Não deixara pontas soltas. ~ ~> Ia dando em doido até ter conseguido ver como é que tudo se passou. Sei que foi assim porque deixou várias impressões no gancho do reboque.

» É possível que tenhamos passado por ele na estrada,

quando nos dirigíamos para a casa ... Sim, minha senhora. Já me vou embora. Sim, minha senhora. Graham queria fazer uma pergunta, mas já era demasiado tarde. Molly foi a visita de cinco minutos que se seguiu. Graham escreveu no bloco de Crawfard: «Amo-te.» Ela acenou com a cabeça e segurou-lhe na mão. Passado um minuto voltou a escrever-lhe: «Willy está bem?» Acenou com a cabeça afirmativamente. «Aqui?»

Ergueu rapidamente os olhos do bloco para ele e apontou

para a enfermeira que se aproximava. Ele agarrou-lhe no polegar. «Onde?», insistiu, sublinhando duas vezes. - Oregon - respondeu ela.

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Crawfard ainda apareceu mais uma vez. Graham já tinha a pergunta escrita. Dizia: «Dentes?» - Eram da avó - respondeu Crawfard. - Os que encontrámos na casa eram da avó. O Departamento de Polícia de Saint Louis localizou um tal Ned Vogt, a mãe de Dolarhyde era madrasta de Vogt. Este viu a Sr.' Dolarhyde quando era miúdo e nunca mais esqueceu os dentes. » Foi por isso que te telefonei na altura em que apareceu o Dolarhyde. O Smithsonian acabara de me telefonar. Finalmente tinham conseguido os dentes da parte das autoridades do Missouri, apenas para os examinarem por uma questão de curiosidade. Verificaram que a parte de cima era feita de vulcanite em vez de acrílico, como agora se usa. Há trinta e cinco anos que ninguém faz placas com vulcanite. » Dolarhyde tinha uma placa nova em acrílico exactamente igual à outra. A nova estava no corpo. O Smithsonian examinou o tipo de fabrico. Fabrico chinês. A antiga era suíça.

» Também tinha com ele a chave de um cacifo em Miami.

Estava lá guardado um livro enorme. Uma espécie de diário, uma coisa diabólica. Quando o quiseres ver sou capaz de o conseguir. » Olha, atleta, tenho de regressar a Washington. No fim-de-semana, se puder, volto aqui. Ficas bem? Graham desenhou um ponto de interrogação, a seguir riscou-o e escreveu: «Está descansado.» A enfermeira entrou depois de Crawfard ter saído. Injectou uma percentagem de demerol na linha intravenosa e o relógio ficou lentamente envolto em nevoeiro. Não era capaz de seguir o ponteiro dos minutos. Tentou imaginar se o demerol seria capaz de influenciar os seus sentimentos. Com aquela cara ficaria com MoIly durante algum tempo. Pelo menos até que tivessem acabado de o tratar. Era tudo demasiado fácil. Ficar com ela para quê? Estava a deslizar para um poço sem fundo e só esperava não ter pesadelos.

Vogava entre recordações e pesadelos, mas

seria isso assim tão mau? Nos sonhos não apareciam

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nem Molly a ir-se embora

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nem Dolarhyde. Era uma velha recordação, o sonho de Shiloli interrompido por luzes projectadas no rosto e o ruído monótono do indicador de pressão sanguínea ... Quando Graham visitou Shiloli era Primavera e pouco tempo se passara desde que abatera Garrett Jacob Hobbs. Num ameno dia de Abril atravessou a estrada de asfalto em direcção a Bloody Pond. A relva nova, de um verde ainda muito claro, crescia na encosta descendo até à borda de água. A água límpida subia até à relva e esta era visível dentro de água, espraiando-se na direcção do fundo, como se cobrisse tudo. Graham,sabia o que acontecera ali em Abril de 1862. Sentou-se na relva sentindo a humidade trespassar-

lhe o tecido das calças. Um automóvel de turistas passou na estrada depois de ele a ter atravessado e Graham distinguiu movimento estranho atrás de si. O carro atropelara uma cobra. Esta deslizou pelo asfalto em intermináveis oitos, uns mostrando o dorso negro, outros o ventre esbranquiçado. Uma presença estranha em Shiloli invadia-o de frio, embora estivesse a suar devido ao sol de Primavera. Graham levantou-se da relva, o traseiro das calças humedecido. Sentia-se tonto. A cobra estava enrolada sobre ela própria. Parou

junto dela, agarrou-a pela parte macia da ponta da cauda e, com um movimento longo e fluido, fê-la estalar no ar como um chicote.

Os miolos foram projectados na lagoa. Uma perca lançou-se

sobre eles. Pensara que Shiloli estava assombrada, com a sua

beleza

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sinistra semelhante a bandeiras esvoaçantes. Agora, vogando entre as recordações e o sono narcótico, viu que Shiloli não era sinistra; era indiferente. A beleza de Shiloli, não podia testemunhar nada. A sua beleza imperdoável limitava-se a resvalar pela indiferença da natureza, a Máquina Verde. O encanto de Shilolí zombava da nossa luta. Ergueu-se e olhou para o relógio irracional, mas não era capaz de deixar de pensar.

411 Na Máquina Verde não há qualquer tipo de

misericórdia; nós fazemos a misericórdia, fabricamo-la na parte mais vil do nosso cérebro. O assassínio não existe. Nós é que criamos o assassínio e este só existe para nós. Graham sabia que possuía todos os elementos para cometer um assassínio; e talvez também para ter misericórdia. Tentava imaginar se no grande corpo da humanidade, nas mentes dos homens que criaram a civilização, os impulsos viciosos que controlamos dentro de nós e o conhecimento dos instintos ocultos desses mesmos impulsos funcionam como os vírus letais contra os quais o corpo se debate. Tentava imaginar se os velhos e estranhos impulsos serão os vírus com os quais se produz a vacina. Sim, enganara-se a respeito de Shiloh. Shiloh não

está assombrada - os homens é que estão assombrados.

Shiloh não tem qualquer importância.

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E dei o meu coração para conhecer a sabedoria, e para

conhecer a fúria e a loucura; Apercebi-me de que isso também é humilhação do espírito.

ECLESIASTES.