texto_ana fani carlos

20
 A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possível Ana Fani Alessandri Carlos Revista do Departamento de Geografia   USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111. 92 A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possível Ana Fani Alessandri Carlos 1  Resumo: O texto apresenta uma possibilidade de construção teórico-metodológica para o desenvolvimento da disciplina Geografia Urbana, ministrada no Departamento de Geografia da FFLCH, no âmbito do curso de Graduação. Os conteúdos apóiam-se no movimento de constituição de uma geografia crítica que coloca a noção de produção do espaço no centro do debate sobre o urbano e a sociedade urbana como momento necessário de compreensão do mundo moderno, a partir de sua dimensão sócio-espacial. Podemos pressupor que todo ato de realiza ção da vida humana tem um parâmetro e uma realidade e spaço-temporal, o que significa que as atividades desenvolvem-se por um determinado período de tempo num lugar específico qu e caracteriza e dá co nteúdo à ação hu mana. O número especial desta revista nos faz refletir sobre o modo como vimos "pensando e fazendo Geografia" ao longo do tempo neste Departamento, seja através da pesquisa, seja através do ensino e da  formação dos alun os, como desdobra mento e superaçã o da Geografia que nos foi legada. Palavras-chave: geografia urbana; espaço urbano; urbano; cidade; vida cotidiana. The “Urban Geography” as discipline: a possible approach   Abstract: This work presents a possibility of theoretical-methodological construction for the development of the Urban Geography course, ministered at the Geography Department in FFLCH, under the graduation course. The contents are supported by the constitution movement of a critical geography that places the notion of production of space in the center of the debate about the urban and the urban society, as necessary moments of the contemporary world comprehension, starting form its socio-spatial dimension. We assume that every act of human life realization has a spatiotemporal parameter and reality, which means that the activities are developed by a determined period of time in a specific place that features and gives content to human action. This journal special issue makes us reflect on the way we have been “thinking and making Geography” over time in this Department, whether through research, either through education and formation of students as unfolding and overcoming the Geography that we inherited. Key-words: urban geography; urban space; urban; city; everyday life. PREÂMBULO Os anos 70 apresentam uma guinada importante na produção do conhecimento geográfico no Brasil, a partir de intenso debate sobre os rumos da disciplina, o qual foi influenciado por questionamentos vindos do exterior. É o momento em que o espaço deixa de ser sinônimo de localização e o homem deixa de ser o habitante para ser o sujeito da produção do mundo, 1  Graduação e Licenciatura em Geografia pela Universidade de São Paulo, mestrado, doutorado e livre-docência em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Upload: solergonzalez

Post on 06-Oct-2015

79 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Ana Fani

TRANSCRIPT

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    92

    2

    A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel

    Ana Fani Alessandri Carlos1 Resumo: O texto apresenta uma possibilidade de construo terico-metodolgica para o desenvolvimento da disciplina Geografia Urbana, ministrada no Departamento de Geografia da FFLCH, no mbito do curso de Graduao. Os contedos apiam-se no movimento de constituio de uma geografia crtica que coloca a noo de produo do espao no centro do debate sobre o urbano e a sociedade urbana como momento necessrio de compreenso do mundo moderno, a partir de sua dimenso scio-espacial. Podemos pressupor que todo ato de realizao da vida humana tem um parmetro e uma realidade espao-temporal, o que significa que as atividades desenvolvem-se por um determinado perodo de tempo num lugar especfico que caracteriza e d contedo ao humana. O nmero especial desta revista nos faz refletir sobre o modo como vimos "pensando e fazendo Geografia" ao longo do tempo neste Departamento, seja atravs da pesquisa, seja atravs do ensino e da formao dos alunos, como desdobramento e superao da Geografia que nos foi legada. Palavras-chave: geografia urbana; espao urbano; urbano; cidade; vida cotidiana.

    The Urban Geography as discipline: a possible approach Abstract: This work presents a possibility of theoretical-methodological construction for the development of the Urban Geography course, ministered at the Geography Department in FFLCH, under the graduation course. The contents are supported by the constitution movement of a critical geography that places the notion of production of space in the center of the debate about the urban and the urban society, as necessary moments of the contemporary world comprehension, starting form its socio-spatial dimension. We assume that every act of human life realization has a spatiotemporal parameter and reality, which means that the activities are developed by a determined period of time in a specific place that features and gives content to human action. This journal special issue makes us reflect on the way we have been thinking and making Geography over time in this Department, whether through research, either through education and formation of students as unfolding and overcoming the Geography that we inherited. Key-words: urban geography; urban space; urban; city; everyday life.

    PREMBULO

    Os anos 70 apresentam uma guinada importante na produo do conhecimento geogrfico

    no Brasil, a partir de intenso debate sobre os rumos da disciplina, o qual foi influenciado por

    questionamentos vindos do exterior. o momento em que o espao deixa de ser sinnimo

    de localizao e o homem deixa de ser o habitante para ser o sujeito da produo do mundo,

    1 Graduao e Licenciatura em Geografia pela Universidade de So Paulo, mestrado, doutorado e livre-docncia em Geografia Humana pela Universidade de So Paulo. Professora Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. E-mail: [email protected]

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    93

    3

    o que implicou na necessidade de trazer para a Geografia a complexidade da vida social. Por

    outro lado, constitui-se tambm uma forte reao frente cincia usada ora para alimentar

    e justificar a prtica do Estado, ora para atender s necessidades da reproduo econmica.

    Assim, como o outro da Geografia, preocupada com sua aplicao e submetida lgica do

    Estado que faz tabula rasa da prtica scio-espacial esvaziando e autonomizando os

    espaos-tempos da vida social, uma nova perspectiva se abria apoiada no pensamento

    crtico e no mtodo dialtico.

    Respaldado pelas possibilidades abertas pelo materialismo dialtico, como condio da

    produo de um conhecimento geogrfico do mundo em que vivemos, um grupo de

    pesquisadores (Amlia Luisa Damiani, Ana Fani Alessandri Carlos, Margarida Maria de

    Andrade, Odette de Lima Seabra) membros do LABUR (Laboratrio de Geografia Urbana) e

    da rede "La somme et le reste" (cuja revista de mesmo nome coordenada na Frana por

    Armand Azemberg) vai se constituindo, no Departamento de Geografia da FFLCH-USP, nos

    anos 70/80. O exerccio da liberdade que a vigora, contra qualquer tipo de intolerncia ou

    preconceito terico, permitiu, ao longo do tempo, a consolidao de uma Geografia fundada

    no pensamento marxista-lefevriano, que se realiza atravs das pesquisas dos envolvidos

    tanto individuais quanto de orientao no LABUR e no Programa de Ps-graduao

    surgindo como possibilidade de fundamentao de cursos ministrados.

    O que apresentamos a seguir a construo de uma disciplina de graduao, respaldada por

    esta orientao terico-metodolgica, ministrada no D.G., expondo o modo como vimos

    "pensando e fazendo Geografia" neste Departamento, produto de nossas pesquisas na rea

    de Geografia Urbana.

    INTRODUO

    A realidade urbana encontra-se em constante processo de transformao que ocorre hoje

    num lapso de tempo cada vez menor. Esse ritmo marca a modernidade e coloca um

    conjunto de desafios no sentido de compreender os contedos atuais da problemtica

    urbana.

    Atualmente o fenmeno urbano se estende sobre parte significativa do globo, anunciando

    sua tendncia mundializao. Assim, no sem conflitos, o urbano vai penetrando os

    espaos, generalizando-se a partir de pontos centrais no territrio. Isto ocorre porque as

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    94

    4

    condies do capitalismo no so estticas, ele se desenvolve realizando virtualidades: o

    espao mundial e a sociedade urbana. Essa produo revela a essncia do que poderamos

    chamar de "novo" no mundo moderno. As mudanas se impem anlise, portanto pode-se

    pensar que existe, ao longo da constituio do conhecimento geogrfico, um movimento

    constante de superao e de busca de novos caminhos terico- metodolgicos o que

    pressupe a elaborao de noes e conceitos articulada prtica social como totalidade

    que se define dinamicamente.

    Deste modo, o desafio posto no horizonte para a construo do programa desta disciplina

    desvendar os novos contedos da realidade social atravs de sua dimenso espacial sem

    fragmentar a totalidade dos processos constitutivos e reveladores do mundo urbano. O

    movimento da totalidade (terica e prtica) obriga-nos a deslocar a centralidade da anlise

    do espao como localizao da atividade humana para a produo do espao como

    criao civilizatria, social e histrica. Esta perspectiva obriga o distanciamento do debate do

    campo da epistemologia para aquele que contempla a relao teoria-prtica como

    construo da dialtica constante entre o plano da vida (realizando-se enquanto prtica

    scio-espacial em suas condies objetivas) e aquele do conhecimento (a geografia que

    pretende produzir uma compreenso sobre a realidade, no mbito das cincias humanas).

    Portanto o espao como conceito e como prtica aponta para o movimento de sua

    produo/reproduo como momento central da compreenso do mundo moderno.

    Deste modo possvel estabelecer, inicialmente, que a realidade atual em suas profundas

    metamorfoses coloca a necessidade de desvendamento do seu contedo e sentido como

    produto da realizao do capitalismo no plano mundial, um momento da reproduo da

    sociedade, sada da histria da industrializao, que permitiu - com o desenvolvimento do

    mundo da mercadoria, apoiado no desenvolvimento das comunicaes, na expanso da

    informao - a generalizao do valor de troca, e com ela a redefinio das relaes entre os

    lugares, pelas metamorfoses da diviso do trabalho no seio da sociedade. A extenso do

    capitalismo no espao, ele prprio tornado mercadoria neste processo, faz da produo do

    espao, a condio e o produto da reproduo social como elemento definidor dos

    contedos da prtica scio-espacial, modificando as relaes espao-tempo da vida social.

    Nesse contexto, o processo de urbanizao, longe de significar o mero crescimento da

    cidade ou a extenso do tecido urbano, revela um contedo que se insere num processo

    mais amplo; aquele do desenvolvimento do modo de produo capitalista como

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    95

    5

    fundamento da constituio de uma sociedade urbana apresentando um processo

    profundo de transformao nas formas e contedos da produo da cidade, bem como da

    existncia humana na cidade como existncia prtica real e concreta dos cidados.O

    contedo do mundo moderno passa, assim, pelo desvendamento da cidade no que ela se

    tornou passa, ainda, pelo debate sobre a sociedade urbana, pela discusso de um projeto

    capaz de orientar as transformao da cidade construda sob a lgica da acumulao

    capitalista em suas contradies. nesta medida que transformao do espao se alia a

    necessidade da compreenso desse movimento/momento da realidade pela Geografia.

    Assim, a transformao do espao urbano exige a transformao da Geografia.

    Algumas consideraes se fazem necessrias para pensar a orientao da disciplina: a) a

    provisoriedade do conhecimento decorrente da prpria dinmica da realidade que

    determina o trabalho de pesquisa no existe uma verdade absoluta; b) a existncia de

    vrias possibilidades terico-metodolgicas abertas elaborao do pensamento geogrfico

    sobre a acidade e o urbano o que envolve o debate entre autores de diversas tendncias

    no existe um caminho verdadeiro e um falso; c) o fato de que tanto a cidade quanto o

    urbano so objetos de anlise de vrias disciplinas e campos do conhecimento; d) a noo

    de que a crtica, que se impe como necessidade intrnseca da produo do conhecimento,

    tende a se esterilizar no mundo moderno, e precisa, portanto, ser revalorizada e revitalizada.

    Do ponto de vista da Geografia Urbana podemos pensar o urbano como o modo pelo qual a

    reproduo do espao se realiza na contemporaneidade, como realidade e como

    possibilidade. Nesta direo, coloca-se a necessidade a) de desvendar a realidade urbana

    que aparece e vem sendo apresentada como catica num mundo em crise que, em sua

    dimenso scio-espacial, desafia a compreenso dos gegrafos frente s profundas

    mudanas no espao e no tempo; b) de pensar os novos contedos da urbanizao

    superando as anlises que a restringem a uma questo quantitativa referente ao aumento

    do nmero dos habitantes nas cidades e aglomeraes urbanas; c) de pensar a pratica scio-

    espacial como momento explicativo que revela a profunda indissociabilidade entre produo

    do ser humano e a produo do espao.

    Nesta perspectiva, o processo de produo do espao (como categoria central direcionadora

    da construo de um raciocnio sobre a cidade e o urbano) tem como pressuposto a

    natureza, e, neste sentido, aponta a atividade humana como produtora e transformadora,

    movida por vontade e disposio, acasos e determinaes. Nesse processo, transforma-se a

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    96

    6

    natureza em mundo, uma realidade, essencialmente, social. Essa luta na construo do

    mundo a condio constitutiva do espao urbano.

    O mundo como produo, no movimento das relaes sociais, supera, hoje, as fronteiras e,

    encontra-se cada vez mais distante de uma natureza primeira. Se por um lado o homem

    produz, em vrios momentos histricos, as condies necessrias produo/reproduo da

    vida, por outro ele o faz produzindo a si mesmo como sujeito ativo. Essa atividade produz

    um mundo e um conhecimento sobre esse mundo. Mas se a realidade uma construo

    objetiva, material, ao mesmo tempo, a sociedade, para alm de um processo de objetivao,

    contempla um processo de subjetivao na medida em que ela adquire conscincia prtica

    desta mesma realidade. Deste modo, o processo de subjetivao no se refere ao plano

    fechado do indivduo, deslocado de uma prtica scio-espacial produtora de uma

    conscincia coletiva (o vivido e o percebido inter-relacionados e no separados em sua pura

    subjetividade ou presa s particularidades do espao).

    Assim, atravs da Geografia, possvel construir um pensamento capaz de revelar o

    movimento que vai da localizao dos homens e de suas atividades na superfcie da terra

    produo do espao como momento da produo da vida em todas as suas dimenses

    (numa articulao dos planos econmico, poltico e social) como movimento da reproduo

    da sociedade ao longo da histria. Nessa direo, a anlise do espao urbano apresenta-se

    como reveladora das relaes sociais: sua produo e o caminho de sua reproduo.

    O pressuposto do qual partimos para a construo da disciplina, nesta perspectiva terica,

    o de compreender a produo do espao urbano como condio/meio e produto da

    reproduo social, processo que revela, hoje, a profunda contradio entre a produo

    social do espao e sua apropriao privada, indicando o espao-tempo onde se confrontam

    as necessidades da acumulao do capital em conflito com as necessidades da reproduo

    da vida em seus significados mais profundos. A centralidade da noo de produo aponta

    quela da reproduo do espao e permite considerar o movimento que vai da

    diferenciao espacial como anlise das particularidades dos lugares, ao estudo da prtica

    scio-espacial como contedo do lugar revelando a condio objetiva da existncia humana

    em suas alienaes e focando a fragmentao do espao localizada no universo mercantil, e

    a segregao como produto da imploso/exploso da cidade no movimento do processo de

    urbanizao contempornea (advinda do processo de industrializao) apontando a

    propriedade privada da riqueza como definidora dos modos de acesso cidade. Nesta

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    97

    7

    condio, a propriedade paira abstratamente sobre a sociedade, redefinindo os modos de

    uso dos lugares, delimitando e direcionando a prtica espacial, explicitamente, nos limites

    impostos apropriao do tempo e do espao. Isto porque a reproduo do espao repe,

    constantemente, a dialtica entre apropriao/propriedade privada justificada pelos

    poderes jurdicos atravs do papel disciplinador do Estado (construo de instrumentos de

    controle do espao e de direcionamento dos investimentos). Por sua vez a ao do capital

    em direo acumulao, como processo de valorizao constante sobre a base reprodutiva

    da sociedade, produz novas representaes, induzindo a universalizao dos valores de

    consumo, a desterritorializao da cultura, com a crescente eficcia das mdias. Com isso

    celebra-se o presente como consumo do espetculo constante, enquanto a vida se realiza

    como reino da passividade quase absoluta. A reproduo ancorada em valores de consumo

    universais, valores morais ancorados no mundo do dinheiro e da produo de imagens a ele

    associada, cria a falncia dos referenciais que sustentam a vida urbana, posto que

    constituidores da identidade. Com isto, a exploso dos lugares da vida, a transformao dos

    hbitos que embasam a sociedade e um modo de vida urbano que se estabelece sustentado

    por uma nova ordem que penetra concretamente a prtica scio-espacial, construindo uma

    identidade abstrata (CARLOS, 2001) que amlgama a sociedade moderna gerando novas

    formas de conflito. Esse movimento aponta a necessidade da compreenso da esfera do

    cotidiano como um espao e um tempo subsumidos lgica da acumulao sob a gide do

    Estado. Sua anlise tambm revela as lutas pelo e em torno do espao como lugar/produo

    da vida humana. Isto porque, a contradio que funda e explicita a reproduo do espao

    urbano (a produo social em confronto com sua apropriao privada) desdobra-se no

    mundo moderno, como a vitria do valor de troca em relao ao valor de uso realizando-se

    na prtica scio-espacial como negao da apropriao. O domnio do valor de troca - como

    condio da existncia e extenso da propriedade privada e das relaes capitalistas de

    produo - esvazia o uso produzindo a cidade como fragmentao de lugares e momentos

    da vida urbana que aprofunda a desigualdade encontrando seu limite na exacerbada

    concentrao da riqueza. A anlise do cotidiano, todavia, ilumina duas situaes em conflito

    que permeiam e fundam a prtica scio-espacial (que contm um tempo vivido): as formas

    de alienaes vividas e o devir que orienta o pensamento e um projeto de sociedade.

    O urbano como realidade tem materialidade na cidade. Mas se possvel reconhecer, como

    faz Lefebvre (1953), que para cada forma artstica corresponde um sentido humano, a

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    98

    8

    pintura e a escultura para o olho, a msica para o ouvido, ainda podemos acrescentar a

    culinria para o gosto, a cidade, enquanto prtico-sensvel, neste raciocnio, pode ser

    relacionada ao corpo, mas enquanto tal, ele inclui todos os sentidos humanos. Assim, a

    cidade analisada como obra de arte produzida para corpo vivida pelo homem atravs de

    todos os seus sentidos. Todavia a cidade como obra de arte no a produo de um s

    indivduo, seno do conjunto da sociedade o que dispe um indivduo em relao ao outro

    da relao. Com isso, a cidade obra de todos para cada um a histria particular

    realizando-se como histria coletiva. Esse o raciocnio que orienta o entendimento da

    cidade como criao, como objeto rico de sentido e nesta condio, a cidade possibilidade

    capaz de liberar o ser humano de seus limites(CARLOS, 2005, p. 226).

    O contedo da urbanizao desvenda-se, assim, a partir das dimenses espaciais deste

    processo. Como toda atividade de conhecimento, o pesquisador situa-se num lugar, o

    desenvolvimento da disciplina tem com o ponto de partida e chegada a metrpole de So

    Paulo o que implica pensar a metrpole como especificidade lugar de onde possvel

    construir uma compreenso sobre nossa sociedade que se apresenta, hoje, como

    sociedade urbana. Todavia, uma questo se estabelece: pensar o mundo e nossa condio

    no mundo a partir da cidade e, particularmente da metrpole, a garantia necessria a

    partir da qual se poderia ler o mundo contemporneo?

    Sobre os contedos

    A noo de "produo do espao" coloca-se no centro do debate e orienta a reflexo,

    trazendo novas exigncias tericas. A interpretao materialista do espao e

    consequentemente do tempo focando a espacialidade das relaes sociais permite, como

    j adiantamos, superar as anlises que veem no espao a localizao das atividades humanas

    permitindo pensar a produo do espao encontrando o sujeito produtor em suas condies

    histricas determinadas. Isso significa, do ponto de vista da Geografia, a indissociabilidade

    entre produo do espao e produo da vida (a produo no sentido amplo - produo por

    ela mesma do ser humano implica e corresponde aquela das ideias, das representaes, da

    linguagem) exprimindo o fato de que os homens s realizam sua vida atravs da

    apropriao-uso dos lugares sem os quais a vida no se realiza, o que envolve o corpo e

    todos os seus sentidos. J a cidade como conceito e realidade concreta realiza-se numa

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    99

    9

    mirade de espaos-tempos justapostos; os da troca, do lazer, da circulao, do trabalho,

    reunindo e centralizando todos os elementos que do sentido vida social. Nesta direo o

    desvendamento da cidade aponta a compreenso do urbano no contexto da constituio da

    humanidade do homem. Assim, pensar a cidade e o urbano pensar a vida do homem, seus

    desejos e necessidades, como determinada sociedade vive e se reproduz na cidade e como

    pensa o seu futuro e aquele da cidade. Deste modo a questo espacial se coloca no plano da

    construo do humano na medida em que o ato de produo do espao , em si mesmo,

    produo da vida. A anlise urbana, ao revelar a reproduo da vida em todos os seus

    sentidos, revela momentos de alienao desalienao, passividade e luta. Esta a tese que

    fundamenta a construo das hipteses que, em seu conjunto, denotam a totalidade do

    fenmeno urbano, permitindo sua compreenso.

    Primeira hiptese: A Geografia se abre para a construo da compreenso do mundo

    atravs da espacialidade das relaes sociais. Nessa perspectiva podemos entender as

    relaes sociais materializando-se na condio de relaes espaciais (com significados

    diferenciados em funo do momento histrico) permitindo situar o pensamento na prxis

    como prtica scio-espacial. A produo do espao um momento necessrio da produo

    da vida, na medida em que a existncia dos homens depende de uma condio material

    inicialmente seu corpo em relao com a natureza e posteriormente, criando um segunda

    natureza como condio da re-produo da vida. Este faz-se como desdobramento do

    processo de produo apoiado em novas tcnicas que desenvolvem as foras produtivas,

    permitindo um distanciamento cada vez maior da natureza em direo construo de um

    mundo social - a cidade como trabalho materializado. Deste modo a compreenso da cidade

    e do urbano ilumina a vida urbana o tema portanto, ao mesmo tempo em que analisado

    pela Geografia escapa a ela tanto no plano da totalidade do fenmeno quanto no mbito

    das cincias humanas. Deste modo esse encaminhamento no objetiva justificar uma

    Geografia, mas discernir/refletir sobre a realidade urbana como possibilidade contida na

    espacialidade das relaes sociais.

    Tal procedimento supera um pecado original da anlise geogrfica: a iluso criada de uma

    transparncia do espao que em sua materialidade se esgotaria numa objetividade absoluta

    o quadro fsico e sua representao no mapa encobrindo os contedos sociais.

    Segunda hiptese: Ao longo do tempo histrico um processo ininterrupto de produo

    ilumina a constituio da cidade e do urbano. Deste modo, a cidade se revela como obra da

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    100

    0

    0

    histria humana constituindo-se em cada momento com particularidades especficas (em

    sua determinaes histricas), revelando os contedos do mundo em seu movimento e

    tendncias. Portanto o movimento interno da produo do espao encontra finalidade na

    constituio do "social". Expresso e significao da vida humana, a cidade obra,

    constituda ao longo do processo histrico cumulativo, neste sentido contm e revela aes

    passadas ao mesmo tempo que o futuro se constri nas tramas do presente, atravs das

    tendncias que contempla uma multiplicidade de formas, temporalidades diferenciadas.

    Aqui o mtodo progressivo-regressivo permite encontrar na histria dos modos de produo

    uma histria da cidade, como periodizao possvel como continuidade/descontinuidade

    em seus pontos de ruptura. A longa durao diz respeito ao processo de gnese da cidade,

    mas o retorno histria da cidade objetiva buscar aquilo que a funda: a hierarquizao da

    sociedade em classes, a diviso do trabalho, o exerccio do poder, suas representaes.

    Terceira hiptese: O processo de acumulao que na hiptese anterior aparecia como

    pressuposto da construo do mundo que explicita o capitalismo, aqui se revela como

    produto da histria. O movimento que vai da histria do processo de produo da cidade

    quele da metrpole revela o momento da generalizao do urbano que se situa no

    processo geral de industrializao que ao se reproduzir ultrapassa seus limites iniciais

    estendendo-se desmesuradamente no espao e penetrando profundamente a vida

    cotidiana, transformando-a. A metrpole como fora produtiva do capital o momento

    negativo : a negao da cidade e da vida cotidiana na cidade. Portanto sua constituio

    revela uma transformao necessria da reproduo das condies gerais do capitalismo

    como processo de acumulao ampliada. Sua existncia aponta a disposio diferenciada de

    lugares como condio geral no mbito da reproduo do capital envolvendo as relaes

    sociais. Estes aparecem no mbito da lgica do espao como integrao-desintegrao-

    hierarquizao dos lugares.

    O desenvolvimento da industrializao tem um sentido quantitativo - a produo cada vez

    mais ampliada de produtos e relaes sociais (e de propriedade) que a sustentam e

    qualitativo produo do mundo da mercadoria como realidade urbana ampliada, como

    sentido de uma sociedade que caminha em direo constituio do urbano: uma ordem

    em que predomina o valor de troca sobre o valor de uso, contraditoriamente. No processo

    o prprio espao que se transforma em mercadoria apesar de diferente das outras

    mercadorias, posto que contempla sua prpria negao.

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    101

    0

    1

    Quarta hiptese: A reproduo do espao urbano, sob o capitalismo, aponta a vitria do

    valor de troca sobre o valor de uso. A extenso do mundo da mercadoria tomou o espao,

    produzindo-o como mercadoria. Trata-se de uma relao social que pela dupla

    determinao do trabalho (satisfazer uma necessidade e gerar mais valor) cria a contradio

    valor de uso/ valor de troca. A produo do espao enquanto mercadoria faz do acesso ao

    uso uma relao necessariamente mediada pelo mercado imobilirio, o qual coordenado

    pela lgica de aes polticas e pelo controle sobre a tcnica e do saber (assentadas em

    relaes de dominao-subordinao/uso-apropriao). Do ponto de vista da acumulao, a

    metrpole surge como localizao e suporte das relaes sociais de produo (e de

    propriedade) condio e meio da realizao concreta do ciclo reprodutivo do capital,

    recriando, constantemente, os lugares propcios de realizao dos momentos de produo,

    distribuio, circulao, troca e consumo de mercadorias - tanto materiais quanto imateriais,

    como possibilidade sempre ampliada de realizao do capital. Por outro lado, o espao

    urbano, na condio de mercadoria, entra no circuito de valorizao e todos os lugares se

    submetem a esta lgica.

    Quinta hiptese: O capitalismo cria incessantemente suas prprias condies de

    reproduo. O momento atual aquele da ampliao do mercado mundial do processo de

    reproduo capitalista, da redefinio das centralidades, envolvendo todo o espao. Abre-se,

    assim duas dimenses; a) mundialidade como constituio do espao mundial com a

    manifestao de novas contradies e o aprofundamento entre os espaos integrados-

    desintegrados ao capitalismo globalizado, sob a gide do estado redefinindo a relao deste

    com a economia e com o espao, b) as transformaes no nvel do local, vividas nas prticas

    da vida cotidiana. A mundializao traz um contedo social ao processo econmico,

    colocando-nos diante da constituio tendencial de um espao mundial e de uma sociedade

    urbana. Novas relaes espao-tempo, como momento da reproduo da vida na cidade,

    apontam a construo de um tempo efmero e de um espao amnsico. Neste processo a

    metrpole se constitui como importante mediao entre o local e o mundial.

    No plano do lugar, a generalizao da urbanizao e da formao de uma sociedade urbana

    impe os padres de comportamento, o modo de vida, os valores, obedecendo a uma

    racionalidade inerente ao processo de reproduo das relaes sociais. A produo do

    espao como momento da vida faz parte do conjunto das produes que permitem sua

    realizao constante num determinado lugar e tempo definidos (aquela da proximidade,

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    102

    0

    2

    mas unindo e justapondo escalas) interligando-se dialeticamente escala do mundial, que se

    anuncia hoje com a expanso do capitalismo.

    Uma tendncia homogeneizao, caminha, progressivamente, ao lado de um processo de

    fragmentao do espao e da sociedade posto que, a acumulao produz uma racionalidade

    homogeneizante inerente ao processo, que no se realiza apenas produzindo

    objetos/mercadorias mas, ligando-se cada vez mais, produo do espao-mercadoria que

    se realiza pela fragmentao de parcelas do espao compradas e vendidas no mercado

    imobilirio. Neste movimento subjugou o uso, como condio de realizao da vida social, s

    necessidades da reproduo econmica, como imposio da acumulao. nesse processo

    que o valor de troca ganha uma amplitude profunda. O limite deste processo pode ser

    constatado pela produo dos simulacros espaciais proporcionados, seja pelas exigncias do

    desenvolvimento do turismo, seja como decorrncia de revitalizaes urbanas.

    Sexta hiptese: O cotidiano se constitui como produto da histria; isto , como

    consequncia do processo de reproduo da sociedade envolvendo uma relao espao-

    tempo. Como categoria de anlise, o cotidiano, desloca o enfoque do processo de

    reproduo do plano econmico para o plano social a reproduo das relaes sociais

    determinadas num outro patamar. Nesta dimenso o cotidiano constitui-se como produto

    da histria. Ele, portanto explica: a) a vida cotidiana em suas relaes espao-temporais e

    em sua completa subsuno s necessidades do desenvolvimento do processo de

    reproduo econmica; b) as novas relaes entre as esferas do econmico e do poltico,

    dando um novo sentido para o Estado que vai reproduzir-se atravs da produo estratgica

    do espao; c) o valor de troca invadindo o espao, subjugando a vida e os contedos da

    prtica espacial e explicitando as lutas em torno da moradia e dos acessos ao urbano.

    Este o momento em que, no plano do econmico, o desenvolvimento do mundo da

    mercadoria cria, desenvolve e aprofunda a sociedade do consumo, a qual reduz o cidado

    passividade crescente redefinindo as relaes entre as pessoas, reorientando as energias e

    os sonhos pela profuso de produtos e servio sofisticados e sempre atualizados,

    implodindo as relaes tradicionais, forjando um novo tipo de identidade baseada na

    indiferena em relao ao outro. A atomizao das relaes, permite vislumbrar a

    emergncia do que Horkheimer chamou de um novo ser no mundo (um novo

    individualismo marcado pela imposio do reino do objeto sobre um indivduo manipulado e

    programado).

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    103

    0

    3

    Stima hiptese: As condies de estabilidade do capitalismo e sua manuteno exigem a

    acumulao ampliada. Na metrpole esse processo se realiza em sua plenitude sinalizando

    um presente contraditrio crtico e um futuro em construo. O que est em jogo um

    novo momento da histria da sociedade capitalista que muda radicalmente a vida e as

    formas de sua apreenso pelo cidado envolto na instaurao do cotidiano. O novo no

    processo aponta um movimento de passagem da hegemonia do capital industrial ao capital

    financeiro no movimento do processo de mundializao no contexto geral que objetiva a

    realizao do valor. Se a expanso do mundo da mercadoria produziu o espao urbano como

    mercadoria, num primeiro momento, em seguida a prpria cidade se torna mercadoria.

    Desse modo os processos se aceleram.

    A metrpole se transforma com uma velocidade incrivelmente grande o que antes

    demorava dcadas, de repente, se transforma em poucos anos. O mundo contemporneo se

    reproduz atravs de estratgias e manipulaes do capital financeiro cada vez mais

    desterritorializado. A produo dos novos e imensos edifcios multifuncionais tornam a

    cidade obsoleta. Explodida, a cidade revela-se segregada pelo desenvolvimento da

    propriedade privada da riqueza que associa concentrao de renda (acesso ao

    emprego/ingresso ao mercado/ acesso aos lugares privilegiados da cidade) aos usos do

    espao urbano. O Estado, atravs do planejamento, reproduz um espao de dominao,

    homogneo que ora entra em contradio/conflito com o espao dos interesses especficos

    da reproduo do capital, ora se alia a ele.

    A cidade do sculo XXI expressa a segregao como forma da desigualdade social.

    Segregao no como separao entre grupos no espao urbano descontnuo, mas como

    produto do movimento de realizao da propriedade privada da riqueza que na produo do

    espao urbano revela-se atravs da propriedade privada do solo urbano. Tal situao cria

    confrontos que se desdobram na luta pelo direito cidade.

    Oitava hiptese: A cidade como negcio. Podemos distinguir dois momentos importantes

    do processo de urbanizao da metrpole de So Paulo; a urbanizao imediatamente,

    decorrente do processo de industrializao processo marcado pela acumulao do capital

    industrial, a partir da acumulao proveniente da agricultura cafeeira criando as grandes

    periferias, com a imploso da cidade e o momento em que o processo de urbanizao tem

    por contedo a realizao do capital financeiro. O que h de novo neste processo que o

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    104

    0

    4

    setor financeiro vai se realizar atravs do espao, isto , produzindo o espao. O capital

    tende a migrar de um setor ao outro da economia e quando isto ocorre, uma nova

    infraestrutura se torna necessria como condio e meio para que este processo se realize.

    Isso significa dizer que a centralizao financeira vai apontar um fenmeno importante: o

    capital financeiro se realiza, hoje, atravs da produo do espao como exigncia da

    acumulao continuada do capital, sob novas modalidades articuladas ao plano do mundial,

    constituindo, em So Paulo um eixo financeiro empresarial que se estende desde o centro

    da metrpole em direo ao sudoeste, ocupando reas antigas de industrializao. A

    reproduo do espao urbano da metrpole sinaliza, portanto, o momento em que o capital

    financeiro se realiza tambm atravs da produo de um novo espao sob a forma de

    produto imobilirio voltado ao mercado de locao, (fundamentalmente no que se refere

    aos edifcios corporativos de escritrios, rede hoteleira e flats) numa estratgia que associa

    vrias fraes do capital a partir do atendimento do setor de servios modernos. Neste

    sentido, estabelece-se um movimento de passagem da predominncia/presena do capital

    industrial produtor de mercadorias destinada ao consumo individual (ou produtivo)

    preponderncia do capital financeiro que produz o espao como mercadoria enquanto

    condio de sua realizao.

    Nona hiptese: A produo da cidade como exterioridade, percebida como estranhamento,

    atualiza a forma da alienao no mundo moderno. A normatizao das relaes sociais, a

    rarefao dos lugares de encontros, a deteriorao do espaos pblicos, a retrao da esfera

    pblica, tudo isso se estabelece como mal-estar, como estranhamento. A instaurao do

    cotidiano como atomizao, ao mesmo tempo que superorganizao da vida, impe-se sem

    resistncia, delineando uma nova urbanidade. Campo da autorregulao voluntria e

    planificada, o cotidiano aparece como construo da sociedade, que se organiza segundo

    uma ordem fortemente burocratizada; preenchido por represses e coaes imperceptveis.

    Esse processo que se realiza no lugar, revela articulaes espaciais mais amplas. A

    possibilidade criativa est reduzida, confinada; a cidade se ope ao indivduo enquanto

    objeto estranho; como potncia independente; a alienao se estende por toda a vida do

    habitante.

    A contradio entre o processo de produo social do espao e sua apropriao privada

    marca e delimita a vida cotidiana A prtica ganha sentido na reproduo das relaes sociais,

    onde se defrontam as estratgias da reproduo das fraes de capital e da realizao da

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    105

    0

    5

    vida social significativamente. No processo h degradao de formas e relaes sociais

    antigas frente ao estabelecimento de novas relaes num movimento de preservao

    degradaotransformao, enquanto caracterstica do processo de reproduo das

    relaes sociais, hoje. Portanto a prtica espacial vai revelar a extrema dissociao dos

    elementos da vida como separao dos espaostempos da vida cotidiana separando o

    lugar de moradia do lugar do trabalho, criando espaos precpuos para o lazer (geralmente

    com acesso pago, direta ou indiretamente esvaziando a rua, e deteriorando os espaos

    pblicos), criando dificuldades de locomoo (CARLOS, 2009).

    No plano do vivido (espao e tempo do vivido) aparecem entrecortados, fragmentados por

    atividades divididas e circunscritas, em que o habitar enquanto ato social vai desaparecendo

    medida que a habitao se reduz a abrigo. Portanto, no espao concretiza-se a

    justaposio entre morfologia social e morfologia espacial que define o acesso e lugar de

    cada um no espao, revelando uma hierarquia social enquanto prtica scio-espacial. Isso

    significa dizer que se a realizao do capitalismo hoje produziu o espao como sua condio

    de reproduo. Nessa condio, produziu um espao fundado na contradio entre os

    espaos integrados ao capitalismo globalizado atravs do capital financeiro e os espaos das

    imensas periferias onde a privao do trabalho, da alimentao, da moradia, de uma vida

    digna, a tnica dominante. Mas desta situao emerge aquilo que a nega. Est posta na

    vida cotidiana a possibilidade de atravs da insurgncia (pela constituio da conscincia da

    prtica scio-espacial) do enfrentamento contra o empobrecimento da vida em todos os

    sentidos. Assim a prtica scio-espacial enquanto realizao das necessidades da vida

    cotidiana e da manuteno da vida uma ao se contrape reproduo que escapa ao

    plano da sociedade. Os movimentos sociais revelam o contedo de exigncias

    diferenciadas; tanto a urgncia da moradia, do emprego e dos servios, quanto atravs do

    questionamento das polticas pblicas, questionando o planejamento estatal que aprofunda,

    as desigualdades. Esses movimentos, no seio da sociedade, apontam a instabilidade, se

    defrontam com a propriedade na prtica scio-espacial vivida visando a apropriao no

    apenas como o outro da propriedade, mas como possibilidade poitica o humano como

    criao prtica e a prtica enquanto realizao do humano. Neste momento o projeto de

    uma outra sociedade surge como dialtica necessidade/desejo que pressupe a conscincia

    daquilo que impede que a vida de realiza em sua plenitude.

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    106

    0

    6

    Dcima hiptese: O direto cidade como horizonte para a construo de um projeto de

    sociedade. O pensamento de Marx ao manter a unidade do real e do conhecimento, da

    natureza e do homem, do presente e do futuro, explora uma totalidade em devir. No

    mundo moderno este pensamento permite atualizar a utopia. Os movimentos sociais na

    cidade surgem como manifestao contrria vida cotidiana normatizada e esvaziada do

    sentido da vida; impem a construo de um espao que negue o habitat produzido sob a

    racionalidade da reproduo poltico-econmica no habitar como realizao da vida que

    transcende o plano especfico da moradia, reunindo os elementos que sustentam a

    cidadania. O ato de morar o ato de habitar, que no se restringe ao espao do privado,

    mas envolve as relaes com os espaos pblicos como os lugares da realizao da

    sociabilidade, dos encontros, da esfera pblica, portanto do debate, da criao e da festa.

    Assim, o indivduo se coloca no espao na relao com o outro, e nesse sentido que a

    prtica scio-espacial revela o uso, como expresso potica que aponta a cidade como

    obra.

    Um exerccio de mtodo

    A crtica, como atitude, envolve captar as possibilidades existentes num mundo em

    transformao, em sua complexidade como totalidade realizando-se, hoje, como

    mundialidade, ultrapassando a mera constatao das coisas. Isto exige a crtica da Geografia,

    abrindo o caminho terico necessrio para elucidar a dialtica do mundo. Com isso a

    necessidade de superar a aparente transparncia do espao que produziu vrias

    simplificaes como uma disciplina restrita ao mundo fenomnico, apoiada na constatao

    de um espao imediatamente objetivo em sua materialidade absoluta, e orientada pela

    descrio. Portanto a compreenso envolve a exigncia de um momento crtico como

    aquele da interrogao, da busca da totalidade como necessidade de superao das

    fragmentaes s quais o pensamento ou a Geografia esto submetidos, atravs da busca de

    categorias universais de anlise.

    "Da noo de organizao quela de produo do espao os gegrafos percorreram um

    longo caminho. Neste processo a obra de Marx foi fundamental para iluminar a noo de

    produo em seu desdobramento (a reproduo) no plano da realidade prtica e no mbito

    da filosofia. Nesse processo, o materialismo dialtico, como caminho da pesquisa capaz de

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    107

    0

    7

    orientar o entendimento da realidade, permitiu pensar o espao como mercadoria. Nesta

    condio, permitiu a construo do entendimento do espao capitalista como produo

    social alienada atravs de sua constituio enquanto mercadoria.

    A reproduo tem o sentido da constante produo das relaes sociais estabelecidas a

    partir de prticas espaciais enquanto acumulao, preservao, renovao. A reproduo do

    espao urbano um fenmeno contnuo, em movimento, o que significa que a cidade vai se

    transformando medida, que a sociedade vai se metamorfoseando transformaes que se

    estabelecem no plano do vivido, determinando padres, concretizando a ordem distante, na

    ordem prxima. Os problemas postos pela urbanizao ocorrem no mbito do processo de

    reproduo geral da sociedade, manifestando-se, concretamente, no plano da vida

    cotidiana. A noo de cotidiano, por sua vez, permitiu o deslocamento da anlise do plano

    do econmico quele do social, iluminando as contradies vividas, Ele se liga noo de

    reproduo (a um momento histrico deste processo) que compreende uma multiplicidade

    de aspectos, sentidos, valores. Torna-se, assim, indissocivel as relaes entre a reproduo

    do espao e a reproduo da vida na metrpole a partir da anlise da vida cotidiana lugar

    onde se constata a tendncia desigual e contraditria da instaurao do cotidiano.

    A anlise do urbano engloba, portanto, um universo complexo de relaes em constituio

    da qual no se exclui a ideia de projeto capaz de realizar o direito cidade com a

    participao de todos no controle e gesto da cidade. O processo de transformao da

    sociedade passa pela construo de uma teoria radical, capaz de rasgar o vu ideolgico

    revelando o contedo dessa sociedade capitalista atravs da explicitao de suas

    contradies, e dos projetos que esto na ordem do dia desta sociedade. nesse sentido

    que a dialtica revela sua negatividade e a contradio ganha importncia central. A

    produo do espao no centro da anlise implica um sentido da noo de produo que

    muda os termos do problema em tela enquanto, no mundo moderno, a produo da cidade,

    revela uma problemtica de ordem espacial.

    Sintetizando, a anlise enfoca o movimento do pensamento que vai na direo do concreto,

    para considerar a prtica urbana envolvendo a sociedade em seu conjunto, em sua ao real

    em seu contedo social objetivando-se. Assim, as relaes sociais se materializam

    concretamente na cidade enquanto relaes espaciais. Tal afirmao supera o entendimento

    da cidade como quadro fsico, aglomerado de homens e coisas, abrindo a perspectiva de

    entend-la em sua pluralidade de sentidos - usos possveis, enquanto lugares de

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    108

    0

    8

    convivncia, de reunio, de sociabilidades, lugares, nos quais se desenvolve a vida

    confrontada com as transformaes; em suas persistncias e rupturas; ao mesmo tempo

    em que esperana e desejo.Deste modo nos confrontamos com a realidade em sua dinmica

    contraditria. Sem negar a ideia de centralidade como contedo da noo de cidade, de

    fundamental importncia considerar trs dimenses espao-temporais: a) em sua dimenso

    histrica,a cidade obra da civilizao e nesta condio, produto realizado ao longo de uma

    srie de geraes (portanto trabalho materializado) e, neste plano, aparece como

    acumulao de tempos; b) lugar enquanto prtica social, a cidade espaotempo da ao

    que funda a vida humana em sua objetividade no limitada a um simples campo de

    experincia. Nesta condio, a cidade , por excelncia o lugar da apropriao da vida,

    atravs do corpo e de todos os sentidos, que para Lefebvre so as determinaes do ser

    humano; c) devemos pens-la como virtualidade, possibilidade futura de realizao da vida

    neste plano ela aponta a universalidade do humano.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BOTELHO, Adriano. A produo do espao como estratgia do capital. In: O urbano em

    fragmentos. So Paulo: Annablume, 2009. p. 00-00.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. So Paulo: Editora Contexto, 2011.

    _____. O direto cidade e a construo da meta-geografia. Revista Cidades, Presidente

    Prudente, v. 2, n. 4, p. 221-248, 2005.

    _____. O espao urbano: novos escritos sobre a cidade. So Paulo: FFLCH/USP, 2011.

    Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2012.

    _____. Uma leitura sobre a cidade. Revista Cidades, Presidente Prudente, v. 1, n. 1, p. 11-30,

    2004.

    _____. O lugar no/do mundo. So Paulo: FFLCH/USP, 2011. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 out. 2012.

    _____. A metrpole de So Paulo no contexto da Urbanizao Contempornea. Revista de

    Estudos Avanados, So Paulo, v. 23, n. 66, 2009.

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    109

    0

    9

    _____. A (re)produo do espao urbano. 2. ed. So Paulo: EDUSP, 2008.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri; CARRERAS, Carles. Urbanizao e mundializao: estudos

    sobre a metrpole. In: Urbanizao e Mundializao. So Paulo: Contexto, 2005. p. 29-37.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri; DAMIANI, Amlia Luisa e SEABRA, Odette Carvalho de Lima. O

    espao no fim de sculo: a nova raridade. So Paulo: Contexto, 1999.

    CARLOS, Ana Fani Alessandri; SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria Encarnao. A

    produo do espao urbano: agentes e processos, escalas e desafios. So Paulo: Editora

    Contexto, 2011.

    CORRA, Roberto Lobato. O espao urbano. So Paulo: Editora tica, 1989.

    _____. Rede urbana e formao espacial: uma reflexo considerando o Brasil. Revista

    Territrio, Rio de Janeiro, n. 8; jan./jun. 2000.

    COULANGES, Fustel. A cidade antiga. So Paulo: Martin Claret, 2003.

    DAMIANI, Amlia Luisa. A Urbanizao crtica na metrpole de So Paulo a partir de

    fundamentos da geografia urbana. Anais do 12. Encuentro de Gegrafos de Amrica

    Latina. Montevidu: EGAL, 2009.

    EMPLASA. Reconstruo da memria estatstica da Grande So Paulo. So Paulo: Secretaria

    dos Negcios Metropolitanos,1980.

    GEORGE, Pierre. Geografia urbana. So Paulo: DIFEL, 1983.

    GESP. Grupo de geografia urbana critica radical. Edies FFLCH/USP. Disponvel em:

    (Editora eletrnica de acesso gratuito).

    HARVEY, David. Condio ps-moderna. So Paulo: Ed Loyola, 1992

    _____. A produo capitalista do espao. So Paulo: Annablume, 2005.

    IANNI, Otvio. Sociedade global. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1992.

    LEFEBVRE, Henri. El derecho a la ciudad. 4. ed. Barcelona: Pennsula, 1978.

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    110

    1

    0

    _____. Espao e Poltica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    _____. Introduction lesthtique. Paris: ditions Sociales, 1953

    MATOS, Olgria. A cidade e o tempo. Revista Espao e Debate, So Paulo, n. 7, p. 7-15,

    1983.

    MONBEIG, Pierre. O estudo geogrfico das cidades. Boletim geogrfico, Rio de Janeiro, out.

    1943.

    MUMFORD, Lewis, A cidade na histria. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1965, 2 vol.

    PACQUOT, Thierry, Homo urbanus. Paris: Essai ditions du Flin, 1990.

    REVISTA CIDADES. Presidente Prudente: GEU, 2004/2012.

    RIBEIRO, Luiz. Csar de Queiroz. (org). Metrpoles. So Paulo; Rio de Janeiro: Fundao

    Perseu Abramo; Observatrio das metrpoles; FASE, 2004.

    SALGUEIRO, Teresa Barata. Globalizao e reestruturao urbana. Lisboa: Centro de

    Estudos de Lisboa, 1998. Srie Monografia.

    SANTOS, Milton. O espao dividido: os dois circuitos da economia urbana dos pases

    subdesenvolvidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2004.

    _____. Manual de geografia urbana. So Paulo: EDUSP, 2008.

    SANTOS, Csar Simoni . Negcios da cidade cidade como negcio: uma nova sorte de

    acumulao primitiva do espao. Revista Cidades, Presidente Prudente, GEU, n. 7, 2009.

    SASSEN, Saskia. A cidade global. In: LAVINAS, Lena et alii (org). Reestruturao do espao

    urbano e regional no Brasil. So Paulo: ANPUR/ Hucitec, 1993.

    SEABRA, Odete. Os territrios do uso: cotidiano e modo de vida. Revista Cidades, n. 2,

    2004, p. 181-206.

    SILVA, Jos Borzachiello. (org) A cidade e o urbano: temas para o debate. Fortaleza: EDUFC,

    1997.

  • A "Geografia Urbana" como disciplina: uma abordagem possvel Ana Fani Alessandri Carlos

    Revista do Departamento de Geografia USP, Volume Especial 30 Anos (2012), p. 92-111.

    111

    1

    1

    SINGER, Paul. Economia poltica da urbanizao. So Paulo: CEBRAP; Editora Brasiliense,

    1973.

    SMITH, Neil. Gentrificao: a fronteira e a reestruturao do espao urbano. IN: GEOUSP,

    So Paulo, n. 21, 2007.

    SOJA, Edward. Geografias ps-modernas: A reafirmao do espao na teoria social crtica.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

    SOUZA, Maria Adlia et alii (orgs.). Metrpole e globalizao. So Paulo: CEDESP, 1999.

    SPOSITO, Maria Encarnao Beltro. Cidades mdias: espaos em transio. So Paulo:

    Expresso Popular, 2007.

    _____. (org.) Urbanizao e cidades: perspectivas geogrficas. Presidente Prudente:

    GAsPERR/ UNESP, 2001.

    VASCONCELOS, Pedro. Dois sculos de pensamento sobre a cidade. Ilhus: Editora Editus,

    1999.

    _____ et alii. Novos estudos de geografia urbana brasileira. Salvador: Editora da

    Universidade Federal da Bahia, 1999.