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O ESTUDO DAS RELIGIÕES: ENTRE A HISTÓRIA, A CULTURA E A COMUNICAÇÃO

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O livro ao qual este capítulo pertence trata da relação entrereligião e história em uma perspectiva cultural. Faz parte da culturaa religião e da cultura e religião brasileira a religio cordis, a religiãodo coração. Ela é tão comum neste país que não chama atenção?????????????????????????????????????????????????????????????-????????????????????????????????????????????????????????????????O tema da religião “cordial” me encontrou em 2008.De fato descrevia o mundo unilateralmente como um?? porém, chamou imediatamente a minha atenção, o que o colega chamava um “livro metodista” tinha, sem dúvida nenhuma.

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  • O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

  • Universidade Metodista de So Paulo

    Diretor Geral

    Wilson Roberto Zuccherato

    Conselho Diretor

    Titulares:

    Paulo Borges Campos Jr. (Presidente); Aires Ademir Leal Clavel (Vice-Presidente); Oscar Francisco Alves Jr. (Secretrio); Afranio Gonalves Castro; Augusto Campos de Rezende; Esther Lopes;Jonas Adolfo Sala; Marcos Gomes Trres; Ronilson Carassini; Valdecir BarrerosSuplentes:

    Nelson Custdio Fr; Robson Ramos de Aguiar

    Reitor: Marcio de MoraesPr-Reitora de Graduao: Vera Lcia Gouva StivalettiPr-Reitor de Ps-Graduao e Pesquisa: Fbio Botelho Josgrilberg

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITODIRETORA: Vera Lcia Gouva StivalettiCOORDENADOR DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO: Helmut Renders

    CONSELHO DE POLTICA EDITORIALMarcio de Moraes (presidente); Almir Martins Vieira; Fulvio Cristofoli; Helmut Renders; Isaltino Marcelo Conceio; Mrio Francisco Boratti; Peri Mesquida (re pre sen tante externo); Rodolfo Carlos Martino; Roseli Fischmann; Snia Maria Ribeiro Jaconi

    COMISSO DE PUBLICAESAlmir Martins Vieira (presidente); Helmut Renders; Jos Marques de Melo; Marcelo Mdolo; Rafael Marcus Chiuzi; Sandra Duarte de Souza

    EDITOR EXECUTIVORodrigo Ramos Sathler Rosa

  • O ESTUDO DAS RELIGIES:

    ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A

    COMUNICAO

    UMESPSo Bernardo do Campo, 2014

    ELIANE MOURA SILVA, HELMUT RENDERS

    LEONILDO SILVEIRA CAMPOS(Organizadores)

  • 4Organizadores do livro: Helmut Renders Eliane Moura Silva Leonildo Silveira CamposReviso: Leonildo Silveira Campos; Helmut Renders /LYURQDQFLDGRSDUFLDOPHQWHSHOD8QLYHUVLGDGH(VWDGXDOGH&DPSLQDV8QLFDPS3URJUDPDGH3yV*UDGXDomRHP+LVWyULDFRPUHFXUVRV352(;&$3(6

    (V 2HVWXGRGDVUHOLJL}HVHQWUHDKLVWyULDDFXOWXUDHDFRPXQLFDomR Elaine Moura Silva, Helmut Renders e Leonildo Silveira Campos RUJDQL]DGRUHV6mR%HUQDUGRGR&DPSR8QLYHUVLGDGH Metodista de So Paulo, 2014. 255p.

    %LEOLRJUDD ISBN: 978-85-7814-297-1

    1. Religies 2. Comunicao e religio 3. Mdia e cultura 4. Religiosidade I. Silva, Elaine Moura (org.) II. Renders, Helmut (org.) III. Campos, Leonildo Silveira (org.)

    CDD 201.5

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)%LEOLRWHFD&HQWUDOGD8QLYHUVLGDGH0HWRGLVWDGH6mR3DXOR

    Editora MetodistaTelefone: 55 11 4366-5537

    HPDLOHGLWRUD#PHWRGLVWDEUZZZPHWRGLVWDEUHGLWRUDCapa: Cristiano Freitas

    Editorao eletrnica: Maria Zlia Firmino de SPermutas e atendimento a bibliotecas: Noeme Viana Timb

    Reviso: Paulo Roberto Salles GarciaImpresso:

    As informaes e opinies emitidas nos artigos assinados so de inteira responsabilidade de seus autores, no representando, necessariamente,

    SRVLomRRFLDOGD8QLYHUVLGDGHRXGHVXDPDQWHQHGRUD

    AFILIADA

  • SUMRIO

    ApresentaoEliane Moura Silva ....................................................................................... 7

    35,0(,5$3$57(&8/785$(5(/,*,2CAPTULO 1O fanatismo religioso: representaes, conceitos e prticas contemporneasEliane Moura Silva .....................................................................................21

    CAPTULO 2Fundamentalismos, integrismos y conservadurismos poltico-religiososJulio H. de Santa Ana ...............................................................................39

    CAPTULO 3O sistema de dominao do cl Taniguchi na Igreja Seicho-No-Ie Edilia Mota Diniz......................................................................................67

    6(*81'$3$57(&2081,&$d2(5(/,*,2CAPTULO 4Dimenses emergentes do religioso na cultura miditicaStewart M. Hoover ...................................................................................101

    CAPTULO 5Mdia, religio e mercado: o processo contemporneo de UHDSURSULDomRHUHVVLJQLFDomRGHVLJQRVGR$QWLJRTestamento pelos evanglicos brasileirosMagali do Nascimento Cunha ..............................................................121

  • 6CAPTULO 6O caminho estreito da salvao e o caminho largo da perdio: REVHUYDo}HVVREUHXPDLFRQRJUDDSURWHVWDQWHGRVpFXORLeonildo Silveira Campos .......................................................................143

    CAPTULO 7A religio pectorum evanglica e a religio cordial brasileira: articulao de cidadania ou sinal de adaptao matriz cultural dominante?Helmut Renders ........................................................................................183

    7(5&(,5$3$57(&8/785$(5(/,*,2'2$17,*2,65$(/CAPTULO 8A Tor como reao transformao da sociedade israelita a partir do sculo oitavo a.C.Rainer Kessler ............................................................................................225

    CAPTULO 9 possvel estudar a religio popular judaica com base na literatura bblica?gabo Borges de Souza ..........................................................................245

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    CAPTULO 7A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA: ARTICULAO DE CIDADANIA

    OU SINAL DE ADAPTAO MATRIZ CULTURAL DOMINANTE?

    'RXWRUHP&LrQFLDVGD5HOLJLmRSHOD8QLYHUVLGDGH0HWRGLVWDGH6mR3DXOR8PHVSHSyVGRXWRUHP&LrQFLDVGD5HOLJLmRSHOD8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGH-XL]GH)RUD3URIHVVRUdo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio e do curso de graduao da )DFXOGDGHGH7HRORJLDQD8PHVS(PDLOKHOPXWUHQGHUV#PHWRGLVWDEU

    Helmut Renders*

    IntroduoO livro ao qual este captulo pertence trata da relao entre

    religio e histria em uma perspectiva cultural. Faz parte da cultura a religio e da cultura e religio brasileira a religio cordis, a religio do corao. Ela to comum neste pas que no chama ateno HVSHFLDOHWmRVLJQLFDWLYDTXHDFDERXPDUFDQGRDWpPHVPRFRQ-VV}HVTXHMDPDLVVHFRQVLGHUDULDPHFXPrQLFDVRXFDWROLFyODV

    O tema da religio cordial me encontrou em 2008, quando HVWDYDEXVFDQGRGHQLUDPLQKDFRQWULEXLomRSDUDXPDVHPDQDde estudos dedicada ao centenrio do Credo Social da Igreja Me-todista, um tipo de teologia pblica de 1908. Tentei responder pergunta: Por que o Credo Social no foi to aceito no cotidiano da Igreja como mereceria? Foi o nosso colega Dr. Paulo Ayres Mattos que me entregou como explicao dessa omisso um livreto com o nome O Livrinho do Corao (GOSSNER, 1970). Descobri que Mattos tinha razo quanto viso do mundo desse guia espiritu-al popular: de fato descrevia o mundo unilateralmente como um OXJDUTXHRXSHUVHJXHRXVHGX]DSHVVRDUHOLJLRVD8PGHWDOKHporm, chamou imediatamente a minha ateno: o que o colega chamava um livro metodista tinha, sem dvida nenhuma, uma FDSDFRPXPDLFRQRJUDDFDWyOLFD/RJRGHVFREULDUHODomRHQWUH

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    a publicao e a religio cordis brasilensis da poca colonial e, um pouco mais tarde, a proximidade com a tipologia soteriolgica de Srgio Buarque de Holanda (2008), o homem cordial. Ser que haveria uma associao entre esse guia espiritual metodista, os projetos religiosos coloniais da theologia cordis dos jesutas, carmelitas ou da religio cordis dos franciscanos?1

    A maioria das pesquisas descreve o evanglico2 brasileiro FRPREDVLFDPHQWHDQWLFXOWXUDOeRFDVRGH(ZEDQNDSXG+2/$1-DA, 2008, p. 151) O austero metodismo ou puritanismo jamais RUHVFHUmRQRVWUySLFRVRXGH*LOEHUWR)UHLUHS

    tempo de o cristianismo brasileiro evanglico ir alm e concorrer para HVVHHQULTXHFLPHQWRFRPXPHVFULWRUGRSRUWHHGDDPDUHYROXFLRQiULDHXdiria, de Euclides da Cunha; com um poeta da grandeza de Manuel Bandeira; com um compositor que seja outro Villa-Lobos, que componha baquianas brasileiras que sejam interpretao ao mesmo tempo evanglica e brasileira de Bach. Tambm um caricaturista ou um teatrlogo revolucionariamente evanglico que pela caricatura ou pelo teatro denuncie abusos de ricos que para conservarem um privilgio de classe pretendam se fazer passar por defensores ou conservadores de tradies religiosas ou mesmo do que se intitula s vezes, pomposa e hipocritamente, civilizao crist.

    As palavras de Freire ditas numa conferncia de igrejas pro-testantes foram ouvidas:

    Perguntamos at que ponto a Igreja Evanglica tem penetrado a nossa FXOWXUDDXWrQWLFDRXVHLGHQWLFDGRFRPHODHDWpRQGHVHWHPVREUHSRVWRDUWLFLDOPHQWHDHODRXVHFRORFDGRDRODGRGHODFULDQGRDVVLPXPDHVSpFLHde subcultura da Igreja, que no tem razes na tradio cultural brasileira, nem ter futuro nela. [...] No preciso rejeitar totalmente as contribuies estrangeiras, naquilo que elas tm de valor para enriquecer a condio brasileira. , porm, necessrio abrasileir-las. na sua particularidade e LGHQWLFDomRFRPRSRYRTXHXPDREUDDUWtVWLFDRXRXWUDLQVWLWXLomRFXO-tural podem atingir e manifestar valores universais que contribuem para a verdadeira humanizao do homem, manifestada na encarnao de Jesus Cristo (S.N., 1962, p. 181).

    1 Veja, por exemplo, como o autor contemporneo Decca (2006) considera o homem cor-dial chave e desfecho do todo o empreendimento histrico da obra Razes do Brasil e de reconhecimento da identidade nacional, sem mencionar uma vez o seu equivalente religioso, a religio cordis brasiliensis.

    2 8VDPRVHYDQJpOLFRDTXLQRVHQWLGRSRSXODUTXHDEUDQJHRVSURWHVWDQWHVKLVWyULFRVpentecostais e eventualmente at os neopentecostais.

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    No momento em que se l o comentrio de Freire em contexto, isto , lado ao lado com as contribuies de Almir dos Santos (1962, p. 1-12), Joaquim Beato (1962, p. 13-32) e Celso Furtado (1962, p. 65-88) na mesma publicao, fica claro que a humanizao do homem passa, segundo os participantes dessa conferncia, tanto pela sensibilidade cultural quanto pela sensibilidade cidad e sua FDSDFLGDGHGHGHVDDUDVFRQWUDGLo}HVFXOWXUDLV(QTXDQWR+RODQGDHOD:HEHUDLQGDFRQWDYDFRPRVXFHVVLYRGHVDSDUHFLPHQWRGRhomem cordial pelo processo da secularizao, o protestantismo da dcada de 1960 imaginava um sujeito religioso crtico e abrasileirado.

    Cinquenta anos depois, porm, a situao religiosa mudou PDLVXPDYH]GHIRUPDVLJQLFDWLYD(PYH]GRDSDJDPHQWRGRreligioso na sociedade ou seu recuo esfera privada (Holanda), o socilogo da religio Jos Bittencourt Filho constata no Brasil o desaparecimento do aspecto racional na religio e na sociedade: A 0DWUL]5HOLJLRVD%UDVLOHLUDHQVHMDHD5HOLJLRVLGDGH0DWULFLDOUDWLFDo xtase religioso como uma espcie de pice da experincia direta FRPRVDJUDGR%,77(1&2857),/+2S6HJXQGRRDXWRUessa matriz como [...] substrato da religiosidade do senso comum brasileiro [...] que [...] favorece formas religiosas e induz condutas GHYRFLRQDLV%,77(1&2857),/+2S7DQWRRFDWROLFLV-mo como o [neo] pentecostalismo [...] buscariam os contedos simblicos [...] no legado comum, profundamente enraizados nos coraes e nas mentes da populao na Matriz Religiosa Brasileira %,77(1&2857),/+2SjSURFXUDGDKHJHPRQLDUHOLJLRVD

    Apresento, em seguida, uma hiptese dupla: primeiro, preten-do mostrar que o formato da religio do corao, dominante na FXOWXUDEUDVLOHLUD MXVWLFDVHUHIHULUDHODFRPRUHOLJLmRFRUGLDOparalelo ao sentido atribudo por Holanda, como uma religio que certamente no promoveria cidadania. A segunda parte da hiptese diz respeito quelas vertentes do protestantismo, do pentecostalismo e do neopentecostalismo brasileiro que se ar-ticulam por meio da linguagem pictural e metafrica da religio do corao. Acredito que, em sua essncia, elas reproduzem uma mentalidade bem parecida.

    A religio cordis tem uma longa histria. Ela parte das metforas do corao encontradas nos textos bblicos em que articula uma

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    antropologia judaica ou semtica (corao centro do sentir, querer e discernir) que se depois mistura dependendo do autor com a antropologia greco-romana e sua tendncia de distinguir entre corao (emoo) e crebro (razo). De certo modo temos aqui j a base das duas vertentes da religio cordis:

    Antropologia grega: o catolicismo medieval via a reforma catlica e a vertente do sagrado corao at o ultramontanismo ou a romanizao (como tambm alguns luteranos como Jacob Boehme e Christian Hohenburg);

    Antropologia hebraica: o protestantismo da reforma; o pietista conde Nicolaus de Zinzendorf desenvolve uma mstica comunitria (Unitas Fratrum ou Brdergemeine) e, parcialmente, quietista ou misticista; o anglicano John Wesley propaga uma religio de cora-o e vida. O jansenista Pascal, tendencialmente tambm quietista, faz uma crtica do racionalismo.

    Figura 1 A religio do corao em espaos culturais europeus distintos3

    3 /HJHQGD)UDQoD$OHPDQKD,WiOLD%pOJLFD(VSDQKD3RUWXJDOH,Q-glaterra. Apesar de que o mapa parte das fronteiras de 2013, trata-se de uma distino HQWUHHVSDoRVFXOWXUDLVQmRJHRJUiFRVQRVHQWLGRUtJLGR

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    Religio cordis Jean Eudes (1)Bernardo de Clarval (1) Marie Alcoque (1)Gertrudes de Helfta (2) Blaise Pascal (1)Mechthild de Helfta (2) Johannes Evangelista Gossner (2)Catarina de Siena (3)Antoine Wierix (4) Religio pectorumIgncio de Loyola (5) Martim Lutero (2)Teresa de vila (5) Joo Calvino (1)Joo da Cruz (5) Georgette Montenay (1)Michel Nobletz (1) Andreas Cramer (2)Vincent Huby (1) Christian Hohenburg (2)Francis Quarles (1) Jacob Boehme (2)Hugo Herman (2) Nikolaus de Zinzendorf (2)Benedictus de Haeften (4) John Wesley (6)

    A religio do corao um fenmeno complexo vinculado Europa Ocidental, com caractersticas catlicas e protestantes distintas e, em geral, relacionadas com movimentos de reforma ou de avivamento.4 A pergunta : o que disso tudo chegou ao Brasil?

    1. A religio cordis brasiliensis catlica

    O Humanismo erasmiano, smula catlica da valorizao do homem, respeitada, pois, sua subordinao

    a Deus, foi [...] em pouco tempo, eliminado de Portugal. (PAIVA, 2003, p. 14)

    Depois do Conclio de Trento (1545-1563), foram justamente os trs msticos ibricos Igncio de Loyola, Joo da Cruz e Teresa GHYLODWRGRVDUWLFXODGRUHVGDreligio cordisTXHFRQJXUDUDPDespiritualidade da Igreja Catlica na Amrica Latina e o processo de evangelizao do continente (BINGEMER, 2004, p. 45). A religio cordis forma a unidade mental do sculo 17 longo com incio em HPDRUHGRUGH+$16(1DSXG3$,9$Se explica tambm a importncia dessa forma mentisDWpRPGRsculo 19 (BORRIELLO apud ORIZEM, 2011, s. p.):

    4 8PDYLVmRWUDQVFRQIHVVLRQDODSUHVHQWD&DPSEHOO6DXY\IRFDQD)UDQoDDreher (2004, p. 205-228) discute as vertentes protestantes quanto ao seu grau de misticismo, sem se limitar a religio cordis. Estudos mais crticos quanto aos projetos eclesisticos so de Bingemer (1988, p. 74-105), Porcile (1997a, p. 193-210; 1997b, p.335-344) e Menozzi (2001).

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    [...] a idade moderna viu tambm os dois grandes msticos espanhis, Teresa de Jesus e So Joo da Cruz, que representam o ponto mais alto GDFRGLFDomRGDH[SHULrQFLDPtVWLFDHDRVTXDLVVHUHIHUHPWRGRVRVWHy-logos posteriores. Eles viveram plenamente o clima do Conclio de Trento (1545-1563), que ligava a mstica atividade missionria fora e dentro dos conventos. A mstica tornou-se mstica da ao, foi vivida na reforma car-melitana, e teve sua expresso mais alta, alguns sculos depois, justamente numa santa Carmelita declarada padroeira das misses: Teresa de Lisieux.

    Essa mstica era, ento, uma fora mobilizadora e motivadora que relacionava os primrdios da colnia com o movimento ultra-montanista ou da romanizao. Quando os jesutas chegaram ao Brasil em 1549, ainda no existia o meio importante da divulgao da sua theologia cordis, o gnero dos livros emblemticos. Antoine Wierix publicaria a sua obra Cor Iesv amanti sacrvm somente em 1586 ou 1587. Tudo indica que no existe um exemplar inteiro do livro na Amrica Latina. Porm, h uma pintura no Peru (Figura 2) que se baseou numa das suas gravuras.

    )LJXUD$QWRLQH:LHUL[&RU,HVYDPDQWLVDFUYPHQWUHartista annimo, Peru

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    Alm dessa evidncia indireta, documenta a pgina Project on the Engraved Sources of Spanish Colonial Art mais de 2 mil usos de gravuras como base de pinturas.

    Outra folha do livro, agora em uma edio espanhola, com o emblema La Virgen amamantando Al Nio encontra-se hoje no Museu Nacional da Espanha.5 Entendemo-la como suposta prova de circulao do livro durante a unio ibrica. Ela foi corretamente UHODFLRQDGDFRP$:LHUL[SRUpPQmRVHLGHQWLFRXDVXDRULJHPexata. No se trata de uma folha nica, mas do emblema 19 de Cor Iesv amanti sacrvm, ou seja, da edio de Cor Iesv amanti sacrvm em latim. A traduo para espanhol mostra como o livro j no somente de uso dos padres jesutas para exerccios, nem nas suas escolas. A folha mostra elementos tpicos da religio cordis da reforma catlica. O corao humano retratado como oco, ou seja, foca-se o interior do ser humano. Ao redor dele encontramos nuvens ou anjos e no interior a virgem amamentando o Menino Jesus. Longe do mundo que de fato desapareceu plenamente, representa-se a calma da unio mstica. Apesar de que o gnero dos livros emblemticos no foi muito promovido em Portugal at os meados do sculo 17, o que leva Junior (2011, p. 134) a se referir a uma produo [...] modesta, tardia, frustrante e derivada [...], os irmos Wierix eram os gravuristas preferidos do rei Filipe II (1556-1598) bem presentes na Amrica. Como Sauvy (1989, p. VVHHPVHJXLGD%RUJHVH6RX]DSDUPDP

    Para compreender o poder de expanso de gravuras religiosas neste per-odo, necessrio destacar a importncia de um editor: Christophe Plantin TXHFRPDQGRXDPDLRUWLSRJUDDGD(XURSD2FLGHQWDOQDsegunda metade do sculo 16. Em 10 de junho de 1570 [...] Plantin deteve o monoplio sobre a impresso de livros religiosos de um imenso e pode-roso reino catlico. [...] Este importante editor tinha numerosos gravadores HHGLWRUHVDVHXVHUYLoR(QWUHHOHVGHVWDFDUDPVHDPHQJRVFRPR>@RVirmos Wierix. [...] De Anturpia, hoje situada na Blgica, ele conduziu um dos mais poderosos meios de divulgao contrarreformista.6

    5 Por questo de direitos de reproduo, esta folha no pode ser mostrada aqui. Veja o original em: WIERIX, A. Cor Iesv amanti sacrvm>(PEOHPD@HQWUHHIn: Biblioteca Digital Hispnica. 'LVSRQtYHOHPKWWSFDWDORJREQHHVXKWELQFJLVLUVL["VHDUFKGDWD ELQS!$FHVVRHPPDL

    6 2PRQRSyOLRHXURSHXGDSURGXomRGHOLYURVSDUDR%UDVLOQmRWHUPLQRXFRPRPGD8QLmR,EpULFDHP1R%UDVLORV MHVXtWDVQmRWLQKDPXPDJUiFDDWpTXHIRUDPexpulsos em 1759, e nas redues na Amrica espanhola no antes de 1700.

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    A partir de 1570 podemos ento imaginar o Cor Iesv amanti sacrvm no Brasil, como outras gravuras dos irmos Wierix e de Ana de Jesus.7 Na gravura de Ana de Jesus, parceira carmelita da Teresa, feita por Antoine Wierix, a carmelita segura em suas mos um corao em chamas. Na gravura lemos em latim: Accepte cor PHXPHWFRQJHLOOXGLFXORDPRULVWXLXWGLFDWWLELDQLPDPHDFKD-ritate tua vulnerate sum (Aceite o meu corao e perfure-o com a lana do teu amor; eu te declaro que minha alma est ferida pelo seu amor). Trata-se de uma referncia chamada transverberao do corao, mais uma vez, uma experincia do xtase da unio mstica.8 O corao em chamas era na poca marca registrada da theologia cordis dos jesutas.

    $HVVDIDVHGDXQLmRLEpULFDSHUWHQFHDLQGDXPDELRJUDDGDTeresa de Jesus com o ttulo Amaona Cristiana 6(*85$2mito das amazonas, mulheres guerreiras, faz, originalmente, parte da mitologia grega e europeia. Em 1619, entretanto, j fez duas geraes que ele tinha sido revitalizado e relacionado com Brasil. Francisco de Orellana (1511-1546), depois de um encontro com guerreiras indgenas, deu o nome Amazonas ao rio que ele estava navegando em busca de El Dourado.

    A transposio desse mito para o mundo cristo at mesmo SDUDXPDJXUDFHQWUDOGDUHOLJLmRGRFRUDomRFRPSURYDRWtWXOR$PDoRQD&ULVWm6(*85$9 Na poca, em qu as carmelitas estavam se estabelecendo na Amrica Latina, a descrio de Teresa como Amaona10 Crist destaca seu esprito pioneiro com um olhar para as Amricas. O livro contm somente uma gravura: a experincia da transverberao do corao. A arte simples retrata XPDQMRFRPDHFKDXPDSRPEDUHSUHVHQWDQGRR(VStULWRGH'HXVH7HUHVDGH-HVXVFRPEUDoRVDEHUWDVjHVSHUDGDHFKD(P1619, essa a imagem mais emblemtica de Teresa.

    7 Por questes de direito de reproduo, a gravura no pode ser mostrada aqui. Veja o original em WIERIX, Antoine. Ana de Jess. In: Biblioteca Digital Hispnica. Disponvel HPKWWSEGKEQHHVEQHVHDUFKGHWDOOH!$FHVVRHPPDL

    8 $EDL[RGDJUDYXUDVHHQFRQWUDXPDEUHYHELRJUDDHPHVSDQKRO9 Por questes de diretos de reproduo, a capa do livro no pode ser mostrada aqui. Veja

    RRULJLQDOHP6(*85$%DUWRORPpGHAmaona Cristiana. 'LVSRQtYHOHPKWWSFDWDORJREQHHVXKWELQFJLVLUVLMTU(2\TXE%10$'5,'!$FHVVRHPDJR

    10 Anota-se a forma portuguesa de escrever a palavra. No texto mesmo, aparece tambm a forma espanhola com z.

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    'HSRLVGRILPGD8QLmR ,EpULFDHQFRQWUDPRVHQWUHWDQWRquatro livros emblemticos jesutas no reino de Portugal e todos relacionados com a religio cordis:

    Duas edies da Pia desideria, de Hugo Herman (1646 e DSXG-81,25S

    8PDHGLomRGRV([HUFtFLRV(VSLULWXDLVGH/R\RODDSXG-81,25S

    8POLYURVREUHDYLGDGH7HUHVDGHYLOD$171,2FRPHPEOHPDVPtVWLFRVDSXG-81,252011, p. 138)11.

    Mais uma vez misturam-se livros jesutas da religio cordis com DKLVWyULDGD7HUHVDGHYLOD

    A obra de Herman (1588-1629), originalmente publicada em 1624, considerada a mais divulgada da vertente jesuta. Seus desejos piedosos Pia desideria XVDPDLFRQRJUDDGRFRUDomRpara propagar a unio mstica (Figura 3).

    Figura 3 Herman Hugo, Pia desideria, 1624, Detalhe

    11$LPSRUWkQFLDGH7HUHVDGHYLODSDUDDFRQWUDUUHIRUPDHVSHOKDVHWDPEpPQRIDWRGHque ela foi canonizada no mesmo processo que Igncio de Loyola e Francisco Xavier, o ltimo retratado com um corao em chamas.

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    Todos os emblemas so compostos pelo amor divinus (sempre em forma de cupido12) e a anima humanaHPJHUDOXPDJXUDsem asas).13$VVLPWDPEpPQDVHJXQGDJXUDDanima humana est de joelhos14 e oferece seu corao para o amor divinus que por sua vez segura as duas tbuas dos 10 mandamentos, expres-ses do amor divino representado por dois coraes. A gravura subscrita com Salmo 119.80.15 Enquanto o salmo se refere, origi-nalmente, meditao da Tor como um todo, a imagem a reduz a observao dos dez mandamentos, ou seja, ela enfatiza uma prxis religiosa reservada no catolicismo tradicional ao povo comum. Esta se distingue das exigncias em relao aos e s integrantes das RUGHQVUHOLJLRVDVHVHXVSURJUDPDVGHVDQWLFDomRQRKRUL]RQWHGDSHUIHLomRHGDPRUWLFDomRGRVGHVHMRVSHVVRDLV(QTXDQWRRtexto foca na compreenso da leitura e seu efeito sobre as pessoas (corao) sinaliza a dupla apresentao tanto do corao divino como do corao humano ... a ideia da troca ou da substituio do corao humano pelo corao divino, uma metfora tendencial-mente misticista, por destacar algo imediato, nno processual e no racional, revela mais uma experincia de unio como resultado de contemplao do que uma ao. Essa interpretao corresponde tambm estrutura do livro como um todo, a diviso dele em trs partes que correspondem a via purgartiva, a via illuminativa e a via uniativa do progresso da alma (DIMLER apud RASPA, 2000, p. 65) foca na unio mstica e com isso reproduz a nfase teolgica catlica favorecida durante a reforma catlica ou contrarreforma.16

    12 O catlico Herman inspirou-se no gnero dos livros emblemticos holandeses protes-tantes [das independentes provncias do Norte da Holanda] sobre o amor humano que surgiram entre 1600 e 1620.

    13 Dimler apud Raspa (2000, p. 65) fala da combinao da teoria dos trs estgios da alma no seu caminho para Deus, desenvolvido primeiro por So Bernardo, com a tradio do Cpido-Psique.

    14 A postura ajoelhada sempre acentua o aspecto mais receptivo da contemplatio ou devotio com foco no interior da pessoa (o que corao representa), em distino da pessoa em p ou no caminho da imitatio (devotio moderna) e SUi[LVSLHWDWLV(pietismo, SXULWDQLVPRHQPSURWHVWDQWLVPRKLVWyULFR

    15 )LDWFRUPHXPLPPDFXODWXPLQLXVWLFDWLRQLEXVWXLV, ut non confundat (Seja reto o meu corao nos teus estatutos, para que no seja confundido).

    16 Contribuiu para o fato em si um aspecto tcnico: a visvel e consciente citao de obras conhecidas era no sculo 17 ainda considerado um elemento que valorizava uma obra e aumentava seu prestgio.

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    A tendncia dos sculos 17 e 18 de editar livros emblemti-cos da theologia cordis nas lnguas nacionais um indcio da sua ampla difuso, alm do grupo restrito de conhecedores do latim como a vida de Teresa na propaganda jesuta, algo aparentemente to importante que houve, em 17 anos, trs edies. Isso nos d a impresso de que os jesutas ou interpretaram a mstica de Teresa como parecida sua prpria, ou tentaram criar uma leitura ou para integr-la ao seu cosmo ou para se apropriar da sua popularidade.

    A partir de 1580, houve mais um aspecto favorvel ao uso dos OLYURV1RPGRVpFXOR

    [...] os jesutas se ocupavam da educao das elites nos colgios, das prega-o}HVGD4XDUHVPDHGR$GYHQWRGDVFRQVV}HVSDUDDVSRSXODo}HVHXURSHLDVdas cidades. Numerosos eram os jesutas da provncia ocupados nessas tarefas TXHQmRVHFRQVLGHUDYDPPLVVLRQiULRV&$67(/1$8/(672,/(S

    Infelizmente, no existem mais as bibliotecas desses colgios.17 Borges e Souza (2007, p. 2), porm, contam que a ampla difuso de gravuras de santos se tornou at assunto da Inquisio, quanto interpretao errnea dessas imagens. O colono comum, assim tem-se a impresso, tinha em casa, alm dos altares domsticos, tambm gravuras de santos e santas.

    Contudo, durante todo o perodo colonial no Brasil, o seu exemplo de vida repercutiu em meio sua devoo nas Ordens Terceiras, apesar de essas instituies serem laicas e marianas, e tinham como devoo principal Nossa Senhora do Carmo. Entretanto, notvel a representao imagtica e devocional da santa espanhola em todas as igrejas da Ordem Terceira do Carmo no Brasil, tornando Santa Teresa a segunda santidade mais impor-tante desses templos. Alm disso, a divulgao e devoo principal a Santa 7HUHVD'YLODSUHGRPLQRXQDVLJUHMDVPDVFXOLQDVGR&DUPHORGHVFDOoRQRBrasil nas regies de Salvador e Olinda. (ORAZEM, 2011, p. 8)

    17 Quanto s representaes imagticas dos livros emblemticos em geral, h um clebre exemplo: a reproduo da obra Q. Horatii Flacci Emblemata, de Otto Vaenius (1612), KXPDQLVWDFDWyOLFR-81,25S)5$*$62ORFDOL]DGDQR&RQYHQWR6mRFrancisco em Salvador, na Bahia. Trata-se de azulejos produzidos entre 1743 e 1746, em Lisboa. Elas no representam a theologia cordis dos jesutas. Suas 37 epgrafes mostram uma vida em virtude e ao, no a vida contemplativa. Porm, quanto ao foco temtico da nossa pesquisa, no h indcios que dois outros livros emblemticos do mesmo autor, Amorum emblemata, de 1608, e Amoris divini emblemata, de 1615, tenham circulado no pas de uma ou outra forma.

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    Mas, qual dos trs tipos dominantes dos retratos como escritora ou, posteriormente, como doutora, no momento da experincia mstica, em ascenso ou nos cus predominou entre DVUHSUHVHQWDo}HVGH7HUHVDGHYLODTXDQWRDR%UDVLOFRORQLDO"Segundo Beatriz Coelho (2005, p. 79), A grande reformadora dos Carmelitas Descalos sempre representada, no caso mineiro, vestida com o hbito marrom da ordem, portando um livro e uma SHQDVtPERORVGDJUDQGHGRXWRUDTXHIRL'HIDWRHVVDDUPDomRno pode ser mantida. A observao da pesquisadora vale para o SURJUDPDLFRQRJUiFRGD,JUHMDGH1RVVD6HQKRUDGR&DUPRHPDiamantina, e, indiretamente, poderiam ainda ser consideradas as representaes conjuntas de diversos momentos da santa. Nestas, aparecem, s vezes, imagens ou azulejos de Teresa com livro e pena, porm, lado a lado com outros (sobre o tema ver SEBASTIAN apud ORAZEM, 2011, s. p.).

    Em muitas outras igrejas de Minas e So Paulo, porm, no se trata de programas inteiros. E onde, por exemplo, na Igreja da Ordem Terceira da Nossa Senhora de Carmo de So Paulo, o tema dos doutores da Igreja18 aparece explicitamente, opta-se, no caso de Teresa, pela imagem da ascenso.

    Mas, alm de um ou outro retrato que posteriormente foi FRQVLGHUDGRH[SUHVVmRGRSURJUDPDLFRQRJUiFRGDGRXWRUDGDigreja, o programa do barroco apelava aos sentidos e quis fasci-nar, encantar, seduzir, comover e entusiasmar, como Jos Amadeu Coelho Dias (1998, p. 291-292) bem destaca na sua breve carac-terizao do discurso barroco imagtico como arracional:

    A lei do barroco era precisamente a de atrair os sentidos, fascinar a sen-sibilidade esttica, encantar e seduzir o gosto, numa palavra, comover e entusiasmar. Reagiu contra a paganizao natural da Renascena, contra o pauperismo simplista da teologia luterana e contra o despojamento do culto protestante sem altar nem imagens. [...] pela sensibilidade procurava-se convencer a razo e abrir o esprito dos crentes para os grandes dogmas misteriosos e a-racionais da religio catlica.

    18 Assim tambm Antonio Wierix (1555-1604) em seu ciclo dos pais da Igreja (Biblio-JUDItD(VSDxROD&IKWWSFDWDORJREQHHVXKWELQFJLVLUVL["VHDUFKGDWD 0LQS!

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    'LDVDWpLGHQWLFDRhomo religiosus romanus (DIAS, 2003, p. 302) como homem barroco:

    O homem barroco, enquanto espcime que sintetiza uma poca [...] um paradigma de emotividade e musculosidade, de sensibilidade e sen-sualidade, de desejos e paixes, de aspiraes e impulsos, de esperanas e iluses. neste cortejo de contradies que se compendia o triunfo do barroco, primeira vista esplendoroso e dourado, pletrico de exaltao HGHIHVWDPDVQDUHDOLGDGHRFRGHOXVyULRVXSpUXRVHPFRQVLVWrQFLD(DIAS, 2003, p. 293)

    Da mesma forma Teresa lembrada, em primeiro lugar, pela sua mstica, no pelo uso da sua razo:

    O crescimento do interesse pela religio provoca uma intensa publicao de obras de cunho religioso, como vida de santos, obras litrgicas, narrativas sobre milagres e herosmo cristos, meditaes msticas, especialmente as de Santa Tereza. A mestra carmelita, Santa Tereza, exerceu uma grande LQXrQFLDQDVIRUPDVGHYLYHUHSHQVDUDUHOLJLmRSULQFLSDOPHQWHSRUYLDfeminina. Seus escritos e sua busca pelo centro da alma, o desligamento LQWHJUDOGDVFRLVDVPXQGDQDVHDFHUWH]DGHRXWUROXJDURSDUDtVR]HUDPmuitas mulheres seguir sua proposta mstica, seu estilo de vida e se sentirem motivadas a fundar instituies religiosas. (ALMEIDA, 2007, p. 37, 39-40)

    Mais outro fato, entretanto, limitava ainda mais o potencial libertador da unio mstica articulada pela religio cordial. No Brasil colonial, as igrejas carmelitas eram das famlias da nobreza colonial e das classes altas. A preferncia dos setores elevados da sociedade colonial por uma ordem religiosa com foco na unio mstica e no na imitao de Cristo no cotidiano compreensvel por garantir o acesso ao essencial da religio at num sentido elevado, entretanto, plenamente desconectado do cotidiano de uma sociedade escravagista.

    A Ordem Terceira do Carmo foi uma instituio que atuou principalmente como uma organizao social de brancos e de pureza de sangue, smbolos de poder no perodo colonial. Portanto, a Ordem Terceira do Carmo foi uma irmandade onde se associavam as pessoas mais importantes da regio, ou seja, funcionrios pblicos, donos de engenho, comerciantes, entre outros. $OJXQVSHVTXLVDGRUHVFRPR5XVVHO:RRGDUPDPTXHDSURVVmR

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    da maioria dos irmos da Ordem Terceira foi de negociantes, latifundirios que trocavam seus produtos por mercadorias. (ORAZEM, 2011a)

    Assim, o potencial da religio do corao de ajudar articular LQGLYLGXDOLGDGHHDOWHULGDGHDOpPGDVOHLWXUDVLQVWLWXFLRQDLVHR-ciais foi reservado aos crculos eruditos e do poder da sociedade FRORQLDOFRPHIHLWRGHEOLQGDJHPFRQWUDSRVVtYHLVUHWLFDo}HVGHoutros grupos sociais. A santa mais prestigiada da contrarreforma tinha sido incorporada no mundo colonial ao lado dos mandantes e coronis. A busca da santidade foi reduzida procura de uma relao mais ntima com Deus, no interpretada como um projeto contnuo de construo de relacionamentos mais justos e mutu-amente comprometidos com o bem comum de todos os seres KXPDQRV7XGRLVVRSRGLDFDUIRUDVHPPDQFKDURXSHUWXUEDUa experincia religiosa da unio mstica na sua essncia. Ela fa-YRUHFHXRVLVWHPDFRORQLDOSRUWXJXrVHVHEHQHFLRXFRPHOHGHforma especial: ao lado dos jesutas, as carmelitas tinham o maior nmero de escravos em comparao com as outras ordens religio-sas. Se os jesutas tinham sido os queridos da Coroa, as carmelitas se tornaram os queridos da Colnia. Porm, isso no durou muito tempo: a proibio da aceitao de novios durante o reinado de D. Maria I (1777-1816) [...] resultou em notrio envelhecimento e esvaziamento dos inmeros conventos da poca, absolutamente em decadncia no sculo 19 (CAMPOS, 2001, p. 58).

    Nas capelas e nos mosteiros beneditinos brasileiros, encon-tramos com frequncia a memria de Gertrude. Segundo Geraldo Dias (2003, p. 304), isso era comum:

    Das santas da Ordem, mereceram particular venerao Santa Escolstica, a irm de S. Bento, as msticas e contemplativas beneditino-cistercienses Santa Gertrudes a Magna, com altar ou imagens em todos os mosteiros e cuja vida chegou a ser escrita em empresas, Santa Lutgarda e Santa Ida, precursoras da devoo humanidade e paixo do Senhor, em certa medida antecipadoras no sculo 18 da devoo ao Corao de Jesus.

    possvel ver (Figura 4) a rara representao de Gertrude em barro cozido do sculo 17, originalmente do Convento de Santa Clara, de So Paulo. O corao, segurado com as duas mos,

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    contm o Menino Jesus e em sua parte superior encontramos ou chamas, ou raios de sol.

    Figura 4 Santa Gertrude, So Paulo, Brasil, sculo 17

    O Menino Jesus parece tambm segurar um corao na mo esquerda. O imaginrio plenamente positivo, sinaliza a presena de Jesus no interior de Gertrude, seu brilho e sua atitude amorosa RIHUHFLPHQWRGRFRUDomR-iHPUHODomRDRVIUDGHVD LGHQWL-cao passa pela atribuio do corao a Santo Antnio, mesmo TXHWDPEpPQmRVHMDPXLWRFRPXP8PH[HPSORHQFRQWUDVHHPTiradentes, MG, na Igreja Matriz de Santo Antnio (1710-1732), onde o smbolo do corao foi pintado num dos painis no forro da nave da igreja, na posio central e mais perto do altar-mor.

    Depois da expulso dos jesutas, os franciscanos assumiram diversas capelas, como no caso de So Miguel Paulista. L na sua H[LELomRSHUPDQHQWHHQFRQWUDPRVGXDVJXUDVFRPFRUDomR'HIDWRQmRKiLQIRUPDo}HVVREUHRULJHPGDJXUDDYLQFXODomRORFDOe tempo) com essa capela franciscana ou sua funo devocional. O FRUDomRGRXUDGRFRPDVOHWUDV,+6OHPEUDDLFRQRJUDDGRMHVXtWD

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    Francisco Xavier, a roupa de um franciscano. Franciscanos assumem aqui a theologia cordis jesuta, apesar de que a sua tradio seja mais a das chagas e do corao ferido?19 Ou se trata de exemplos UDUtVVLPRVGHJXUDVDLQGDMHVXtWDV"

    Como no restante do mundo, a celebrao da devoo do corao de Jesus ganhou novos impulsos depois do Vaticano I e FRPDEHDWLFDomRGH0DUJXHULWH0DULH$ODFRTXHHP3HV-soa-chave na divulgao no Brasil foi o padre jesuta Bartolomeu Taddei, fundador do Centro Brasileiro do Apostolado da Orao em Itu, SP, em 1871, seu primeiro diretor nacional e fundador da edio brasileira da revista Mensageiros do Corao de Jesus.

    O Apostolado da orao enfatizava a consagrao da famlia, de cidades, de pases e do mundo na sua ntegra e cultivava uma mstica de vida interior, privada e eucarstica: a 12 das doze pro-messas, tambm chamada a grande promessa, vincula a promessa da salvao, explicitamente descrita em termos transcendentes, mediante a participao em nove celebraes seguidas nas pri-meiras sextas-feiras do ms.

    Importante pela sua divulgao, pois j fora celebrada no pas logo na primeira parte do sculo 19, ganhou a devoo uma nova fora e direo com a construo da primeira Igreja Catlica do Sagrado Corao de Jesus, em Itu, SP, pelos jesutas, em 1904.

    [...] a devoo ao Corao de Jesus recebeu uma forte carga promocional dos papas, por Encclicas, e pelos bispos reformadores que consagraram as suas dioceses ao Corao de Jesus, como a do Cear e a de So Paulo, entre outras. Essa devoo encontrou tambm grande ressonncia en-tre os catlicos, sobretudo quando remodelada na expresso de Cristo Rei, tornando-se, sem dvida, um dos baluartes mais importantes para a consolidao do catolicismo ultramontano no Brasil. A imagem do Cristo Redentor, inaugurada pelo Cardeal Leme em 1933, no topo do Corcovado, de braos abertos sobre a Guanabara, coroou com xito esse processo de consagrao, agora em nvel nacional. (GAETA, 1997)

    As palavras de Dom Sebastio Leme pronunciadas na consa-grao do monumento no deixam dvidas de que o Cristo do Corcovado era visto como representao da reconquista da na-19 Assim, por exemplo, nas igrejas da Ordem Terceira Franciscana em So Joo Del Rey e

    Ouro Preto.

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    o brasileira que se tinha tornado republicana: [...] esta sagrada imagem seja o smbolo do vosso domnio, do vosso amparo, da vossa predileo, da vossa bno que paira sobre o Brasil e sobre RVEUDVLOHLURV>@9$/'8*$SSo Bento das Flores uma leitura alternativa?

    Apesar das evidncias da articulao do projeto colonial me-diante a religio cordis, h sempre a possibilidade de leituras alter-QDWLYDVDRSURMHWRRFLDOHGRPLQDQWH$FUHGLWRTXHXPDUHOHLWXUDoposta ao projeto dominante ocorreu nas chamadas Fraternidades dos Homens Pretos (cf. RENDERS, 2013a, 109-132). o caso dos FHUFDGHGDVJXUDVGH6mR%HQWRGDV)ORUHVTXHFRQWrPDLQGDRFRUDomRFRPRDWULEXWRKDJLRJUiFRDGLFLRQDO)LJXUDFigura 5 So Benedito, So Paulo, sculo 17

    O So Benedito do corao o So Benedito do rosrio, ou seja, o santo dos milagres feitos a favor dos pobres.20 Com isso, o

    20 (PGLVWLQomRGR6mR%HQHGLWRFRPRDWULEXWRKDJLRJUiFRGR0HQLQR-HVXVTXHOHPEUDuma experincia exttica do santo. A esse retrato dominante de So Benedito no Brasil colonial e contemporneo, o corao nunca foi acrescido.

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    imaginrio da religio cordis transcende, por exemplo, em compara-o com as carmelitas, a classe social e passa do atendimento das necessidades religiosas dos senhores escravagistas da terra para o cotidiano dos escravos e dos pobres portugueses da Colnia. Tal-vez explicasse essa provocao tambm o nmero relativamente restrito de esculturas de So Benedito com esta caracterstica: a apropriao aconteceu de formal pontual, mas, no geral, seja pela rejeio das classes altas que reclamavam a sua espiritualidade para VLVHMDSHODIDOWDGHLGHQWLFDomRFRPHVVDPtVWLFDSHODVFODVVHVbaixas considerando a mstica dos senhores.

    A religio cordis brasiliensis protestanteJ mencionei que a religio pectorum, a religio do peito dos

    protestantes e pietistas, partiu de Lutero e Calvino e foi depois desenvolvida, primeiro, pela calvinista Georgette de Montenay (cf. RENDERS, 2013b, 132-153) e segundo, pelo luterano Daniel Cramer. Porm, anotei tambm textos luteranos que simplesmente copiavam DLFRQRJUDDGH:LHUL[FRPRQRFDVRGH&KULVWLDQ+RKHQEXUJou desenvolveram um misticismo alternativo, como no caso da WHRVRDGH-DFRE%RHKPH0DVRTXHGLVVRWXGRFKHJRXDR%UDVLO"O Livrinho do corao: edies luteranas, presbiterianas, metodistas, pentecostais e batistas brasileiras

    Do protestantismo da misso atuante no Brasil, somente os metodistas tinham uma religio cordis prpria, a religio de cora-o e vida de John Wesley. Porm, a pesquisa mostra que esse elemento no era importante antes da dcada de 50 do sculo 20 (cf. RENDERS, 2011, p. 181-198).

    Mesmo assim houve uma expresso protestante da religio GRFRUDomRVLJQLFDWLYDGHVGHDGpFDGDGHO Livrinho de corao, livro escrito em 1822 por Johann Evangelista Gossner, na poca um padre catlico da Bavria dedicado misso popular FI5(1'(56FS6XDLFRQRJUDDSDUWHGH$QWRLQHWierix, Michel Nobletz e Vincent Huby, todos da reforma catlica (cf. RENDERS, 2012b, 65-73). Condio do sucesso no Brasil era a certamente converso do autor em 1829 para o luteranismo onde ele fez parte de um grupo ultraconservador (cf. RENDERS,

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    2012b, 73-74) e sua ligao com a Associao de Misso de Basileia e a Sociedade Evanglica de Barmen. Ao redor de 1860, o seu livro tinha se tornado um fenmeno de distribuio em todos os campos de misso protestantes do sculo 19, especialmente alemes e anglo-saxes (MDERSHEIM, 2010). Portanto, h certa probabilidade do uso de uma edio alem entre os luteranos pioneiros, acompanhados pela Sociedade Missionria de Barmen, a partir de 1865.21

    Temos, entretanto, certeza de que a primeira verso do livro em portugus data de 1914, traduzida do alemo pelo pastor presbiteriano Jensen (Figura 6).

    Figura 6 Gossner, 1914 [1 edio em portugus]

    21 A prova direta, porm, no encontramos at agora. Achamos, entretanto, uma edio brasileira em lngua alem (GOSSNER, 1932) da editora da Deutschen Vereinigung fr Evangelisation und Volksmission8QLmR$OHPmSDUD(YDQJHOL]DomRH0LVVmRGR3RYRGHPonta Grossa, Paran, compilada e editada por Friedrich Wilhelm Brepohl. Parece que para ele, um defensor da Igreja do Reino (Reichskirche) e do nacional-socialismo, os dois iderios aparentemente se completaram, ou no mnimo, no contradisseram.

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    O ttulo O Livrinho do Corao no segue o do original Das Herz des Menschen (O corao do ser humano).22 Alm disso, o autor mudou a sequncia dos dez emblemas e criou uma primeira VHTXrQFLDTXHWHUPLQDFRPDPRUWHGRLQHOHPEOHPDHXPDVHJXQGDTXHQDOL]DFRPDPRUWHGRMXVWRHPEOHPD23 No sabemos at quando a edio presbiteriana foi publicada, porm encontramos edies idnticas editadas pela Imprensa Metodista na 20 edio, em 1970 e, durante todo ano de 1916, uma propaganda no ([SRVLWRU&ULVWmR MRUQDORFLDOGD,JUHMD0HWRGLVWDGR%UDVLO

    Na dcada de 1950, houve uma terceira iniciativa indepen-dente de publicar o texto no Brasil. Dessa vez era uma editora sul-americana e pentecostal, All Nations Gospel Publishers (Figura 7). Nela manteve-se o nome original do livro, O corao do homem, inclusive a sequncia original das estampas; porm, houve outras intervenes editoriais entre as quais a mais grave era a completa omisso das referncias s origens catlicas do livro. Desde 1998, h tambm a publicao do livro por uma editora batista auto-rizada pela All Nations Gospel Publishers. Em 2007, ele estava na sua 9 edio (Figura 8) e representa uma reproduo idntica edio pentecostal.

    Viso panormica das edies[1864: Incio do trabalho da Sociedade Evanglica de Barmen entre os lu-teranos no Rio Grande do Sul];1932: Edio da editora da Deutschen Vereinigung fr Evangelisation und Volksmission em Ponta Grossa, Paran;1914-1950 [?]: Edies da Igreja Presbiteriana do Brasil;1916 [?]-1970: 20 edies da Igreja Metodista;1955 [?]-2011: O corao do homem: [?] edies da All Nations Gospel Pu-blishers distribudas entre igrejas pentecostais como a Assembleia de Deus;1998-2008: 10 edies da editora batista Vida Nova.

    22 Por acaso encontramos, porm, a expresso Herzbchlein (o equivalente em alemo para Livrinho do Corao) numa defesa de tratados da Associao de Misso de Basileia 6&+8/7+(66S7DOYH]WUDWHVHHQWmRGRWtWXORXVDGRQDVHGLo}HVGDREUDdivulgadas por essa sociedade de misso?

    23 Com essa reorganizao, Jensen aproxima o discurso do livro ao discurso dos dois caminhos.

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    Figura 7 Edio All Nations, 2003, p. 33

    Figura 8 Edio batista, 2008, p. 40

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    Quanto proximidade da mstica colonial, basta conferir a proximidade simblica entre as cruzes franciscanas com o que encontrado at hoje, por exemplo, em Tiradentes, MG, e diversos emblemas do livro.24 Enquanto as edies presbiterianas e meto-distas falam da origem catlica para depois construir a ideia de uma espiritualidade transversal, as edies pentecostal e batista omitem essa passagem no texto e substituem um dos diversos FUXFL[RVSRUXPDFUX]YD]LD

    Apesar das diferenas, todas as edies representam o mesmo imaginrio religioso que segue basicamente o da reforma catlica com sua tendncia da negao do ser humano como sujeito da histria e agente transformador no mundo. Assim, as diversas edi-es brasileiras de O Livrinho do Corao ou Corao do homem ajudam a construir uma confessionalidade transdenominacional independente das ortodoxias doutrinrias e litrgicas de cada GDVVXDVVHGHV(ODVDUPDPXPDIpHPRWLYDHDQWLUUDFLRQDOFXMDcosmologia dicotmica orienta o ser humano a se proteger do demonaco e a procurar a ajuda divina. Com a sua nfase nos cinco pecados mortais mais uma vez, repertrio clssico catlico , o ser humano instrudo a viver uma vida em simplicidade, sem grandes pretenses, peas funcionais num mundo governado pela disputa entre o demonaco e o divino; basta cuidar da sua virtude pessoal. O que talvez tenha sido um conselho razovel nas guerras napolenicas certamente acabava sendo anacronista em uma re-pblica, ou democracia, por no promover ao cvica e cidadania.

    Da experincia de Aldersgate ao corao aquecido: discursos lingusticos entre a religio pectorum e a religio cordial

    Em 1959, o missionrio americano Duncan Alexander Reily, na poca, secretrio-geral de Misses e Evangelizao (1952-1960), deu um impulso para projetar uma religio cordis wesleyanesis brasiliensis:25 Aldersgate e ns: manifesto Igreja Metodista do 24 Tanto as cruzes franciscanas quanto O LivrinhoGHIDWRUHSURGX]HPDLFRQRJUDDGD

    missa de Gregrio. 25 Baseamos o argumento num levantamento de dados sobre o surgimento do uso da

    expresso corao aquecido no ([SRVLWRU&ULVWmRjornal da Igreja Metodista. Partimos GDWHVHGHTXHDGLYXOJDomRSHORyUJmRRFLDOUHSUHVHQWDSULPHLURDEXVFDGHXPFRQ-senso comum e, segundo, a sua crescente aceitao. Concentramo-nos nas publicaes feitas no ms de maio de 1888 at 2008.

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    %UDVLOQRGLDGHPDLR5(,/@S(PRXWURtexto da mesma edio de ([SRVLWRU&ULVWmR de autoria de Ercy Tei-xeira Braga, Wesley foi considerado um avivalista a altura de Moody (!) cuja [...] tarefa correspondeu extenso do Poder que recebeu. 8PPrVGHSRLVRPHVPRDXWRU(UF\7HL[HLUD%UDJDSHVFODUHFLDTXHHOHQmRHUDSHQWHFRVWDO%5$*$p. 7). As leituras de Reily e de Braga marcam, de certo modo, duas vertentes da interpretao de Aldersgate no metodismo brasileiro, e isso se repetiria, bem mais tarde, nos discursos imagticos do corao aquecido.

    Em 1981 apareceu, pela primeira vez, a expresso experin-cia do corao aquecido, destacada no texto em negrito (S.N., TXLQ]HQDSHHQWURXSHODSULPHLUDYH]HPem um ttulo, Os coraes novamente aquecidos (S.N., 2 quinzena SPDVSRUHQTXDQWRFRPRSHUJXQWD$OGHUVJDWHDSHQDVFRUDomRTXHQWH"5(,/

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    Bispo Adriel Maia (2008, p. 67-70) contextualiza essa vertente da seguinte maneira:

    1RQDOGDGpFDGDGHKDYLDQDLJUHMDRJUXSRFRQVHUYDGRUFKDPDGRtradicional); o grupo ligado Teologia da Libertao; e o outro grupo, de-nominado Corao Aquecido. Este ltimo proclamava a necessidade de XPDH[SHULrQFLDGHDYLYDPHQWRHVDQWLFDomR>@2HYHQWRUHDOL]DGRHPoutubro de 1987, foi muito esperado e tivemos bispo Richard como pre-OHWRU>@(PVXDVPLQLVWUDo}HVRELVSRDSRQWRXRVLJQLFDGRGREDWLVPRno Esprito Santo [descrito como] [...] novos nveis de comunho com Deus e com o outro, eleio de novos padres de vida relacional de unidade e alijamento do individualismo, do isolamento e do espiritualismo.

    Bispo Richard rejeita, ento, por um lado, o misticismo (espiri-tualismo) e se ope a uniformizar a experincia religiosa metodista segundo o padro pentecostal. Por outro lado, usou o conceito pentecostal batismo no Esprito Santo, discurso que criou a pr-pria autodinmica. De l migrou a designao de um movimento da igreja para a descrio de uma igreja como todo: Somos o SRYRGRFRUDomRDTXHFLGR/HQGiULDDXWRGHQLomRPHWRGLVWDIUXWRdo testemunho da experincia que John Wesley teve com Deus (IGREJA METODISTA DE SARANDI, 2008; FERNANDES e LIMA, 2008). )LQDOPHQWHVXUJLUDPQRPGDGpFDGDGHDVFHOHEUDo}HVGRcorao aquecido como eventos anuais (Figura 9).

    Figura 9 Logotipo da Celebrao do Corao Aquecido, So Paulo, 2008

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    O smbolo da Celebrao do Corao Aquecido um corao HPFKDPDVPDLVHVSHFLFDPHQWHXPFRUDomRKXPDQRDTXHFLGRpela chama do Esprito Santo. Sem dvida, trata-se da visualiza-o de uma proposta de avivamento. O corao macio lembra a tradio protestante de preservar o sujeito ou a personalidade; porm, desapareceu plenamente a referncia ao mundo, natureza, jFXOWXUDHQPRIRFRHVWiQDUHODomRHQWUHRVHUKXPDQRH'HXVno na relao Deus ser humano mundo. O aspecto das chamas SDUWHGDLFRQRJUDDMHVXtWDHPDLVDLQGDGDVJUDYXUDVGH*RVVQHUO corao abrasado da Igreja Metodista Wesleyana

    A Igreja Metodista Wesleyana uma igreja pentecostal que saiu da Igreja Metodista do Brasil em 1967. Segundo os seus his-toriadores,

    As razes que deram origem Igreja basearam-se na doutrina do batismo com o Esprito Santo como sendo uma segunda bno para o crente [...] [e] na aceitao dos dons espirituais. [...] Quando usamos a terminologia Wesleyana, queremos lembrar ao povo a experincia do corao abrasado pelo poder de Deus. (IMW, 2009)

    Mesmo que aqui, literalmente, no se iguale a experincia do corao abrasado com a do batismo no Esprito, essa leitura continua a ser bastante popular. Assim, por exemplo, na pgina na internet da Igreja Metodista Wesleyana de Itana, SP:

    No dia 24 de maio de 1738, numa pequena reunio, ouvindo a leitura de um antigo comentrio escrito por Martinho Lutero, pai da Reforma Pro-testante, sobre a carta aos Romanos, John sente seu corao se aquecer (entende-se que Wesley experimentava o batismo no Esprito Santo). (destaque feito pelo autor)

    O texto acompanhado pelo seguinte emblema do corao abrasado (Figura 10):

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    $,0:LQWHUSUHWDZHVOH\DQDHQWmRFRPRUHODFLRQDGRDJohn Wesley (1703-1791) sob uma perspectiva, entretanto, muito HVSHFtFDGDH[SHULrQFLDGH$OGHUVJDWHGHVFULWDFRPR>@DH[-perincia do corao abrasado pelo poder de Deus (destaque feito pelo autor). De fato, encontramos na mesma igreja, no discurso PDLVRFLDOXPGHVORFDPHQWRGDH[SHULrQFLDUHOLJLRVDGRHYHQWRhistrico que, dessa forma, abre a possibilidade para uma releitura contempornea em que a nfase no poder de Deus representa o foco na construo da identidade denominacional (cf. CALEB, 2010, p. 12). O logotipo da Igreja, criado em 2009 (Figura 11), consagra o processo simbolicamente.

    O logotipo da Igreja Universal do Reino de Deus e a religio cordial

    J mencionamos que J. Cabral, defensor da espiritualidade do FRUDomRDTXHFLGRSDVVRXDVHUFRODERUDGRUFKDYHQD,JUHMD8QL-YHUVDOGR5HLQRGH'HXV,85'IXQGDGDHP6HXVHJXQGRlogotipo um corao vermelho com uma pomba branca no centro (Figura 12) foi criado aproximadamente entre 1985 e 1990.

    )LJXUD$([SHULrQFLDGR&RUDomRAquecido (abrasado), IMW, Itana, SP, 2011

    Figura 11 Segundo logotipo da IMW, 2009

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    -iQRSULPHLURROKDUSHUFHEHVHXPDSUR[LPLGDGHLFRQRJUiFDcom representaes do Divino Esprito Santo (Figura 13), e talvez o nome da igreja tenha se inspirado no lema do Apostolado de Orao este grande promotor da devoo do sagrado corao de Jesus: Venha a ns o teu Reino.27-iRIRFRGD,85'QDPRUDGDde demnios no corao segue claramente o imaginrio reprodu-zido por O Livrinho do Corao, de Johann Evangelista Gossner, o que conecta essa igreja neopentecostal com os imaginrios da romanizao e da reforma catlica.

    Uma vertente protestante alternativaO metodismo, porm, tinha uma segunda leitura da religio

    cordis, aquela qual se referia Alexander Duncan Reily na dca-da de 1950 e que ele caracterizou em 1981 como no somente um corao aquecido. Reily partiu da religio do corao e da vida (Religion of heart and life) de John Wesley, spiritus rector do movimento metodista na Inglaterra que, sua vez, estabeleceu sua leitura da religio cordis em distino da misticista por causa disso, vida e racionalista por causa disso, corao da religio.

    27 Lembro tambm que o Apostolado de Orao, grande promotor da devoo do sa-grado corao de Jesus, tinha como lema: Venha a ns o teu reino. De l para Igreja 8QLYHUVDOGR5HLQRGH'HXVpVRPHQWHXPLQVWDQWH

    Figura 12 Logotipo da IURD, entre 1985 e 1990

    Figura 13 Divino Esprito Santo, 2009

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    2SHVTXLVDGRUGiFRQWLQXLGDGHDSURSRVWDVFRPRGH(GZDUG(1919, p. 47, 49-50), que descreveu a religio do corao ardente como obrigao social:

    [...] a experincia crist ambos individual e social, ela pertence a ns, mas pertence tambm aos outros. [...] Pouco percebemos como os nossos capri-chos so constantemente corrigidos pela saudvel atmosfera da comunho crist. O misticismo seria transformado em mero vapor, excentricidades seriam insuportveis [...] Nossa experincia, portanto, pertence aos outros para o bem comum de todos.

    Anota-se que o autor relaciona a religio do corao aque-cido com uma experincia religiosa declaradamente distinta do misticismo e obrigatoriamente comprometida com o bem comum de todos, ainda mediante uma citao direta do livro Teologia do evangelho social, de Walter Rauschenbusch (1917).

    4XDQWRDR%UDVLOSRGHPRVDUPDUTXHHQWUHDVGpFDGDVGH1930 e 1950 conclios metodistas se articularam desfavoravelmente ao chamado misticismo, ou seja, justamente contra aquilo que O Livrinho do Corao em grande parte representava. O misticismo isolado da Sociedade indiferente aos sofrimentos do homem no serve para o mundo moderno. O Evangelho que ns pregamos uma fora social transformadora (IGREJA METODISTA DO BRASIL, 1934, p. 96). Tambm Barbieri (1938, p. 8), em seu livro sobre a ao social, conclua:

    H ainda outras que se esforam para que o indivduo se desapegue de tudo que o ligue ao mundo, tornando-o quase um estranho ao seu meio ambiente. O crente deve pensar no cu, esperar o cu, suspirar pelo cu. A terra lugar maldito, infame, sujeito completamente ao poder do mal. O que ama a Deus deve aborrecer a terra, que com seus encantos aparentes procura engazopar o homem para atir-lo ao abismo da perdio. a su-blimao do egosmo. a divinizao do individualismo.

    Guaracy Silveira (1943, p. 219-220, 220-221), discute o tema comparando Lutero com um dos pais do misticismo latino-ame-ricano, Loyola:

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    Lutero e Loyola andaram pelo mesmo caminho, em procura da salvao [...] Depois, numa encruzilhada, cada um tomou rumo quase diametralmente oposto. Loyola enveredou pela estrada dos cavaleiros andantes, do romance, da lenda e do misticismo. [...] Loyola via na Igreja tudo quanto era puro, tudo quanto era santo, tudo quanto era nobre, e se entregou de corpo e alma a GHIHQGrODFRPRHUDHVHPTXDOTXHUSUHWHQVmRGHUHIRUPiODRXPRGLFi--la. A simples ideia de que houvesse na Igreja rugas ou defeitos seria para o novo cavaleiro crime to grande como para d. Quixote, duvidassem dos predicados e da beleza de Dulcineia. [...] Na mesma encruzilhada de Loyola, o monge de Wittenberg no se deixou levar pelas fantasias. Enveredou pela estrada mais positiva, e mais de acordo com a realidade dos fatos.

    Fica evidente que, para Silveira, romance [...], lenda [...], mis-ticismo [e] fantasias eram elementos de um s sistema de pensar santidade sem pretenso de transformao do mundo. Terminamos com Buyers (1945, p. 9) e sua distino entre mstica e um misticismo ... da unio com Deus que priva o homem da sua personalidade.

    No houve tentativa alguma desse grupo de telogos bra-sileiros de se reapropriar do discurso da religio do corao no sentido proposto j por John Wesley e conect-lo, por exemplo, segundo o exemplo estadunidense citado, com uma espiritualidade capaz de articular o evangelho social. Supomos que esse espao j esteve ocupado por O Livrinho do Corao, cujos contedos, como vimos, tais autores combateram abertamente. Entretanto, na dcada de 1980, houve uma representao imagtica dessa vertente, no por acaso na capa de uma tica teolgica, escrita pelo telogo da libertao Jos Miguz Bonino (Figura 14):

    Figura 14 Capa do livro Ama e faze o que quiseres, de M. Bonino, 1982

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    A ilustrao cita a pintura A criao de Ado, da Capela Cistina. As mos de Deus e de Ado constroem em conjunto o DPRUQDSUi[LVGDYLGD'HQLWLYDPHQWHHVVHGLVFXUVRHVWiHPJUDQGHSUR[LPLGDGHFRPDSURSRVWDGH(GZDUGVHQmRUHSURGX]um misticismo encurvado em si mesmo.

    Consideraes intermedirias

    A religio cordis brasilienses como religio cordialNossa primeira observao se refere presena contnua da

    religio do corao no Brasil. Quanto presena catlica, no deve causar muita surpresa para o conhecedor da histria da contrar-reforma ou reforma catlica, sendo a religio cordis uma das suas linguagens prediletas:

    Tabela 1 Theologia cordis, transverberao do corao, sagrado corao de Jesus

    Dentro dessas vertentes dominam aquelas que reproduzem o GLVFXUVRRFLDOGD,JUHMDVHPLJQRUDUDSRVVLELOLGDGHGHOHLWXUDValternativas pontuais.

    A relativamente ampla presena de uma religio do corao protestante, pentecostal e neopentecostal, mesmo que tenha sido, s vezes, de carter mais pontual, nem sempre deve ser to clara para a maioria dos estudiosos.

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    Tabela 2 O Livrinho do Corao, corao abrasado, corao aquecido28

    Repare-se como o fenmeno parte da articulao do projeto GDUHOLJLmRFRORQLDOHDFDEDVHQGRUHHWLGRSHORSURWHVWDQWLVPRDWpo neopentecostalismo no sculo 20. Essa viso mais panormica mostra a importncia da religio do corao em solo brasileiro. Quanto aos protestantes, a divulgao de O Livrinho do Corao marca a primeira fase; j o discurso alternativo protestante, en-FRQWUDGRQRVEUDV}HVGH/XWHURH&DOYLQRFDRXEHPUHVWULWRDRmundo germnico dos luteranos ou , sutilmente, sequestrado para introduzir o discurso misticista (Jensen).

    O fenmeno de um movimento de avivamento construdo ao redor do imaginrio de um corao em chamas, aquecido ou abrasado, uma especialidade metodista com grande proximida-GHGHSURSRVWDVFDWyOLFDVGHPRELOL]DomRGHpLVSDUDREMHWLYRVreligiosos mediante da nfase na paixo, eventualmente, talvez at tambm da compaixo (o que seria um caminho mais promissor).

    28 Legenda: LdC L: Livrinho do Corao, distribudo pela Igreja Luterana; IPB: Livrinho do Corao, editado pela Igreja Presbiteriana do Brasil; IM: Livrinho do Corao, editado pela Igreja Metodista do Brasil; IM [cor. aquec.]: Movimento do Corao Aquecido na Igreja Metodista; IM [cor. abras.]: Movimento do Corao Abrasado na Igreja Metodista Wesleyana; IMW [logo]: Logo Cruz e corao em chamas da Igreja Metodista Wesleyana; ,85'>ORJR@/RJRFRUDomRFRPSRPEDGD,JUHMD8QLYHUVDOGH5HLQRGH'HXV

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    Apesar disso existe um discurso alternativo e engajado na luta pela promoo do bem comum, em grande parte ignorado no Brasil.

    Finalmente, a criao de logotipos por igrejas pentecostais e neopentecostais representa que esse processo, em dois casos, foi DOpPGRQtYHOGRPRYLPHQWRHFKHJRXDWpRGDLGHQWLFDomRGHuma igreja toda com o respectivo movimento. Tanto as expresses catlicas quanto protestantes, pentecostais e neopentecostais partem ou da convico da necessidade de reforma, renovao, contrarreforma, etc. ou da vontade de re-conquistar um espao perdido ou ainda no assumido, a partir de uma macia e impac-tante comoo da pessoa, causada por uma noo extraordinria da presena de Deus ou da unio com Deus, experincias ext-ticas chamadas unio mstica ou batismo no Esprito Santo. (VVDVWHQGrQFLDVVHUHHWHPWDPEpPQDVWHQWDWLYDVGHVHWRUQDUdiscurso nico, como no caso da romanizao na Igreja Catlica HGDFULDomRGD,JUHMD0HWRGLVWD:HVOH\DQDRXGD,JUHMD8QLYHUVDOdo Reino de Deus.

    Da religio cordial religio do coraoOs adeptos da religio cordial rejeitaram a modernidade, o

    estado laico e o mundo moderno. Tanto os discursos catlicos ma-joritrios quanto os pentecostais e neopentecostais mais comuns no fecham com o protestantismo e sua suposta frieza para citar Cabral mais uma vez racional. Porm, no se trata de uma crtica ao racionalismo tcnico, como foi articulada, por exemplo, por Blaise Pascal. Esse potencial crtico da religio do corao se restringiria posteriormente ao campo acadmico tanto no caso do catolicismo como do protestantismo , enquanto no nvel eclesis-tico a religio do corao se limitava construo de propostas de avivamento e da contrarreforma ou da soluo dos problemas sociais pelo reinado escatolgico de Jesus (Apostolado da Orao).

    Apesar de tudo isso, h algumas articulaes mais promissoras capazes de contribuir para uma reviravolta nessa questo. Das fases iniciais, medieval e protestante da religio do corao, restam me-mrias de articulaes femininas que, com muita propriedade, so interpretadas ou como entrada da mulher num campo da teologia at ento restrito aos homens (Gertrude, Mechthild, catlicas) ou

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    como expresso quase protofeminista (Georgette de Montenay, calvinista). Nos dois casos, aparece a mulher como sujeito, agente RXIHLWRUDGDVXDKLVWyULDHQPUHSUHVHQWDQWHVSURWRPRGHUQDVRXmodernas de ser mulher. Da segunda fase protestante da religio do corao, herdamos as propostas de superar os impasses cria-dos pelas ortodoxias institucionalmente estabelecidas (pietismo, [ jansenismo?]).29 Finalmente, uma combinao de uma mstica mais comunitria que assume a causa da promoo do bem co-mum que traz elementos para a superao das contradies da modernidade e do estado tcnico-burocrtico e das suas formas de culturas repressoras.

    Olhando para Holanda e Bittencourt Filho, em conjunto, o primeiro prev a vitria da secularizao e o segundo o retorno da religio. Para Holanda, o homem cordial uma espcie sob ameaa de extino; para Bittencourt Filho, o misticismo uma fora cultural esmagadora direcionada contra qualquer apreciao da razo. Entretanto, concordamos com Sell e Brseke (2006, p. 187) que tanto o declnio da religio na realidade secular (secu-larizao) quanto o declnio da realidade secular diante de uma suposta revanche das religies (retorno do sagrado) podem at descrever desejos de um ou outro grupo, mas, mesmo assim no captam bem a dinmica da cultura brasileira.

    Apesar disso, prevalecem ainda algumas das intuies ou opinies de Holanda e Bittencourt Filho. Por um lado, o homem cordial no est na beira da extino e se fortalece; por outro, MXVWDPHQWHSRUXPDUHOLJLRVLGDGHTXHRDUPD0HVPRFRPDH[LV-tncia de leituras catlicas e protestantes alternativas, predomina no Brasil, por enquanto, a verso cordial da religio do corao.

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    29 De fato, o tema da superao da dominncia da mediao institucional da f crist XPDFHQWRLPSRUWDQWHGDVUHH[}HVGH0HVWUH(FNKDUGH-RDFKLP)LRUH

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

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    O ESTUDO DAS RELIGIES: ENTRE A HISTRIA, A CULTURA E A COMUNICAO

    6$89

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    A RELIGIO PECTORUM EVANGLICA E A RELIGIO CORDIAL BRASILEIRA

    Arte Sacra de So Paulo (COREM 139-I). Foto: Helmut Renders, mai. 2012.

    Figura 6: GOSSNER, J. E. Um folheto clebre ou o Livrinho do Corao, 1914: Capa. 'LVSRQtYHOHPKWWSDUFKLYHRUJGHWDLOVOLYULQKRB!$FHVVRHPPDLFigura 7: GOSSNER, J. E. O corao do homem. 3UHWyULD>IULFDGR6XO@$OO1DWLRQVGospel Publishers (ANGP), s.a.: Capa. Digitalizao do autor.

    Figura 8: GOSSNER, J. E. O corao do homem. Rio de Janeiro: Editora Vida, 2001. Capa: Digitalizao do autor.

    Figura 9: Logotipo da Celebrao do Corao Aquecido, So Paulo, 2008. Dis-SRQtYHOHPKWWSWJVWDWLFFRPLPDJHV"T WEQ$1G*F5FE]&4)\]S+\(:K7/Q&8T]M('