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Texto originalmente publicado em: KRITERION. Revista do Departamento de Filosofia da UFMG, jul/dez/1997, p.70-93. RESUMO 1 O presente texto é uma tentativa de discutir alguns processos conceituais, relacionando-os a formas específicas de conferir indentidade a um objeto. A reflexão parte do princípio de que a verificação da indentidade supõe, para um dado objeto, a necessidade de definir um domínio de pertinência, de categorizá-lo numa escala gradiente, ou de predicar-lhe propriedades. A base teórica da análise recorre-se à Teoria dos Protótipos, naqueles aspectos em que aparece associada à Fuzzy Set Theory como uma extensão da Teoria dos Conjuntos. A análise desenvolveu-se a partir do poema de Enzensberger, Verificação da Identidade, onde são listados diversos procedimentos conceituais da identificação de Dante. A presente análise não apresenta qualquer pretensão experimental, um padrão quase sempre associado à Teoria dos Protótipos. RÉSUMÉ Cet essais est une réflexion sur quelques processus conceptuels, en les rapportant aux formes espécifiques de reconnaître l’indentité d’un objet. Cette réflexion admit que la verification de l’indentité suppose, pour un objet donné, la necessité de lui définir un ensemble de pertinnence, de lui catégoriser dans une échelle de gradience, ou de lui attribuer quelques prédications. Le support théorique de l’analyse suppose la Théorie des Prototypes, dans le cas où cette théorie apparaît associée à la Fuzzy Set Theory, comme une extension de la Théorie d’Ensembles. L’analyse était realisée dans le poème de Enzensberger, Verification de l’Indentité, où quelques procedures conceptuels de l’indentification de Dante sont appliqués. Cette analyse n’avait pas la pretension experimentelle, une forme plus largement associée à la Théorie des Prototypes 1 Publicado originalmente em. Kriterion. Revista de Filosofia. Belo Horizonte, n. 96, dez/97, p. 70-94.

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Texto originalmente publicado em: KRITERION. Revista do Departamento de Filosofia da UFMG, jul/dez/1997, p.70-93.

RESUMO1 O presente texto é uma tentativa de discutir alguns processos conceituais, relacionando-os a formas específicas de conferir indentidade a um objeto. A reflexão parte do princípio de que a verificação da indentidade supõe, para um dado objeto, a necessidade de definir um domínio de pertinência, de categorizá-lo numa escala gradiente, ou de predicar-lhe propriedades. A base teórica da análise recorre-se à Teoria dos Protótipos, naqueles aspectos em que aparece associada à Fuzzy Set Theory como uma extensão da Teoria dos Conjuntos. A análise desenvolveu-se a partir do poema de Enzensberger, Verificação da Identidade, onde são listados diversos procedimentos conceituais da identificação de Dante. A presente análise não apresenta qualquer pretensão experimental, um padrão quase sempre associado à Teoria dos Protótipos.

RÉSUMÉ Cet essais est une réflexion sur quelques processus conceptuels, en les rapportant aux formes espécifiques de reconnaître l’indentité d’un objet. Cette réflexion admit que la verification de l’indentité suppose, pour un objet donné, la necessité de lui définir un ensemble de pertinnence, de lui catégoriser dans une échelle de gradience, ou de lui attribuer quelques prédications. Le support théorique de l’analyse suppose la Théorie des Prototypes, dans le cas où cette théorie apparaît associée à la Fuzzy Set Theory, comme une extension de la Théorie d’Ensembles. L’analyse était realisée dans le poème de Enzensberger, Verification de l’Indentité, où quelques procedures conceptuels de l’indentification de Dante sont appliqués. Cette analyse n’avait pas la pretension experimentelle, une forme plus largement associée à la Théorie des Prototypes

1 Publicado originalmente em. Kriterion. Revista de Filosofia. Belo Horizonte, n. 96, dez/97, p. 70-94.

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Verificação da Identidade: um exemplo de aplicação da Teoria dos Protótipos

Hugo Mari Departamento de Letras Vernáculas

FALE-UFMG

1. Introdução O texto presente é uma tentativa de explicação de alguns fatos relativos a problemas gerais sobre a identidade, associados a questões concernentes à representação conceitual. Como hipótese particular, a questão da identidade apresenta-se sob a forma de sua verificação, isto é, estamos assumindo que conferir identidade a um certo objeto implica a necessidade de aplicar-lhe conceitos, de categorizá-lo ou de predicar sobre ele. Para isso, recorremos às discussões da Teoria dos Protótipos naqueles aspectos em que aparece associada à Teoria dos Conjuntos, na sua versão clássica, e a extensões como a Fuzzy Set Theory. Na análise desta questão foi utilizado o poema de Enzensberger (Verificação da Identidade)2, numa dimensão heurística e sem qualquer avaliação de natureza experimental, padrão quase sempre vinculado ao desenvolvimento da Teoria dos Protótipos.

2. Verificação da Identidade e Teoria dos Conjuntos

A partir da Teoria dos Conjuntos, na sua versão clássica3, pode-se pensar a verificação da identidade de um certo objeto com base na sua pertinência ou não em um domínio específico. Assim, um dado objeto pode ser identificado a uma vassoura, por exemplo, se podemos decidir, por alguma forma de avaliação de suas propriedades, de seus traços característicos, se ele reúne condições suficientes para integrar-se ao domínio no qual estão agrupadas todas as outras vassouras (ou objetos que lembram a função de

2 Ressaltamos, de início, que o texto não é uma análise do poema, stricto sensu, mas uma discussão teórica em torno do problema da identidade ali reportado. 3 O traço característico desta versão, que estaremos explorando aqui no texto, diz respeito à aplicação do esquema binário {0, 1} na avaliação da pertinência ou não de um dado elemento num conjunto. Outros aspectos desta abordagem serão vistos mais à frente, num comentário sobre a Fuzzy Set Theory.

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vassoura). Caso contrário, diremos que tal objeto não pertence ao domínio em análise e, portanto, não guarda uma identidade com os outros objetos do conjunto. Entretanto, um critério formulado em termos assim tão genéricos esconde as dificuldades reais que são constatadas, à medida que avaliamos a identidade de um objeto, isto porque nem sempre é possível dispor, com clareza, das propriedades e das características que definem a pertinência em um dado domínio. Em linhas gerais, podemos assumir essa feição de uma abordagem sobre conjuntos para falar de critérios de decisão sobre a identidade de um objeto qualquer. Existem dificuldades nessa questão, como veremos a seguir. Há objetos para os quais uma decisão sobre sua pertinência em um dado domínio pode, de fato, ser confirmada com base em um sistema binário, como, por exemplo, {0, 1}, onde os dígitos representam um valor-verdade atribuível a quaisquer indivíduos candidatos ao “membramento” em um domínio especificado. Este procedimento de verificação da identidade (da pertinência ou não-pertinência) processa-se, de um modo geral, numa relação entre indivíduo-classe: há indivíduos aspirantes a membros e há propriedades, associadas a uma dimensão da classe, que operam como critérios de pertinência. Assim, a classe de <pessoas> define, como critério geral de pertinência, uma combinação de propriedades como ([+animado] ∧ [+humano]). Logo, seres nomeados pelos signos pai, mãe, carteiro, motorista, jogador satisfazem a essa condição e, por esta razão, pertencem ao domínio em análise, podendo lhes ser atribuído o dígito {1}, por exemplo. Objetos como cadeira, livro, árvore, cão, macaco não reúnem esta condição e a eles devemos atribuir, por oposição, o dígito {0}, marca de sua exclusão do conjunto. Para tantos outros campos do saber, o procedimento de conhecer um objeto opera por razões semelhantes: para incluirmos um número qualquer no conjunto dos <números primos> é necessário que ele satisfaça os critérios de inclusão nesta classe, isto é, que admita, como divisor, apenas 1 e x, sendo x o número em questão. Desse modo, {2, 7, 13 e 19} são primos, enquanto {8, 15, 21 e 45} não o são. No segundo conjunto, qualquer membro admite como divisor, além de {1 e x), outros números {2 e 4; 3, 5, 9 e 15}, considerando o primeiro e o último membro listado. A capacidade que temos de incluir ou de excluir objetos de uma classe talvez represente a primeira forma elaborada de conhecimento que temos desses objetos: conhecer um objeto é, ao menos, reconhecer-lhe o domínio de pertinência, e apontar este domínio é o primeiro estágio da construção de um conceito desse objeto, ou seja, associamos a ele, minimamente, as propriedades que regulam sua entrada no conjunto. Quando estamos diante de um objeto desconcertante e indagamos para que serve isso ?, operamos pragmaticamente com a necessidade de determinação do domínio (funcional) de tal objeto. Se a resposta for serve para cortar papel, incluímo-lo, de imediato, no conjunto de tesoura, espátula, estilete, guilhotina etc. Então, conhecer um objeto artefato, nos termos de MONOD (1972, p. 15-22)4, representa associar-lhe um projeto para o qual ele foi construído.

4MONOD, J. O Acaso e a Necessidade. Petrópolis: Vozes, 1972.

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A natureza, todavia, nem sempre nos assegura uma linha divisória nítida entre os elementos aos quais podemos atribuir {0} e aqueles a que atribuímos {1}: na diversidade dos fatos da realidade é mais comum encontrarmos domínios onde membros centrais convivem com a possibilidade de membros mais ou menos periféricos. Nos dois exemplos analisados essa questão não parece ser relevante. O fato de 8 admitir quatro divisores e 45, seis divisores, não faz daquele um candidato a membro menos periférico do que este ao conjunto dos números primos; isto se deve apenas a uma circunstância associada à posição destes números na escala dos números naturais: quanto mais avançamos na série, se não se trata de um número primo, tanto maior pode ser o número de divisores admitidos. Em outros termos, para um domínio específico da Matemática, o conceito de <número primo> não é um conceito fuzzy, já que o critério de pertinência no domínio é determinado por um padrão fixo, conforme já foi comentado. No outro exemplo, a estratificação cultural que temos para o conjunto <pessoas> de fato exclui, com clareza, os elementos citados como não-membros, mas é claro que, ao menos a título de especulação, existem gradações nesta exclusão, isto é, posições periféricas distintas entre eles. As chances de macaco ser incluído como um exemplar periférico do conjunto são muito maiores do que as de cadeira e livro; entretanto, aqui também, ao menos em termos das culturas a que temos acesso, existe um padrão fixo para “membramento”. Para estes dados até agora comentados, o esquema binário {0, 1}, que atribui valor de pertinência ou não-pertinência a elementos pretendentes a membros de uma classe, é suficiente nesta tarefa de verificação da identidade de um dado objeto, ou seja, observando os critérios de pertinência em cada um dos conjuntos comentados, chegamos a verificar a identidade de membros possíveis, isto é, sabemos que membros podem integrar ou não tais domínios. Como já mencionamos, no entanto, a diversidade da natureza nos impõe, numa grande escala, decisões para as quais este esquema já não é mais suficiente, a saber, casos em que a identidade de um objeto não pode ser avaliada por padrões únicos, no formato binário em questão. Aqui já não temos mais clareza sobre sua pertinência numa dada classe, já que há indivíduos que podem nela figurar, em circunstâncias especiais e considerando-se certos traços que servem como padrão de inclusão de outros, bem como devam dela ser excluídos em razão de outras circunstâncias. A partir dos anos 70, a tentativa de elucidar questões relativas à flutuação de elementos num conjunto permitiu, no campo da Semântica, uma associação entre a Fuzzy Set Theory, desenvolvida por ZADEH (1965)5, e a Teoria dos Protótipos, na sua versão lingüística mais recente. Na seqüência do texto, vamos focalizar algumas características dessas duas abordagens, em função da análise do poema de Enzensberger, a ser desenvolvida na quarta e quinta partes.

5 ZADEH, L. A. Fuzzy Sets. Information and Control . 8: 338-53, 1965.

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3. Teoria dos Protótipos e Fuzzy Set Logic

3.1 - Teoria dos Protótipos (TP) Teoria dos Protótipos não é um sistema único de conceitos que traduz uma única forma de representação cognitiva dos objetos. Há abordagens diversas em função da especificação de detalhes formais e até mesmo em razão de padrões diferenciados no modo de configurar modelos conceituais. É possível, porém, localizar alguns de seus aspectos mais genéricos, desconsiderando divergências no interior da Teoria, os quais constituem um certo núcleo central que perpassa grande parte das suas aplicações. Muitos trabalhos sobre estruturas das línguas naturais lançaram mão deste núcleo de conceitos e a partir deles compuseram formatos de análise específica. Vamos, então, retomar, de modo resumido, alguns aspectos desta caracterização. Formulações correntes da TP, conforme versão de OSHERSON & SMITH (1981)6, na sua aplicação na análise de fatos das línguas naturais, propõem um esquema geral para representação mental de conceitos que implica relações caracterizadas com base em quatro parâmetros: TP: < A, d, p, c >, onde: “A” representa um domínio conceitual de objetos possíveis (<pessoas>, <formas de habitação>, <peixes> etc.); “d” constitui a distância métrica entre os membros de A, aos quais identificamos através de números positivos ( (casa, barracão) e (casa, apartamento)); “p” representa um membro de A, selecionado como seu protótipo e “c” constitui uma função característica do conceito que opera em A, dentro do intervalo gradiente [0,1], com base em propriedades que são associadas aos membros da classe. De modo mais específico, podemos expressar os fatos acima, considerando, por exemplo, um domínio {C} = (calçados). Temos, então, o esquema geral:

6OSHERSON, D.N & SMITH, E.E. On the adequacy of prototype theory as a theory of concepts. In: Cognition. 9, 1981. p. 35-58. Este texto serviu de base para a exposição aqui apresentada.

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<C, dcalçado, pcalçado, ccalçado >. O domínio C é o conjunto de todos os calçados imagináveis, incluindo sapato, chinelo, sandália, tênis, tamanco, botina, bota, galocha etc. A função dcalçado relaciona pares de objetos do domínio, atribuindo um valor numérico a esta relação. Quanto maior a semelhança entre os objetos, menor será o valor da relação e vice-versa, valores maiores tendem a mostrar uma distância métrica maior entre os membros, isto é, um certo grau de dissemelhança do protótipo. Comparando-se os pares (sapato, tênis) e (sapato, chinelo), devemos atribuir um número menor à primeira relação, pelo fato de tênis satisfazer os critérios de calçado de modo mais adequado do que chinelo, ou de aquele estar mais próximo do protótipo (sapato) do que este. Por sua vez, pcalçado seleciona um determinado exemplar da classe como o mais característico, a partir do qual graus de distância métrica são calculados (como sapato, nas correlações acima). Por último, a função ccalçado atribui números, no intervalo de [0, 1], a membros da classe, de tal modo que quanto mais próximo do protótipo mais representativo do conceito de calçado, em razão de alguma característica que é assumida como avaliador nas correlações entre membros-protótipo. Para completar o caso apresentado, seria importante, da exposição de OSHERSON & SMITH, destacar a condição (1.2), pois ela elucida a correlação entre as duas funções acima mencionadas (dcalçado, ccalçado). Temos, então: (1.2) (∀x ∈ A) (∀y ∈ A) d (x, p) ≤ d (y, p) → c (y) ≤ c (x) Numa leitura discursiva, (1.2) indica que, para dois elementos quaisquer (x, y) pertencentes a um dado domínio (A), a distância métrica (d) entre eles e o protótipo (p) é inversamente proporcional à natureza do conceito característico (c) que define sua integração no conjunto. Por exemplo, seja x = tênis, y = chinelo e p = sapato e sejam [aberto], [fechado] conceitos característicos atribuíveis, respectivamente, a chinelo e a tênis, a condição acima mostra que: d (tênis, sapato) ≤ d (chinelo, sapato) → c (chinelo[aberto] ) ≤ c (tênis[fechado]) Em outras palavras, se a distância entre tênis e sapato é menor ou igual à de chinelo e sapato, então, o conceito característico [aberto] que determina a posição de chinelo numa escala do conjunto é menos representativo para calçado do que aquele conceito [fechado] que determina a posição de tênis no mesmo conjunto. Em resumo, quanto mais próximo um membro está do protótipo da classe, tanto mais traços característicos do protótipo ele possui e quanto mais distante ele está, tanto menos traços característicos ele apresenta. No caso presente, [fechado] deve ter sido um critério decisivo para a escolha de sapato, como protótipo da classe.

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Esse formato de categorização dos objetos tem sido a base de um grande número de pesquisas dos processos de cognição, em áreas como Lingüística e Psicologia. Inúmeros experimentos foram desenvolvidos, numa tentativa de avaliar as questões relativas à forma de operar com esses quatro parâmetros7. Embora a TP tenha representado um avanço para os processos de representação conceitual, em virtude da inclusão de uma escala gradiente na avaliação da pertinência de indivíduos em um dado domínio, não se pode também desconhecer as dificuldades enfrentadas. Um fato, por exemplo, a ser destacado relaciona-se à dificuldade para a determinação do protótipo de uma classe. O que é um protótipo afinal ? Existe apenas um único protótipo em cada classe ou protótipos também estariam sujeitos à gradiência ? Não existe ainda um padrão definitivo que assegure a escolha do protótipo da classe (nem sabemos se o padrão deva ser unitário). Duas justificativas são apresentadas pelos pesquisadores, quando decidem pela escolha de um dado membro nesta função. Uma vertente, de natureza experimental, aponta-o como o exemplar que mais rapidamente é reconhecido como membro da classe. Muitos analistas desenvolveram experimentos nessa direção com resultados positivos; outros, entretanto, recusam o fato de que testes de rapidez em categorização possam ser assumidos como pertinentes para tal decisão8. Há uma outra vertente que considera o número de propriedades para a definição de um elemento como indicador da seleção do protótipo9. Assim, em experiências desenvolvidas com <pássaros>, o fato de [ser alado], [ter bico], [ter penas], [ser ovíparo] coloca tordo, como protótipo da classe10. Falantes do português, certamente, teriam dificuldades com um tal protótipo, por não se tratar de um exemplar tão próximo da sua experiência. Entretanto, com base nas mesmas propriedades poderiam selecionar pardal, tico-tico, canário e tantos outros que fossem culturalmente mais representativos. Aqui residem, então, duas dificuldades que estão diretamente associadas à determinação de protótipos: (a) não temos um conhecimento global e sistemático das propriedades usadas para definir membros de uma classe, o que torna inviável a seleção de uma amostra que permita destacar um elemento como o protótipo da classe; (b) não existe um padrão mínimo ou máximo de propriedades que permita isolar

7 Para uma avaliação detalhada de alguns experimentos para conjuntos padrões nesta abordagem, confira: ARMSTRONS, S.L, GLEITMAN, L.R. & GLEITMAN, H. What some concepts might not be. In: Cognition. 13, 1983. p.263-308. 8Veja, por exemplo, o artigo de ARMSTRONG, S.L. et alii já citado, para um comentário do alcance desse tipo de teste. 9Numa comparação superficial entre as duas vertentes, somos levados a admitir um certo antagonismo: grande número de propriedades não parece beneficiar rapidez de reconhecimento. 10Nas análises desenvolvidas por autores americanos, não existe uma justificativa clara para a escolha de robin como protótipo e não um outro pássaro qualquer que também reúna estas mesmas condições. Há autores que citam também sparrow. É possível que alguma razão de natureza cultural, pela presença desses pássaros nos experimentos, dispense qualquer justificativa.

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um membro como protótipo da classe11. Além dessas dificuldades, há ainda fatores culturais que, certamente, afetam a escolha do protótipo em um e outro caso. Apesar dos problemas aqui localizados, lembrando-se ainda não se tratar de uma proposta inteiramente fechada, a TP constitui um grande avanço para os processos de representação conceitual. A sua virtude maior está em reconhecer a necessidade de um padrão de “membramento” que contemple uma escala gradiente de integrantes de um determinado conjunto. Isso traz, por sua vez, uma conseqüência importante para os processos de categorização: os indivíduos não são mais considerados como integrantes ou não-integrantes de determinada classe; são vistos, porém, numa escala gradual de “membramento” de uma classe. Esse caráter de flexibilidade na classificação das formas de percepção permite sua extensão aos problemas relativos à identidade de um objeto, a partir da concepção de escalas gradientes para o seu reconhecimento. Assim, o reconhecimento de um objeto qualquer se faz socialmente pela verificação de graus de pregnância semântica que certas predicações podem revelar sobre ele. Portanto, os mesmos critérios de gradiência que foram vistos para “membramento” podem também ser considerados para a verificação da identidade de um objeto, pois identificá-lo e reconhecer-lhe um domínio de pertinência.

3.2 - Fuzzy Set Theory (FST) As preocupações formais da TP migraram diretamente das propostas teóricas desenvolvidas a partir da FST, visando a uma composicionalidade de conceitos, de propriedades, princípio através do qual os indivíduos são avaliados na sua inserção em dados domínios. Aqui faremos uma apresentação genérica dos aspectos mais relevantes desta abordagem, voltados, certamente, para uma aproximação com a TP, no formato apresentado por OSHERSON & SMITH (1981)12. A FST é considerada uma versão ampliada da Teoria dos Conjuntos (TC) na sua versão clássica; no geral, o mesmo padrão de regras construído para esta Teoria foi usado para aquela, com as adaptações devidas. Por exemplo, a regra que atribui valores a membros de um domínio, mostra o grau de ampliação pretendido pela FST, como critério de pertinência: 01. TC cA : D → {0, 1} ou FST cA : D → [0, 1] 11 As dificuldades aqui lembradas para a escolha de um protótipo são as mesmas que se apresentam para Teorias Semânticas que pretenderam erigir construtos de significação, através da reunião de traços atômicos, como condições necessárias e suficientes. 12OSHERSON, D. N. & SMITH, E.E. op. cit. Além deste autor, utilizamos também o texto de ARMSTRONG, S.L., GLEITMAN, L. R & GLEITMAN, H. op. cit. ambos escritos a partir das formulações inciais de ZADEH.

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Em (01) “c” representa uma função característica que atribui propriedades do subconjunto “A’ (de “D” ) a um indivíduo qualquer; e “D”, o domínio de todos os subdomínios. A aplicação desstas regras, em ambas as Teorias, implica a condição inicial: (∀x ∈ D). O fato que distingue uma e outra está representado pela forma de avaliação dos elementos no conjunto: enquanto {0, 1} reconhece apenas dois valores possíveis, [0, 1] reconhece uma escala infinita de valores, inclusive 0 e 1. Assim, o primeiro esquema, como já vimos, mede apenas a pertinência e a não-pertinência, enquanto o segundo, mais flexível, mede o grau de pregnância semântica de um dado membro, determinado pelo valor relativo do lugar que ocupa na escala numérica de [0, 1]. A versão clássica fundamenta as relações entre conjuntos a partir de cinco regras básicas, as quais foram mantidas na FST. Vejamos a compreensão inicial destas regras para dois subdomínios: A = jogador: cjogador (Platão) = 0; B = filósofo: cfilósofo (Platão) = 1 02. (∀x ∈ D) min(c filósofo (Platão) ∩ cjogador (Platão)) = 0 (interseção); 03. (∀x ∈ D) max(c filósofo (Platão) ∪ cjogador (Platão)) = 1 (união); 04. (∀x ∈ D) (c não-filósofo (Platão)) = 1 - (c filósofo(Platão)) = 0 (complemento); (∀x ∈ D) (cnão-jogador (Platão)) = 1 - (cjogador (Platão)) = 1 (complemento); 05. (∀x ∈ D) (c∅ (x)) = (cjogador (Platão)) = 0 (vazio); 06. (∀x ∈ D) (cD (x)) = (cfilósofo (Platão)) = 1 (universal). Numa leitura discursiva para algumas destas regras, podemos assinalar, a partir dos dois subconjuntos de D, isto é, A <jogador> e B <filósofo>, com as considerações especificadas: Regra 02 - Interseção: O operador min indica que a interseção é feita

pelo menor valor da escala de {0, 1} (ou de [0, 1] para FST) dentre os números que são atribuídos às operações com os subconjuntos (A e B) em questão. Como o resultado da operação em A (cjogador (Platão)) é {0} e como em B (c filósofo (Platão)) é {1}, logo o valor da operação global é {0}, não havendo interseção. Portanto, nenhum membro de A pode estar contido em B, por ser aquele um conjunto vazio (cf. Regra 05); ou nenhum elemento de B pode estar também contido em A, já que este é, por definição, um conjunto vazio.

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Regra 03 - União: O operador max indica que a união é feita pelo maior valor da escala de {0, 1} (ou de [0, 1] para FST), dentre os números que são atribuídos às operações com os subconjuntos (A e B) em foco. Portanto, como o resultado da operação em A (cjogador (Platão)) é {0} e como em B (c filósofo (Platão)) é {1}, o valor final da operação é {1}, existindo união. Assim, embora A seja um conjunto vazio, a totalidade dos membros de B, por ser ele um conjunto universal (cf. Regra 06), pode compor esta união.

No caso da FST, além da modificação inicial já mostrada, as regras (2-6) mantêm-se as mesmas, adaptadas apenas em relação ao cálculo dos valores numéricos, devido à noção de intervalo introduzida na Regra 01. Além disso, a FST acrescenta um princípio genérico de aplicação da função característica, “c”, conforme formulação de OSHERSON & SMITH, a que chamarei de princípio de aderência: “The larger cA (x), the more x belongs to

A; the smaller cA (x), the less x belongs to A; 1 and 0 are limiting cases (for all x ∈ D).”

Quanto maior for o valor assegurado pela função característica, avaliadas as propriedades de um determinado elemento, tanto maior será o grau de sua inclusão na classe (e tanto mais ele refletirá a natureza do protótipo da classe). E quanto menor for o valor a ele atribuído, tanto menor será sua pertinência na classe (e mais distante ele estará do protótipo). Desprezando os detalhes do cálculo funcional para valores específicos, determinados pela escala numérica [0, 1] e aplicados às regras (2-6), podemos compreender a natureza de um conjunto-fuzzy. Na essência, trata-se de um conjunto, cujo critério de avaliação de seus membros não se faz, necessariamente, pela pertinência e não-pertinência, mas por uma escala gradativa entre estes dois valores (incluindo eles próprios), onde seus membros não são estritamente integrantes de uma classe, nem deixam de sê-lo. Por isso, a FST está preocupada com uma aferição do grau de pregnância semântica que os elementos de um conjunto manifestam nas relações membro-a-membro

4. A identidade como um conceito fuzzy/prototípico Nesta seção vamos mostrar, com base no poema de Enzensberger, as razões pelas quais podemos considerar a verificação da identidade como um conceito

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fuzzy/prototípico13, portanto passível de ser avaliado a partir de uma junção da FST e da TP. VERIFICAÇÃO DA IDENTIDADE14

HANS MAGNUS ENZENSBERGER

01. Este não é Dante. 02. Esta é uma foto de Dante. 03. Este é um filme onde um ator finge ser Dante. 04. Este é um filme com Dante no papel de Dante. 05. Este é um homem que sonha com Dante. 06. Este é um homem chamado Dante que não é Dante. 07. Este é um homem que imita Dante. 08. Este é um homem que se faz de Dante. 09. Este é um homem que sonha que é Dante. 10. Este é um homem que é a cara escarrada de Dante. 11. Esta é uma imagem de cera de Dante. 12. Este é um sósia, um duplo, um gêmeo. 13. Este é um homem que pensa ser Dante. 14. Este é um homem que todos, salvo Dante pensam ser Dante. 15. Este é um homem que todos, salvo ele mesmo, pensam ser Dante. 16. Este é um homem que ninguém pensa ser Dante, salvo Dante. 17. Este é Dante

O primeiro fato importante a constatar é que a identidade de Dante é construída ao longo de uma escala de valores, finita no escopo do poema, mas que poderia ser ampliada indefinidamente. Os dois extremos do poema representam precisamente os valores que seriam assegurados por uma abordagem clássica de conjuntos, onde valores intermediários teriam de ser desprezados. O esquema representando estes dois valores pode ser assim construído: Esquema 01: pertinência 13 Para efeitos da discussão presente, estamos considerando Dante como o protótipo, ao qual outras possibilidades da natureza-dante serão contrastadas. 14In: Caderno Mais. Folha de São Paulo, dom. 23-04-95. (Tradução do original em alemão por Nelson Ascher). A numeração antes dos versos foi inserida para facilitar sua localização.

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Identidade de Dante Este não é Dante Este é Dante

↓ {0}

↓ {1}

Ainda que a riqueza lógico-semântica maior do poema seja aquela situada no intervalo entre estes dois valores, é importante ressaltar o modo pelo qual o autor discute alguns problemas sobre a identidade. A forma demonstrativa assegura uma definição ostensiva, seja para a identidade de Dante, seja para sua não-identidade. No primeiro caso, trata-se do máximo de identidade que podemos conferir a Dante; nenhuma das outras formas utilizadas pode ter um poder tão decisivo na sustentação da sua identidade. No segundo caso, trata-se do máximo de não-identidade que podemos conferir a Dante, isto é, o ato demonstrativo não confere a tal objeto qualquer propriedade de ser Dante. Todavia, o grande interesse em torno do conceito de identidade que o autor reporta não reside nesta constatação acima, mas precisamente na gradiência que é construída entre pertinência e não-pertinência, onde os valores intermediários não têm o poder ostensivo de inclusão ou exclusão, mas não deixam de fazê-lo em algum grau. Para avaliar uma possibilidade de organização da construção gradativa da identidade de Dante, dentro da escala numérica de [0, 1], recorremos a alguns processos de categorização semântica para o conjunto dos versos de 02 a 12 inicialmente. Pretendemos, então, com uma organização possível (certamente existem outras) para esses versos, reconstruir a identidade de Dante de forma gradativa. Afinal, dentre tais versos, quais os que expressam propriedades mais aderentes a Dante ? Ou ainda, o que nos levaria a confundir uma outra pessoa com Dante? Esquema 02: [-animado] / [0, 1] A partir dos versos (02) e (11), podemos reorganizar o Esquema 01, graduando-os do seguinte modo: Identidade de

Dante

↓ [-animado]

imagem de cera de Dante foto de Dante

Este não é Dante Este é Dante

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13

O traço [-animado] justifica o fato de a identidade de Dante estar sendo representada por objetos que comportam esta categorização semântica, a saber, tanto imagem (de cera) como foto são unidades lingüísticas às quais podemos associar o traço categorial em questão. Em ambos os casos, em razão do domínio desse traço sobre os objetos representativos da identidade, poderíamos supor uma distância métrica equivalente (ou, ao menos, muito próxima) entre eles, isto é, d(imagem de cera, Dante) ≡ d(foto, Dante). Esta hipótese se justifica, se considerarmos que a função característica comporta a seguinte descrição:

c( imagem de cera [- ANIMADO] ) = c( foto [- ANIMADO] ). Não são estes, entretanto, os únicos fatos a serem levados em conta, pois sabemos,

pela intuição, pela vivência que temos destes objetos, que foto de Dante, está mais próximo da definição ostensiva que reconhece Dante, do que imagem de cera de Dante, ainda que consideremos o fato de imagem representar um objeto em terceira dimensão, fato incomum na fotografia. As condições de manipulação de um ou outro objeto, de fato, não representam um critério confiável para o valor que possamos conferir-lhe no reconhecimento de Dante. O fato, entretanto, de exigir a presença material da pessoa, do objeto parece ser uma condição necessária para fotografias e não para erigir imagens. Não nos consta, por exemplo, que as diversas imagens que conhecemos de Tiradentes tenham sido esculpidas pressupondo a sua presença; daí, justificar-se a dúvida histórica recente: Tiradentes tinha ou não tinha barba? Portanto, a função característica, “c” , precisa ser acrescida de uma propriedade como [presença], por exemplo, para que possa assegurar foto numa escala mais próxima da identidade para Dante e deve reconhecer nela a dimensão de uma pregnância semântica mais representativa da natureza-dante. O problema de determinação da distância torna-se ainda mais complexo à medida em que introduzimos, neste quadro, outros padrões para a identidade de Dante. Esquema 03: [±animado] / [0, 1] Vejamos agora como podemos graduar os versos (03) e (04) ainda no Esquema 01: Identidade de

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14

Dante ↓

[±animado] filme onde um ator finge

ser Dante filme com Dante no

papel de Dante Este não é Dante Este é Dante

Um outro padrão, através do qual o autor pretende mostrar dimensões da identidade de Dante, apresenta-se categorizado pelo traço semântico [±animado]. Os versos 03 e 04 foram assumidos como indicativos deste padrão pelo fato de neles existirem, simultaneamente, categorias que tanto realizam a forma [-animado] como [+animado]. Assim, obtemos: (filme[- animado] ... ator[+ animado]) e também (filme[- animado] ... Dante[+

animado]). Nesse caso, a questão da distância métrica apresenta particularidades que merecem ser comentadas. Comparando-se os dois versos, podemos descartar a presença de filme nesta avaliação, já que ocorre em ambos. Cotejando-os em razão dos outros fatos, no formato estabelecido, obtemos, de início, d(ator, Dante2)

15 > d(Dante1, Dante2); logo, em relação a ator, sabemos tratar-se de uma pessoa distinta da natureza-dante, o que não o impede de representar Dante. Por outro lado, no caso da correlação (Dante1, Dante2) a situação é mais complexa. Se no caso anterior a natureza-dante deve ser aferida em razão de Dante2, como protótipo, agora devemos considerar também outra alternativa: já que nada impõe, no verso, uma diferença entre as pessoas designadas por Dante, nada nos impede também de assumi-las como identificadas e o universo das propriedades que define uma deve definir a outra. Se, pelo contrário, marcamos uma diferença entre os objetos designados, isto é, Dante1 ≠ Dante2, ainda assim deveríamos sustentar uma diferença entre esse conjunto e o anterior. Afinal, ao menos pela identidade dos nomes Dante1, por vir a ser confundido com Dante2 e mais raramente com um ator, ainda que este tivesse recebido um nome que não Dante. Reformulando, pois, o Esquemas 02 e o Esquema 03 num único, podemos obter:

03. Esquema 04:

15 Os índices registrados para Dante acompanham a ordem de ocorrência do nome nos dois versos, tendo como referência primeira o verso (04), devido a sua presença dupla.

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Identidade de Dante

↓ [-animado] ↓ [±animado]

Este não é Dante

imagem de cera de Dante

filme onde o ator finge ser Dante

foto de Dante filme com Dante no papel de

Dante

Este é Dante

No contraste previsto entre filme, imagem de cera e foto, todos marcados com o traço [-animado], a distância métrica em relação a Dante deveria ser menor em favor de filme, já que este reproduz uma característica conceitual mais próxima da natureza-dante, que nem foto, nem imagem de cera o fazem, isto é, o traço [+movimento]. Este fato só se verifica no esquema acima para o verso (04), já que o traço [+animado] em 03 não é suficiente para torná-lo mais próximo da natureza-dante do que a foto de Dante. A razão disso é que o traço [+animado] acaba por ser neutralizado por outros aspectos semânticos que precisariam ser determinados para o verso 03. Por exemplo, a representação semântica de ator deve minimamente incluir traços que lembrem o conceito de [simulação], da mesma forma que fingir lembra uma predicação modal da ordem do querer ser. Ambos os fatos, ainda que sejam tomados na busca de uma identidade com Dante, tornam-se mais distante de Dante do que a sua própria foto. Em outros termos, a partir de uma foto de Dante, em circunstâncias próprias, podemos vir a conhecer algum aspecto da identidade-dante com mais convicção, do que o fazemos para uma situação em que um ator apenas finge ser Dante. Esquema 05: [+animado] / [0, 1] Os fatos a serem expressos neste esquema apresentam um grau de complexidade maior, pois aqui interferem predicações construídas, com base em verbos como sonhar, fazer-se de e imitar . Os versos a serem contemplados nessa análise estão no intervalo de (05) a (12), com exceção de (11) que já foi discutido. Como podemos distribuí-los, à primeira vista ?

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Identidade de Dante

↓ [+animado] homem que

sonha com Dante

homem que sonha ser Dante

homem que imita Dante

homem que se faz de Dante

homem que é a cara escarrada

de Dante

sósia, duplo, gêmeo (de

Dante)

Este não é Dante homem chamado Dante Este é

Dante

Uma primeira avaliação para esse grupo de versos mostra que sua significação genérica aparece comandada pelo traço semântico [+animado]; a razão maior desse fato é a presença de homem nos versos (05-10), ou de categorias que lembram formas de homem, como sósia, duplo, gêmeo em (12). Seis destes versos estão organizados em duplas, em função de aspectos categoriais que a eles podem ser associados: (a) aspectos físicos (cara escarrada-sósia/gêmeo), (b) aspectos oníricos (sonha com Dante-sonha ser Dante) e (c) aspectos miméticos (imita Dante-faz-se de Dante). O verso que foge a esse padrão (06) apresenta uma propriedade metalingüística (homem chamado Dante) e que, por esta razão, pode substituir todas as outras formas; afinal, pode-se chamar de Dante qualquer homem, nas circunstâncias predicativas acima determinadas. Esta é a razão pela qual ele aparece sobposto aos demais. Como justificarar, pois, os demais versos em termos no padrão gradativo acima sugerido?

Podemos organizar justificativas para uma distribuição dos versos, considerando três agrupamentos básicos:

Agrupamento (a): aspectos físicos. A distância métrica entre os versos pode ser representada pela seguinte fórmula: d(cara escarrada, Dante) > d(sósia/gêmeo, Dante). Assim, por maior que seja a semelhança facial que a primeira relação mantenha com Dante, ela será sempre mais distante da natureza-dante do que o teor expresso na segunda relação, já que um sósia deve apresentar outras características, além das faciais, que o faça confundir-se com Dante, de modo mais decisivo. Logo, c(sósia) > c(cara escarrada), isto é, o conceito característico de sósia é maior do que o de cara escarrada, porque as propriedades que estão vinculadas ao primeiro componente são mais representativas da natureza-dante, do que aquelas que são associadas ao segundo.

Agrupamento (b): aspectos oníricos. Os fatos expressos versos (05) e (09) podem ser distribuídos numa escala, mostrando: d(sonha com Dante, Dante) > d(sonha ser Dante, Dante)16. Em outras palavras, o primeiro termo dessa relação mostra uma distância métrica maior com a natureza-dante do que o seguinte, uma vez que a predicação

16 O uso do verbo sonhar, neste caso, introduz uma ambigüidade, já que pode remeter ao significado de deseja, querer. Resolvemos aqui avaliá-lo apenas no mesmo campo de sonhar com, do verso anterior.

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atribuída a homem não implica estar ele impregnando-se da natureza-dante, ao menos no contraste com a predicação do segundo termo. Neste, por sua vez, o teor da predicação impõe uma certa pregnância da natureza-dante ao homem, já que sonhar ser Dante implica assumir aspectos da identidade de Dante. Disso decorre, pois, a relação entre o conceito característico dos dois termos: c(ser Dante) > c(com Dante), ou seja, as propriedades que devam ser usadas para expressar a relação ser Dante estão mais próximas da natureza-dante do que aquelas que podem ser determinadas para justificar com Dante.

Agrupamento (c): aspectos miméticos. A relação entre os dois versos, que expressam fatos semânticos desta ordem, pode ser formulada do seguinte modo: d(imita Dante, Dante) ≥ (faz-se de Dante, Dante). Os fatos aqui já não têm a evidência dos casos anteriores, por isso mesmo a relação foi expressa pelo operador (≥). Assim, a distância métrica entre predicados como imitar Dante e fazer-se de Dante, ou assinala uma pequena diferença entre eles (tornando imitar mais distante), ou abandona qualquer diferença possível, já que a natureza das propriedades que as duas predicações associam a Dante são semanticamente muito próximas. Ainda assim, poderíamos supor uma proximidade maior da segunda relação com a natureza-dante, porque y fazer-se de x pode implicar a exigência de que y seja dotado de propriedades representativas de x, o que não é necessário para y imitar x. Mesmo em face desta observação, é importante manter, para um caso como este, o sinal (≥), assinalando que a distância métrica entre as duas relações pode comportar flutuações. Por extensão, o conceito característico deve ser expresso, refletindo esta dificuldade: c(faz-se de Dante) ≥ c(imita Dante), isto é, o primeiro termo pode, em alguma circunstância, apresentar um grau de pregnância semântica maior em relação à identidade de Dante do que o segundo.

Estes comentários precedentes colocaram, lado a lado e em razão dos agrupamentos estabelecidos, versos que apontam para uma certa semelhança conceitual sobre a identidade de Dante. Resta ainda confrontar o conjunto das relações que se mostraram menos distantes de Dante, da mesma forma que aquelas que se mostram mais distantes. Este confronto permitirá uma justificativa mais adequada para o Esquema 05.

Quando justificamos esse conjunto de versos na distribuição acima, julgamos que, além dos fatos considerados para cada grupo, a partir de uma dimensão semântico-cognitiva, poderíamos estar avançado na direção de compromissos de ordem pragmática. Logo, a gradiência proposta, considerando parte dos versos, pretende ser também uma resposta à forma pela qual a nossa intuição processa um certo tipo de fato empírico. Supondo, pois, que o reconhecimento da identidade de Dante, em se tratando gradativamente de um sósia, de um homem com a cara escarrada, de alguém que se faz passar por Dante e de alguém que imita Dante, possa ser visto como um fato para o qual dispomos de procedimentos pragmáticos mais ou menos eficientes, podemos então indagar: em que circunstância, dentre as citadas acima, teríamos uma probabilidade maior de confundir alguém que não é Dante com Dante ?

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Aplicando-se o princípio de aderência aos aspectos centrais do conteúdo dos pares de versos (07 - 08) e (10 - 12), podemos justificar a gradação acima apresentada, com algumas observações de ordem pragmática. Temos, então:

c D (sósia) > c D (cara escarrada) > c D (fazer-se de Dante) > c D (imitar Dante)

Desse modo, o teor gradativo da identidade de Dante, ou a possibilidade pragmática de confundirmos alguém com Dante, está associado a uma avaliação do número e da natureza das propriedades que cada um dos parâmetros acima contém, como conceito característico.17 Os traços atribuíveis, de imediato, à natureza-dante, [+animado] ∧ [+humano], pouco acrescentam aqui em termos do valor pragmático que atribuímos à correlação acima, se os consideramos apenas na sua generalidade. Todavia, se estamos mais propensos a confundir Dante com um sósia é porque este possui traços que se adequam à natureza-dante e, além do mais, porque podemos especificar esta natureza com uma extensão maior de traços. Em outras palavras, alguém, para ser um sósia de Dante, precisa dispor de um número muito grande de propriedades que lembram, de imediato, uma pregnância muito próxima à identidade de Dante. É possível que este sósia tenha que ser avaliado, pragmaticamente, em termos da altura, do peso, da cor do cabelo, da pele e da dos olhos, do formato do nariz, da arquitetura do rosto etc. A gradação entre esse caso e os demais implica também a necessidade de uma especificação da natureza-dante, mas é claro que esta exigência se torna cada vez menor e, por isso mesmo, a tendência a confundirmos Dante se torna, igualmente, cada vez menor. Podemos agora agrupar o conjunto dos fatos analisados, reunindo-os num esquema único com a seguinte possibilidade de escala:

17Aqui excluímos os dois versos que lembravam um aspecto da identidade pelo sonho, já que não se enquadram nessa perspectiva pragmática; mas é provável que pudéssemos justificá-los a partir de outras dimensões.

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Esquema 06 - Resumo

Identidade de Dante

↓ [-animado] [±animado] [+animado] 0 imagem

de Dante filme

com ator sonha c/ Dante

sonha ser

Dante

foto de Dante

imita Dante faz-se de Dante

filme com Dante

cara escarrada

sósia, duplo, gêmeo 1

chamado Dante que não é Dante Esta tentativa final de agrupamento de todos os esquemas construídos é uma tarefa muito complexa e o arranjo aqui apresentado pode ser reajustado em razão de outras intuições que interferem no julgamento desses fatos. Por exemplo, dependendo da interpretação que julgarmos mais adequada para o verso (04), poderíamos deslocá-lo para o intervalo mais próximo de [1]. Assim, ao longo da análise desenvolvida, diversos ajustes foram realizados, buscando uma adequação mais apropriada nos contrastes propostos. A razão disso deve-se ao fato de estarmos aqui cruzando um conjunto de parâmetros muito distinto e a própria dificuldade de decidir sobre uma hierarquia entre eles. Essa não é uma dificuldade apenas circunstancialmente atrelada à presente análise. Grande parte dos trabalhos que avaliam o funcionamento de sistemas-fuzzy esbarra nessas indecisões, ou as transfere para a decisão de sujeitos que compõem as enquetes, na sua dimensão experimental. Para aplicações nessa dimensão, a cada um dos pontos da escala [0, 1] atribui-se um valor numérico, referente ao registro percepetivo dos sujeitos integrantes do experimento. No caso presente, entretanto, a argumentação que desenvolvemos pode dispensar esse procedimento, pois resultaria em mero artifício de ilustração.

Excluímos até agora da nossa análise os versos (13) a (16), por representarem eles outros fatores de complexidade conceitual. Trata-se de considerá-los do ponto de vista da sua estruturação no plano enunciativo, mostrando certo jogo interlocutivo entre três locutores: homem, Dante, todos, mediados pelo predicado pensar.

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5. Verificação da identidade e instâncias enunciativas Os versos (13 a16), ainda não comentados, introduzem dificuldades adicionais à questão da identidade, analisada acima. Antes mesmo de materializarem procedimentos de aplicação de propriedades, de predicação sobre um dado objeto, apresentam-se como um jogo interlocutivo, determinante de padrões diferenciados para uma análise da identidade de Dante. Na sua análise, torna-se importante, pois, ressaltar os componentes do processo enunciativo, os quais evidenciam formatos distintos de percepção de Dante. Inicialmente, podemos demonstrar que as instâncias enunciativas articulam-se, a partir do verbo pensar, numa dimensão particular (Dante), numa existencial (homem)18 e numa universal (todos/ninguém). Assim, para tentar captar uma certa dialética enunciativa de afirmação e de recusa da identidade, vamos mostrar como se constrói o processo enunciativo geral e, na seqüência, como essa formulação global se atualiza de modo específico, em cada um dos versos.

Procurando, então, destacar essas instâncias enunciativas para o conjunto dos versos, podemos admiti-las como determinadas por um único ponto de realização − simbolizado (PONTO[expressivo] )19 −, que expressa uma atitude proposicional para o conteúdo expresso pela proposição ‘P’− sumarizado ‘ser um homem-Dante’−. Podemos formular, uma estrutura geral do processo enunciativo, contemplando tais informações para todas as possibilidades contidas nos versos em questão. Assim, obtemos:

{(PONTO[expressivo] ) (pensar-P (particular[dante]), pensar-P (existencial[homem]), pensar-P (universal [todos]))}

Pela formulação acima, estamos considerando o verbo pensar, como especificação do modo de realização de um ato de fala que se realiza no ponto expressivo, reportando uma atitude proposicional do locutor diante de um certo estado de coisas, ou seja, a possibilidade da identificação de Dante. A concretização do modo desse ato, através do

18 A forma existencial de homem aparece aqui determinada pelo dêitico este, o que faz dela também uma dimensão particular. Não estou considerando, na fórmula, esta função dêitica, por não ser ela aqui relevante para a discussão. Sua consideração, em circunstâncias apropriadas, exige que a quantificação existencial seja limitada à aplicação de um indivíduo particular. Além do mais é importante considerar a gradação aqui estipulada em termos das instâncias enunciativas. Se igualássemos Dante a este homem perderíamos um aspecto desse contraste. Este homem serve para universalmente indicar qualquer objeto da classe, mas apenas um de cada vez. 19 Os versos (13) a (16), na dimensão da análise da Teoria dos Atos de Fala, que estamos, em parte, adotando nesse comentário, poderiam também ser descritos no ponto assertivo. A presença determinante do verbo pensar, todavia, nos levou assumi-los no ponto expressivo, seguindo verbos como achar, por exemplo.

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verbo pensar, continua discutindo, agora numa dimensão enunciativa, e não mais designativa como indicado na análise dos versos anteriores, as dificuldades de construção da identidade. Assim, pode-se supor a escolha de tal verbo, devido às fracas exigências, se alguma existe, que são feitas em termos das suas restrições seletivas. Em princípio, a classe de nomes que pode figurar como seu complemento deve, curiosamente, ser definida por um círculo vicioso remetendo ao próprio verbo, isto é, à propriedade [ser pensável]. Dificilmente, poderíamos dizer de algo que não partilhe tal propriedade, pois isso só seria possível até o momento em que não o tivéssemos submetido ao verbo pela primeira vez.20 Se ninguém nunca pensou ser uma preposição, talvez não pudéssemos a ela atribuir tal propriedade, mas isso seria apenas um fato contingente, e não uma impossibilidade lógica para preposições virem a identificar-se a pessoas em pensamento. A justificativa semântica para a escolha do verbo poderia ser assim especificada, mas há ainda uma justificativa cultural, talvez mais restrita, que deva ser registrada por lembrar o fato comum de se atribuir a muitos homens, partilhando estados mentais extravagantes, a predicação pensar ser Napoleão ou pensar ser Einstein, para lembrar os mais diletos da galeria.

O segundo aspecto do esquema acima, enumera os diversos lugares enunciativos (indicializados por dante, homem, todos) presentes nos versos e vinculados a dimensões quantitativas próprias dos nomes que representam, a saber, (particular[dante]), (existencial[homem]), (universal[todos]). Esses lugares se associam ao predicado pensar-P, que estamos repetindo para cada um dos lugares, em razão da necessidade de um contraste entre o lugar que pensa e o que não pensa, conforme veremos nas fórmulas abaixo. A contraposição quantitativa, em termos do alcance conceitual de cada lugar, procura manter uma certa diferenciação entre eles. A especificação do lugar (particular[dante]) é exclusiva do nome Dante (ou de outro que viesse substituí-lo), como uma entidade particular; no outro extremo, situamos (universal[todos]), resguardando o valor afirmativo ou negativo pela variação todos/ninguém. O estágio intermediário deve ser representado por (existencial[homem]) que mantém uma certa ambigüidade dêitica. Assim, este homem pode ter um valor singular, quando aferido a partir de uma enunciação particular, pois em cada aplicação só pode apontar um objeto singular; mas pode também assumir um valor universal, já que para qualquer enunciação enumerável, podemos usá-la na indicação de um objeto da classe. No caso do poema, cada um dos versos representa uma enunciação particular; daí o valor singular que assume nas tentativas de identificação a Dante. Considerando-se o conjunto dos versos, não temos

20 Contrariamente a pensar, verbos como ‘comer’, ‘beber’, ‘assistir’ (=ver) implicam restrições seletivas precisas. Por exemplo, o nome da posição de complemento para cada um desses verbos requer, respectivamente, o traço [+sólido], [+líquido], [+processo], o que restringe, em circunstâncias apropriadas, os nomes que podem ocorrer nessa posição. Além dos mais, mesmo diante de expressões equivalentes como ‘comer tudo’, ‘não beber nada’, em comparação a ‘pensar tudo’, ‘não pensar nada’, a presença dos pronomes definem extensões diferentes de objetos: no primeiro grupo tudo e nada têm a extensão dos objetos sob o domínio do traço [+sólido] e [+líquido]; no segundo grupo talvez devêssemos estender esse domínio ao conjunto universal. Em se tratando do nome na posição de sujeito, o verbo pensar contém restrições seletivas específicas, ou seja, [(+animado) +humano].

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certeza tratar-se de um mesmo homem; a lógica do poema nos leva a supor uma diversidade de objetos da classe, cuja identidade com Dante está sendo cogitada a cada instante enunciativo por um critério próprio. Vejamos, portanto, a representação particular do processo enunciativo de cada um dos versos em análise: 13. Este é um homem que pensa ser Dante

{(PONTO[expressivo] ) pensar-P (existencial[homem])}21

14. Este é um homem que todos, salvo Dante, pensam ser Dante

{(PONTO[expressivo] ) pensar-P (universal [todos]), ¬pensar-P (particular[dante])}

15. Este é um homem que todos, salvo ele mesmo, pensam ser Dante.

{(PONTO[expressivo] ) pensar-P (universal [todos]), ¬pensar-P (existencial[homem])}

16. Este é um homem que ninguém pensa ser Dante, salvo Dante.

{(PONTO[expressivo] ) ¬pensar-P (universal [todos]), pensar-P (particular[dante])}

As descrições acima possibilitam comparar o conflito, marcado pelo verbo pensar, em termos do cruzamento de lugares enunciativos diversos a partir dos quais a identidade de Dante deva ser suposta. De início, uma exceção deve ser feita para o verso (13), para o qual a identidade é concebida sem, explicitamente, contrastar lugares enunciativos. Nesse caso, deveríamos destacar o valor semântico de pensar, como portador de um efeito de ilusão do pensamento. Apesar de fugir ao padrão comum de contrastes dos versos seguintes, este verso é fundamental ao registrar um valor semântico de fluidez que possibilita, para um mesmo objeto, possibilidades distintas de pensá-lo. As dificuldades maiores residem, portanto, em determinar que lugar enunciativo cabe (ou deve caber) pensar a identidade de Dante e que conseqüências um lugar impõe aos outros, já que os versos mostram uma ausência de consenso sobre esta verificação. Como podemos, portanto, avaliar o conflito entre lugares enunciativos nestes versos ?

21 Estamos representando apenas a instância enunciativa que foi formalmente registrada no verso, supondo que aquela(s) que, em complemento, pode(m) ser pressuposta(s) na forma geral seja(m) uma instância de refutação da identidade. Assim, (13) poderia ter uma representação plena como: {(PONTO[expressivo] ) pensar-P (existencial[homem]), ¬pensar-P (particular[dante]), ¬pensar-P (universal [todos])}.

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Inicialmente, a pretensão de alguém ser Dante, em pensamento, não é recusada

em nenhuma instância enunciativa, pois há sempre um lugar diverso supondo sua identidade com Dante pelo uso, na forma afirmativa, do predicado. Se essa pretensão inicial é garantida, o conflito entre os lugares enunciativos mostra a inexistência de qualquer uniformidade sobre o predicado pensar-P, pois toda vez que a identidade de Dante é, afirmativamente, cogitada em um lugar enunciativo dado, ela é negada na outra instância contrastada. Assim, a identidade não pode ser reconhecida universalmente, pois todas as vezes que verificamos [pensar-P (universal [todos])] (14 e 15), detectamos o contraste negativo com a instância particular { ¬pensar-P (particular[dante])} (14), ou com a instância existencial { ¬pensar-P (existencial[homem])}. Ela não pode também ser reconhecida particularmente, porque quando verificamos { pensar-P (particular[dante])}, constamos a sua contraposição a {¬pensar-P (universal [todos])}.

Algumas observações completam o esquema acima. A primeira lembra o fato de

que, apesar da contraposição afirmativo/negativo, não existe qualquer contradição nos versos (14) a (16), já que o contraste é marcado em lugares enunciativos distintos. Um segundo fato induz-nos a uma possibilidade de especular sobre uma quebra de simetria entre algumas formas: não apenas (13) apresenta-se somente com uma predicação positiva, como a instância particular aparece apenas recusada na universal (16). Em se tratando de (13), supomos que a sua função seja a de introduzir uma outra forma vulnerável para a verificação da identidade, nos termos já comentados acima. No caso de (16), devemos considerá-lo em relação a (14) e a (15): os três versos encerram uma dimensão do universal, pois ou dele extraímos uma exceção, (14) e (15), ou o usamos para refutar uma exceção (16). Assim, não haveria razões lógicas para se ter um verso (hipotético) Este é um homem que pensa ser Dante, salvo Dante, já que o contraste afirmativo/negativo não teria qualquer efeito sobre a dimensão universal. Em conclusão, a discussão proposta para evidenciar, a partir do processo enunciativo, as dificuldades enumeradas no poema de Enszensberger para a verificação da identidade, poderiam ser resumidas em dois pontos: (a) verbos que introduzem atitudes proposicionais

6. Conclusão A questão discutida nos comentários acima, embora localizada em termos de uma forma de manifestação específica, o poema em análise, representa, certamente, uma extensão muito maior do que a impressão que esta reflexão pode ter deixado transparecer. Essa extensão compreende, no meu entendimento, duas dimensões que acabam se confluindo, de algum modo. A primeira diz respeito ao fato de que TC, TP e FSL apresentam uma contrapartida formal (analítica ou experimental) para a questão do conhecimento, seja do ponto de vista da formação de conceitos, seja do ponto de vista da sua representação. Em parte, estes fundamentos básicos que estão associados a essas

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Teorias perpassaram os nossos comentários iniciais, ainda que não tivessem sido incorporados à discussão de uma forma mais decisiva. A segunda relaciona-se ao problema específico que analisamos, isto é, à construção/verificação da identidade. Desse modo, o uso do poema representa apenas um limite circunstancial da análise; as questões presentes nessa reflexão têm uma amplitude maior, difícil de ser recoberta pelo poema. Podemos supor que verificar identidade venha a se constituir num aspecto local de uma questão mais ampla de avaliação de processo de modelagem do conhecimento. No fundo, ao privilegiarmos aqui a dimensão local, fizemo-lo em restrito atendimento à análise do poema de Enszensberger. É claro, todavia, que a necessidade de uma justificativa para este local, acabou por nos trazer de volta à necessidade de delinear uma compreensão do global. Daí a importância de traçar, nas partes iniciais deste texto, um itinerário de categorias, de conceitos e de procedimentos que permitiram situar, de modo mais consistente, o problema analisado pelo autor. As asserções disseminadas pelo poema, portanto, não retratam artifícios de idiossincrasias e de caprichos poéticos (apenas), mas antes traduzem dificuldades, apreensões em torno de questões importantes sobre a natureza do conhecimento.