texto na escuridão miserável (fernando sabino) · na escuridão miserável (fernando sabino) ......

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Tarefa 16 – Professora Tatiane Texto Na escuridão miserável (Fernando Sabino) Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro: __ O que foi, minha filha? __ perguntei naturalmente, pensando tratar-se de esmola. __ Nada não senhor __ respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil. __ O que é que você está me olhando aí? __ Nada não senhor __ repetiu__ Tou esperando o ônibus... __ Onde é que você mora? __ Na Praia da Estrela. __ Vou para aquele lado. Quer uma carona? Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta: __ Entra aí que eu te levo. Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa: __ Como é seu nome? __ Teresa. __ Quantos anos você tem, Teresa? __ Dez. __ E o que estava fazendo ali, tão longe de casa? __ A casa da minha patroa é ali. __ Patroa? Que patroa? Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia à mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite. __ Hoje saí mais cedo. __ Você já jantou? __ Não. Eu almocei. __ Você não almoça todo dia? __ Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim. __ E quando não tem? __ Quando não tem, não tem __ e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos __ um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês: __ Mas não te dão comida lá? __ perguntei, revoltado. __ Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse para eu não pedir. __ E quanto é que você ganha? Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso era voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara. __Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa? __ perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar: __ Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí no outro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, obrigado. Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia da Estrela. 01. Compare: Impressão do autor, ao ver a menina – “...não teria mais que uns sete anos.” Resposta da menina à pergunta do autor – “_Quantos anos você tem, Teresa? _ Dez.” Como o narrador descreve a aparência da menina: “... suas feições de crianças... podiam ser as de uma velha”.

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Page 1: Texto Na escuridão miserável (Fernando Sabino) · Na escuridão miserável (Fernando Sabino) ... Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim

Tarefa 16 – Professora Tatiane

Texto Na escuridão miserável

(Fernando Sabino) Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava, enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar, através do vidro da janela, junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

__ O que foi, minha filha? __ perguntei naturalmente, pensando tratar-se de esmola. __ Nada não senhor __ respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil. __ O que é que você está me olhando aí? __ Nada não senhor __ repetiu__ Tou esperando o ônibus... __ Onde é que você mora? __ Na Praia da Estrela. __ Vou para aquele lado. Quer uma carona? Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta: __ Entra aí que eu te levo. Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade, ia olhando

duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa: __ Como é seu nome?

__ Teresa. __ Quantos anos você tem, Teresa?

__ Dez. __ E o que estava fazendo ali, tão longe de casa? __ A casa da minha patroa é ali. __ Patroa? Que patroa? Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa,

varria a casa, servia à mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite. __ Hoje saí mais cedo. __ Você já jantou? __ Não. Eu almocei. __ Você não almoça todo dia? __ Quando tem comida pra levar, eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim. __ E quando não tem? __ Quando não tem, não tem __ e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do

carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos __ um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês:

__ Mas não te dão comida lá? __ perguntei, revoltado. __ Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado, mamãe disse para eu não pedir. __ E quanto é que você ganha? Diminuí a marcha, assombrado, quase parei o carro. Ela mencionara uma importância ridícula, uma

ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso era voltar, bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara. __Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa? __ perguntei ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas da Praia do Pinto. Ela disparou a falar: __ Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as compras e aí no outro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa é sete meninos fora dois grandes que já são soldados pode parar que é aqui moço, obrigado. Mal detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na escuridão miserável da Praia da Estrela.

01. Compare:Impressão do autor, ao ver a menina – “...não teria mais que uns sete anos.”Resposta da menina à pergunta do autor – “_Quantos anos você tem, Teresa?

_ Dez.” Como o narrador descreve a aparência da menina: “... suas feições de crianças... podiam ser as de uma velha”.

Page 2: Texto Na escuridão miserável (Fernando Sabino) · Na escuridão miserável (Fernando Sabino) ... Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim

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Por que uma menina de dez anos pareceria ter sete anos?

02. Observe os sentimentos do autor: “Eu não me continha mais de aflição...” “... perguntei, revoltado.” “Diminuí a marcha, assombrado...” Volte ao texto e escreva o fato que causou cada um desses sentimentos: a) Que fato causou a aflição? b) Que fato causou revolta? c) Que fato causou o assombro?

03. A expressão “na escuridão miserável” foi utilizada duas vezes na crônica, na frase final e no título. A que se refere à expressão, quando usada no final da crônica?

04. Releia a seguinte fala: “— Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa?” O que as

reticências indicam nesse trecho? Explique. 05. Qual era o trabalho da menina? Quantas horas trabalhava por dia? 06. Como era tratada a menina na casa em que trabalhava? 07. Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil, a idade mínima para admissão ao trabalho é 14

anos. No entanto, há no Brasil cerca de 2,9 milhões de trabalhadores entre 10 e 14 anos. Por que você acha que isso ocorre?

08. O autor não pontuou a fala da menina. Qual foi a intenção do autor utilizando este recurso?

Observe a linguagem empregada na crônica em estudo: 09. Os fatos são narrados de forma pessoal, subjetiva, isto é, de acordo com a visão do cronista, ou são

narrados de forma impessoal, objetiva, numa linguagem jornalística? 10. Em relação à linguagem, a crônica está mais próxima do noticiário geral de um jornal ou dos textos

literários, como o conto, o mito, o poema? 11. Que tipo de variedade linguística é adotado na crônica: a variedade padrão formal ou a variedade padrão

informal? Justifique sua resposta. 12. Na crônica, os fatos podem ser narrados por um narrador-observador ou um narrador-personagem. Qual o

tipo de narrador na crônica de Fernando Sabino? Justifique a resposta.