texto 4 - antonio carlos diegues e rinaldo arruda - saberes tradicionais diversidade brasil

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  • Saberes tradicionaise biodiversidade no Brasil

  • ISBN 85-87166 - 31 - X

    Centro de Informao e Documentao - CID AmbientalEsplanada dos Ministrios - Bloco B - trreo70068-900 - Braslia, DFTel: 5561 317-1235Fax: 5561 224-5222

    :

    Impresso no Brasil

    SABERES tradicionais e biodiversidade no Brasil/organizado por Antonio CarlosDiegues e Rinaldo S.V. Arruda. - Braslia: Ministrio do Meio Ambiente; SoPaulo: USP, 2001. xxx p. (Biodiversidade, 4).

    1. Biodiversidade. I. Diegues, Antonio Carlos (Org.). II. Arruda, Rinaldo S.V.(Org.). III. Ministrio do Meio Ambiente. IV. Universidade de So Paulo.

    CDU 504.7

  • Universidade de So Paulo-USP

    Saberes tradicionaise biodiversidade no Brasil

    Braslia2001

    Organizado por Antonio Carlos Dieguese Rinaldo S. V. Arruda

  • Ministrio do Meio Ambiente-MMASecretaria de Biodiversidade e FlorestasPrograma Nacional de Conservao da BiodiversidadeSrie Biodiversidade, 4

    Braulio F. S. DiasLidio Coradin

    Ludmilla Moura de Souza AguiarLuzdalma Maria Goulart MachadoMaria Luiza GastalRicardo Bomfim MachadoWarton Monteiro (Coordenador)

    Viviane C. F. da SilvaFrancisca A. B. FigolsDaniela Andrade

    Coordenao: Magda Maciel MontenegroReviso/padronizao de texto: Cleide Passos e Ticiana ImbroisiProjeto grfico/editorao eletrnica: Eduardo Giovani Guimares e Tiago Ianuck ChavesDigitao: Glaucia Cabral Carneiro

    Ricardo Bomfim Machado

    (de arquivo)Haroldo Palo Jr.

  • Sumrio

    Apresentao ................................................................................... 7Lista de tabelas ................................................................................ 9Introduo ..................................................................................... 11

    PARTE 1: Conceitos e DefiniesBiodiversidade e as teorias conservacionistas ............................... 13Biodiversidade e o manejo pelas comunidades tradicionais ....... 20A questo conceitual: dificuldades e ambigidades ...................... 23Populaes tradicionais no Brasil: uma perspectiva histrica desua formao ....................................................................................... 29Saber tradicional, cincia e biodiversidade .................................... 31A antropologia e o conhecimento tradicional................................ 35

    Ecologia cultural ............................................................................................ 35Antropologia ecolgica ............................................................................... 36Etnocincia ................................................................................................... 36

    Proposta de descrio dos grupos de populaes tradicionais .. 38Populaes tradicionais no-indgenas ..................................................... 38

    Aorianos ....................................................................................................................... 38Babaueiros .................................................................................................................... 40Caboclos/Ribeirinhos amaznicos ............................................................................ 41Caiaras ........................................................................................................................... 42Caipiras/Sitiantes .......................................................................................................... 45Campeiros (Pastoreio) .................................................................................................. 46Jangadeiros ..................................................................................................................... 46Pantaneiros ..................................................................................................................... 48Pescadores artesanais ................................................................................................... 48Praieiros .......................................................................................................................... 49Quilombolas ................................................................................................................... 49Sertanejos/Vaqueiros ................................................................................................... 50Varjeiros (Ribeirinhos no-amaznicos) ................................................................... 51

    Populaes indgenas ................................................................................... 51Lnguas e culturas indgenas ....................................................................................... 54

    PARTE 2: Anlise dos trabalhos ................................................ 61Trabalhos e tipo de populao tradicional ..................................... 61Tipos de documentos ........................................................................ 65

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    Ministrio do Meio Ambiente

    Perodo dos trabalhos ........................................................................ 66Ecossistemas e populaes tradicionais ......................................... 69Trabalhos por tipo de populao, grupos tradicionaise assuntos tratados ............................................................................. 71O etnoconhecimento nos trabalhos ................................................ 76Conhecimento de tcnicas de manejo ............................................. 79

    PARTE 3: Sntese dos resultados............................................... 85Consideraes gerais .......................................................................... 85Sobre os trabalhos selecionados ...................................................... 85Sobre subsdios s polticas pblicas ............................................... 88

    PARTE 4: Trabalhos selecionados e avaliados (Levantamentobibliogrfico) ........................................................................91

    Populaes no-indgenas ................................................................. 91Populaes indgenas ....................................................................... 125

    PARTE 5: Povos indgenas no Brasil ...................................... 157Colaboradores ................................................................................... 165Referncias bibliogrficas................................................................ 166

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    Apresentao

    As autoridades governamentais bem como a sociedade civil conscientizam-se, cada vezmais, que o conhecimento, as inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenascom estilo de vida tradicional e essencial para a conservao e utilizao sustentvel dadiversidade biolgica vm-se perdendo em propores alarmantes. O avano da fronteiraagrcola, a construo de hidroeltricas e estradas, alm da especulao imobiliria, soapontadas como as principais causas do desaparecimento dos costumes e saberes tradicionais.

    Conhecimentos tradicionais so valiosa herana para as comunidades e culturas que osdesenvolvem e os mantm, alm de, potencialmente, representar fonte significativa deinformaes para as sociedades de todo o mundo. O prof. Antnio Carlos Diegues expressabem a importncia de tais populaes ao afirmar serem essas o grande repositrio de parteconsidervel do saber sobre diversidade biolgica conhecido hoje pela humanidade.

    Ao assinar a Conveno sobre Diversidade Biolgica-CDB, os pases-membrosreconheceram a estreita dependncia de recursos biolgicos de comunidades locais e populaesindgenas. Da, o preceito contido no artigo 8 , para que essas naes, em conformidade coma legislao nacional, respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, inovaes e prticasdesses povos, incentivando sua mais ampla aplicao, e encorajando a repartio justa eeqitativa dos benefcios oriundos da utilizao desses mesmos conhecimentos.

    Buscando a implementao de aspectos to relevantes da Conveno, foi desenvolvidopelo Ncleo de Pesquisas sobre Populaes Humanas e reas midas do Brasil - NAPAUB, daUniversidade de So Paulo-USP, com o apoio do Ministrio do Meio Ambiente-MMA e doConselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq, contando comrecursos financeiros do Projeto de Conservao e Utilizao Sustentvel da Diversidade BiolgicaBrasileira - PROBIO o presente estudo, no qual realizou-se criterioso inventrio, seguido deanlise e organizao dos trabalhos que tratam do conhecimento e uso da biodiversidade porpopulaes tradicionais indgenas e no-indgenas no Brasil.

    Com este livro esperamos contribuir para que formuladores de polticas pblicas, cientistas,estudiosos e a sociedade civil compreendam melhor os vrios aspectos do conhecimentoproduzido por esses grupos, e se tornem parceiros permanentes na defesa e manuteno dessastradies milenares, de inestimvel valor.

    Diretor do Programa Nacionalde Conservao da Biodiversidade

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    Lista de tabelas

    TABELA PGINA

    1. Situao jurdica das reas indgenas no Brasil ............................................................................

    2. Total de trabalhos por populao tradicional ...............................................................................

    3. Total de trabalhos por grupo tradicional no-indgena ...............................................................

    4. Total de trabalhos por grupo de populao tradicional indgena ..............................................

    5. Total de trabalhos sobre populao no-indgena e indgena por tipo de documento ..........

    6. Total de trabalhos sobre populao no-indgena e indgena por perodos ............................

    7. Total de trabalhos sobre grupo tradicional no-indgena por perodos especficos ...............

    8. Total de trabalhos sobre grupo tradicional indgena por perodos especficos .......................

    9. Total de trabalhos da populao no-indgena e indgena por ecossistemas ..........................

    10. Assuntos abordados nos trabalhos por populao no-indgena e indgena ...........................

    11. Total de trabalhos sobre assuntos diversos por grupo de populao no-indgena ...............

    12. Total de trabalhos sobre assuntos diversos por grupo de populao indgena .......................

    13. Total de trabalhos que abordam o etnoconhecimento por populao tradicional .................

    14. Nmero de trabalhos que abordam o etnoconhecimento por grupode populao no-indgena ..............................................................................................................

    15. Nmero de trabalhos que abordam o etnoconhecimento por grupode populao indgena ......................................................................................................................

    16. Nmero de trabalhos sobre a populao no-indgena e indgenacom meno ao manejo ....................................................................................................................

    17. Nmero de trabalhos com descrio de manejo por grupode populao no-indgena ..............................................................................................................

    18. Nmero de trabalhos com descrio de manejo por grupode populao indgena ......................................................................................................................

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    Introduo

    A manuteno da diversidade biolgica tornou-se, nos anos recentes, um dos objetivosmais importantes da conservao. A biodiversidade definida pela Conveno sobreDiversidade Biolgica-CDB como a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo,dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquticos e os complexos ecolgicos de quefazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espcies, entre espcies e de ecossistemas. (Art. 2).

    A diversidade biolgica, no entanto, no se restringe a um conceito pertencente ao mundonatural; tambm uma construo cultural e social. As espcies so objeto de conhecimento,de domesticao e uso, fonte de inspirao para mitos e rituais das sociedades tradicionais, efinalmente, mercadoria nas sociedades modernas.

    A CDB chama de recursos biolgicos os recursos genticos, organismos ou parte deles,populaes ou qualquer outro componente bitico de ecossistemas, de real ou potencial utilidadeou valor para a humanidade (Art. 2).

    O respeito e a manuteno dos saberes e prticas tradicionais so objetivos da Conveno,que em seu prembulo e no art. 8, recomenda que os benefcios derivados do uso dessesconhecimentos sejam tambm distribudos entre as comunidades que os detm.

    Cada Parte Contratante deve:Em conformidade com sua legislao nacional, respeitar, preservar e manter oconhecimento, inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenascom estilo de vida tradicionais relevantes conservao e utilizao sustentvel dadiversidade biolgica e incentivar sua mais ampla aplicao com a aprovao e aparticipao dos detentores desse conhecimento, inovaes e prticas; e encorajar arepartio eqitativa dos benefcios oriundos da utilizao desse conhecimento,inovaes e prticas (Art. 8 ).

    Alm disso, no art. 10 a Conveno determina que cada Parte Contratante deve protegere encorajar a utilizao costumeira dos recursos biolgicos de acordo com prticas culturais tradicionais compatveis comas exigncias de conservao ou utilizao sustentvel. E tambm apoiar populaes locais na elaborao e aplicaode medidas corretivas em reas degradadas onde a diversidade biolgica tenha sido reduzida. (Art. 10 ).

    Em seu art. 17, a CDB tambm recomenda s Partes Contratantes que proporcionem ointercmbio de informaes sobre o conhecimento das comunidades tradicionais, e no art. 18,determina o aperfeioamento de mtodos de cooperao para o desenvolvimento de tecnologias,incluindo as tradicionais e as indgenas.

    fundamental realizar o inventrio dos conhecimentos, usos e prticas das sociedadestradicionais indgenas e no-indgenas, pois, sem dvida, so depositrias de parte considerveldo saber sobre a diversidade biolgica hoje reconhecido.

    Este livro apresenta os resultados da pesquisa feita pelo Ncleo de Pesquisas sobrePopulaes Humanas e reas midas do Brasil - NUPAUB, da Universidade de So Paulo-USP,solicitada pelo Ministrio do Meio Ambiente-MMA, e que recebeu o apoio do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico-CNPq.

    A pesquisa teve o objetivo de realizar o levantamento e a anlise dos trabalhos (livros,teses, artigos, relatrios, coletneas etc.) sobre o conhecimento e uso da biodiversidade(continental e marinha) por populaes tradicionais indgenas e no-indgenas no Brasil, e deorganizar a documentao estudada de forma a torn-la acessvel ao pblico.

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    De incio, pela consulta a diversos bancos de dados e acervos, em particular aquelesde universidades e institutos de pesquisa, e por meio de visitas a vrios centros espalhadospelo pas, foram identificados cerca de 3.000 ttulos, abrangendo todo tipo de material,com a utilizao do sistema de palavras-chave. Posteriormente, optou-se pelo uso defichas de pesquisa com 11 itens (anotando assuntos tratados, tipos de populaotradicional indgenas e no-indgenas, ecossistemas em que se se localizam e a relevnciado trabalho quanto densidade de informaes sobre conhecimento e manejo tradicional);foram ento selecionadas cerca de novecentos, julgados relevantes para os objetivos dapesquisa, de acordo com a importncia que os temas conhecimento e manejo tradicionaltm nos trabalhos escolhidos.

    Este livro est organizado em cinco partes: a primeira, apresenta conceitos e definies; asegunda, analisa os dados do levantamento bibliogrfico; a terceira uma sntese dos resultados;a quarta parte a lista dos trabalhos selecionados e avaliados, 907 ao todo; e por fim a quintaparte, em forma de tabela, relaciona os povos indgenas do Brasil.

    No mbito das populaes tradicionais indgenas, foram considerados 206 gruposidentificados pelo Instituto Socioambiental (ISA, 1996), alm das populaes tradicionaisno-indgenas: os grupos aorianos, babaueiros, caboclos/ribeirinhos amaznicos, caiaras,caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais,praieiros, quilombolas, sertanejos/vaqueiros, varjeiros (ribeirinhos no-amaznicos).

    O NUPAUB agradece a contribuio dos inmeros estudiosos de diversos centros de pesquisado pas, e em particular, ao eclogo Jos Geraldo Marques, da Universidade Federal de Alagoas;a Kimiye Tommasino, antroploga da Universidade Estadual de Londrina; a Heitor Medeiros,historiador; a Elaine Elisabetsky, etnofarmacloga da Universidade Federal do Rio Grande doSul; e a Eraldo Medeiros Costa Neto, bilogo da Universidade Estadual de Feira de Santana,que encaminharam listagens valiosas sobre o tema.

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    Conceitos e definies

    A biodiversidade, na maioria dos trabalhos sobre o tema, aparece como a variabilidadede organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos eoutros ecossistemas aquticos e os complexos ecolgicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidadedentro de espcies, entre espcies e de ecossistemas. (CDB, art. 2o). Essa variabilidade entendidacomo produto da prpria natureza, sem a interveno humana. A preocupao deste estudo mostrar que a biodiversidade no s um produto da natureza, mas em muitos casos produto da ao das sociedades e culturas humanas, em particular das sociedadestradicionais no-industriais. tambm uma construo cultural e social, como afirmadoantes. As espcies vegetais e animais so objeto de conhecimento, domesticao e uso,fonte de inspirao para mitos e rituais das sociedades tradicionais, e finalmente, mercadorianas sociedades modernas.

    Os conservacionistas/preservacionistas e tambm a Conveno sobre a DiversidadeBiolgica enfatizam as reas protegidas de uso indireto (parques nacionais, reservas biolgicas,etc.) como locais privilegiados para o estudo e a conservao da biodiversidade. Como essasreas, por lei, no admitem moradores, refora-se o argumento de que a biodiversidade no s um produto natural, como sua conservao pressupe a ausncia e mesmo a transferncia depopulaes tradicionais de seu interior.

    As reas protegidas brasileiras, em particular as de uso indireto, no entanto, encontram-seem crise; muitas so invadidas e degradadas. Para os defensores do modelo norte-americano deparques sem moradores, as razes de tal crise, em geral, esto relacionadas falta de dinheiropara a desapropriao, de investimento pblico, de fiscalizao e de informao aos visitantes.Para os que defendem outras alternativas de conservao, essas dificuldades so inerentes aomodelo atual predominante nas reas protegidas, uma vez que, tendo sido criado no contextoecolgico e cultural norte-americano, no se aplica ao contexto dos pases tropicais do Sul.

    Porm, esse modelo operacional no foi importado sozinho; vieram com ele uma visoda relao entre sociedade e natureza e um conjunto de conceitos cientficos que passaram anortear a escolha da rea, o tipo de unidade de conservao o manejo e a gesto.

    O modelo de rea protegida de uso indireto em vigor, que no permite moradores mesmotratando-se de comunidades tradicionais presentes em geraes passadas, parte do princpio deque toda relao entre sociedade e natureza degradadora e destruidora do mundo natural eselvagem a norte-americana sem que sejam feitas quaisquer distines entre asvrias formas de sociedade (a urbano-industrial, a tradicional, a indgena, etc.). Assim, todosos modos de vida devero estar fora das reas protegidas.

    No incio, essas reas de grande beleza cnica foram destinadas, em especial, aodesfrute da populao das cidades norte-americanas que, estressadas pelo ritmo crescentedo capitalismo industrial, tentavam encontrar no mundo selvagem a salvao dahumanidade , conforme a viso romntica e transcendentalista de seus propositores, entreeles John Muir e Thoreau. Predominava, portanto, uma viso esttica da natureza, cujadifuso muito se credita a filsofos e artistas.

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    No comeo do sc. XX, os cientistas passaram a exercer importncia cada vez maior nadefinio das reas protegidas, sobressaindo aqueles voltados para as cincias naturais, umavez que, segundo a viso prevalecente, tratava-se de proteger o mundo natural da ao dohomem. A prpria teoria dos ecossistemas, apesar dos esforos de cientistas naturais comoOdum, no escapou da tendncia a considerar os humanos exteriores ao ecossistema, passandoa se preocupar com reas chamadas naturais virgens , nas quais poderiam ser analisadas ascadeias trficas e energticas em seu clmax antes da interveno humana (Larrre, 1997).

    Nesse perodo, destaca-se nos Estados Unidos o desempenho de Aldo Leopold, cientistagraduado em cincias florestais, que se tornou administrador de parques nacionais, emborativesse uma viso abrangente transmitida pela . Afirmava que uma deciso sobreo uso da terra correta quando tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade bitica, que incluio solo, a gua, a fauna e flora e tambm as pessoas. (1949, p. 224).

    Essa viso globalizadora foi aos poucos preterida a outros enfoques biologizantes, marcadospela modelagem dos ecossistemas e pelos mtodos exclusivamente quantitativos, que tornarama ecologia uma cincia mais abstrata, quantitativa e reducionista, segundo Nash (1989, p.73).Esse novo ponto de vista segue a tendncia de compartimentalizao das cincias naturais(que englobam hoje disciplinas estanques, como a geologia e a botnica) e o aparecimento deuma viso unidisciplinar, sobretudo no perodo ps-guerra.

    No fim dos anos sessentas, os ecologistas preservacionistas, propositores dos parquessem moradores, acharam forte aliado filosfico na emergente que, comuma viso biocntrica, afirma que a natureza deve ser preservada, independente da contribuioque possa trazer aos seres humanos. A necessidade da expanso do modelo dominante deparques nacionais e de controle da populao, cujo crescimento tido como o maior fator dedestruio da natureza, passou a fazer parte do dogma da ecologia profunda, que encontrounos Estados Unidos terreno propcio para sua propagao.

    Outro aliado da viso preservacionista surgiu naquele mesmo pas, na dcada de 1980, a, que associa a cincia gesto e ao manejo das reas naturais. Utiliza,

    para tanto, a biologia das populaes, os conceitos oriundos da biogeografia insular e as pesquisasreferentes s espcies para determinar reas de tamanho timo a fim de evitar a extino dessas,em geral, no interior de reas protegidas. A restaurao de hbitats degradados, a reintroduode espcies reproduzidas em cativeiro no meio natural e a definio de corredores ecolgicosdesempenham papel cada vez mais importante na biologia da conservao (C. Leveque, 1997).Alm disso, essa disciplina tem preocupao central com a biodiversidade, objetivo que noconstava da proposta inicial dos parques nacionais, por ser posterior criao desses.

    A implantao de reas protegidas na frica, sia e Amrica Latina, a partir das primeirasdcadas do sc. XX, comeou a gerar fortes conflitos sociais e culturais junto s populaeslocais, os quais se agravaram a partir da dcada de 1970, quando essas comunidades locais/tradicionais comearam a se organizar, e, em muitos casos, passaram a resistir expulso ou transferncia de seus territrios ancestrais como quer o modelo preservacionista.

    A trajetria histrica dos impactos criados pela implantao dessas reas protegidas temsido analisada naqueles continentes. No subcontinente indiano sobressaem os trabalhos deSukumar (1994), Rachamandra Guha (1989; 1997), Kothari (1996), Gadgil e Guha (1992),Ghimire (1994) e Sarkar, (1998). Na frica so importantes, nesse contexto, os trabalhos doprojeto Campfire (Murphree, 1994) e a publicao do livro de Adams e McShane, em 1992,

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    . Na Amrica Latina destacam-se, entre outros,os trabalhos de: Amend, (1992); de Gmez-Pompa e Kaus,

    (1992); de Diegues, (1993) e de 1994, ; e ,

    editado por Kemf (1999). Alguns autores europeus tambm ressaltaram esses impactos:Colchester (1994), Pimbert e Pretty (1997), Larrre (1997).

    Ainda analisando os impactos sociais, ecolgicos e culturais sobre regies de floresta tropicalem diferentes continentes, esses autores comearam a enfatizar, a partir da dcada de 1980, ascausas do insucesso de muitas reas protegidas.

    A maioria deles centrou sua anlise na inadequao do conceito de , como naturezaselvagem no-domesticada, presente na idia de reas protegidas desabitadas, e na inadequaoda viso das relaes entre as comunidades indgenas tradicionais e seu territrio e uso dosrecursos naturais. Partem da constatao de que muitas dessas reas habitadas por populaestradicionais haviam se conservado emvirtude do manejo ligado ao modo de vida das comunidades que, com a criao das reasprotegidas, passaram a estar sujeitas expulso.

    Esses cientistas, na maior parte ligados tanto s cincias naturais quanto s sociais,estavam construindo outro tipo de cincia e prtica da conservao, que pode ser chamadade ou . Essa nova tendncia daconservao baseia-se, por um lado, na constatao do insucesso de muitos parquesnacionais e reas protegidas de uso indireto, e por outro, em argumentos de ordem tica,poltica, cultural e ecolgica. Sob o ponto de vista tico, considera-se injusto expulsarcomunidades que vivem em reas de florestas desde geraes passadas e so responsveispela qualidade dos hbitats transformados em reas protegidas, dado seu modo de vida euso tradicional dos recursos naturais.

    Sob o ponto de vista poltico constatou-se, que sem o apoio dessas comunidades, grandeparte das aes conservacionistas e preservacionistas tem efeito oposto real conservaodos hbitats e dos recursos naturais. Alm disso, o modelo preservacionista tem alto custosocial e poltico em geral, pois adota enfoque autoritrio, uma vez que as comunidades locaisno so consultadas a respeito da criao de uma rea protegida restritiva sobre seu territrio.Tal modelo, desnecessariamente caro e invivel sob o ponto de vista poltico, s realizvelhoje em quase todos os pases tropicais se contar com grande aporte financeiro das naesindustrializadas do Norte, de bancos multilaterais e de algumas megaorganizaesconservacionistas ligadas a essas naes.

    O modelo de rea natural desabitada interessa aos governos por duas razes: constituemreservas naturais de grande beleza cnica, de destino turstico, e do chamado ecoturismo, e porque mais fcil negociar contratos de uso da biodiversidade num espao controlado pelogoverno que num espao ocupado por comunidades tradicionais, pois, pelo art. 8 da CDB,essas precisariam ser ressarcidas no momento em que seu conhecimento tradicional sobreespcies da flora fosse usado para obteno de medicamentos e outros produtos.

    Sob o ponto de vista cultural, esses estudos mostram que o manejo e a gesto dasreas naturais podem estar profundamente influenciados pela viso de mundo e prticasculturais e simblicas das comunidades tradicionais, e no por conceitos e prticascientficas, em sua acepo moderna.

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    Sob o ponto de vista cientfico, os ecologistas sociais tm-se centrado no fato de a prpriabiologia moderna rever vrios conceitos relacionados com a natureza intocada , tais como anoo de clmax, de equilbrio ecossistmico, de perturbao natural e do papel do fogo naregenerao das espcies. Alm disso, lanam mo de conceitos como o da co-evoluo, a qual,para Noorgard (1994) pode ser entendida como uma sntese interativa dos mecanismos demudana social e natural.

    medida que aumentam os conhecimentos sobre a natureza e a cultura, tende-se a ver aspaisagens como produtos da co-evoluo humana e natural.

    Outros conceitos e metodologia revelados mais adequados ao entendimento da relaoentre sociedade e natureza so o de e . A primeira pode serconsiderada um mosaico de hbitats, desde os menos tocados at aqueles que sofreram intensaatividade humana. Nesse sentido, como afirma Larrre (1997), a paisagem uma estruturaespacial que resulta da interao entre os processos naturais e as atividades humanas. A aodas sociedades modela a natureza e seus diversos hbitats, construindo um territrio. A vegetaotambm tem dinmica prpria, trazendo sempre traos do passado e a paisagem (modelada)necessariamente se transforma. Um mosaico de hbitats espelha a ao material e simblicadas comunidades que os ocuparam ao longo dos sculos.

    Eclogos consideram a estrutura da paisagem importante para a manuteno dos processosecolgicos e da diversidade biolgica, em particular nas reas onde vivem comunidadestradicionais diretamente dependentes do uso dos recursos naturais. A paisagem , portanto,fruto de uma histria comum e interligada:

    As noes de co-evoluo e de ecologia da paisagem revelam tambm que tanto as sociedadesquanto a natureza se transformam, deixando de existir o bom selvagem rousseauniano. Portanto,no sobre essa miragem que deve se basear uma poltica conservacionista adequada. Algumasdessas mudanas, no mbito das sociedades urbano-industriais, podem ser prejudiciais conservao, levando destruio dos hbitats (desmatamento, aumento de CO2 na atmosfera,por exemplo). As comunidades tradicionais (indgenas, extrativistas, camponesas, de pescadoresartesanais) tambm se modificam sob o efeito de dinmicas internas e externas (alteraes naestrutura fundiria, consumo de produtos industrializados) mas em ritmo mais lento. Alm disso,sua forte dependncia dos recursos naturais, sua estrutura simblica, os sistemas de manejodesenvolvidos ao longo do tempo, e muitas vezes, seu isolamento, possibilitam uma parceria nosesforos para a conservao.

    Nessa parceria, os conservacionistas devem valorizar os aspectos positivos dessas culturas,os quais enfatizam a proteo do mundo natural, por meio de aes que levem melhoria dascondies de vida das comunidades tradicionais. Alguns exemplos nos vrios continentes(Pimbert, 1997; Colchester, 1997) tm revelado que quando dado o apoio necessrio a essascomunidades, elas so as primeiras a mostrar oposio, em virtude dos efeitos devastadoresdas mineradoras, das madeireiras e dos especuladores. No resta dvida que esse um dosdesafios cruciais com que se defronta hoje a conservao no Terceiro Mundo (Diegues, 1996;Schwartzman, 1999).

    Por outro lado, os eclogos sociais criticam os mtodos e sobretudo as prticas da como brao cientfico da . Alguns cientistas naturais no

    Brasil tm criticado essa disciplina porque requer uma base de dados sofisticada, em geralinexistente em pases tropicais, e por causa da excluso do homem:

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    As tcnicas de proteo e manejo, portanto, visam minimizar o problema da erosoda biodiversidade provocada pela fragmentao do hbitat natural. Essa abordagem,no entanto, limitada justamente pela incapacidade de incorporar o homem.(Fonseca e Aguiar, 1992, p.72).

    Alguns autores, como Guha (1997), criticam as prticas conservacionistas autoritrias e opapel de guardies da biodiversidade nos pases tropicais, que se auto-atribuem alguns bilogosda conservao de naes industrializadas. Assim, Daniel Janzen, considerado um dos pais dabiologia tropical, na revista (1986), afirmou que paraproteger as florestas tropicais, os bilogos, que tm responsabilidades especficas com aconservao das espcies, deveriam, se necessrio, comprar as terras em outros pases e assimpoderem preserv-las. Um dos fundadores da biologia da conservao, Michel Soul (1985)queixa-se de que a linguagem das polticas de conservao tornou-se mais humanista em valorese mais economicista em substncia, e portanto, menos naturalista e ecocntrica.

    Ainda sob o ponto de vista cientfico, os que se baseiam na ecologia social tm propostoque a biodiversidade no um conceito apenas biolgico, relativo diversidade gentica deindivduos, de espcies e de ecossistemas, mas tambm o , muitasvezes milenares, das comunidades tradicionais que domesticam espcies, mantendo eaumentando, como em alguns casos, a diversidade local. (Posey, 1987; Gmez-Pompa, 1971;Gmez-Pompa e Kaus, 1992).

    Um dos corolrios dessas pesquisas a escolha dos stios de alta biodiversidade para oestabelecimento de reas protegidas no poder se basear simplesmente em critrios biolgicos,e sim nos socioculturais. Pode-se pensar que aquelas reas de alta biodiversidade resultantes deuma interao positiva entre as comunidades tradicionais e o ecossistema deveriam receberprioridade nos processos de escolha, por meio do estabelecimento de reas protegidas quevalorizam essas interaes.

    Em alguns pases, a ecologia social tem-se apoiado na etnocincia em seus vrios ramos (aetnobotnica, etnoictiologia, etnobiologia) em que o conhecimento das populaes tradicionais considerado importante para a conservao.

    Recebendo contribuies da sociolingstica, da antropologia estrutural e da cognitiva, aetnobiologia o estudo do conhecimento e das conceituaes desenvolvidas por qualquersociedade a respeito do mundo natural e das espcies; o estudo do papel da natureza no sistemade crenas e de adaptao do homem a determinados ambientes, enfatizando as categorias econceitos cognitivos utilizados pelos povos em estudo. O conhecimento dos povos tradicionais(indgenas e no-indgenas) no se enquadra em categorias e subdivises precisamente definidas,como as categorias que a biologia tenta, de modo artificial, organizar. (Posey, 1987).

    Sendo um campo relativamente novo da cincia, a etnobiologia ainda est construindoseu mtodo e sua teoria a respeito da maneira como os povos classificam os seres vivos, seuambiente fsico e cultural. Pressupe-se que cada povo possua sistema nico de perceber eorganizar coisas, eventos e comportamentos.

    Grande parte dos trabalhos etnobiolgicos realizada por uma nova gerao de cientistasnaturais; alguns que trabalham em instituies ambientais governamentais, comeam ainfluenciar polticas pblicas conservacionistas de carter participativo. Isso revela tambmque seria simplista reduzir o debate ambiental a vises diferenciadas entre cientistas naturaise sociais. Em vrios pases tropicais, as mudanas que esto ocorrendo na conservao se

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    do muito mais pelo trabalho dos cientistas naturais, sensveis s questes sociais, do quepela atuao dos cientistas sociais.

    revelador o fato de que ainda so raros os cientistas sociais que acham importantes asquestes relativas conservao, seja por receio do determinismo geogrfico seja porconsiderarem essas questes como feudos dos cientistas naturais.

    A criao de uma etnocincia da conservao foi influenciada nas dcadas de 1970 e1980 com o nascimento e expanso de vrios movimentos socioambientais nos pases tropicais,preocupados com a conservao e a melhoria das condies de vida da populao rural. NoBrasil, essa nova cincia acompanha o aparecimento e o fortalecimento do movimento dospovos indgenas, dos seringueiros e dos quilombolas com propostas concretas de reas protegidas,como as reservas extrativistas. O mesmo ocorreu na ndia com o surgimento do movimentoChipko e na frica, com o movimento de parcerias com as comunidades locais, para o manejode animais selvagens, como o caso do Campfire, no Zimbabue.

    Assistimos, portanto, construo de uma nova teoria e prtica da conservao, combase nos problemas existentes nos pases tropicais. Ao contrrio do que prega a biologia daconservao, importada e apoiada no Brasil por algumas das megaorganizaes internacionais,a no de domnio exclusivo de determinados cientistas nem do Estado,mas de um movimento que rene cientistas tanto das cincias naturais quanto das sociais, epor isso interdisciplinar; de domnio de cooperao entre as comunidades e vrias organizaesno-governamentais, com o intuito de implantar uma conservao real das paisagens e deproteger a diversidade biolgica e sociocultural.

    Como os parques nacionais norte-americanos foram estabelecidos por razes estticase de turismo e no para a proteo da biodiversidade, pode-se dizer que essa ocorreu porcasualidade. Tambm existem os casos em que a excluso do homem resultou em perda dabiodiversidade. Nos parques de Serengeti e Ngorongoro, no Qunia e na Tanzniarespectivamente, as tribos de pastores, com atividades de pastoreio e queima de pasto,permitiram que os rebanhos e os animais selvagens coexistissem, criando uma paisagemque hoje valorizada pelos conservacionistas. A constituio de parques nacionais e aexcluso dessas tribos levaram converso do pasto em arbustos, com impactos negativossobre os animais herbvoros, que desempenham papel fundamental para a diversidadebiolgica da regio. (Colchester, 1997).

    Um dos argumentos dos contra a existncia das populaes tradicionaisem reas naturais protegidas a pretensa incompatibilidade entre a presena dessas populaese a manuteno da biodiversidade.

    A criao de reas protegidas para a conservao da biodiversidade , no entanto, umobjetivo recente, uma vez que, como j foi visto, os parques foram criados fundamentalmentepara a recreao e enlevo das populaes urbanas, para educao ambiental e pesquisa. Amanuteno da biodiversidade surgiu, com o objetivo da conservao, como resultado rpidodo desaparecimento de espcies e ecossistemas, a partir da dcada de 1960.

    A questo da biodiversidade aparece nitidamente na ,da Unio Internacional para a Conservao da Natureza-UICN (1980). Nesse documento, so

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    objetivos bsicos da conservao: manuteno dos processos ecolgicos essenciais, preservaoda diversidade gentica, utilizao sustentada das espcies e ecossistemas.

    A proteo da diversidade biolgica se completa com a manuteno da diversidade gentica,necessria tanto para assegurar o fornecimento de alimentos, de fibras e certas drogas quantopara o progresso cientfico e industrial. E ainda, para impedir que a perda das espcies causedanos ao funcionamento eficaz dos processos biolgicos. (Sumrio da , 1984).

    Nos documentos mais recentes da UICN, como o (1988, p. 33), huma primeira vinculao entre a proteo da diversidade biolgica (entendida comodiversidade de espcies e de ecossistemas) e a diversidade cultural.

    Assim, avalia que at agora,o movimento conservacionista foi liderado por naturalistas, incluindo amadores ebilogos treinados. Ainda que sua contribuio tenha sido essencial, eles foramincapazes de resolver os problemas bsicos da conservao porque os fatores limitantesno so de ordem ecolgica, mas principalmente polticos, econmicos e sociais. Asopinies para a conservao tm que ser procuradas entre os polticos, socilogosrurais, agrnomos e economistas. Em ltima anlise, os usurios dos recursos naturaislocais so aqueles que tomam as decises.

    Estudos recentes (Bale, 1992; Gmez-Pompa, 1971; 1992 e outros) afirmam que amanuteno e mesmo o aumento da diversidade biolgica nas florestas tropicais, estorelacionados intimamente com as prticas tradicionais da agricultura itinerante dos povosprimitivos. A regenerao da floresta mida parece ser, em parte, conseqncia das atividadesdo homem primitivo. O resultado do uso de pequenas reas de terra para a agricultura e seuabandono no pousio ( ) semelhante ao produzido pela destruio ocasionaldas florestas por causas naturais. Esse tipo de atividade pode ainda ser visto em muitas reastropicais, onde um padro de mosaico costuma ser encontrado, com a ocorrncia de grandespores de floresta mida primria e pores de floresta perturbada de diferentes idades, apartir do momento de seu abandono. Vrios estudos dessa srie de sucesses j existem, e emmuitos casos, tendem a concordar que a agricultura itinerante tem sido um meio natural parausar as propriedades regenerativas da floresta mida em benefcio do homem (Gmez-Pompae Kaus, 1992, p. 15). O autor vai mais longe:

    .

    Gmez-Pompa tambm afirma que alguns pesquisadores descobriram que muitas espciesdominantes das selvas primrias do Mxico e Amrica Central so, na verdade, espciesteis protegidas no passado pelo homem e que sua abundncia atual est relacionada a essefato. A seguir, lana a hiptese de que a variabilidade induzida pelo homem no meio ambientedas zonas tropicais um fator que favoreceu e favorece de maneira considervel a variabilidadedas espcies, e provavelmente, sua especiao. (1971).

    Se essas hipteses vierem a ser comprovadas, e muitos estudos recentes apontamnessa direo (Oliveira, 1992) inevitvel repensar o conceito de florestas virgens esua modalidade de conservao por meio de unidades em que se probe a ao da agriculturaitinerante. Alm disso, torna-se necessrio resgatar os sistemas tradicionais de manejo,pois tais tcnicas tm contribudo para a manuteno da diversidade biolgica. Nessesentido, so relevantes os trabalhos de Posey (1987) os quais confirmam que ao lado deespcies domesticadas/semidomesticadas, os Kayap tm o hbito de transplantar vrias

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    espcies da floresta primria para os antigos campos de cultivo, ao longo de trilhas e junto saldeias, formando os chamados campos de floresta . Esses nichos manejados foramdenominados por Posey ilhas naturais de recursos e so aproveitados no dia-a-dia indgena,bem como no tempo das longas expedies de caa que duram vrios meses. Bale (1993)demonstra que a floresta secundria tende a alcanar a primria, em termos de diversidade, aolongo do tempo, o que pode ocorrer em menos de oitenta anos. A diversidade em nmero deespcies entre as duas florestas semelhante: 360 na secundria e 341 na primria.

    Os trabalhos anteriormente citados atestam o grande cabedal de conhecimento daspopulaes indgenas e tradicionais sobre o comportamento da floresta tropical. Apontam tambmpara a necessidade de incorporar as populaes no manejo dessas reas. Gmez-Pompa e Kaus(1992, p. 274) vo mais alm ao afirmar:

    A tcnica de derrubada e queima da agricultura itinerante deve continuar para protegeras espcies. Sem todas essas prticas culturais humanas que vo junto com o hbitat,as espcies se perdero para sempre. E no entanto, essa dimenso da conservaotem sido negligenciada na nossa prpria tradio de manejo de recursos naturais.

    Alguns acreditam que culturas e saberes tradicionais podem contribuir para a manutenoda biodiversidade dos ecossistemas. Em numerosas situaes, na verdade, esses saberes so oresultado de uma co-evoluo entre as sociedades e seus ambientes naturais, o que permitiuum equilbrio entre ambos.

    Se as sociedades tradicionais viveram at o presente no interior de uma naturezaque ns ocidentais julgamos hostil, essencialmente devido ao saber e aosaber-fazer acumulados durante milnios dos quais ns reconhecemos hojeseu valor intrnseco. (J. Bonnemaison, 1993, Leveque, 1997, p.55-56).

    K. Brown e G. Brown (1991) tambm comparam o papel das comunidades tradicionais naconservao da biodiversidade na floresta tropical brasileira, que teve sua destruio ocasionadapela ao dos grandes fazendeiros e grupos econmicos. Para esses autores, a ao dos grandesgrupos resulta num mximo de eroso gentica, mesmo quando acompanhada de medidasconservacionistas . Tambm afirmam que o modelo de uso dos recursos naturais de baixaintensidade, desenvolvido pelas populaes extrativistas e indgenas, freqentemente resultaem eroso gentica de mnimas propores e em um mximo de conservao. Ainda que adensidade populacional seja em geral inferior a 1hab/km2, pode tornar-se dez vezes maior seo uso dos recursos naturais for cuidadosamente planejado, aproximando-se do uso naagricultura camponesa. Ainda segundo Brown, esse uso subdesenvolvido da terra e deseus recursos, descrito como primitivo , no-econmico e predatrio pelas agncias oficiaisde desenvolvimento , tem sido o uso mais rentvel da floresta a curto e mdio prazo,mantendo a biodiversidade e os processos naturais de forma eficaz; mesmo que no sirvaaos interesses das populaes urbanas mais densas e poderosas, muitas vezes mopes.

    K. Brown e G. Brown (1991, p.10) concluem em seu artigo: as populaes urbanas tmmuito de aprender com as tradicionais que vivem em maior harmonia com a natureza.

    Respeitando a sensibilidade para com a diversidade natural e seus processos inerentesaos sistemas socioeconmicos de produo menos sofisticados, as populaes dasreas urbanas podero desenvolver um novo conhecimento para com estas fontes desua prpria sobrevivncia.

    Trabalhos recentes do Banco Mundial (Cleaver, 1992) tambm apontam na direo dadesmistificao das florestas intocadas e para a importncia das populaes tradicionais naconservao da biodiversidade. Nas recomendaes para o Banco, Bailey (1992, p. 207-208) afirma:

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    A composio e distribuio presente das plantas e animais na floresta mida so oresultado da introduo de espcies exticas, criao de novos hbitats e manipulaocontinuada pelos povos da floresta durante milhares de anos. Por causa da longahistria de pousio da agricultura itinerante, junto com os povos nmades/pastoresna frica Central, todas as florestas atuais so realmente patamares de vrios estgiossucessivos de crescimento criados pelo povo e no existem reas que muitos relatriose propostas chamam de pristinas , intocadas , primrias ou floresta madura .

    Em resumo, essas florestas podem ser consideradas artefatos culturais humanos.A atual biodiversidade existe na frica no apesar da habitao humana, mas porcausa dela.

    Neste trabalho empregam-se alguns conceitos e definies operacionais, os quais apresentamambigidades e dificuldades tericas. A primeira delas reside na caracterizao de populaes/comunidades tradicionais.

    No Brasil, h certo consenso sobre o uso do termo populao indgena significando etnia , ou seja, povos que guardam continuidade histrica e cultural desde antes daconquista europia da Amrica. No estabelecimento de reas indgenas no pas, reconhecido o direito histrico desses povos a seus territrios e desse modo, sua identidade definida de forma mais clara que aquela das comunidades tradicionais no-indgenas.Por outro lado, o reconhecimento dessa identidade coexiste com intenso debate a respeitodo significado dos termos populaes nativas , tribais , indgenas e tradicionais ,aplicveis mundialmente. A confuso no apenas de conceitos, mas at de expressesem diversas lnguas. Assim, o termo ingls , usado em muitos documentos oficiais(Unio Internacional para a Conservao da Natureza-UICN, Banco Mundial), no querdizer necessariamente indgenas , no sentido tnico e tribal. O conceito utilizado deincio pelo Banco ( , 1982) para povos nativos

    foi baseado, em particular, nas condies de vida dos povos indgenas amaznicosda Amrica Latina e no se aplica a outras regies do mundo. Nova definio surgiu com aDiretiva Operacional 4.20, de 1991, tambm do Banco Mundial, com caractersticas maisamplas, substituindo o termo povos tribais por ( ). Aplica-se quelespovos que vivem em reas geogrficas particulares e demonstram, em vrios graus, asseguintes caractersticas:

    ligao intensa com os territrios ancestrais;

    auto-identificao e reconhecimento pelos outros povos como grupos culturais distintos;

    linguagem prpria, muitas vezes diferente da oficial;

    presena de instituies sociais e polticas prprias e tradicionais; e

    sistemas de produo voltados principalmente para a subsistncia.

    As cincias sociais refletiram sobre esse tipo de organizao social com enfoques variados.Tidas como camponesas , essas populaes foram englobadas no debate terico, como expressaFoster (1963), sob a denominao ( ), inseridas numa sociedade maisampla, em que as cidades exercem papel importante. Os camponeses, segundo Firth (1946), aindaque dependam fundamentalmente do cultivo da terra, podem ser pescadores, artesos, extrativistas,segundo as estaes do ano e a necessidade de conseguir dinheiro para as compras na cidade. Tanto

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    Foster quanto Redfield (1971) enfatizam o papel das relaes entre as sociedades tradicionais decamponeses e as cidades, das quais em grande parte dependem para sua reproduo social, econmicae cultural. Essa dependncia tambm poltica, na medida em que so marginalizados sob esseaspecto. Da cidade advm ainda as , que colaboram para a gradual transformao dessassociedades camponesas.

    Dassmann (1988), por outro lado, tomando como critrio a relao com a natureza,distingue dois tipos de sociedade: os ( ) aquelesque se estabelecem em simbiose com os ecossistemas e conseguem viver por longo tempomediante o uso sustentado de seus recursos naturais ou de recursos de ecossistemascontguos; e os , que so sociedades interligadas a uma economia global,de alto consumo e poder de transformao da natureza, causando grande desperdcio derecursos naturais. No entanto, o prprio Dassmann considera essa classificaosimplificadora, pois existe um entre uma e outra categoria, cujo equilbrio entreas populaes humanas e o ambiente no mantido por decises conscientes, mas por umconjunto complexo de padres de comportamento, marcados por valores ticos, religiosose por presso social.

    Numa perspectiva marxista, as culturas tradicionais esto associadas a modos deproduo pr-capitalistas, prprios de sociedades em que o trabalho ainda no se tornoumercadoria; em que a dependncia do mercado j existe, mas no total. Essas sociedadesdesenvolveram formas particulares de manejo dos recursos naturais, que no visamdiretamente ao lucro, mas reproduo cultural e social, alm de percepes erepresentaes em relao ao mundo natural, marcadas pela idia de associao com anatureza e a dependncia de seus ciclos. Culturas tradicionais, nessa perspectiva, so aquelasassociadas pequena produo mercantil (Diegues, 1993). Distinguem-se daquelas prpriasao modo de produo capitalista, em que no s a fora de trabalho como a prpria naturezase transformam em objeto de compra e venda (mercadoria). Nesse sentido, a concepo erepresentao do mundo natural e seus recursos so essencialmente diferentes nas duasformas de sociedade. Godelier (1984) por exemplo, afirma que essas duas sociedades tmracionalidades intencionais distintas, ou melhor, apresentam sistema de regras sociaisconscientemente elaboradas para atingir um conjunto de objetivos. Segundo o antroplogo,cada sistema econmico e social determina uma modalidade especfica de uso dos recursosnaturais e da fora de trabalho humana, e utiliza, em conseqncia, normas especficas do

    e do uso desses recursos; como exemplo, cita os caadores brancos e os ndiosNaskapi, da pennsula do Labrador, em que os primeiros caam os animais para retirar evender as peles, enquanto os segundos o fazem para subsistncia direta. Godelier diz quetanto os caadores brancos como os indgenas reproduzem sua sociedade e sua cultura pormeio de atividades econmicas e do uso dos recursos naturais. Os caadores brancos, noentanto, pertencem a um sistema econmico voltado para o lucro monetrio, no qual asolidariedade familiar tradicional desapareceu, e depredam os recursos naturais. Os ndiospertencem a uma sociedade cujo fim a reproduo da solidariedade e no a acumulaode bens e lucro, o que contribui para a preservao dos recursos naturais, dos quaisdependem para sobreviver.

    Um elemento importante na ligao entre essas populaes e a natureza sua relaocom o territrio, que pode ser definido como uma poro da natureza e do espao sobre oqual determinada sociedade reivindica e garante a todos, ou a uma parte de seus membros,

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    direitos estveis de acesso, controle ou uso na totalidade ou parte dos recursos naturaisexistentes. O territrio fornece, em primeiro lugar, o homem como espcie, mas tambm:

    os meios de subsistncia;

    os meios de trabalho e produo; e

    os meios para a produo dos aspectos materiais das relaes sociais aquelas que compema estrutura determinada de uma sociedade, como as relaes de parentesco. (Godelier, 1984).

    O territrio depende no s do tipo do meio fsico utilizado, mas tambm das relaes sociaisexistentes. Para muitas populaes tradicionais que exploram o meio marinho, o mar tem suasmarcas de posse, em geral pesqueiros de boa produtividade, descobertos e guardados cuidadosamentepelo pescador artesanal. Essas marcas podem ser fsicas e visveis, como as caiaras instaladas nalaguna de Munda e Manguaba, AL, e podem ser tambm invisveis, como os rasos, tassis, corubas,em geral submersas, onde h certa abundncia de peixes de fundo. Esses pesqueiros so marcadose guardados em segredo por meio do sistema de caminhos e cabeo em que os locais maisprodutivos do mar so localizados pelo pescador que os descobriu mediante complexo sistema detriangulao de pontos no qual usa alguns acidentes geogrficos da costa, como torres de igrejas epicos de morro. (Diegues 1983; Maldonado, 1993). Para as sociedades de pescadores artesanais, oterritrio muito mais vasto que para os terrestres, e sua posse muito fluida. Apesar disso, conservada pela lei do respeito que comanda a tica reinante nessas comunidades. (Cordell, 1982).

    Para as sociedades camponesas, o territrio tem dimenses mais definidas, apesar daagricultura itinerante. Por meio do pousio, possvel demarcar vastas reas de uso, sem limitesdefinidos. Muitas dessas reas so de uso comunitrio, como no caso das vilas caiaras de SoPaulo, isto , so posse de uma comunidade, onde seus membros faziam roas. A terra em descanso(ou pousio) a marca de posse, onde depois de colhida a mandioca fincam os ps de banana,limo e outras frutferas. Nos locais mencionados, estreita a relao com a mata atlntica, nichoimportante para sua reproduo social. Dali retiram a madeira para canoas e para a construo,equipamentos de pesca, instrumentos de trabalho, medicamentos. (Diegues, 1988).

    Algumas dessas sociedades se reproduzem, explorando uma multiplicidade de hbitats: afloresta, os esturios, os mangues e as reas j transformadas para fins agrcolas. A exploraodesses hbitats diversos exige no s conhecimento aprofundado dos recursos naturais e daspocas de reproduo das espcies, mas requer tambm a utilizao de um calendrio complexodentro do qual se ajustam, com maior ou menor integrao, os diversos usos dos ecossistemas.

    O territrio dessas sociedades, distinto daquele das sociedades urbano-industriais, descontnuo, marcado por vazios aparentes (terras em pousio, reas de esturio que so usadaspara a pesca somente em algumas estaes do ano, reas de coleta, de caa) e tem levado rgosresponsveis a transform-lo em unidade de conservao porque no usado por ningum.Da, resultam conflitos entre comunidades camponesas e autoridades conservacionistas.

    Um aspecto relevante na definio de culturas tradicionais a existncia de sistemas demanejo dos recursos naturais, marcado pelo respeito aos ciclos da natureza e pela sua explotao,observando-se a capacidade de recuperao das espcies de animais e plantas utilizadas. Essesistema no visa somente explorao econmica dos recursos naturais, mas revela a existnciade um conjunto complexo de conhecimentos adquiridos pela tradio herdada dos mais velhos.

    Alm do espao de reproduo econmica das relaes sociais, o territrio tambm odas representaes mentais e do imaginrio mitolgico dessas sociedades. A ntima relao

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    do homem com o meio e sua dependncia maior com o mundo natural, comparada do homemurbano-industrial, faz que ciclos da natureza (a sazonalidade de cardumes, a abundncia nasrochas) sejam associados s explicaes mticas ou religiosas. As representaes simblicasque essas populaes fazem dos diversos hbitats em que vivem, tambm dependem de ummaior ou menor controle que dispem sobre o meio fsico. Assim, o caiara tem umcomportamento familiarizado com a mata, nela adentrando para retirar os recursos de queprecisa; tambm no tem receio de fazer uso dos esturios e lagunas costeiras, mas muitos tmum verdadeiro pavor do mar aberto, do mar de fora , da paisagem da barra , dos naufrgiose desgraas associadas ao oceano que no controlam. (Mouro, 1971).

    importante analisar o sistema de representaes, smbolos e mitos que essas populaesconstroem, pois com ele que agem sobre o meio natural. tambm com essas representaesmentais e com o conhecimento emprico acumulado que desenvolvem seus sistemas tradicionaisde manejo. O imaginrio dos povos das florestas, rios e lagos brasileiros est repleto de entesmgicos que castigam os que as destroem ( , , ), osque maltratam os animais ( ), os que matam animais em poca de reproduo ( ),os que pescam mais que o necessrio ( [Cmara Cascudo, 1972]). Os moradoresda vrzea da Marituba, AL, tm vrias lendas, como a da , que vira a canoa daquelespescadores muito ambiciosos.

    Com base nas consideraes anteriores, pode-se dizer que essas sociedades se caracterizam:

    pela dependncia da relao de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos naturaisrenovveis com os quais se constri um modo de vida;

    pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na elaboraode estratgias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento transferidopor oralidade de gerao em gerao;

    pela noo de territrio ou espao onde o grupo social se reproduz econmica esocialmente;

    pela moradia e ocupao do territrio por vrias geraes, ainda que alguns membrosindividuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra deseus antepassados;

    pela importncia das atividades de subsistncia, ainda que a produo de mercadoriaspossa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relao com o mercado;

    pela reduzida acumulao de capital;

    pela importncia dada unidade familiar, domstica ou comunal e s relaes deparentesco ou compadrio para o exerccio das atividades econmicas, sociais e culturais;

    pela importncia das simbologias, mitos e rituais associados caa, pesca eatividades extrativistas;

    pela tecnologia utilizada, que relativamente simples, de impacto limitado sobre o meioambiente. H uma reduzida diviso tcnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal,cujo produtor e sua famlia dominam todo o processo at o produto final;

    pelo fraco poder poltico, que em geral reside nos grupos de poder dos centros urbanos; e

    pela auto-identificao ou identificao por outros de pertencer a uma cultura distinta.

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    Assim, utiliza-se neste estudo a noo de sociedades tradicionais para definir gruposhumanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seumodo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperao social e relaesprprias com a natureza. Essa noo refere-se tanto a povos indgenas quanto a segmentosda populao nacional, que desenvolveram modos particulares de existncia, adaptados anichos ecolgicos especficos.

    Exemplos empricos de populaes tradicionais so as comunidades caiaras, os sitiantese roceiros, comunidades quilombolas, comunidades ribeirinhas, os pescadores artesanais, osgrupos extrativistas e indgenas. Exemplos empricos de populaes no-tradicionais so osfazendeiros, veranistas, comerciantes, servidores pblicos, empresrios, empregados, donosde empresas de beneficiamento de palmito ou outros recursos e madeireiros.

    Estamos cientes, ainda assim, das limitaes de tais definies j que, a rigor, todas asculturas e sociedades tm uma tradio . Por outro lado, tipologias como essas, baseadasnum conjunto de traos culturais empricos tendem a apresentar rigidez simplificadora,dificultando a anlise dessas sociedades e culturas como fluxos socioculturais dinmicos eem permanente transformao.

    No contexto sociopoltico em que tais populaes esto inseridas, essa caracterizao aque tem, muitas vezes, legitimado uma identidade diferenciada e fundamentado, no plano dasrelaes com o Estado, a reivindicao por direitos territoriais e culturais especficos. Por umlado, se a fidelidade a esses traos socioculturais lhes d certo poder de negociao com oEstado, veda-lhes, por outro, o caminho para qualquer transformao sociocultural posterior,inviabilizando seu devir como sociedades e culturas diferenciadas, com direitos especficos. o que vem ocorrendo, por exemplo, com as populaes rurais nas unidades de conservao,onde, algumas vezes, so processados levantamentos de populaes tradicionais numa visonaturalista, de modo a permitir a expulso daquelas que no correspondam trao a trao definio de tradicionalidade , e ao mesmo tempo, so estabelecidas regras rgidas(propositalmente ignorantes da dinmica de uso tradicional ) para a utilizao dos recursosnaturais dessas reas, acopladas a um sistema de vigilncia marcado pela represso a qualquerafastamento do modelo de tradicionalidade aceito.

    Processo semelhante tem ocorrido tambm com as sociedades indgenas, derivado dosinteresses expansionistas da sociedade nacional, ancorados na forma como a antropologia clssicadefinia suas culturas tomando a autenticidade como sinnimo de imutabilidade.

    A legislao constitucional brasileira de 1988, assim como a de vrios pases de formaopluritnica, j reconheceu o direito diferena cultural, e estipula como direitos coletivos odireito a seu territrio tradicional, sociodiversidade, ao patrimnio cultural, ao meio ambienteecologicamente equilibrado e biodiversidade. Entretanto, o tradicional continua sendo definidoconforme critrios ocidentais de uma antropologia inadequada, na qual os ndios aparecem, almdas imagens antes evocadas, tambm como mquinas adaptativas equilibradas . A mudanacultural, a recriao da tradio s so aceitas em relao corrente civilizatria ocidental. Quandoocorre com outras sociedades, aparece sob o signo de sua no legitimidade identitria. Nessecampo de significados socialmente construdo, o dilema indgena atual permanece: se continuam autnticos so vistos (com simpatia ou no) como selvagens , sem condies deautodeterminao; se incorporam em sua constelao cultural elementos da modernidade,comeam a perder legitimidade como ndios, e seus direitos passam a ser contestados.

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    Porm, um dos critrios mais importantes para a definio de culturas ou populaestradicionais, alm do modo de vida, , sem dvida, o como pertencente quelegrupo social particular. Esse critrio remete questo fundamental da , um dostemas centrais da antropologia. A concepo do grupo tnico como tipo de organizao e oenfoque de suas relaes e representaes pelo critrio-chave de sua participao numde unidades tnicas distintas, superou as limitaes do objetivismo culturalista, abrindonovos horizontes de investigao. Essa atitude, entretanto, tem levado a um tipo de formulaoque reduz a cultura apenas a um reservatrio de traos , a um poro , em que aspectosculturais isolados seriam escolhidos por sua adequao funo estratgica de marcar,contrastivamente, uma identidade tnica, a qual, por sua vez, executaria a funo de legitimaro acesso de um grupo s fontes de recursos que disputam com grupos rivais. Nessa linha, acultura arrisca-se a ser encarada como uma folclrica bricolagem utilitria, regida por umalgica publicitria de disputa de espaos polticos e econmicos num mercado capitalista.

    No entendimento dos autores, o que se mostra como smbolo de identidade tnica, oconjunto de traos distintos em relao configurao dominante, apenas a ponta do .Num contexto poltico de dominao, s se tornam visveis a reorganizao e a reteno detraos culturais possveis, isto , aqueles que no se opem frontalmente aos legitimados pelasociedade nacional. A especificidade de uma cultura, porm, dada pela particularidade deuma viso de mundo, por uma cosmogonia prpria, pela existncia de um territrio singularizado,configurado por uma lgica de ao e de emoo que, num contexto de dominao, vive muitasde suas facetas na clandestinidade, ao abrigo da apropriao ou da represso.

    Esses esquemas culturais dotados de grande permanncia so engendrados, historicamente,num certo meio natural e social, constituindo princpios orientadores de prticas sociais, econforme descreve Bourdieu (1983, p. 60-61) produzem hbitos.

    Mas, se as prticas e o sentido a elas atribudo resultam de esquemas culturais preexistentes,no menos verdadeiro que os significados tambm sejam reavaliados quando realizados na prtica,abrindo espao delimitado por esses contrrios, em que os sujeitos histricos reproduzem criativa edialeticamente sua cultura e sua histria, por meio de processos de reavaliao funcional de categorias(Sahlins, 1990, p. 10). Assim, os povos submetidos s presses da expanso capitalista sofremmudanas radicais, induzidas por foras externas, sempre orquestradas de modo nativo. As dinmicasinternas de produo e reproduo da vida social esto expostas a adequaes gradativas, em grandeparte no planejadas, mas sempre criativas, s imposies decorrentes dos laos com o mercado e ininterrupta luta poltica para preservao do territrio tribal e de seus recursos naturais.

    A orquestrao nativa , entretanto, encontra o limite de suas possibilidades de expansono no grau de competncia do pensamento mtico para a interpretao histrica, na suacapacidade de transformao coerente e incorporao de novos significados, mas,fundamentalmente, no espao de autonomia poltica e econmica que consiga manter nocontexto de envolvimento pela sociedade mais abrangente.

    No Brasil, os povos indgenas sobreviventes do genocdio e da espoliao tpicos daprimeira fase de contato com a sociedade nacional que tm conseguido conservar um territriominimamente adequado manuteno de seu modo de vida, tendem a reconstruir sua sociedaderecriando os laos de continuidade com o passado, mas j num contexto de reduzida autonomiapoltica e econmica, forados a se reinventarem numa velocidade vertiginosa, desencadeandoprocessos de reordenao sociocultural muito contraditrios e ambguos.

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    De um lado, estabelecem laos permanentes de articulao e dependncia com o mercado;de outro, tornam-se dependentes tanto da proteo do Estado (demarcao e garantia de territrios,atendimento sade, projetos de desenvolvimento econmico) quanto de entidades indigenistascivis e agncias de outra ordem, com as quais podem conjunturalmente firmar alianas.

    Com todas essas limitaes e nesse campo poltico e ideolgico problemtico, at poucotempo o outro , no Brasil, era identificado apenas com o ndio , havendo poucapreocupao com outras formas de alteridade. O surgimento de identidades socioculturais,como a fato mais recente, tanto no campo dos estudos antropolgicos, quanto noplano do auto-reconhecimento dessas populaes como portadoras de uma cultura e ummodo de vida diferenciado. Esse , muitas vezes, uma

    ou como resultado, em parte, de processos de contatos cada vezmais conflituosos com a sociedade urbano-industrial e com as formulaes poltico-ideolgicascriadas por essa mesma sociedade. Parece paradoxal, mas as frmulas ideolgicasambientalistas ou conservacionistas explcitas na noo de reas naturais protegidas semmoradores, tm contribudo para o fortalecimento dessa identidade sociocultural empopulaes como os quilombolas do Trombetas e os caiaras do litoral paulista. Para esseprocesso tambm colabora a organizao de movimentos sociais, apoiados por entidadesno-governamentais influenciadas pela ecologia social e por cientistas sociais, entre outros.

    O Brasil, alm de apresentar uma das maiores taxas de diversidade biolgica do planeta, um dos pases de maior diversidade cultural. Existem mais de quinhentas reas indgenasreconhecidas pelo Estado, habitadas por cerca de duzentas sociedades indgenas culturalmentediferenciadas, que desenvolveram, ao longo dos sculos, formas de adaptao a toda variedadede ecossistemas presente no territrio nacional.

    Ainda hoje, a qualidade da ocupao indgena deve ser enfatizada. Suas reas, em geral,so as de cobertura florestal mais preservada, mesmo nos casos em que a devastao ambientaltenha se expandido a seu redor. Isso se aplica tambm s situaes de envolvimento de povosindgenas em processos de extrao ambientalmente predatrios (madeira, minrios). Baseadosem formas socioculturais que restringem a ampliao desmesurada do uso dos recursos naturaisassim como a acumulao privada, esses povos desenvolveram profundo e extensoconhecimento das caractersticas ambientais e possibilidades de manejo dos recursos naturaisnos territrios que ocupam.

    Por outro lado, a colonizao brasileira empreendida pelos portugueses a partir do sc.XVI, plasmou entre a populao rural no-indgena um modelo sociocultural de adaptao aomeio que, malgrado suas diferenas regionais e as que se podem detectar ao longo do tempo,apresenta caractersticas comuns, que ainda hoje marcam as comunidades humanas em regiesisoladas do pas. Esse modelo sociocultural de ocupao do espao e de utilizao dos recursosnaturais deve a maior parte de suas caractersticas s influncias das populaes indgenas e aocarter cclico e irregular do avano da sociedade nacional sobre o interior do Brasil.

    Frente a uma natureza desconhecida, os portugueses e a populao brasileira formada aolongo do empreendimento colonial, abraaram tcnicas adaptativas dos indgenas. Delesincorporaram a base alimentar, constituda pelo plantio do milho, mandioca, abbora, feijes,

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    amendoim, batata-doce, car, entre outros. Adotaram produtos de coleta, compondo sua dietacom a extrao do palmito e de inmeras frutas nativas, como o maracuj, pitanga, goiaba, bananas,caju, mamo e tantas mais. E, como complemento essencial, apoiaram-se na caa e na pesca.

    Isso implicou a adoo de tcnicas de plantio indgenas (roa consorciada, itinerante, combase na queimada, tipo ), de artefatos como as peneiras, os piles, o ralo, o tipiti eoutros implementos que fazem parte da cultura rstica brasileira. Trouxe tambm comoconseqncia a incorporao da extraordinria capacidade de ajustamento ao meio demonstradapelos ndios: conhecimento minucioso dos hbitos dos animais, tcnicas precisas de captura emorte, incluindo inmeros tipos de armadilhas. A base alimentar indgena foi ampliada e mescladacom espcies vegetais trazidas de fora, como o trigo, o arroz branco, legumes, bananas exticas eoutras, naturalizadas e incorporadas dieta da populao. A lista de elementos apropriados dasculturas indgenas enorme e no caberia aqui detalh-la, mas apenas mencionar mais algunsitens, como as tcnicas de fabrico e uso de canoas, da jangada, de tapagem, redes e armadilhas depesca, de cobertura de casas rurais com material vegetal e o uso da rede para dormir.

    A influncia indgena tambm se manifestou nas formas de organizao para otrabalho e nos modos de sociabilidade. No modelo de cultura rstica , as famlias soas unidades de produo e consumo que, por intermdio de relaes de ajuda baseadasna reciprocidade (na instituio do mutiro , nas festas religiosas) se articulam entre siem estruturas frouxas, porm abrangentes, as quais constituram os bairros rurais .Embora relativamente autnomos, esses sitiantes tradicionais sempre mantiveramcerta relao de dependncia com os pequenos ncleos urbanos, com os grandesproprietrios rurais e as autoridades locais, expressa nas categorias de meeiros, parceiros,posseiros, pequenos proprietrios e colonos.

    Em linhas bastante gerais, a colonizao portuguesa dedicou-se explorao intensivade certos produtos valiosos no mercado internacional, promovendo o adensamentopopulacional apenas nas regies em que essa explorao era melhor sucedida. Dessa forma,o centro nervoso da economia brasileira migrou de regio para regio ao sabor da substituiode um produto por outro. Cada uma dessas regies o litoral no ciclo do pau-brasil, oNordeste no ciclo da cana-de-acar, os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goisdurante o ciclo do ouro e das pedras preciosas, os Estados do Amazonas e do Par no cicloda borracha concentrou em perodos diversos da histria do Brasil ncleos populacionaise produo econmica de certa envergadura, baseados no trabalho escravo e na monoculturaou extrativismo de um nico produto. A perda da importncia econmica ou o esgotamentodo recurso em explorao deslocava o eixo do povoamento, ficando a regio ao abandono,na maioria das vezes com ncleos populacionais de certa forma isolados e dispersos,subsistindo numa economia voltada para a auto-suficincia, marcados por uma fisionomiae caractersticas predominantemente indgenas.

    Darcy Ribeiro (1977) classifica as variantes desse modelo de povoamento rural de: desenvolvida na faixa de massap do Nordeste, sob a gide do engenho aucareiro;

    constituda pelo cruzamento do portugus com o indgena e que produziu omameluco paulista, caador de ndios e depois sitiante tradicional das reas de minerao ede expanso do caf, que se apresenta no litoral sob o nome de ;

    difundida pelo serto nordestino at o cerrado do Brasil central pela criao degado; das populaes amaznicas, afetas indstria extrativa; e

    de pastoreio nas campinas do Sul.

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    Essa brasileira coexistiu tanto com as fazendas monocultoras quantocom as fazendas de criao de gado, constituindo a base da produo do abastecimento paraessas empresas e para os povoados, e expandindo-se por todo o Brasil medida que encontravaterras devolutas para reproduzir seu modo de vida.

    Em outras palavras, as populaes alijadas dos ncleos dinmicos da economia nacional,ao longo de toda a histria do Brasil, adotaram o modelo da , refugiando-se nosespaos menos povoados, onde a terra e os recursos naturais ainda eram abundantes,possibilitando sua sobrevivncia e a reproduo desse modelo sociocultural de ocupao doespao e explorao dos recursos naturais, com inmeras variantes locais determinadas pelaespecificidade ambiental e histrica das comunidades que nele persistem. Processo paraleloocorreu com os povos desindianizados que se mantiveram como comunidades relativamentefechadas, mas perdendo sua identidade tnica, convergiram para o modelo da cultura rstica.

    Essa situao visvel ainda hoje nas populaes ribeirinhas do rio Amazonas, sobreviventesdos processos de genocdio e etnocdio praticados pelos colonizadores nessa regio a partir dosc. XVII, e em vrias comunidades litorneas do Nordeste brasileiro.

    A emergncia da questo ambiental nos ltimos anos jogou ainda outra luz sobre essesmodos arcaicos de produo. Ao deslocar o eixo de anlise do critrio da produtividade parao do manejo sustentado dos recursos naturais, demonstrou a positividade relativa dos modelosindgenas de explorao dos recursos naturais e do modelo da , parente maispobre, mas valioso, dos modelos indgenas.

    Tornou-se, portanto, mais evidente que as populaes tradicionais , seringueiros,castanheiros, ribeirinhos, quilombolas e principalmente as sociedades indgenas desenvolveram,pela observao e experimentao, extenso e minucioso conhecimento dos processos naturais,e at hoje, as nicas prticas de manejo adaptadas s florestas tropicais. (Meggers, 1977; Descolla,1997; Posey, 1987).

    Deve-se enfatizar tambm a contribuio ao uso da biodiversidade pelas populaesmigrantes estrangeiras, sobretudo no domnio da agricultura e silvicultura.

    Assim, dada a grande diversidade cultural existente no pas, representada por mais deduas centenas de povos indgenas diferentes e pelas comunidades tradicionais espalhadaspelo litoral e pelo interior (incluindo caiaras, ribeirinhos, caboclos, quilombolas,agricultores migrantes) necessrio fazer um inventrio dos trabalhos produzidos sobre oconhecimento que essas comunidades tm a respeito da diversidade biolgica; tarefacomplexa, que deve ser realizada por etapas. Parte dessa complexidade reside no fato deos trabalhos de investigao cientfica sobre populaes indgenas e comunidadestradicionais encontrarem-se espalhados pelas inmeras instituies de pesquisa, rgosoficiais e organizaes no-governamentais localizadas nas vrias regies do Brasil. Almdisso, existem tambm trabalhos de cientistas estrangeiros dispersos em universidades ecentros de pesquisa fora do pas.

    Para efeito deste trabalho, conhecimento tradicional definido como o conjunto de saberese saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de gerao emgerao. Para muitas dessas sociedades, sobretudo para as indgenas, h uma interligao orgnica

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    entre o mundo natural, o sobrenatural e a organizao social. Para tais comunidades, no h umaclassificao dualista, uma linha divisria rgida entre o natural e o social mas sim um

    entre ambos. Assim, Descolla (1997) sugere que para os Achuar da Amaznia, a florestae as roas, longe de se reduzirem a um lugar de onde so retirados os meios de subsistncia,constituem o palco de uma sociabilidade sutil, no qual, dia aps dia, seduzem-se seres que sedistinguem dos humanos somente pela diversidade das aparncias e pela falta de linguagem. Paraeles, o que consideramos natureza so alguns seres, cuja existncia tida como maquinal e genrica.E mais, para muitos grupos indgenas, os humanos podem tornar-se animais e vice-versa. Aindasegundo o mesmo autor, as cosmologias indgenas amaznicas no fazem distines ontolgicasentre humanos, de um lado, e um grande nmero de animais e plantas de outro. Descolla enfatizaa idia de interligao entre essas espcies por um vasto governado pelo princpio dasociabilidade, em que a identidade dos humanos, vivos ou mortos, das plantas, dos animais e dosespritos completamente relacional, logo sujeita a mutaes.

    , portanto, essencial ter em conta que, na cosmologia indgena, a natureza e outrosconceitos como ecossistema , tal como a cincia ocidental entende, no so domniosautnomos e independentes, mas fazem parte de um conjunto de inter-relaes. De uma certamaneira, ainda que em graus e qualificaes distintas, o que foi explicitado para as populaestradicionais indgenas vale tambm para as no-indgenas, como as ribeirinhas amaznicas,caiaras e outras, nas quais a influncia da cultura indgena importante.

    Lvi-Strauss, em (1989) destaca a importncia do conhecimentotradicional das populaes indgenas, ao afirmar a existncia da elaborao de tcnicas muitasvezes complexas, que permitem, por exemplo, transformar gros ou razes txicas em alimentos.Segundo o autor existe, nesses grupos humanos, uma atitude cientfica, uma curiosidade assduae alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, pois apenas uma frao dasobservaes e das experincias poderia fornecer resultados prticos e imediatamente utilizveis(p.30). Lvi-Strauss afirma, portanto, que so dois modos diferentes de pensamento cientfico,no em funo de estgios desiguais de desenvolvimento do esprito humano, mas dois nveisestratgicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento cientfico. Michael Balicke Paul Cox (1996) tm posio semelhante quando declaram que o conhecimento tradicionalindgena e o cientfico ocidental esto epistemologicamente prximos, uma vez que ambos sebaseiam numa constatao emprica.

    William Bale, em (1993) enfatiza tambm outra diferena relevanteentre o pensamento cientfico moderno e o tradicional. Enquanto o primeiro comunicado pormeio da escrita, o segundo utiliza a oralidade. Nesse sentido, o conhecimento tradicional somentepode ser interpretado dentro do contexto da cultura em que gerado. Para Bale, a escrita eos mecanismos a ela associados que explicam por que a botnica clssica permite a identificaode mais de 30.000 espcies de plantas na Amaznia, enquanto, dificilmente, um grupo indgenaemprega mais de 1.000 nomes diferentes para essa flora.

    Conforme o exposto, fica evidente que existem diferenas marcantes entre as formas pelasquais as populaes tradicionais produzem e expressam seu conhecimento sobre o mundo natural eaquelas desenvolvidas pela cincia moderna. Essas diferentes vises se refletem no uso de conceitosformados e aceitos por essa ltima, como o de recursos naturais, biodiversidade e manejo.

    Para a cincia moderna, a biodiversidade significa a variabilidade de organismos vivos de todasas origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquticose os complexos ecolgicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espcies, entre

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    espcies e de ecossistemas. (CDB, art. 2o). Na concepo moderna, a biodiversidade umacaracterstica do mundo chamado natural, produzida exclusivamente por esse e analisadasegundo as categorias classificatrias propostas pelas cincias ou disciplinas cientficas,como a botnica, a gentica e a biologia.

    As populaes tradicionais no s convivem com a biodiversidade, mas nomeiam eclassificam as espcies vivas segundo suas prprias categorias e nomes. Uma particularidade,no entanto, que essa natureza diversa no vista pelas comunidades tradicionais comoselvagem em sua totalidade; foi e domesticada, manipulada. Uma outra diferena que essadiversidade da vida no tida como recurso natural , mas como um conjunto de seres vivosdetentor de um valor de uso e de um valor simblico, integrado numa complexa cosmologia.

    Pode-se falar numa isto , a riqueza da natureza da qual tambmparticipa o homem, nomeando-a, classificando-a e domesticando-a.

    Conclui-se, ento, que a pertence tanto ao domnio do natural comodo cultural, mas a cultura, como conhecimento, que permite s populaes tradicionaisentend-la, represent-la mentalmente, manuse-la, retirar suas espcies e colocar outras,enriquecendo-a, com freqncia.

    Os seres vivos, em sua diversidade, participam de uma ou outra forma do espaodomesticado ou pelo menos identificado; domesticado ou no-domesticado, pormconhecido. Pertencem a um um territrio enquanto , onde se produzem asrelaes sociais e simblicas.

    A biodiversidade tal como definida pelos cientistas fruto exclusivo da natureza, no pertencea lugar nenhum seno a uma terica teia de inter-relaes e funes, como pretende a teoria dosecossistemas. No fundo, o conhecimento da biodiversidade deve ser domnio exclusivo da cincia,e a reside um dos graves problemas do mundo moderno, no qual uma parcela significativa dasdescobertas cientficas feita em laboratrios de empresas multinacionais. Para que esseconhecimento seja produzido sem interferncia alheia o cientista necessita usualmente de um

    de um parque nacional ou de uma outra rea de proteo que no permita a presenadaquelas populaes tradicionais que colaboraram para que aquele pedao de seu territrio semantivesse preservado. O parque nacional acaba representando um hipottico mundo naturalprimitivo, intocado, mesmo que grande parte dele j tenha sido manipulada por populaestradicionais durante geraes, criando paisagens mistas de florestas transformadas e outras que,raramente, sofreram intervenes por parte dessas mesmas comunidades. Esses espaosflorestados, no entanto, podem formar uma s paisagem. Uma poltica conservacionista equivocadaque transforma esses lugares em no-lugares com a expulso das populaes tradicionais, podeestar abrindo espao para que os no-lugares se tornem domnio de pesquisa das multinacionaisou mesmo da efetivao de convnios entre entidades (de pesquisa) nacionais e internacionais, e privatizados , ao final, como manda o manual neoliberal. Talvez seja por isso que as grandesentidades conservacionistas internacionais associem, de forma to ntima, a conservao dabiodiversidade e as reas protegidas vazias de seus habitantes tradicionais e de sua cultura.

    Por fim, outro aspecto que mostra a divergncia dos enfoques sobre as estratgias deconservao da biodiversidade diz respeito aos critrios, freqentes, utilizados para definir

    para a conservao: esses critrios so quase que totalmente de ordem biolgica. De acordocom possveis novos parmetros de uma poder-se-ia pensar em critriosdecorrentes das criadas pelas populaes tradicionais, como j descritas. Um dos

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    critrios a ser incorporado o da existncia de , decorrente doconhecimento e do manejo tradicional ou etnomanejo realizado pelas populaes tradicionaisindgenas e no-indgenas. Essas populaes tradicionais, ao invs de serem expulsas de suasterras para a criao de um parque nacional, passariam a ser valorizadas e recompensadas peloconhecimento e manejo, os quais deram origem a mosaicos de paisagens, que incluem florestaspouco ou nada tocadas por essas populaes at aquelas j manejadas pelo homem. Ter-se-ia,sem dvida, mapas de reas crticas para a diversidade, diferentes daqueles gerados emfinanciados por instituies ambientalistas internacionais. Esses mapas somente poderiam serelaborados com a utilizao de indicadores de biodiversidade que no so apenas de ordembiolgica, mas provenientes de uma .

    Essa nova alternativa poderia basear-se em inventrios da etnobiodiversidaderealmente participativos, com plena anuncia e cooperao das populaes tradicionais,manejadoras da biodiversidade.

    O que os cientistas chamam de biodiversidade, traduzida em, descontextualizadas do domnio cultural, muito diferente da

    biodiversidade em grande parte , ,pelas populaes tradicionais.

    A mesma coisa pode ser afirmada sobre o A definio apresentadano (ACIESP, 1987) sintomticanesse sentido:

    Aplicao de programas de utilizao dos ecossistemas, naturais ou artificiais, baseadaem teorias ecolgicas slidas, de modo que mantenha, da melhor forma possvel ascomunidades vegetais e/ou animais como fontes teis de produtos biolgicos para ohomem, e tambm como fontes de conhecimento cientfico e de lazer. A orientao detais programas deve garantir que os valores intrnsecos das reas naturais no fiquemalterados, para o desfrute das geraes futuras. O manejo correto exige primeiro oconhecimento profundo do ecossistema para o qual ele aplicado. O manejo dito deflora, de fauna, ou de solo quando a nfase dada aos recursos vegetais, animais ou osolo. Quando todos os componentes do sistema tm a mesma importncia, diz-setratar-se de manejo ambiental.

    Fica claro nesta definio que existe somente o manejo chamado cientfico , nos parmetrosda cincia cartesiana, baseado em teorias ecolgicas slidas . Seria importante que se definisse oque so teorias ecolgicas slidas num domnio cientfico em que as teorias da conservao mudamrapidamente. Veja, por exemplo, a teoria dos refgios, que serviu de base, nas dcadas de 1970 e1980, para o estabelecimento de parques nacionais na Amaznia, verdadeiras ilhas de conservaoe que depois passaram ao desuso. Hoje fala-se em corredor ecolgico como forma de se resolvera insularizao das unidades de conservao, apesar de ser uma estratgia no devidamente avaliadapela sociedade brasileira, nem na sua complexidade ecolgica nem na social e poltica.

    Para esse manejo cientfico exige-se, por exemplo, o conhecimento profundo doecossistema , mesmo quando se sabe que as informaes cientficas necessrias no sofacilmente disponveis e que os limites dos ecossistemas variam segundo a formao de cadacientista, seja ele bilogo, edaflogo, botnico, etc.

    Para o etnocientista, o manejo realizado tambm pelas populaes tradicionais indgenase no-indgenas. Segundo Bale (1993), esse manejo implica a manipulao de componentesinorgnicos ou orgnicos do meio ambiente, o que traz uma diversidade ambiental lquidamaior que a existente nas chamadas condies naturais primitivas, onde no h presena humana.

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    Para esse autor, a questo transcende a distino habitual entre preservao edegradao, na medida em que ao contrrio da preservao, o manejo implica interfernciahumana. Num ecossistema manejado, algumas espcies podem se extinguir como resultadodessa ao, ainda que o efeito total dessa interferncia possa culminar em aumento real dadiversidade ecolgica e biolgica de um lugar especfico ou regio. Bale aponta o casodos Kaapor, em que h manejo tradicional indgena que resultou em aumento de espciesde determinados hbitats, ainda que tal conseqncia no tenha sido buscadaintencionalmente. Assim como outros (Gmez-Pompa e Kaus, 1992), o autor ressalta queos ndios no s tm um conhecimento aprofundado dos diversos hbitats e solos em queocorrem as espcies, mas tambm os classificam com nomes distintos; ainda manipulamesses ambientes flora e fauna inclusive por meio de prticas agrcolas, como a dopousio, que tem resultado numa maior diversidade de espcies nesses hbitats manipuladosdo que nas florestas consideradas nativas.

    O que proposto, para a criao de uma nova cincia da conservao, uma sntese entreo conhecimento cientfico e o tradicional. Para tanto, preciso antes de tudo reconhecer aexistncia, nas sociedades tradicionais, de outras formas igualmente racionais de se perceber abiodiversidade, alm daquelas oferecidas pela cincia moderna.

    No entanto, os grupos de etnocientistas so pequenos e necessitariam estmulos para arealizao de suas pesquisas sobre a etnobiodiversidade.

    Um papel importante nesse processo poderia ser desempenhado pela Sociedade Brasileirade Etnobiologia e Etnoecologia-SBEE, que rene um nmero cada vez maior de pesquisadoresinteressados no tema.

    Existem, na antropologia, diversos enfoques pelos quais o conhecimento tradicional estudado. Proposta por Julian Steward (1955) a ecologia cultural tem por objetivo oestudo das inter-relaes entre fatores culturais e ambientais. Steward afirma