tese sobre heavey meatal
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
PEDRO ALVIM LEITE LOPES
HEAVY METAL NO RIO DE JANEIRO
E DESSACRALIZAO DE SMBOLOS RELIGIOSOS:
A MSICA DO DEMNIO NA CIDADE DE SO SEBASTIO DAS TERRAS DE VERA CRUZ
RIO DE JANEIRO
2006
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Pedro Alvim Leite Lopes
HEAVY METAL NO RIO DE JANEIRO E DESSACRALIZAO DE SMBOLOS
RELIGIOSOS: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientao do Professor Doutor Gilberto Alves Velho.
Rio de Janeiro 2006
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
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Museu Nacional
UFRJ
Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos Religiosos: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz
Autor: Pedro Alvim Leite Lopes
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Alves Velho
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social Museu Nacional UFRJ como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Cincias Humanas (Antropologia Social).
Aprovada por:
Presidente da Banca Examinadora Prof. Dr. Gilberto Alves Velho
Profa. Dra. Elizabeth Travassos
Profa. Dra. Santuza Cambraia
Profa. Dra. Aparecida Vilaa
Profa. Dra. Giralda Seyferth
Rio de Janeiro, de Agosto de 2006
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RESUMO
A presente tese Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos
Religiosos: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz
segue duas linhas de pesquisa e apresenta uma hiptese principal. Primeiramente uma
etnografia sobre o mundo artstico do gnero musical heavy metal na cidade do Rio de
Janeiro. Em seguida, uma tentativa de compreenso da questo nativa encontrada em
campo: por que o heavy metal, apesar de sua importncia no panorama cultural brasileiro,
um mundo artstico tabu dos mais discriminados na cidade do Rio de Janeiro (e tambm ao
redor do mundo)? A hiptese para tal questo que baliza a tese: esse gnero musical converte
smbolos sagrados de determinadas tradies religiosas, vistos como expresso do domnio
ontolgico do mal, tidos como dados, em convenes artsticas questionadoras e por vezes
positivadas, tidas como construdas, provocando a rejeio e a invisibilidade social do heavy
metal para grande parte dos no adeptos do gnero.
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ABSTRACT
The thesis Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos
Religiosos: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera
Cruz follows two research lines and proposes one main hypothesis. First, its an
ethnography about the art world of the musical genre heavy metal at the city of Rio de
Janeiro as well of others places. Second, its an essay to understand the natives
question found at fieldwork: why is heavy metal, inspite of its importance at the
Brazilian cultural scene, an art world taboo and one of the most discriminated in Rio
de Janeiro (and also on a world level)? The hypothesis to this question that leads the
thesis is as follows: this musical genre operates a convertion of holy symbols of
certain religion traditions, related to the ontological domain of Evil, conceived as
given, into artistic conventions which questions and sometimes changes those symbols
into positives ones, conceived as constructed, and therefore provoques the rejection
and the social invisibility of heavy metal to a great part of the non fans of that genre.
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RESUM
La thse de doctorat Heavy Metal no Rio de Janeiro e Dessacralizao de Smbolos
Religiosos: A Msica do Demnio na Cidade de So Sebastio das Terras de Vera Cruz suit
deux lignes de recherche et propose une hypothse principale. Premirement, cest une
thnographie sur le monde artistique du genre musical heavy metal dans la ville de Rio de
Janeiro. Deuximement, cest une esquisse pour comprendre la question indigne rencontre
sur le terrain: pourquoi le heavy metal, malgr son importance dans le panorama culturel
brsilien, est un monde artistique tabou et lun des plus discrimins dans la ville de Rio de
Janeiro (et aussi au niveau mondial)? Lhipothse pour cette question qui conduit la thse est
la suivante: ce genre musical fait une convertion de symboles sacrs de certaines traditions
religieuses, rapportes au domaine ontologique du mal, vus comme des donns, en des
conventions artistiques qui questionnent et sont parfois positives, vues comme des
constructions, en dclencheant la rejection et linvisibilit sociale du heavy metal pour une
grande partie des non pratiquants de ce genre.
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SUMRIO
INTRODUO - ESSE POVO DE PRETO: THRASH METAL ALEMO NA ESCOLA DE SAMBA............................................................ 13
I Hiptese....................................................................................................... 14
II Metal: expresso e discriminao.............................................................. 15
III Definio e exposio geral...................................................................... 25
IV Sepultura e Angra na internet e alhures................................................... 28
V Etnografia do show do Kreator na Quadra da Estcio............................... 32
VI Origens sociais das bandas....................................................................... 35
Cap. 1 ETNOGRAFIA DA RUA SINISTRA: SARAV METAL, BLACK METAL E DESSACRALIZAO DE SMBOLOS RELIGIOSOS NA RUA CEAR................................................................... 41
1.1 Kreator, Gangrena Gasosa e Rua Cear.................................................. 41
1.2 Rua Cear, sbado noite....................................................................... 42
1.3 - Descrio dos fs de metal....................................................................... 49
1.4 Heavy Duty.............................................................................................. 51
1.5 Garage...................................................................................................... 53
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1.6 Choques culturais e multipertencimento................................................. 63
1.7 Concluso: mundo metal na Rua Cear e mundo operrio britnico das origens do heavy metal............................................................... 65
Cap. 2 SATANS POINT OF VIEW OU GENEALOGIA DO METAL: A HISTRIA DE UM MUNDO ARTSTICO DE ORIGEM OPERRIA....................................................................................................... 69
2.1 Introduo................................................................................................ 71
2.2 Metal Midlands........................................................................................ 72
2.3 Histria da expresso heavy metal O significado do nome.................. 73
2.4 Metal e camadas sociais desfavorecidas inglesas e estadunidenses.................................................................................................. 75
2.5 Metal e camadas sociais no Brasil........................................................... 78
2.6 Metal e camadas sociais bluecollar, ou a classe operria vai ao Inferno.............................................................................................................. 80
2.7 Importncia da histria do heavy metal para os headbangers................. 84
2.8 Sab negro ou a bruxa solta na Inglaterra de 1970.................................. 86
2.9 Iommi: A potncia de um caso singular.................................................. 88
2.10 Heavy metal e projeto romntico de um mundo artstico operrio............................................................................................................. 92
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2.11 Projeto na arte versus projeto no crime em camadas desfavorecidas.................................................................................................. 96
2.12 Satans point of view............................................................................. 99
2.13 Histria dos gestos e outras convenes estticas metlicas............... 111
2.14 Aspectos histricos gerais da msica heavy metal.............................. 114
2.15 Histria nativa da msica metlica...................................................... 117
2.16 Histria das fases e subdiviso genrica metlica............................... 120
2.17 Importncia do metal nas letras das msicas Potncia do heavy metal em sua prpria voz...................................................................... ................... 127
Cap. 3 SEPULNATION OU HISTRIA METAL NO BRASIL E NO RIO: A MSICA DO DEMNIO NA CIDADE DE SO SEBASTIO DAS TERRAS DE VERA CRUZ.................................................................. 134
3.1 Introduo.............................................................................................. 134
3.2 Anos 1980: Primrdios do metal........................................................... 135
3.3 Shows internacionais............................................................................. 137
3.4 Shows nacionais.................................................................................... 138
3.5 Rdio...................................................................................................... 143
3.6 Dificuldade de acesso a um mundo artstico em gestao.................... 143
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3.7 Vinis...................................................................................................... 146
3.8 Locais de shows e conflitos no Rio: Zona norte versus zona sul.................................................................................................................... 148
3.9 Rock in Rio............................................................................................ 149
3.10 Depois do rock in Rio 1985-1990..................................................... 151
3.11 Anos 1990............................................................................................ 154
3.12 A morte do heavy metal...................................................................... 155
3.13 Os anos 90 j podem comear............................................................. 156
3.14 Anos 2000............................................................................................ 157
Cap. 4 HELL DE JANEIRO: CIRCUITO METAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E ADJACNCIAS.........................................................159
4.1 Mecas do metal: Rua Cear do Rio de Janeiro, Dokas e Forno de Recife, Wacken da Alemanha......................................................................................159
4.2 Suburbia Metallica................................................................................. 161
4.3 Hell de Janeiro....................................................................................... 163
4.4 Kremlin de Olaria, Florena de Vila Kosmos, Rato no Rio de Bangu e Tomarock do bairro Itatiaia de Caxias: Metal na periferia do Grande Rio.................................................................................................................. 165
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4.5 Bandas de metal do Rio de Janeiro........................................................ 172
4.6 Lojas, sociabilidade virtual e outros locais da cena metal do Rio de Janeiro............................................................................................................. 177
4.7 Concluso.............................................................................................. 179
CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 182
BIBLIOGRAFIA............................................................................................ 191
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Gilberto Velho, pelo apoio constante e compreensivo.
Aos professores, alunos e funcionrios do PPGAS Museu Nacional UFRJ.
Ao Prof. Dr. Jeder Janotti Jr., pelo pioneirismo e pela inspirao.
Aos headbangers do Rio de Janeiro e de todo mundo, pela incansvel luta.
Aos participantes dessa pesquisa, seja como informantes, seja como acompanhantes em incurses de campo, ou ainda como suporte afetivo e bibliogrfico.
Aos antigos e aos novos amigos que adquiri ao longo dessa pesquisa, vocs sabem quem so, sem vocs no seria possvel.
minha famlia, por tudo.
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Introduo: Esse Povo de Preto: Thrash Metal Alemo na Escola de
Samba
Foi uma descoberta, ningum imaginava que existia toda aquela galera vestida de
preto. (Frejat, da banda de rock Baro Vermelho, sobre o pblico metal no Rock in
Rio I de 1985, in Domingo, n. 1499, 23 de janeiro de 2005:12).
Eram eles. E era o negro (Caiafa, 1985: 131).
Todos de preto, um monte de urubus! (Lopes, 1999:26, frase atribuda a Perfeito
Fortuna, um dos fundadores do Circo Voador).
Charles Manson o hippie assassino e o heavy metal e o punk vo glorificar o
barulho e o dio. (...) Os shows de rock viram missas negras que lembram comcios
fascistas. musica pssima, sem rumo e sem ideal. A revolta se dissolve e s fica o
dio e o ritual vazio (Jabor, 2004 in Coluna do Jabor, Jornal da Globo de 09 de
dezembro de 2004, http://jg.globo.com/JGlobo/0,19125,VBC0-2754-70139,00.html).
Heavy metal , antes de tudo, liberdade (texto annimo, postado em 16/12/2003 em
http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/9/24887/).
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I - Hiptese
A tese de doutorado em antropologia social Heavy Metal no Rio e dessacralizao
de smbolos religiosos: a msica do demnio na cidade de So Sebastio das terras da
Vera Cruz segue dois eixos investigativos e apresenta uma hiptese principal.
Primeiramente uma etnografia situada na cidade do Rio de Janeiro acerca de um mundo
artstico revolucionrio (Becker, 1982:34) de origem operria e de expresso nacional e
internacional. Em segundo lugar uma pesquisa sobre uma questo ditada no campo, pelos
etnografados: quais seriam os motivos para a intensa discriminao sofrida pelos adeptos e
pela msica desse mundo artstico? A hiptese a ser demonstrada para esse problema central:
a temtica e a esttica do heavy metal, em parte sobre smbolos sagrados (Geertz,1978:144)
cones do domnio cosmolgico do mal no pensamento religioso de diversas tradies,
sobretudo a crist, converteriam esses smbolos tidos como dados (Wagner, 1981) em
convenes artsticas (construdas), primeiro esvaziando-os de seu poder tabu de coero
(Geertz, 1978:144, 149) e medo, em seguida questionando e/ou complexificando a bipartio
cosmolgica estanque de bem versus mal (alterando assim ethos e viso de mundo via
smbolos sagrados Geertz, 1978), o que termina gerando as reaes de demonizao e
acusaes atribuindo poderes malficos ao gnero e a seus fs por parte de no adeptos
(religiosos das mais diversas tradies, do Rio de Janeiro e de outras paragens, como, por
exemplo, os fundamentalistas cristos norte-americanos que vem nas convenes artsticas
dessacralizadas, desterritorializadas e construdas do heavy metal a agncia da(s) entidade(s)
do mal que tomam por dado; no adeptos das mais diversas cepas, de esquerda e/ou
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progressistas, - que vem nos smbolos religiosos dessacralizados do heavy metal alienao,
doena mental e ameaa machista de extrema-direita1).
II - Metal: Expresso e Discriminao
Heavy Metal. Barra Pesada. Locuo adjetiva no dialeto carioca da lngua portuguesa,
denotando intensidade, de conotao muitas vezes pejorativa ou negativa, derivada do gnero
musical heavy metal. Entre jovens de camadas mdias da zona sul da cidade, pode ter um
correlativo na gria trevas, oposto locuo adjetiva do bem. (Exemplos: tal prova ou tal
lugar estava heavy metal, fulano trevas, ou sicrano do bem, tal msica do bem...).
Para parte considervel dos jovens de camadas mdias do Rio de Janeiro, o gnero
musical Heavy Metal msica de mau gosto, barulho, repetitivo, trevas, no do bem,
heavy metal...
Para boa parte dos alunos e professores de estabelecimentos cariocas de ensino de
msica e msicos adeptos de outros gneros, o heavy metal msica de gosto duvidoso,
msica ruim, qui nem merecendo a designao de msica. Quase no h pesquisas no
Brasil sobre o mundo artstico do heavy metal2. Entretanto, o heavy metal possui extrema
importncia no panorama cultural da nao em questo e na cena musical da cidade do Rio de
Janeiro. Alm de inmeros shows de bandas locais acontecendo atualmente (shows pequenos
em diversos bairros da zona norte, oeste, no Grande Rio em municpios da Baixada
Fluminense e alhures, e grandes apresentaes nas principais casas de espetculo como o
Caneco, o Circo Voador, o Claro Hall e o Olimpo de Vicente de Carvalho), a cidade foi
1 Weinstein, 2000; Hein, 2003; Roccor, 2000.
2 H os trabalhos de Jeder Jannoti Jr., 2002 (Comunicao Social - UFBA), Claudia Azevedo Seixas, pesquisa
em curso (Instituto Villa Lobos UniRio), Ildeber Avelar, s/d, e Hugo Leonardo Ribeiro, ms. (Msica
UFBA).
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marcada por trs edies do festival Rock in Rio (1985, 1991 e 2001), com uma ou mais
noites dedicadas ao metal - as que mais produziram alarde na imprensa e na sociedade
brasileira em geral. Leo (1997:202) compara o3 Sepultura4 a Pel em termos de importncia
internacional para a msica brasileira. No mercado fonogrfico5 nacional, os dois gneros que
sofreram menos impacto da queda de vendas no incio dos anos 2000 foram o heavy metal e a
msica gospel6. A presena metlica expressiva na internet atravs de pginas de fs
dedicadas a bandas, pginas de bandas, comunidades virtuais, sites e programas para troca de
mp3, pginas de divulgao de shows ou classificados de procura de msicos para bandas,
3 O Sepultura: comum a referncia s bandas como substantivos masculinos, provavelmente herana da
poca em que o termo mais empregado era conjunto ou grupo de rock. O termo banda foi provavelmente
popularizado pela emissora MTV por influncia do termo ingls band.
4 Banda mineira/paulista de thrash metal (atualmente com um integrante afro-americano) que tocou nos Rock in
Rios 2 e 3, no primeiro por presso de abaixo assinado realizado por seu f clube.
5 O Sepultura ultrapassou os 500 mil lbuns vendidos do cd Roots de 1996, e tambm do anterior Chaos AD
1993. As principais bandas de heavy metal apresentam vendagens de peso e catlogos que no param de vender,
mesmo lbuns velhos de vinte ou trinta anos, devido ao ethos colecionador e cultuador da tradio dos fs. Em
item na wikipdia, a banda de hard rock (por vezes classificada como metal) AC/DC apresenta mais de cem
milhes de cpias vendidas, assim como o Black Sabbath, criador mtico do gnero. Iron Maiden e Metallica
passam das 50 milhes de cpias vendidas.
6 O surgimento da pirataria e a tecnologia que possibilita baixar arquivos sonoros na Internet atingiu o mercado
fonogrfico de forma definitiva. As vendas de discos caram 17 por cento (17%) em faturamento e 25 por cento
(25%) em vendagem numrica de 2002 para 2003, segundo a ABPD (Associao Brasileira de Produtores de
Discos). Os dados da instituio tambm apontam dois mercados como os nicos cuja crise significantemente
menor que os outros. Curiosamente, os mercados tem propostas sonoras antagnicas mas alguns conceitos
parecidos: o gospel e o heavy metal (Palha, 2004: 24). Os fs de metal comprariam menos produtos pirateados
para apoiarem as bandas da cena metal, pelo seu ethos colecionador (rejeitando falsificaes) e pela preocupao
com a qualidade do som. Muitos baixam msicas de uma determinada banda na internet e mesmo assim
compram seu cd oficial.
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lojas virtuais de heavy metal, imprensa, programas de rdio e televiso virtuais
especializados. O site dedicado ao gnero Whiplash, originrio do Maranho, chega a
registrar quase 4 milhes de pageviews (nmero de acessos de navegadores na internet) por
ms, tendo entrado na lista de relevncia do site de busca Google, segundo um de seus
colaboradores7. As revistas especializadas Rock Brigade e Roadie Crew, com sede em So
Paulo, registram tiragens de 50 mil exemplares mensais cada. H outras revistas de
distribuio nacional como a Valhalla ou a Comando Rock, revistas especializadas em um
gnero de metal, por exemplo, em black metal, revistas para instrumentistas (baixo, guitarra,
bateria e teclado) com muitas matrias e tablaturas dedicadas ao metal8. O site www.metal-
archives.com
tinha, em 01 de janeiro de 2006, 33.231 bandas de heavy metal listadas, das
quais 1.772 bandas no Brasil. O site de letras www.darklyrics.com
apresentava, em 23 de
maro de 2006, letras de mais de 7290 lbuns de 2.500 bandas de heavy metal ao redor do
globo. O referido site brasileiro de origem maranhense cadastrou recentemente 25.000 bandas
de heavy metal em todo mundo.
Em recente edio da revista Rock Brigade (a mais antiga especializada em metal do
mundo, com 25 anos de existncia, edio para demais pases da Amrica Latina em
espanhol), a de nmero 236 de maro de 2006, o item preconceito contra o metal ficou em
terceiro lugar9 em pesquisa com leitores sobre o melhor e o pior para a cena heavy metal do
ano de 2005. A apario de Arnaldo Jabor, cineasta de vulto para parte da imprensa brasileira,
discriminando o gnero musical no Jornal da Globo de 09/12/200410, na viso dos fs
7 Carnovale, comunicao pessoal.
8 Recentemente a revista carioca de heavy metal Disconnected encerrou suas atividades.
9 Com 4% dos votos, atrs de Massacration e Calypso.
10 Texto original de Jabor veiculado no Jornal da Globo de 09/12/2004: O rock comeou como canto alegria e
liberdade, msica de esperana numa era de utopias e flores. Aos poucos, a iluso foi passando. Em 68, a
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culpando o heavy metal pelo assassinato do guitarrista Dimebag Darrel11, da banda de thrash
metal Pantera, ilustra o preconceito contra o mundo artstico partilhado por quantidade
expressiva das pessoas alheias a esse universo, e uniu a comunidade heavy metal indignada
em inmeros protestos na internet, na imprensa especializada e em shows. Em sites de busca
de internet a pesquisa utilizando as palavras preconceito contra metal ou preconceito
heavy metal lista inmeros sites de fs e imprensa especializada dissertando sobre o tema.
H um grande registro de acusaes similares por parte da imprensa, polcia, meio jurdico,
psiquiatras e outros da rea de sade, famlias, religies, polticos de direita e de esquerda
(Weinstein, 2000), no Brasil e no resto do mundo. Como o samba dos primrdios e da letra da
primeira gravao (Pelo Telefone, Donga e Mauro de Almeida, 1916), o heavy metal ainda
esperana jovem foi sendo detida pela reao da caretice mundial. Os dolos comearam a morrer: Janis Joplin,
Jimmy Hendrix sumiram juntos.
O rock comeou como canto alegria e liberdade, msica de esperana numa era de utopias e flores. Aos
poucos, a iluso foi passando. Em 68, a esperana jovem foi sendo detida pela reao da caretice mundial. Os
dolos comearam a morrer: Janis Joplin, Jimmy Hendrix sumiram juntos.
Na dcada de 70, o que era novo e belo se transforma nos embalos de sbado noite e comea o tempo da
brilhantina. Junto com a caretice dos Beegees, o que era liberdade cai na violncia. Em Altamont, no show dos
Stones, a morte aparece. Charles Manson o hippie assassino e o heavy metal o punk vo glorificar o barulho e
o dio.
Com a represso de mercado mais slida e invencvel, a falsa violncia comercial, sem meta, nem ideologia, fica
mais louca e ridcula. Os shows de rock viram missas negras que lembram comcios fascistas. musica pssima,
sem rumo e sem ideal. A revolta se dissolve e s fica o dio e o ritual vazio. Hoje, chegamos a isso, a essas
mortes gratuitas. A cultura e a arte foram embora e s ficou a porrada.
11 Assassinado por um f com problemas psiquitricos em 08 de dezembro de 2004.
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hoje, no Brasil, assunto de polcia, encarnando um outro tipo de negritude 12 temerria, de
perigo negro, de tom de cor errado e de reunio de multido geradora de pnico moral.
Em minha pesquisa de campo ficou evidente a discriminao que os fs de heavy
metal sofrem no Rio de Janeiro, bem como a conscincia que tm de tal discriminao, que
tema freqente de discusses em eventos do mundo artstico, na imprensa especializada ou
nas interaes sociais cotidianas dos fs. Uma das questes centrais dessa tese, a rejeio
social contra o mundo do heavy metal (bem como o mecanismo de pensamento que provoca a
estigmatizao desse mundo artstico), surgiu no campo, atravs da observao etnogrfica.
Foi evidenciada e apresentada pelos nativos, pelos adeptos do heavy metal mais que uma
questo para a presente pesquisa antropolgica, esta uma questo de cabal importncia para
esse mundo artstico.
O foco da pesquisa etnogrfica ditado pelos etnografados comum nas pesquisas de
campo com grupos de sociedades no estatais, tambm adjetivados, como os metaleiros, de
selvagens13 e formulando pensamentos e prticas seguindo qualificaes e acusaes
12 Devido cor preferida de roupas, adereos e demais iconografia metlica: o negro.
13 A letra Savage, da banda alem Helloween, do single Dr, Stein de 1988, aborda a discriminao no refro:
they just call us savage, cause thats what we like to be e I know what they think when I see them lookin' at
me (Savage)
Letra de Savage (1988)
You hear the people talking you walk the wrong street
Painting all things black and step on your feet
Flabby stomach, styled hair, trousers full of air
Their morality is real ours isn't there
[Bridge:]
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They don't know, no they can't see
Our hearts close to the sun
Different in our hearts filled with
That faith we carry on
[Chorus:]
They just call us savage
That's what I like to be
Let them call us savage
Cause that's what we like to be
See the people wonder we run in our direction
Let the narrow-minded sleep we better do some action
Across the universe you smell the smell of lies
I'm trying to be the winner not the sacrifice
[Repeat bridge / chorus]
See them run they know no fun
And look what they have done
In this world full of rules
We look just like fools
I know what they think when I see them lookin' at me
(Savage)
We come close every day to the time table life
So mart they start their backwards fight
I know what they think when I see them lookin' at me
(Savage)
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similares. Um exemplo disso a afirmao feita por um Xavante da aldeia Pimentel Barbosa,
durante gravao para o CD Roots (1996) do Sepultura, comparando os corpos14 dos
integrantes do grupo indgena e do grupo musical pelas peles pintadas (com tatuagens no caso
da banda) e cabelos tingidos (mechas de Max Cavalera, vocalista, e cabelos pintados de
vermelho dos Xavante) e atribuindo a essas semelhanas fsicas uma mesma discriminao
pela sociedade nacional envolvente.
De um lado, um imenso mundo artstico globalizado, de grande importncia,
quantidade de participantes e engajamento por parte de seus adeptos no Brasil, com
estabilidade refletida em algumas dezenas de anos de participao na cena cultural do pas15, e
praticamente sem nenhuma divulgao em rdios, televiso ou propaganda comercial, com a
maior parte de sua produo e distribuio por veculos especializados (gravadoras, imprensa
e poucos programas de rdio, internet e programas de televiso).
De outro, no somente o desconhecimento e mesmo o questionamento sobre a
existncia ou a importncia do mundo artstico do heavy metal no Brasil e na cidade do Rio
de Janeiro16, como tambm a rejeio e o preconceito por parte de no participantes, e uma
One day they will drop the bomb
Cause it's necessary to show the power
One day they will give a shit on what you say
14 O idioma da corporalidade central no pensamento indgena amerndio.
15 O site www.metal-archives.com tinha, em 01 de janeiro de 2006, 33.231 bandas de heavy metal listadas, das
quais 1.772 bandas no Brasil. O site de letras www.darklyrics.com apresentava, em 23 de maro de 2006, letras
de mais de 7290 lbuns de 2.500 bandas de heavy metal ao redor do globo. O site brasileiro de origem
maranhense Whiplash cadastrou recentemente 25.000 bandas de heavy metal em todo mundo.
16 Fui perguntado mais de uma vez se ainda havia ou se existia heavy metal no Rio ao comunicar o tema da
minha pesquisa. Uma representao comum me foi relatada por uma colega antroploga, da imagem que tinha
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censura por vezes velada, por vezes das mais preconceituosas, nos meios de comunicao no
especializados.
A leitura de autores e etnografias sobre o mundo artstico heavy metal relatando ponto
de vista nativo semelhante em outras paragens (Weinstein nos EUA, 2000, Berger tambm
nos EUA na cidade de Akron, Ohio 1999, Roccor, Alemanha, 2000, Hein, Frana, 2003,
Dunn, Canad, 2006) veio corroborar a questo central e palavra de ordem da presente tese, a
saber: preciso entender porque um mundo artstico de tal magnitude e importncia no Rio de
Janeiro, no Brasil e no mundo dos mais estigmatizados e invisibilizados. De que ameaas
ao pensamento religioso e ontolgico das tradies cosmolgicas de origem europias e/ou
crists (entre outras17) esse mundo artstico musical tabu por excelncia portador?
Seguindo a bipartio temtica proposta, reitero os eixos que balizam as pginas a
seguir:
1) Uma descrio etnogrfica - com base tambm em entrevistas, histrias de vida, obras
artsticas, textos jornalsticos, entre outras fontes - sobre um expressivo mundo artstico
revolucionrio18 na cidade do Rio de Janeiro e alhures.
2) Um estudo sobre a rejeio social ao mundo heavy metal, visando demonstrar a converso
que o metal promove (Weinstein, 2000), esttica e ontologicamente - ao transformar smbolos
sagrados (Geertz, 1978) em convenes artsticas - operando um curto-circuito simblico, de
domnios ontolgicos/cosmolgicos/religiosos de bem e mal, ao metamorfosear em arte
do metaleiro como mau aluno de colgios de camadas mdias cariocas, burro, enchendo os bancos da evaso
escolar, e ouvindo - seguindo a lgica linear do esteretipo - uma msica pouco inteligente.
17 H notcias sobre perseguio a fs de metal em pases muulmanos como na Indonsia (onde o Sepultura j
se apresentou) e outros na imprensa virtual especializada. 18
Becker, 1982.
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(construda, dessacralizada) smbolos religiosos (dados, sagrados) (Wagner, 1981). Assim, os
smbolos sagrados de bem e mal, encarnando determinados ethos e viso de mundo religiosos
(Geertz, 1978), e operando como mecanismos sociais de coero pelo medo, tidos como
dados, so tematizados e dessacralizados na esfera mundana da arte pelo mundo heavy metal,
tendo assim seu carter construdo explicitado, sendo portanto desnaturalizados, esvaziados
de seu poder atemorizador natural, o que termina por se estender prpria bipartio
estanque de domnios cosmolgicos entre bem e mal.
A presente pesquisa visa, ento, no somente fornecer descries etnogrficas,
historiar, quantificar, enumerar, mapear e dissecar a exausto o mundo artstico do heavy
metal na cidade do Rio de Janeiro (o que requer semelhante tarefa com relao ao heavy
metal no mundo e no Brasil, visto tratar-se de um mundo artstico de funcionamento em
extensas redes nacionais, internacionais e, sobretudo, virtuais), mas tambm demonstrar que
esse mundo artstico, atravs de suas convenes estticas, transforma a percepo de
smbolos sagrados por parte de seus integrantes, do domnio da religio para o mbito da arte,
do dado para o construdo (Wagner, 1981).
Roy Wagner, em A Inveno da Cultura (1981), prope que todas as populaes
humanas dividiriam o mundo entre o que dado e o que construdo, preenchendo tais
domnios ontolgicos com itens diversos (corpo e alma, por exemplo, seriam dado e
construdo respectivamente para algumas populaes, e inversamente para outras). O mundo
artstico do heavy metal estaria dedilhando um vespeiro (imagem ao gosto da esttica metal...)
ao tematizar, questionar, e muitas vezes positivar em convenes estticas, smbolos sagrados
dos domnios ontolgicos do bem e do mal, tidos como dados em diversas religiosidades (e
mesmo em diversas vises de mundo tidas como laicas como determinadas correntes de
pensamento e polticas), e ao faz-lo, sugerir seu carter construdo, mesmo que nem sempre
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24
intencionalmente, e mesmo que nem sempre questionando essa dicotomia bem versus mal19,
apenas ilustrando-a na sua arte. No de se espantar que um de seus precursores, o baixista e
mentor intelectual do Black Sabbath, Geezer Butler, interpreta a adoo da temtica religiosa
sobre smbolos sagrados do domnio do mal em sua msica como fruto de sua experincia
com religiosidades alternativas sua formao religiosa catlica no bairro operrio de Aston
(cidade de Birmingham, Inglaterra), influenciado pela contracultura dos anos 1960 e dos
hippies, experincia durante a qual ele se descreve como numa tentativa de compreender a
perspectiva do demnio, Satans point of view, o ponto de vista de Satan (Moynihan e
Sderlind, 1998:03), figura de que tanto ouvira falar durante a infncia, dando partida ao
heavy metal com base num perspectivismo20 do Outro por excelncia21.
O heavy metal se apresenta assim como um frtil campo para estudos de mudana
cultural, provando que os smbolos e os cdigos no so apenas usados: so tambm
transformados e reinventados, com novas combinaes e significados (Velho, 1981:107). Se
o inferno so os outros, a msica do diabo como o heavy metal pode ser designado,
pejorativamente ou no - (que alis apresenta mais de uma msica com o ttulo Outro, em
referncia ao termo medieval alternativo para o demnio, e ademais faz o uso constante de
combinao de notas proibida pela Igreja de outrora, a diabolus in musica) no poderia ser
mais slido terreno para um estudo no campo da construo da alteridade e no da gnese e da
metamorfose de novas subjetividades que tm por foco principal um mundo artstico musical
revolucionrio (Becker, 1982).
19 H bandas acusadas de satanistas que alegam terem crenas crists, acreditarem nos conceitos de bem e mal e
apenas retratarem-nos em suas letras, como por exemplo os alemes do Helloween, com integrantes luteranos
que tm entre suas composies uma louvao intitulada Laudate Domino.
20 Fao aluso aqui ao perspectivismo amerndio de Viveiros de Castro, 2002.
21 Boa parte dos primeiros msicos de heavy metal provinham de famlias de religiosidade fervorosa (Weintein,
in Dunn, 2006), bem como parte dos inspiradores de determinadas bandas, por exemplo, Aleicester Crowley e Nietzsche.
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25
III - Definies e Exposio Geral
O gnero de msica popular conhecido por heavy metal (ou simplesmente metal) o
principal item distintivo de um mundo artstico (Becker, 1982), que aparece na literatura
acadmica e na mdia sob o mesmo nome, est presente em diversas sociedades complexas
em virtude do fenmeno da globalizao (como, por exemplo, Japo, Indonsia, pases
europeus com destaque para pases nrdicos, Alemanha, Itlia, Portugal, Espanha, Grcia e
leste europeu, Mxico, Estados Unidos, Argentina, Colmbia) e tem especial destaque no
panorama cultural brasileiro devido ao grande nmero de participantes, msicos, shows de
conjuntos nacionais e internacionais (as noites metal dos festivais Rock in Rio 1, 2 e 3
atraram um pblico de centenas de milhares de pessoas, apesar do preconceito contra o
gnero22) e ao fato de a banda brasileira mais conhecida e de maior vendagem e pblico no
exterior pertencer ao estilo, a saber, a mineira/paulista (e agora com um integrante afro-
americano) Sepultura. Outras bandas de metal nacionais de renome e inmeras excurses em
territrio nacional e no estrangeiro so: a carioca Dorsal Atlntica e o Viper, de So Paulo, os
tambm paulistas do Angra e do Shaaman e os gachos do Krisiun.
O mundo artstico que viria a ser chamado de heavy metal emergiu no final dos anos
1960, comeo dos anos 1970, na Inglaterra e Estados Unidos, apresentando j no bero a
msica como investimento primordial (de maneira diversa da de outros mundos artsticos
musicais em que esta no tem a mesma centralidade), cujas caractersticas gerais so: a
guitarra hiper distorcida, grave nos refres das msicas, ou riffs (utilizando os chamados
22 O pblico da noite de heavy metal do Rock in Rio 3, em janeiro de 2001, teria sido maior que os 150 mil
pagantes caso o empresrio Roberto Medina no houvesse limitado a venda de ingressos a esse nmero no dia da
apresentao por medo da suposta violncia dos amantes desse tipo de msica. As outras noites do festival
tiveram um nmero mais volumoso de ingressos disponvel.
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26
power chords, acordes geralmente de duas notas graves, num intervalo de uma quarta ou
uma quinta, obrigatoriamente com o efeito de distoro, que produzem acusticamente tons
resultantes, gerando mais que as duas notas tocadas, segundo Walser, 1993:4323) e aguda nos
muitas vezes longos e hiper velozes solos; o baixo tocado nas cordas mais graves e
geralmente veloz; a bateria rpida e tocada de maneira vigorosa, geralmente com mais peas
que em outros gneros; os vocais emotivos e agressivos, muitas vezes tambm com um
elemento de distoro24; a extrema altura do som em shows e em audies privadas; as
temticas das letras polticas, anti-belicistas, sobre desajuste social, com alertas contra o abuso
de lcool e outras drogas, hedonistas ou clamando ou festejando a noo de liberdade,
msticas, sombrias, satnicas, de fantasia25; as roupas pretas, os cabelos longos e as tatuagens
de msicos e fs e uma atitude de proud pariah (Deena Weinstein, 2000:93 ), ou ainda de
desprezar ser desprezado (Nietzsche), condizente com a discriminao social possivelmente
ressentida devido origem operria de boa parte dos primeiros msicos, muitos oriundos de
cidades com alto nvel de desemprego26 (discriminao hoje sentida por fs do gnero das
23 O nico instrumento da tradio musical ocidental a produzir os power chords alm da guitarra eltrica
distorcida o orgo e o seu moderno descendente, o sintetizador ou teclado, usando notas graves, volumes altos
e emisses abertas para produzir tal efeito de fora no contexto original para a glria de Deus. A capacidade de
sustentao de notas para uma durao indefinida, comum no heavy metal, tambm partilhada, nessa tradio,
apenas por esses dois instrumentos. Tanto a distoro quanto a sustentao (mais o volume elevado) tm uma
conotao de fora e resistncia (Walser, 1993:42-43). 24Seja a distoro natural da voz nos vocais urrados dos subgneros extremos como o Death e o Black Metal, o
vocal rasgado em subgneros meldicos ou efeitos como o utilizado na gravao da voz de Ozzy Osbourne.
25 Weinstein divide as temticas do heavy metal em dionisacas e caticas, sendo esta ltima quase exclusividade
do gnero (Weinstein, 2000). 26
As primeiras bandas, como o Black Sabbath e o Judas Priest, surgiram em cidades com indstria siderrgica
do centro e norte da Inglaterra, as chamadas Metal Midlands (pela atividade econmica, no pela msica),
hierarquicamente perifricas a Londres e ao sul do pas. Em um documentrio biogrfico os integrantes do Judas
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27
mais diversas camadas sociais, mas pela estigmatizao do metaleiro, termo pejorativo para
parte dos adeptos, por ter sido cunhado pela TV Globo em cobertura que desagradou aos
adeptos nos Rock in Rio 1 e 2 e freqentemente usado de modo desabonador por no fs).
Essas caractersticas podem ser encontradas quase todas atualmente no estilo, presente em
muitos pases das Amricas, sia, Europa e Oceania, embora com aspectos diferentes e uma
enorme subdiviso de gneros e nfases temticas. O ato de bater cabea acompanhando as
msicas (de onde vem um dos termos que designam os fs: headbanger) e o gesto
caracterstico da audincia nos shows e cumprimento dos apreciadores, o chamado smbolo
do diabo, mo metal ou malocchio (Weinstein, 2000) so aspectos corporais e rituais
distintivos desse mundo artstico. O termo heavy metal pode ser usado para designar o
meta-gnero, mas em geral utilizado pelos adeptos para classificar apenas um dos
subgneros, o metal clssico das primeiras bandas dos anos 70 e 80, ou de bandas mais
recentes seguindo os mesmos padres de composio, um dos mltiplos estilos componentes
do que hoje chamado pelos iniciados de simplesmente metal. Alm do heavy metal
clssico, os principais subgneros atuais de metal so: o power metal ou metal meldico, o
thrash ou speed metal, o death metal, o prog metal, o doom metal, o gothic metal, o black
metal e o white metal, cada um desses podendo apresentar ainda outras subdivises (como o
symphonic black metal, o thrash-core, o death meldico ou o death de Gotemburgo).
Trabalho aqui com as definies de mundo artstico, de ethos e viso de mundo,
respectivamente de Howard S. Becker, Clifford Geertz. Becker afirma que: Mundos
artsticos so compostos por todas as pessoas cujas atividades so necessrias para a
produo dos trabalhos caractersticos que esse mundo artstico, e talvez tambm outros,
define como arte (Art worlds consist of all the people whose activities are necessary to the
Priest comentam que eram alvo de discriminao em Londres no incio da carreira por serem das Metal
Midlands.
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28
production of the caracteristic works which that world, and perhaps others as well, define as
art, Becker, 1982:34). Geertz define sob o termo ethos os elementos morais (e estticos)
de uma dada cultura, os elementos valorativos, e sob o termo viso de mundo os aspectos
cognitivos, existenciais (Geertz, 1978:143). O primeiro aspecto, relativo a uma esttica e a
uma moralidade - ou ainda a um estilo de vida e a uma organizao das emoes (Velho,
Gilberto, 1981:26) -, e o segundo, relativo a uma ontologia e a uma cosmologia, so
sintetizados em smbolos religiosos (Geertz, 1978:144), o que no caso do mundo artstico do
heavy metal ocorre com uma retomada de smbolos em sua maior parte de provenincia
religiosa das tradies crist e pag do centro e norte europeus, mas ressignificados, muitas
vezes dessacralizados, e ainda, segundo Weinstein (2000), transvalorados.
IV - Sepultura e Angra na Internet e Alhures
No ms de maro de 2005 as seguintes notcias foram publicadas no site brasileiro
especializado em heavy metal Whiplash:
Andreas Kisser [guitarrista do Sepultura] anunciou que ir lanar o seu primeiro lbum
solo. O CD deve ser lanado provavelmente em meados de 2006.
J o Sepultura est em pleno processo de composio do novo lbum, que ser
baseado na obra clssica do escritor italiano Dante Alighieri, A Divina Comdia, que narra a
descida do escritor aos vrios nveis do inferno. E o to aguardado DVD da banda deve chegar
s lojas em maro, com diversas cenas de backstage filmadas pelo vocalista Derrick Green
desde que ele se juntou ao grupo.
A banda tem diversos shows agendados em maro. Confira abaixo:
11 La Paz, Bolvia
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29
12 Caracas, Venezuela
21 Atenas, Grcia
22 Thessaloniki, Grcia
23 Istambul, Turquia
25 Dubai, Emirados rabes
(Ricardo Seelig, in http://whiplash.net/materias/news_926/022503-sepultura.html).
Angra - Brasileiros sero headliners no Sweden Rock:
A banda Angra ser uma das atraes principais do Sweden Rock Festival
[www.swedenrock.com], no palco "Spendrups", aps retornar de uma turn pela Europa, onde
passaram por Itlia, Frana, Espanha, Sua, Grcia, Blgica e Inglaterra, sendo que em
algumas das cidades como Paris, Milo e Londres, os ingressos estavam completamente
esgotados dias antes do show.
A banda agora se prepara para ir ao Japo, Taiwan e Austrlia, sendo que no Japo, os
brasileiros contaro como banda de abertura o Nightwish [banda finlandesa de heavy metal
que fez apresentaes no Brasil em novembro de 2004 todas com lotao esgotada].
Vale lembrar que o Angra tocar pela primeira vez no solo australiano.
Alguns festivais na Europa, na Amrica do Norte e Sul, j esto no cronograma da banda
para Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro.
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30
(Edu Falaschi [vocalista do conjunto de heavy metal brasileiro Angra], in
http://whiplash.net/news_pop.mv?registro=17276)27.
Christopher Dunn, organizador do livro Brazilian Popular Music and Globalization
(Dunn e Perrone, 2001) afirma28:
Eu conheo razoavelmente bem a msica do eixo Bahia-Rio-So Paulo. Conheo a
bossa-nova (...). Conheo alguns clssicos da larga tradio sambista. Adoro bumba-meu-boi
de Madre Deus de So Luis do Maranho. A produo musical do Recife nos anos 90 foi
impressionante. O maior fenmeno de Heavy Metal dos ltimos anos saiu de Sagrada
Famlia, um bairro operrio de Belo Horizonte (refere-se ao conjunto de death/thrash
metal Sepultura, grifo meu).
Ruben George Oliven, no artigo Cultura brasileira e identidade nacional (O eterno
retorno) (Oliven, 2002, in Micelli (org.), 2002:37), se contrape perspectiva de autores que
vem o Brasil cada vez mais submisso ao fantasma do imperialismo cultural (Carvalho, 1996-
1997, apud, Oliven, 2002), enfatizando a complexidade da multifacetada interao do Brasil
com o resto do mundo (2002:37), mesmo com a assimetria nos fluxos de bens trocados em
benefcio dos pases do norte economicamente privilegiados. O Brasil alterou a relao de
intercmbio com outros pases nos anos 1990 em termos de fluxos de imigrantes, de bens
manufaturados e de bens simblicos, saindo da posio de mero receptor e galgando o posto
de tambm intenso exportador. Na rea de bens simblicos, cada vez mais importante em
27Aparentemente o show do Angra no Sweden Rock Festival foi mais tarde cancelado. As apresentaes da
banda citadas esto enumeradas em http://www.angra.net/vs4/agenda_concretizadas.asp?ano=2005
28 Em entrevista a Mauro Dias de abril de 2001, publicada na internet em
http://web.clas.ufl.edu/users/cap/Chiclete/Entrevista%20completa2.html .
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31
outros pases a presena de bens culturais de origem brasileira tais como a capoeira
(Travassos, 2000), o futebol, as telenovelas, as religies pentecostais (Mafra, 1999) e a
msica.
No que diz respeito msica, alm daquela que o Brasil sempre exportou desde os
tempos de Carmen Miranda e mais tarde da Bossa Nova, atualmente existem grupos
brasileiros que compem canes em ingls que fazem sucesso nos Estados Unidos e Europa.
A banda brasileira Sepultura lanou no comeo de 1996 um disco chamado Roots. Para
buscar suas razes, os membros do grupo visitaram uma aldeia xavante localizada no
Mato Grosso. Em apenas quinze dias, Roots estava entre os discos mais vendidos na
Europa, superando Michael Jackson e Madonna na Inglaterra, e vendendo mais de 500
mil cpias nos meses de fevereiro e maro daquele ano (Oliven, 2002:38, grifo meu).
Sepultura, Angra, Shaaman, Krisiun so bandas de metal brasileiras com expressivos
nmeros de CDs e camisetas vendidos, de turns e de fs no Brasil e no exterior. O mundo
artstico do qual fazem parte, o do metal brasileiro, uma das cenas metlicas mais
importantes do planeta. As grandes e mdias cidades industriais dos estados de So Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro so os plos do heavy metal no Brasil. O Rio de Janeiro foi e
um importante centro mundial de produo e consumo de heavy metal, apesar de ser comum a
grande imprensa e no iniciados associarem o estilo apenas aos outros dois estados. Em 1992,
pude presenciar a uma antolgica apresentao da banda Dorsal Atlntica - capitaneada por
dois irmos filhos de operrio(Lopes, 1999:20), moradores do bairro Leblon, na Zona Sul
da cidade, que foi uma das primeiras e mais importantes para o heavy metal brasileiro, tendo
obtido respaldo da crtica especializada internacional e influenciado inmeros conjuntos, entre
os quais o Sepultura, cujos fundadores, os irmos Cavalera, reconhecem a banda carioca e o
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32
primeiro e antolgico show deles que assistiram em Lambari, Minas Gerais, em 20 de julho
de 1985, como capital para sua trajetria musical que descrevo a seguir.
V - Etnografia do Show do Kreator na Quadra da Estcio
Um inusitado show de heavy metal internacional em uma quadra de escola de samba
na zona norte do Rio de Janeiro, ao lado de uma famosa rea de prostituio freqentada por
camadas menos favorecidas da populao da cidade: em abril de 1992, os alemes da banda
de thrash metal Kreator, da cidade industrial de Essen, vale da Ruhr, fizeram um concerto da
turn de seu lbum Extreme Aggression na quadra da Escola de Samba Estcio de S
(fundador da cidade do Rio), que ento se localizava ao lado do canal do Mangue na Avenida
Presidente Vargas, prxima a antiga localizao da Vila Mimosa (famosa zona de prostbulos
de populao de baixa renda). Anos mais tarde esses dois lugares cederiam espao para o
atual bairro da Cidade Nova, com edifcios governamentais e de escritrios. Um destes, o do
Teleporto, ganhou o apelido popular de Piranho, por ter sido construdo sobre o terreno
antes ocupado pela Vila Mimosa. As bandas de abertura para o Kreator foram a j referida
Dorsal Atlntica, carioca, antecedida pela paulista Korzus, ambas tambm podendo ser
classificadas como pertencentes ao subgnero thrash metal.
Ento com dezessete anos, fui a esse show numa caravana com amigos headbangers
do Colgio So Vicente de Paula (eu estudava no Aplicao da UFRJ), no Cosme Velho (que
ganhou destaque na imprensa por suas manifestaes pelo impeachment do Presidente
Fernando Collor de Melo, antigo estudante da instituio), uma verdadeira aventura para
jovens de classe mdia da zona sul: sair na noite de uma tera-feira num nibus da linha 422,
Cosme Velho-Graja, descer na Avenida Presidente Vargas antes dos viadutos da Praa da
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33
Bandeira e atravess-la com destino a uma quadra de escola de samba nos arredores da antiga
Vila Mimosa.
O encontro entre headbangers, ambulantes, freqentadores e prostitutas na rua em
frente quadra, e dos primeiros com seguranas da Escola de Samba, bicheiros patronos da
agremiao e seus convidados instalados no camarote do recinto, produziu curtos-circuitos de
cdigos entre essas diversas pessoas com diferentes vises de mundo, numa cena
provavelmente indita na cidade do Rio com o envolvimento de tais atores.
O local: uma rua prxima a um viaduto e ao canal do Mangue, com pouca iluminao,
vendedores de milho, churrasquinho, bebidas, mesas com toldos na rua, e freqentadores, em
sua maioria no branca de baixa renda. O evento: headbangers, muitos dos quais jovens
abaixo dos 25 anos, em sua maioria brancos - mas com a presena de parcela expressiva de
mestios - de camadas mdias e trajando preto desafiam o cotidiano familiar aos
freqentadores habituais do lugar, em uma incurso a um improvvel show de metal alemo
na quadra da escola de samba local.
Na quadra: seguranas vestidos de camisas de boto floridas no estilo turista ou com
estampas havaianas, batido - grossos colares de ouro em sua maioria negros, de altura e
compleio fsica acima da mdia. Nos camarotes: bicheiros brancos com roupas de
bicheiro, ostentando luxo, sentados acompanhados aparentemente de amigos, amantes, ou
talvez mesmo da prpria famlia, para assistir ao que esperavam ser um show de rock
comum. Bebidas: batida de maracuj com gosto de pssego e cachaa de m qualidade.
Primeiro choque cultural: abre-se a roda de mosh ou pogo no comeo de um dos dois
shows de abertura, os seguranas acham que briga, retiram um cabeludo da roda e o
espancam num corredor prximo ao banheiro, s vistas do pblico, que aparentemente fica
imvel em sua maior parte durante o resto das apresentaes, temendo similar agresso.
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Segundo choque cultural, de acordo com um entrevistado: um f alcoolizado entra em
atrito com um bicheiro ou integrante de seu sqito, e um dos seguranas adverte o
acompanhante do alcoolizado para que afaste seu amigo, pergunta de onde eles so, diz no
saber como as coisas so na parte da cidade de onde vem, e que por isso relevaria as
maneiras imprprias, mas que ali, normalmente aquele tipo de comportamento com tal figura
de autoridade (o bicheiro), acabava na vala (poderia ter por punio a morte).
Terceiro choque, segundo o mesmo entrevistado: ao fim do show o bicheiro
comunica em tom de ameaa velada aos organizadores que iria ficar com toda a bilheteria do
show, pois havia tido muito prejuzo com supostos atos de vandalismo na casa, que ele no
sabia que se tratava daquele tipo de show, e que havia aceitado realizar ali tal evento apenas
por intermdio de seu sobrinho roqueiro. Os produtores tiveram que arcar com um enorme
prejuzo, no recebendo nada pelo empreendimento. Um deles era o Fbio do Garage,
importante figura da cena underground carioca por ter fundado e dirigido por muito tempo a
casa de shows que lhe rendeu o apelido, na Rua Cear, na Praa da Bandeira, prxima
quadra da Estcio, e que se tornou o palco mais importante para o metal do Rio nos anos 90,
tendo tambm revelado artistas de outro tipo, como Los Hermanos e Planet Hemp.
Alheios ao que se passava na platia, os integrantes do Kreator fizeram um show
tecnicamente impecvel, trajando blusas claras, de manga comprida e bufantes, com botes,
num estilo de roupa de metalhead europeu bem diferente do estilo headbanger carioca.
Sobre os alemes, conta Lopes (1999:92):
Templo do samba invadido por metaleiros, gemeu a imprensa local! O show foi
produzido, no Rio, por uma firma carioca formada por quatro scios esperanosos de um
bom resultado final. O comeo da confuso foi no trajeto do aeroporto para o hotel, porque o
guitarrista alemo queria fumar maconha em pblico de qualquer jeito; depois insistiu em
mudar de hotel, por causa de uma barata que havia escolhido um mau momento para passear e,
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finalmente j alojados no segundo hotel, groupies roubaram o relgio e o dinheiro de um
deles, aps provvel noitada de sexo.
O prejuzo, em contraste com a lotao de pblico do espao, teria sido causado por
seguranas e pelo diretor da quadra que deixavam entrar quem bem entendessem, na verso
oficial dos produtores. Como conseqncias, um destes desistiu de trabalhar com rock e heavy
metal, enquanto outro foi obrigado a vender o carro da famlia e a mudar de cidade por causa
das dvidas (Lopes, 1999:92).
VI - Origens Sociais das Bandas
As bandas principais do show, a carioca Dorsal Atlntica e a alem Kreator, possuam
em comum a origem operria ou de cidades operrias: Carlos e Cludio Lopes eram filhos de
operrio (Lopes, 1999:20), e os alemes do Kreator provinham da poluda cidade industrial
de Essen, no Vale da Ruhr, e entoavam em suas letras crticas contaminao ambiental
industrial, como em Toxic Trace (lbum Terrible Certainty de 1987), e ao conseqente
aquecimento global, caso de When the Sun Burns Red (lbum Coma of Souls de 1990
cujo refro alerta:
Can't deny the signs/ When the sun burns red/ The earth will turn/ From blue to
gray)29.
29Letras das msicas do Kreator citadas:
When The Sun Burns Red
(lbum Coma of Souls, 1990)
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Savage heat is searing
Global warming has begun
Mother Earth is reeling
No protection from the sun
Forest fires are raging
While the rivers turn to ice
Foolish man creating
Mother Nature's cruel demise
Hailstorms, tornadoes
Cold spells, untimely frosts
Heat waves and blizzards
Global death's the cost
Faces the end of time
As we plunge headlong towards the day
Can't deny the signs
When the sun burns red
The earth will turn
From blue to gray
Winter turns to summer
Then the seasons disappear
No one needs a prophet
To explain what's all too clear
Oceans overflowing
Islands drowning everywhere
Leaders wouldn't admit it
Now they're crying in despair
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Hailstorms, tornadoes
Cold spells, untimely frosts
Heat waves and blizzards
Global death's the cost
Face the end of time
As we plunge headlong towards the day
Can't deny the signs
When the sun burns red
The earth will turn
From blue to gray
[SOLO - FRANK]
[SOLO - MILLE]
Now rain shall wash away sad remains of man
Cities once so proud will crumble into sand
Buildings all collapse when all is done and said
The guilty ones will die with the innocent...
When the sun burns red
Toxic Trace
(lbum Terrible Certainty, 1987)
Pesticide in torrents, how fast it flows
Total pollution the earth can't stand much longer
Chemical industry brings new diseases
The fear of self-destruction is growing stronger
Nuclear waste in an uncontrolled deluge
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Reduces the earth to an airless planet
Reformation lies far away
Now is your only chance to save it
Contamination in every place
Condemn the human race
Everything will decay
Broken down by toxic trace
New plagues have come and soon there'll be more
Apocalypse not for the first time
Suppression is alive and that's for sure
Everyone will be annihilated
Enforcement of the last eclipse
Can't ignore predictions from the past
Ignore the warnings of ancient Prophets
Every minute of your life could be your last
Contamination in every place
Condemn the human race
Everything will decay
Broken down by toxic trace
Metamorphoses of the earth to a lifeless desert
Voracity for richness, ruin of Mankind
Craving more and more, to the world's Requiem
This is the earth's last century
Now depravation from things that count, to make an easier life
for me
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39
O show do Kreator na quadra da Estcio, como conhecido pelos fs de metal do
Rio, marca dois acontecimentos emblemticos para a presente pesquisa: um encontro, o de
duas importantes bandas de thrash metal de pases distantes geogrfica e culturalmente, Brasil
e Alemanha, mas unidos no mesmo palco de um mundo artstico ligado a uma determinada
faixa etria de uma camada social especfica, os jovens de origem blue collar de cidades
industriais e/ou famlias operrias, com um ethos e uma viso de mundo comuns, ilustrados
por, entre outros aspectos, letras crticas aos problemas sociais desses centros urbanos,
conectados em suma por uma cultura jovem e por uma cultura de classe reunidas como
componentes determinantes de um mundo artstico; e um desencontro, aquele entre o ponto de
vista dos fs de metal, de maioria branca e de camadas mdias da cidade, vestidos com
camisetas pretas e de cabelos longos, balanando suas cabeas de frente para o palco, e os
seguranas da escola de samba, em sua maioria negros, oriundos de camadas sociais menos
Total confusions for the non-believers who ignore the writings
on the wall
Times of suffering for everyone, no-one can hide from reality
Social injustice will be no more, without exception, devastate
all
Times have changed from the past to now
The earth is mankind's subject
Perfect creation stands over all
Experimenting with lethal objects
Domination, submission, demand for more
De-humanizes the brains of the rulers
What gives them the right to menace us all
This time will come but then it will be too late
Fonte: http://www.darklyrics.com
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favorecidas, com blusas brancas ou floridas e colares de metal pesado dourado, trabalhando,
postados de braos cruzados de costas para o palco, para os bicheiros brancos patres,
trajados com roupas e adereos caros e posicionados nos camarotes do recinto, acima da
quadra.
Dessa etnografia se destacam as duas vertentes de pesquisa: a primeira, a gnese de
um mundo artstico criado por jovens desfavorecidos na diviso social do trabalho em um
momento histrico de crise de projetos de sua camada social de origem (trabalhadores blue
collar de pases anglo-saxes) e o encontro mundial de jovens com essa mesma origem ou de
outras camadas sociais sob a gide do ethos, da viso de mundo, dos smbolos e do projeto de
um mundo artstico globalizado (o heavy metal); a segunda, os encontros, desencontros,
choques e conflitos com outros mundos da cidade de So Sebastio, sejam eles artsticos,
religiosos, contraventores, entre outros, com ethos e vises de mundo diversos e cdigos
culturais mutuamente outros, durante a gnese e a consolidao desse mundo artstico no
Brasil, com base na cidade Rio de Janeiro. Desencontros esses em curso atualmente,
assumindo por vezes tons irnicos, como o ocorrido com fs de metal de uma comunidade do
site de relacionamento Orkut durante um orkontro no shopping Tijuca em abril de 2006.
Um motorista anunciava o trajeto da van de transporte pblico que dirigia: Penha! Olaria!.
Ao se deparar com os fs de metal trajando negro completou: Cemitrio!.
Essa frico cultural metlica a base emprica para a demonstrao da hiptese
central da presente tese, a de que o mundo artstico do heavy metal discriminado,
estigmatizado, temido e incompreendido principalmente por gerar um curto-circuito
simblico entre categorias de dado e de construdo em no adeptos, ao recodificar smbolos
sagrados do mal (tidos como dados) em convenes estticas artsticas (tidas como
construdas).
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Captulo 1 - Etnografia da Rua Sinistra30 : Sarav Metal, Black
Metal e Dessacralizao de Smbolos Religiosos na Rua Cear
1.1 Kreator, Gangrena Gasosa e Rua Cear
Trs expresses do heavy metal no Rio de Janeiro foram essenciais em minha pesquisa
para explicitar a interao dos participantes desse mundo artstico com outros mundos
cariocas: o show do Kreator (alemes de Essen), Dorsal Atlntica (nativos do Rio) e Korzus
(paulistas) na quadra da escola de samba Estcio de S (fundador da cidade) em 1992,
relatado na introduo; as diversas apresentaes (e a mitologia) envolvendo a banda de
sarav metal da Baixada Fluminense Gangrena Gasosa, no Garage, nos anos 1990; e o
mundo noturno da rua Cear, logradouro dessa casa de shows, na Praa da Bandeira, zona
norte da cidade, durante os anos 1990 e comeo dos anos 2000. Em comum aos trs eventos: a
temtica religiosa e o questionamento ou a contestao, via arte, de determinados valores
religiosos e smbolos sagrados que incorporam ethos e viso de mundo de religies de vulto
na sociedade brasileira (como o catolicismo, o neo-pentecostalismo, o espiritismo cardecista e
a umbanda). A hiptese central da presente pesquisa afirma que, no mundo artstico
revolucionrio do heavy metal, esses valores e smbolos religiosos so dessacralizados e
transformados em smbolos artsticos - convenes estticas no religiosos (ou, numa
operao alternativa, convertidos em signos incorporando outros valores religiosos que os
atribudos pelas referidas religies). Assim, alm da transvalorao de smbolos sagrados em
convenes artsticas testemunhando em favor de atesmo e de uma viso crtica das religies,
30 Ttulo de pintura retratando uma rua similar Rua Cear no encarte do cd Usina Le Blond, banda de
r&b/funk norte-americano de Carlos Lopes, da banda carioca de thrash metal Dorsal Atlntica.
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tambm esto presentes nos trs eventos heavy metal citados as transgresses em prol de
outras religiosidades, como, por exemplo, a utilizao de smbolos associados ao mal na
tradio crist (e/ou esprita e/ou afro-brasileira) como smbolos positivados de neo-
paganismo (wicca principalmente), ocultismo ou satanismo. No presente captulo, trato de
dois dos trs eventos metal acima enumerados atravs da etnografia das noites metal na Rua
Cear - algumas das quais contaram com shows, nem sempre bem vindos pelos moradores da
rea e pelos freqentadores de um centro de umbanda local, da banda de sarav metal
Gangrena Gasosa (o show do Kreator na quadra da Estcio em 1992 foi exposto na
introduo).
1.2 - Rua Cear, Sbado Noite
Os principais pontos de encontro do mundo heavy metal no Rio de Janeiro so a casa
de shows Garage e o bar temtico de motociclismo Heavy Duty. Ambos esto localizados na
Rua Cear, na Praa da Bandeira, zona norte da cidade, que nas noites de sbado se
transforma em uma espcie de Baixo31 Metal, com um trnsito intenso de jovens, em sua
maior parte do sexo masculino32, percorrendo os inmeros bares do quarteiro. Meu trabalho
de campo foi efetuado nesse complexo cultural metal, entre o incio de 2002 e junho de 2004
(e tambm em diversos shows nos mais diversos bairros da cidade e de municpios do Grande
Rio). Como apreciador de heavy metal, j freqentava o Garage desde 1992, e o Heavy Duty
31 Termo usado para reas de grande concentrao de pblico em busca de entretenimento noturno, como o
Baixo Leblon, o Baixo Gvea e o Baixo Mier em bairros homnimos, ou o antigo Baixo Gay em
Botafogo.
32 Em mdia mais de mil jovens, com idades entre os 17 e os 30 anos, freqentam a Rua Cear a cada noite de
sbado.
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desde 1998. Descrevo a seguir o trajeto dos fs ao chegarem Rua Cear e os marcos
importantes da noite heavy metal do local.
Sbado, pouco antes da meia-noite, Praa da Bandeira, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Chegando de diversas partes da cidade, grupos de jovens de cabelos compridos em trajes
negros ou escuros descem nos pontos de nibus nos dois lados da praa. Os que vm da Zona
Norte atravessam a passarela sobre a Avenida Radial Oeste e saem em frente ao amarelo do
muro de um quartel da Defesa Civil; os que vm do Centro e da Zona Sul saltam do lado
oposto, num ponto sob o viaduto do metr, rodeado por ambulantes, camels e moto txis; h
ainda os que surgem andando vindos da rea da estao Leopoldina situada nas proximidades.
Todos se dirigem para uma rua escura e escondida, limitada em suas extremidades por duas
estradas de ferro, que comea debaixo dos trilhos suspensos da linha 2 do metr e termina
num trecho sem sada frente a uma passarela por sobre uma linha de trens urbanos: a Rua
Cear, ou simplesmente a Cear para os freqentadores mais antigos, ou ainda o Garage,
nome da casa noturna que inaugurou a ocupao heavy metal noturna da rua e termo usado
para designar a rua inteira pelos freqentadores mais novos: muitos dos que dizem ir para o
Garage raramente entra na casa de shows33.
Os fs de heavy metal adentram a Rua Cear logo aps o ponto de nibus e de moto
txis em frente rua, ao atravessarem o escuro portal de concreto edificado pelas pilastras que
sustentam o viaduto do metr. No incio da rua, passam por um depsito da Comlurb
(Companhia de Limpeza Urbana) esquerda, e por uma rua perpendicular, direita, a Rua
Lopes de Sousa, caminho para a Vila Mimosa34, motivo principal da presena constante de
uma blitz policial na entrada da via. Logo nessa esquina alguns fs de metal param no
33 O atual dono do Garage afirma que comum pais procurarem menores de idade na casa de shows, onde sua
entrada proibida, quando na verdade estes se encontram na rua Cear.
34 rea de concentrao de casas de prostituio freqentada por populao de baixa renda na Rua Sotero dos
Reis, que faz esquina com a Rua Cear em sua extremidade final.
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primeiro dos inmeros botequins da rua, para comprar garrafes de vinho tinto35 das marcas
Chapinha, So Roque ou Sagrada Famlia a trs reais (o popular sangue de boi).
Podem ento fazer um reconhecimento da rea (dar uma volta ou um rol na rua) antes de
se fixarem em algum ponto de encontro especfico.
Nos primeiros metros da rua h um trecho mal iluminado, com muitos carros
estacionados em frente a portas de ferro de oficinas e de lojas de peas de automveis
fechadas e arbustos, onde alguns grupos jovens sentados no cho bebem e casais namoram
encostados nas paredes ou nos carros. Em seguida h um ou mais bares improvisados em
janelas ou garagens por moradores desse trecho da rua, que conta com algumas vilas e
pequenos prdios de dois ou trs andares residenciais entre ou sobre as oficinas. Trinta metros
aps o primeiro botequim, em uma rea mais iluminada, com o barulho de msica mecnica
em alto volume e do burburinho tpico das aglomeraes noturnas, est localizado o alvo
principal da peregrinao metal na Rua Cear, sede da meca da msica pesada carioca e
epicentro da atividade notvaga jovem nos arredores: o bar Heavy Duty e a vizinha casa de
shows Garage.
Ao lado do bar Heavy Duty h duas sedes de motoclubes, uma sempre fechada durante
a noite, outra por vezes aberta, a do Motoclube Balaios (cujo smbolo uma caveira com um
chapu de cangaceiro sobre pentes de balas cruzados sobre os ombros). Algumas motos
Harley-Davidson podem ser vistas estacionadas, notadamente uma cromada bem em frente ao
Heavy Duty, pertencente ao integrante dos Balaios e dono do estabelecimento Zeca Urubu,
bem como um boneco feito com peas de moto, espcie de mascote do bar. As insuficientes
mesas e cadeiras na calada e na rua, repletas de garrafas de cerveja, so disputadas pelos
headbangers freqentadores, bem como uma mesa de sinuca na porta do estabelecimento
35 Garrafes de plstico garrafas de vidro, a no ser os cascos de cerveja reutilizveis, so informalmente
proibidas no comrcio da rua e de serem trazidas por freqentadores.
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iluminada por uma espcie de lustre pendendo da marquise imitando um recipiente de gelo
com garrafas de cerveja norte-americana Budweiser. Ao lado do Heavy Duty h outro bar
(que pertencia a uma senhora portuguesa, Dona Maria, e foi recentemente vendido a
comerciantes nordestinos) tambm com cadeiras e mesas na rua. Os dois bares disputam a
clientela e a msica nesse trecho, ambos permitindo que os freqentadores coloquem CDs ou
fitas de bandas de heavy metal em seus respectivos aparelhos de som. Num porto gradeado
mais adiante um vendedor pendura camisetas, e patches (adereos de pano para serem
costurados aos casacos e calas) de bandas de heavy metal, grunge e punk rock. Do lado
oposto ao Heavy Duty, esquerda da rua, na porta de uma vila e uma oficina, moradores
trabalham como ambulantes vendendo churrasquinho, cachorro quente (o popular podro) e
bebidas. Logo em seguida, do lado direito da rua, pouco depois do Heavy Duty, surge o
Garage, um casaro com grades separando uma pequena rea descoberta da rua, com um
balco de bar esquerda da entrada e uma escada rumo varanda do segundo andar, onde fica
a casa de shows propriamente dita. O trreo, sempre fechado, tem uma placa de ferro com a
inscrio Motoclube do Brasil, oficina de motos anterior ao funcionamento da casa. Em
frente, do lado oposto da rua, h uma rea de terra sem calamento com algumas rvores e
veculos estacionados, e por vezes carcaas de carros (tambm presentes na entrada da rua),
ladeada pelo muro da garagem de uma empresa de nibus interestaduais (a rodoviria Novo
Rio se encontra relativamente prxima), que ocupa todo o lado esquerdo da via at um trecho
em que a rua faz uma curva. Do lado direito da Rua Cear, vizinho ao Garage, fica o bar do
morador, uma janela residencial transformada em balco de bar, com duas rsticas mesas de
madeira fixas na calada, onde por vezes um conjunto, a banda do Carlinhos, um
beatlemanaco de meia idade freqentador da rea, toca clssicos do rock dos anos 60 e 70 em
troca de bebida oferecida pelo morador. Em seguida h um longo trecho escuro ocupado
por uma garagem ou oficina, onde muitos jovens ficam sentados em grupos encostados na
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parede. Antes da curva da Rua Cear est localizado o bar dos punks, um botequim onde os
proprietrios permitem que os freqentadores, alguns com a indumentria punk caracterstica
(casacos jeans com inscries tpicas, calas rasgadas, coturnos e cabelo estilo moicano),
ouam fitas cassete de punk rock. Em todo esse trecho, do comeo da rua ao bar dos punks
h muitos jovens andando, conversando no meio da rua e as cadeiras dos bares ficam em sua
maior parte no asfalto, o que gera engarrafamentos nos horrios de maior movimento (entre
uma e trs da manh), principalmente de carros de freqentadores e txis vindos da Vila
Mimosa, e h relatos, raros, de atropelamentos sem maior gravidade. Na curva para a direita
da rua, em seu trecho final e mais deserto, h um hotel popular de nome Canrio, uma oficina
por vezes aberta noite, um ou mais prdios residenciais, uma padaria, uma ou mais vendas
com bebidas alcolicas (semelhantes s biroscas encontradas em favelas), e na esquina com
a Rua Sotero dos Reis, novamente direita da rua, o bar dos grunges36, com uma jukebox
(mquina de msicas pagas com fichas) dispondo de vrios CDS de bandas de heavy metal e
rock dos mais diversos subgneros, mquinas de jogos eletrnicos, e duas mesas de sinuca
retiradas aos sbados para ceder espao para a roda37 aberta pelos freqentadores - fs de
metal, mas tambm fs de rock alternativo e de rock brasileiro dos anos 1980 (chamados de
grunges pelos demais freqentadores da rua) - mais novos que os de outros bares (alguns
aparentando serem menores de idade, motivo de reportagem no Jornal o Globo38, aes
constantes do juizado de menores nesse trecho e a recente presena seguranas para
controlarem o acesso ao interior do estabelecimento que foi fechado no comeo desse ano
por ordem judicial, segundo freqentadores39) e de camadas sociais menos favorecidas, com
36 Que no final dos anos 1990 era conhecido como Bar do Reggae, com decorao temtica rastafari e msica
reggae como trilha sonora.
37 Ver referncia origem das rodas punk ou de pogo no captulo 2.
38 Schmidt, Selma. In: O Globo, 30/05/2004:24.
39 Um novo bar em frente parece ter abrigado os antigos freqentadores do Bar dos Grunges.
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uma presena maior de mestios e negros que no Heavy Duty. Nesse bar as brigas so
constantes e durante um perodo de tempo um segurana (ao que afirmam alguns habitus ser
um morador da rua e ex-policial militar, outros o irmo de um dos donos do bar) tinha por
hbito dar tiros para o alto buscando interromp-las. (Eram comuns as correrias dos
freqentadores grunges quase todo o sbado, fugindo desse bar e passando pelo Heavy
Duty em direo sada da rua nos primeiros anos da dcada de 2000, por causa de brigas ou
tiros). No trecho final da Rua Cear, aps a esquina com a Rua Sotero dos Reis, h um ou
dois prdios residenciais, outra garagem de nibus e o final sem sada, em frente passarela
para So Cristvo sobre a linha do trem, entre a Estao Leopoldina e a estao So
Cristvo.
Na Rua Sotero dos Reis, ao lado Bar dos Grunges, h casas antigas transformadas
em cortios. Ao final dessa rua est sediada a Vila Mimosa, e esse trecho limtrofe com a Rua
Cear uma zona de indefinio entre o Baixo Metal e a rea de prostituio de populao
menos favorecida, com uma mistura maior de pblico dos dois ambientes: h a presena de
headbangers jovens brancos de cabelos longos e roupas pretas, de roqueiros ainda mais jovens
mestios ou negros freqentadores do Bar dos Grunges, de prostitutas, funkeiros,
bandidos e viciados (nos termos dos moradores e freqentadores) e uma maior presena
policial. No grupo de freqentadores da Vila Mimosa grande o nmero de populao
mestia e negra, residente de subrbios ou favelas e a porcentagem de populao branca de
camadas mdias bem menor que no Heavy Duty e no Garage. Nessa fronteira h bares em
seqncia, uns trs ou quatro, at um bar espaoso com diversas mesas de sinuca, que durante
o dia vende comida a quilo, na esquina com Rua Hilrio Ribeiro. Tanto esse bar quanto o dos
grunges so estabelecimentos abertos 24 horas, todos os dias da semana. Os jukebox com
CDS de rock e heavy metal no Bar dos Grunges e no bar das mesas de sinuca seguem o
padro dos minibares/prostbulos enfileirados nas galerias da Vila Mimosa, muitos com
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jukebox contendo msica sertaneja, samba, funk, rap, MPB e rock brasileiro dos anos 1980
(tambm presentes naqueles dois bares, mas em menor nmero). Na Rua Hilrio Ribeiro,
transversal rua Sotero dos Reis e paralela rua Cear, se localiza o bar dos Abutres, do
motoclube de mesmo nome. Essa rua limita de certa forma o trecho rock/heavy metal da
Sotero dos Reis em continuidade com a Rua Cear, e o trecho seguinte, territrio da VM,
como conhecida a Vila Mimosa pelos freqentadores do Heavy Duty. No comum
freqentadores de um desses trechos deixarem suas respectivas reas e passarem da rea
limtrofe que as separa, mas por vezes mulheres fs de metal pedem a amigos que as
acompanhem para conhecerem a Vila Mimosa em segurana, sem serem assediadas, e
cabeludos fs de metal podem ir em grupos passear pela Vila Mimosa ou mais raramente
recorrer ao sexo pago.
Os fs podem fazer todo esse trajeto pelos diferentes estabelecimentos da rua ao
chegar ou ao longo da noite, para encontrarem conhecidos, azarar freqentadores do sexo
oposto (e recentemente em alguns casos, do mesmo sexo, com a recente ocupao GLS de um
dos bares, segundo tpico de discusso na comunidade Heavy Duty no site de
relacionamento Orkut da internet), retornando ao Heavy Duty. Alguns passam pelos vrios
locais da rua, assistem a shows no Garage, voltam ao Heavy Duty depois, e no fim da noite
deslocam-se para o bar 24 horas dos grunges. Outros preferem se limitar ao Heavy Duty e
ao Garage por considerarem os trechos da rua para alm desses estabelecimentos perigosos ou
com muitos pirralhos, grunges e new metal, entre outras classificaes locais
pejorativas. Muitas vezes os ltimos freqentadores saem apenas com o dia claro, com o dono
do Heavy Duty, Zeca Urubu, jogando a gua da faxina na calada em frente ao bar.
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1.3 - Descrio dos Fs de Metal
Os fs e integrantes de bandas de heavy metal freqentadores da Rua Cear
apresentam uma ornamentao caracterstica: cabelos longos, camisetas pretas - podendo ou
no ter estampas de capas de CDS, logotipos de bandas ou foto dos integrantes40 (pode-se
afirmar que literalmente vestem a camisa do estilo musical que ouvem)-, calas jeans tambm
negras ou em tom escuro, botas de couro (boots) e casacos ou coletes de couro (ou ainda em
jeans) no estilo motociclista; alguns podem ter brincos, piercings, tatuagens, cavanhaques,
braceletes de couro com pinos de metal (os spikes), pulseiras estilo hippie, colares com
motivos caractersticos (msticos, medievais ou smbolos religiosos). Muitas das mulheres do
grupo tm o cabelo pintado de negro ou ruivo, podendo ter mechas de cores como roxo, verde
ou azul; se vestem em tons escuros, geralmente de preto, com calas jeans, mini-saias, saias
longas, camisetas com menos destaque para ou nenhuma referncia a bandas, tops,
espartilhos, cintos com elementos em metal prateado (jamais dourado tido como cafona e
cor de adereos de patricinha), colares, brincos, pulseiras, muitos anis, unhas com esmalte
negro ou outros tons escuros, tatuagens, piercings e botas de couro. Temas medievais,
smbolos orientais, egpcios, cruzes e cruzes invertidas (a chamada cruz satnica),
pentagramas (tradicionais ou invertidos tambm chamados de satnicos) e motivos celtas ou
nrdicos podem ser vistos em suas vestimentas, brincos e pingentes. A simbologia de
tradies religiosas, boa parte de origem no crist, presente nas roupas e adereos, remete a
valores estticos de transvalorao de smbolos religiosos presente tambm nas msicas e
letras do heavy metal. As roupas usadas no cotidiano tendem a ser semelhantes s usadas nos
40 O Helloween uma das bandas que se v em maior nmero de camisetas dos integrantes da subcultura, junto
com o Iron Maiden e, mais recentemente, a banda de black-metal Cradle of Filth. A venda de camisetas e CDs
pelas bandas em turn era e ainda uma importante fonte de renda e divulgao.
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shows e encontros do grupo, assim o padro de tons escuros tende a ser seguido mesmo no
trabalho ou em outros ambientes em que a esttica da ornamentao do grupo seria alvo de
reprovao e onde poderia ser imposto outro tipo de vesturio. A prpria adoo da cor negra
como predominante nas roupas e demais itens estticos do mundo heavy metal (e valorizada
positivamente) questiona a oposio cosmolgica central de diversas tradies religiosas,
notadamente a crist, de oposio entre luzes e trevas, claro e escuro, em que o negro
conotado negativamente como smbolo triste, do mal e da morte. A exigncia do corte
dos cabelos longos por parte dos homens do grupo no alistamento militar ou para se adequar
s exigncias de boa aparncia do mercado de trabalho causam indignao e temor entre os
headbangers. O site alemo Metaleros, (http://www.metaleros.de) sobre heavy metal
latino-americano, chama a ateno para o fato de muitos headbangers brasileiros terem o
cabelo curto devido discriminao a homens de cabelos longos no pas. A palidez tende a
ser generalizada em virtude do hbito de ir a praia no ser valorizado pelo grupo, sendo
mesmo conotado negativamente, ao contrrio de boa parte dos outros habitantes da cidade do
Rio de Janeiro, sobretudo os jovens de camadas mdias e mdias altas da zona sul.
A expresso do heavy metal na cidade do Rio de Janeiro e cidades integrando o
Grande Rio segue um padro de ethos, viso de mundo e proliferao simblica (religiosa ou
no) comum a esse mundo artstico globalizado (que segundo Janotti, 2002, permite a fs de
distintas nacionalidades se reconhecerem visualmente como adeptos partilhando cultura
artstica, ethos e viso de mundo comuns em qualquer lugar do planeta), e simultaneamente
apresenta, endossa ou confronta caractersticas locais de diversos ethos, vises de mundo e
smbolos de outros mundos artsticos e/ou religiosos cariocas. Esse mundo artstico um caso
privilegiado de estudo de multipertencimento, trnsito, mediao e choques culturais entre
diferentes mundos artsticos e/ou religiosos, camadas sociais, etnias, reas da cidade e mesmo
entre diferentes cidades do Grande Rio e alhures (no s entre cidades brasileiras, mas entre
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estas e cidades finlandesas, alems, suecas, norte-americanas, portuguesas, australianas,
indonsias, japonesas, argentinas remeto aqui aos dados enumerados na introduo desta
tese).
1.4 - Heavy Duty
A primeira casa noturna aberta na rua Cear voltada para o pblico heavy metal foi o
Garage, no fim dos anos 1980 ou comeo dos 1990, por Fbio Costa, o Fbio do Garage, mas
atualmente o principal atrativo do local o bar Heavy Duty. Aberto em 1997 por Zeca Urubu,
integrante do motoclube Balaios (que tem por sede a casa vizinha), o bar apresenta decorao
temtica de motociclismo, oferece bebidas e sanduches (o X-Tudo, que custava um real at
2004) a baixo preo, vdeos de heavy metal e a possibilidade de os fs deixarem CDs no
comeo da noite no balco para serem tocados no som do bar. As mesas para os fregueses e
uma mesa de sinuca ficam na rua e na calada. Dentro do bar, decorado com luzes de neon
vermelho, h um balco com trs ou quatro bancos frente a um espelho esquerda, onde so
afixados cartazes de shows e encontros de motociclismo, algumas camisas para serem
vendidas direita e durante certa poca uma pequena motocicleta para ser rifada. O balco do
bar propriamente dito fica atrs dessas camisas, direita, com o caixa de frente para a rua, e
se estende at a porta da cozinha ao fundo. esquerda do caixa os fregueses retiram seus
pedidos e levam-nos para as mesas ou consomem-nos in loco. Na parte de trs, h uma janela
da cozi