tese luciana veiga
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Luciana Fernandes Veiga
EM BUSCA DE RAZES PARA O VOTO: O USO QUE O HOMEM COMUM
FAZ DO HORRIO ELEITORAL
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obteno do grau de Doutor em Cincia Poltica.
Banca Examinadora: ______________________ Marcelo Jasmin (Presidente) _________________________ Marcus Figueiredo (Orientador) _________________________ Afonso de Albuquerque _________________________ Cesar Guimares _________________________ Vera Chaia
Rio de Janeiro - 2001
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NDICE
PG.
RESUMO 04
AGRADECIMENTOS 05
INTRODUO 07
PARTE 1 A IDEOLOGIA POLTICA DO HOMEM COMUM
INTRODUO O HOMEM COMUM 18
CAPTULO 1 O CONCEITO DE IDEOLOGIA POLTICA 30
CAPTULO 2 A CONSTRUO DA IDEOLOGIA POLTICA 41
2.1 Liberdade: o povo pouco ouvido, mas pode falar 44
2.2 Igualdade e ressentimento diante da distino social 54
2.3 Democracia e o obstculo da alienao poltica 58
2.4 Partidos polticos: instrumentos de execuo de interesses 63
2.5 Congresso Nacional: a rejeio aos deputados 69
2.6 O governo real e o governo ideal: o sentimento de desamparo e o anseio de proteo 73
2.7 A origem instrumental e moral da ideologia poltica 79
2.8 Concluso 88
PARTE 2 A PROPAGANDA ELEITORAL
INTRODUO O HORRIO ELEITORAL: PARTICULARIDADES E LIMITAES 94
CAPTULO 3 A ANLISE DAS ESTRATGIAS DE COMUNICAO DOS CANDIDATOS 97
3.1 Fernando Henrique: Quem acabou com a inflao, vai vencer o desemprego. 101
3.2 Lula: Quem sabe quem sente 106
3.3 Ciro Gomes: Nem um, nem outro 109
3.4 A crise e Fernando Henrique versus Lula: O pulso forte em um momento de turbulncia
versus quem sabe quem sente 113
3.5 Concluso 124
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PARTE 3 O PROCESSAMENTO DO HORRIO ELEITORAL E A DECISO DO VOTO
INTRODUO IDEOLOGIA POLTICA E RACIONALIDADE DO VOTO: AS CONSEQNCIAS DA
ESCASSEZ DE CONHECIMENTO E DA ALIENAO POLTICA PARA A FORMAO DA PREFERNCIA 127
CAPTULO 4 PERSUASO ELEITORAL E VOTO 132
CAPTULO 5 EM BUSCA DE RAZES PARA O VOTO: O USO QUE O ELEITOR COMUM FAZ DO HORRIO
ELEITORAL
5.1 A utilidade do Horrio Eleitoral 151
5.2 Como o homem comum seleciona e processa as mensagens veiculadas pelo Horrio
Eleitoral 160
5.3 O Horrio Eleitoral e a conversa do dia-a-dia 172
CAPTULO 6 PROCESSO DE DECISO UNIFORME E FORMAO DE PREFERNCIAS DIVERSAS: A
IMPORTNCIA DA HIERARQUIZAO INDIVIDUAL DOS ELEMENTOS DA IDEOLOGIA 180
CONCLUSO 196
DESENHO METODOLGICO DA PESQUISA 202
BIBLIOGRAFIA 209
ANEXOS
ANEXO 1 QUESTIONRIO PARA RECRUTAMENTO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA 222
ANEXO 2 QUESTIONRIOS PARA AS ENTREVISTAS EM PROFUNDIDADE 227
ANEXO 3 QUESTIONRIOS APLICADOS DURANTE OS GRUPOS DE DISCUSSO 239
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RESUMO
A expanso do marketing poltico televisivo e a sua crescente influncia no processo
eleitoral tm despertado a ateno de cientistas polticos. Diante do processo de personalidade da
poltica decorrente da exposio direta do candidato ao eleitor por meio da televiso, o meio
acadmico aponta para a necessidade de adequao dos modelos explicativos de deciso de voto
existentes a esta nova realidade. Este trabalho tem por objetivo examinar como os eleitores
processam as mensagens polticas divulgadas pelo Horrio Gratuito de Propaganda Eleitoral e
como as utilizam na deciso do voto.
O trabalho est baseado em uma investigao emprica realizada na ocasio da disputa
presidencial de 1998, quando buscamos analisar o impacto persuasivo do Horrio Eleitoral sobre
o homem comum, este definido segundo critrios de baixa escolaridade, baixa renda e baixo
interesse pela poltica. O trabalho valeu-se de pesquisas qualitativas, com entrevistas em
profundidade e grupos de discusso, realizadas durante todo o perodo da disputa.
Como resultado, verificamos que o homem comum tem a capacidade de suprir a escassez
de conhecimentos sobre o jogo poltico e o funcionamento do governo com a sua ideologia
poltica, a soma de estoques de conhecimentos e de valores extrados de seu cotidiano e de
noes fragmentadas recebidas pela mdia e a conversao. Os resultados obtidos apontaram
que, a partir de sua ideologia poltica, o eleitor raciocina sobre os candidatos, os programas de
governo e os temas relevantes da campanha ao decidir o seu voto. O Horrio Eleitoral visto
como fonte importante de informao, na medida em que aumenta a exposio dos polticos na
mdia e oferece informaes mais assimilveis. O eleitor seleciona e processa as mensagens
veiculadas pelas propagandas com base em seu estoque de conhecimentos e de valores. O
Horrio Eleitoral oferece argumentos para o eleitor defender sua atitude sobre o voto nas
conversas do dia-a-dia, onde, de acordo com os dados empricos, as opinies se cristalizam.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi resultado do empenho de um grande e afinado time. Por isso, gostaria de
expressar primeiramente o meu especial agradecimento ao Prof. Marcus Figueiredo, que esteve
muito presente ao longo de todo o processo, me orientando com muita eficincia e dedicao em
todos os momentos que foram necessrios ao longo deste caminho. Tambm sou muito grata ao
Prof. Raul Francisco Magalhes, meu imprescindvel parceiro na realizao da pesquisa.
Agradeo muito ao Prof. Rubem Barbosa Filho que colocou desde o primeiro instante o Centro
de Pesquisas Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora nossa disposio para suprir
todas as demandas deste trabalho.
Sou muito grata tambm aos meus colegas do Doxa - Laboratrio de Pesquisa em
Comunicao Poltica e Opinio Pblica, pelas produtivas tardes em que passamos definindo e
amarrando o projeto desta pesquisa. Em particular gostaria de agradecer a Alessandra Ald,
pelas frutferas conversas no dia-a-dia do Laboratrio.
No poderia deixar de agradecer ao Prof. Edmundo Coelho (in memoriam), que com o
seu aguado conhecimento e postura crtica contribuiu enormemente para esta pesquisa,
apontando indicaes tericas e metodolgicas.
Gostaria de agradecer ao Prof. Marcos Emanoel, ento responsvel pelo Laboratrio de
Psicologia Cognitiva e Social da UFJF, pelo provimento da infra-estrutura do processo.
Agradeo tambm Profa Snia Maria Gondin, pela dedicao e eficincia na conduo da
dinmica dos grupos. Agradeo aos integrantes da Cenrio Consultoria pela presteza e agilidade
na elaborao e execuo da logstica dos grupos de debate, garantindo a realizao de todas as
etapas previstas.
Gostaria de explicitar a minha gratido aos homens e mulheres que se dispuseram a
participar deste trabalho. Agradeo particularmente aos 18 entrevistados que demonstraram
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grande comprometimento com a pesquisa ao longo de quase seis meses. Agradeo ainda as
dezenas de cafs, sucos e biscoitos que me foram oferecidos nos encontros, sinais de gentileza e
hospitalidade.
Gostaria de agradecer ao CNPq, pela bolsa de doutorado, e Fundao de Amparo
Pesquisa de Minas Gerais FAPEMIG pelo suporte financeiro dado pesquisa, sem o qual ela
seria materialmente invivel. Gostaria de agradecer ainda ao Doxa e ao IUPERJ pelo suporte
institucional. A contribuio de tais instituies a participao dos professores, colegas e
funcionrios extrapola o mbito do trabalho.
Quem j passou pela experincia de escrever uma tese de doutorado sabe que realizar
esta tarefa implica superar uma diversidade de desafios que extrapola o campo intelectual. Para
vencer os desafios funcionais e emocionais, contei com uma quadra sempre muito presente:
meus pais, Vera e Porfrio, meu irmo Marcelo e minha sogra Marisa. Eu lhes sou muito grata.
Aos meus filhos Bernardo e Thomaz, agradeo as espontneas manifestaes de carinho,
que interromperam em vrios momentos a realizao desta tese, mas que diante de tal doura
tornaram o ato de escrev-la menos rduo e muito mais prazeroso. Enfim, gostaria de agradecer
ao meu marido Fernando. No consigo sequer imaginar como tudo teria sido sem ele.
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INTRODUO
Qualquer discusso sobre o efeito da propaganda eleitoral na deciso do voto, no caso
brasileiro, remete campanha de Fernando Collor de Mello na eleio presidencial de 1989. A
sua vitria foi um fenmeno significativo no processo eleitoral brasileiro. Collor era um poltico
jovem com uma trajetria ascendente. Havia sido eleito prefeito de Macei em 1982 e
governador de Alagoas em 1986 pelo PMDB. Enquanto governador ficou conhecido como o
caador de marajs, tentando reduzir os supersalrios dos funcionrios pblicos de seu estado.
Embora tal prtica poltica tenha tido alguma repercusso no cenrio nacional, Collor era ainda
pouco conhecido junto ao grande eleitorado brasileiro. At que, em 1989, renuncia ao governo
de Alagoas e se lana candidato Presidncia da Repblica, filiando-se ao desconhecido Partido
da Juventude (PJ), transformado em Partido da Reconstruo Nacional (PRN).
Com o discurso de caador de marajs e amparado em grandes recursos financeiros, a
campanha de Fernando Collor de Mello soube usar com especial capacidade o marketing poltico
e conseguiu rapidamente liderar as intenes de voto, desbancando tradicionais lderes polticos
nacionais que disputavam o pleito. A trajetria de ascenso do candidato apresentou um
problema eminentemente emprico para a Cincia Poltica brasileira: a necessidade de pensar a
nova relao poltica e mdia e sua conseqncia para o processo de deciso do voto.
A eleio de Collor pode ser analisada a partir de um fenmeno internacional. Em
diversos pases democrticos, possvel verificar uma crescente influncia da mdia eletrnica
nos processos eleitorais e uma conseqente personalizao da poltica, na medida em que
candidato e eleitor so colocados em relao direta. Com o crescimento dos investimentos no
marketing poltico na televiso e os resultados que vem apresentando, os cientistas polticos
passaram a temer o futuro das instituies partidrias e do debate poltico.
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O intuito da presente pesquisa contribuir para o avano desta discusso que envolve
propaganda poltica e comportamento eleitoral. Por comportamento eleitoral, deve-se conceber
uma srie de recursos cognitivos, morais e estruturais que contribuem para a deciso do voto. O
objetivo , particularmente, estudar o processo cognitivo dos eleitores, analisar como os cidados
comuns captam as mensagens estruturadas pelo mundo da poltica e pelo Horrio Eleitoral, e
como reagem a elas. Em outras palavras, a preocupao est em entender o que o eleitor comum
faz com as mensagens que lhe so ofertadas e de que maneira as utilizam no processo de
deciso do voto. O eleitor comum se caracteriza por critrios de baixa escolaridade, baixa renda,
baixo associativismo e baixo interesse pela poltica.
O trabalho visa sanar uma lacuna nos estudos sobre comportamento eleitoral realizados
pelos cientistas polticos brasileiros. A anlise sobre os efeitos da propaganda poltica na deciso
do voto constitui um campo de trabalho ainda a ser explorado no Brasil. Mauro Porto (1996)
lembra que um levantamento da produo acadmica brasileira sobre partidos, eleies e
comportamento poltico realizado por Olavo Brasil Lima Jr. em 1992 (muito rico, chegando a
abordar 225 ttulos) no possua sequer uma referncia bibliogrfica que tivesse como tema
central os meios de comunicao de massa. A ausncia do assunto na produo acadmica
brasileira confirma o diagnstico j apresentado por diferentes autores (Skidmore, 1993; Avelar,
1992; Rua, 1995) de que, a despeito de inestimveis investimentos feitos por governos, partidos
e candidatos na chamada propaganda eleitoral, a maior parte dos estudos disponveis sobre o
comportamento eleitoral se limita a admitir que a propaganda eleitoral atravs do rdio e da
televiso contribui para informar a deciso do voto.
O impacto da mdia sobre a formao das preferncias eleitorais deve contemplar a
dimenso do emissor da mensagem e, principalmente, a dimenso do alvo da mensagem, o
telespectador/eleitor. Na dcada de 90, alguns estudiosos envolvidos com os temas da
comunicao e poltica passaram a dedicar-se ao assunto propaganda eleitoral. Lcia Avelar em
seu artigo As eleies na era da televiso (1992) foi uma das pioneiras no tratamento sobre a
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importncia do veculo no comportamento eleitoral brasileiro. A autora, ao estudar a eleio
presidencial de 1989, argumenta sobre a insero da televiso no centro das campanhas
eleitorais, na medida em que o veculo se torna a principal fonte de informao poltica.
Pioneiro tambm foi o trabalho de Afonso Albuquerque (1996). Tese de doutoramento do
autor, o trabalho consta de uma anlise de como os candidatos utilizaram o Horrio Eleitoral
(HE) na campanha presidencial de 1989. A partir do estudo do objeto HE, Albuquerque elabora
ainda um modelo geral de anlise do Programa Eleitoral, com base em instrumental terico e
metodolgico fornecido pela teoria da construo social da realidade e pela anlise de
enquadramentos. Afonso descreve um modelo brasileiro de propaganda eleitoral e o aplica na
anlise das candidaturas de Afif Domingos, Luis Incio Lula da Silva e Fernando Collor de
Mello.
Na campanha eleitoral de 1992, Mauro Porto (1993) dedicou-se compreenso do papel
dos meios de comunicao em processos eleitorais municipais, atravs do estudo de caso da
cidade de So Paulo. A anlise foi desenvolvida a partir de um estudo de painel realizado com 90
eleitores da capital paulista. Assim como Avelar, Porto aborda a centralidade da televiso.
Ressalta que se trata de uma poderosa indstria de bens simblicos, que se consolidou no
perodo da ditadura militar, assumindo a primazia enquanto fonte de informao e
entretenimento. Ao analisar o efeito de telenovelas, telejornais e dos programas do Horrio
Eleitoral junto aos participantes do painel, Porto concluiu que a televiso cumpriu um papel
importante ao desqualificar a poltica e os polticos ao longo de sua programao, permitindo a
Maluf (ento candidato prefeitura de So Paulo pelo PDS) ter sucesso com a estratgia de
afirmar-se mais como um bom administrador do que como poltico. A TV foi fundamental
tambm ao construir uma imagem profundamente negativa da administrao do PT, dificultando
a estratgia persuasiva do partido que no chegou a formar uma imagem diferente daquela
veiculada pela mdia sobre o governo de Luiza Erundina (PT).
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Nas eleies de 1994, o nmero de trabalhos sobre a programao da mdia eletrnica e
as eleies aumentou significativamente. Em sua tese de mestrado O Vo das Notcias: o Jornal
Nacional e as Eleies de 1994 (1995) apresentada a PUC/SP, Llian Arruda faz uma anlise
sistemtica das notcias veiculadas pelo Jornal Nacional da Rede Globo no perodo de 25 de
junho a 05 de outubro de 1994. Ao final do trabalho podemos concluir que, embora as notcias
sobre eleies veiculadas pelo Jornal Nacional estivessem sendo controladas pela legislao
eleitoral que impunha s emissoras um tratamento equnime a todos os candidatos, as notcias do
Plano Real, implementado pelo ento candidato Fernando Henrique, quando ainda Ministro da
Fazenda, tiveram forte e positiva presena no telejornal.
Mauro Porto, no artigo Telenovelas e poltica: o CR-P da eleio presidencial de 1994
(1995) realiza uma anlise a partir do conceito de Cenrio de Representao da Poltica CR-P.
Este conceito, elaborado por Vencio de Lima designa o conjunto de valores e significados sobre
a poltica, construdos na e pela mdia, no marco do qual se desenvolve o processo poltico e
eleitoral. O objetivo de Porto foi identificar como as trs novelas da Rede Globo (Renascer, Fera
Ferida e Ptria Minha) influenciaram o resultado do pleito em 1994. A hiptese central era a de
que o candidato que melhor se adaptasse ao CR-P tenderia a obter o xito na eleio. O autor
conclui ao final do artigo que, de fato, Fernando Henrique, o candidato eleito, foi aquele que
melhor se adaptou s representaes das novelas.
A revista Comunicao & Poltica, publicao do Centro Brasileiro de Estudos Latino-
Americanos CEBELA, dedicou um volume para o tema Eleies: mdia, cenrios e atores no
ano de 1995. Entre outros trabalhos, estavam o trabalho de Mauro Porto citado acima e o artigo
de Maria das Graas Rua. Em seu artigo Mdia, informao e poltica: a eleio presidencial
brasileira de 1994 (1995), Rua fecha o foco no impacto da informao televisiva no
comportamento eleitoral. Para isso, a autora realiza trabalho de campo envolvendo dois painis e
um survey pr-eleitoral realizados no Distrito Federal em 1994. Neste trabalho, Rua apresenta
uma srie de dados sobre a exposio do eleitorado informao poltica apresentada pelos
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meios de comunicao. Entre eles, chamou a ateno para o desempenho da televiso: 91% dos
eleitores disseram que sempre vem televiso, 90 % dos eleitores disseram que confiam na
televiso enquanto fonte de informao, 82% dos eleitores assistiram o Horrio Gratuito de
Propaganda Eleitoral (HGPE), e 63% dos eleitores assistiram o HGPE na ltima semana de
campanha eleitoral. Com este trabalho, Rua demonstra a intensa exposio dos eleitores s
informaes da mdia eletrnica e tambm do Horrio Eleitoral.
Apesar do empenho de acadmicos para avaliar a relao dos meios de comunicao de
massa com as eleies, ainda existem poucos trabalhos voltados especificamente para o Horrio
Eleitoral. Ainda a respeito da eleio de 1994, Vladimyr Lombardo Jorge (1995) se dedicou ao
estudo da Propaganda Eleitoral Gratuita de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Incio Lula da
Silva.
Em Estratgias de persuaso em eleies majoritrias, Marcus Figueiredo et alii (1998)
apresentam uma metodologia para o estudo de campanhas eleitorais para cargos majoritrios. Os
autores avaliaram as estratgias comunicativas das campanhas, os formatos e as tcnicas de
produo utilizados, os apelos, os objetivos das mensagens, as caractersticas pessoais e os
principais temas abordados nas campanhas. Figueiredo et alii analisaram os comerciais eleitorais
veiculados nas campanhas para as prefeituras de So Paulo e Rio de Janeiro em 1996.
Sobre as eleies de 1998, estes estudos aparecem em maior nmero. Luiz Ademir de
Oliveira (1999) analisa as estratgias discursivas dos candidatos Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Incio Lula da Silva no pleito de 1998. A partir da anlise dos 19 programas eleitorais
veiculados por cada candidato, o autor concluiu que os dois candidatos apostaram na construo
de suas imagens, com um enfoque muito personalista. Os candidatos se diferenciaram na adoo
do discurso sobre o Brasil do momento. Fernando Henrique passava a imagem de um pas em
pleno avano, enquanto Lula enfatizava a imagem de um pas marcado pela excluso social.
Podemos observar que o tema Comunicao Poltica comeou a atrair uma srie de
estudiosos a partir da dcada de 90. No entanto, at 1996, nenhum trabalho de cunho acadmico
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havia sido desenvolvido sobre o processamento das mensagens veiculadas pelo Horrio
Eleitoral. Entender como a propaganda poltica capaz de influenciar a deciso do voto motivou
a realizao da minha dissertao de mestrado Propaganda Poltica e Voto: o estudo do efeito da
persuaso do Horrio Eleitoral Estado do Rio de Janeiro, em 1994, 2 turno, orientada pelo
Prof. Marcus Figueiredo e apresentada ao IUPERJ. O objetivo ento era examinar como os
eleitores selecionaram e processaram as informaes polticas divulgadas atravs do Horrio
Eleitoral e como as utilizaram na elaborao da imagem de seus candidatos para decidir em
quem votar. A maneira como o telespectador/eleitor selecionou e processou as mensagens
veiculadas pelo Horrio Eleitoral foi analisada com base em relatrios de pesquisas qualitativas
com grupos de discusso focus group realizadas pelo instituto de pesquisa Vox Populi na
ocasio da disputa. 1
Na dissertao, chego concluso de que os eleitores do Estado do Rio de Janeiro
naquele pleito possuam restrito conhecimento sobre a prtica poltica e pouca disponibilidade
em procurar informar-se sobre o assunto. Assim, buscavam notcias de fcil acesso que poderiam
suprir essa escassez. Os eleitores utilizaram os discursos veiculados no horrio do TRE para
elaborar a sua inteno de voto, selecionando as mensagens de acordo com seus valores e
conhecimentos prvios. A partir dessas informaes, elaboravam narrativas a respeito dos
candidatos a quem conduziriam suas intenes de voto (Veiga, 1996).
Contudo, o efeito apresentou certas limitaes. Percebemos que o eleitor/telespectador
no to manipulvel quanto o senso comum prope. Primeiro, porque os eleitores, ao se
exporem propaganda poltica, no captam todas as informaes que so divulgadas. Eles se
comportam de maneira a selecion-las de acordo com os seus conceitos scio-culturais e com
suas intenes de voto pr-estabelecidas. Segundo, porque as informaes divulgadas pelo
Horrio Eleitoral no constituem todo o conhecimento de que o eleitor dispe ao elaborar a sua
1 Este material foi gentilmente cedido por Marco Aurlio Alencar, coordenador da campanha do candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro Marcello Alencar (PSDB) em 1994.
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tomada de deciso sobre o voto. Ao processar tais informaes, o eleitor/telespectador utiliza
ainda os seus valores e conceitos prvios.
Na ocasio ficou visvel o limite imposto pela recepo seletiva da mensagem, na medida
em que se constatou a dificuldade em reverter a preferncia do eleitor que apresentava uma
prvia inteno de voto. Por outro lado, o processo persuasivo demonstrou melhor resultado
entre os eleitores indecisos. Na medida em que no possuam qualquer inclinao partidria, as
campanhas tentavam, atravs de seus discursos, ativar conceitos, valores e interesses latentes de
maneira a que se manifestassem em preferncia do voto.
Uma vez constatado que a propaganda eleitoral atravs da TV contribui para formar a
deciso de voto, parecia importante um estudo mais profundo que fosse capaz de revelar a
extenso e a qualidade do processo de persuaso do horrio do TRE. Outras perguntas surgiam e
me causavam inquietao. Que valores e conhecimentos sobre a poltica os eleitores possuem e
utilizam na elaborao do voto? Onde est a origem destes valores e conhecimentos? Que
valores so passveis de serem ativados pela propaganda de modo a estimular a formao da
preferncia eleitoral? A partir da demanda real de estudos na rea de recepo de propaganda
poltica e comportamento eleitoral e de tantas dvidas individuais, esta pesquisa foi planejada e
desenvolvida na eleio presidencial de 1998 sobre o comportamento dos eleitores de camada
social mais baixa e os efeitos do Horrio Eleitoral.
Este trabalho tem a pretenso de construir um modelo de processamento da propaganda
poltica, atravs da fuso crtica de outras fontes tericas, ligando-o s necessidades de
explicao de um contexto concreto: as eleies presidenciais de 1998 na viso dos eleitores
comuns, situados em Juiz de Fora, Minas Gerais. A inteno, ento, analisar a prtica do
comportamento do eleitor naquele pleito.
Para alcanar este objetivo, a pesquisa adotou um procedimento diverso. Ao contrrio do
que sugere um clssico roteiro de pesquisa, para este trabalho no foi elaborada uma abordagem
terica rigorosa, em um primeiro momento, que pudesse criar uma expectativa de que certos
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eventos viessem a acontecer sob condies especficas, para depois verificar ou no a hiptese
estimada. Ao contrrio, no momento anterior pesquisa de campo, existiam apenas orientaes
tericas bsicas sobre ideologia, persuaso e comportamento eleitoral. A adoo desta estratgia
tinha por objetivo ir a campo para ouvir o que os homens comuns tinham a dizer, sem qualquer
preocupao de enquadrar seus comportamentos e atitudes de maneira imediata s referncias
tericas. Somente depois da investigao emprica, lanou-se mo dos modelos causais de
maneira mais profunda, buscando selecion-los, adapt-los e conjug-los de modo a construir
uma teoria sobre o processamento do Horrio Eleitoral.
O objetivo era identificar os seguintes pontos com a investigao emprica: 1) a ideologia
do eleitor comum; 2) os mecanismos de processamento das mensagens veiculadas no Horrio
Eleitoral; 3) a importncia da ideologia poltica e do processamento da propaganda eleitoral na
deciso do voto. Foram utilizadas para isso, basicamente, duas tcnicas de pesquisa qualitativa
que esto detalhadas na discusso metodolgica: entrevistas em profundidade a partir de roteiro
semi-estruturado com dezoito pessoas ao longo do ano eleitoral e, durante o perodo de
veiculao do Horrio Eleitoral, grupos de discusso focus group com os eleitores que
discutiam o voto e as mensagens da propaganda poltica da televiso. Vinte grupos de discusso
foram realizados no Laboratrio de Psicologia Cognitiva e Social da Universidade Federal de
Juiz de Fora, cobrindo toda a campanha presidencial de 1998.
Tenho a certeza de ter contribudo para o avano das tcnicas de investigao dos estudos
polticos eleitorais no Brasil, na medida em que metodologias de anlise qualitativa com imenso
potencial explicativo foram conjugadas as entrevistas em profundidade e os grupos de
discusso estimulados com o Horrio Eleitoral, e conectados a um conjunto de instrumentos
tericos/interpretativos da teoria social.
O quadro terico para tratar dos dados desta pesquisa foi relativamente amplo. Ao tratar
do processo de persuaso para o voto foi necessrio analisar as variveis psicolgicas e
sociolgicas da formao da preferncia poltica. Este trabalho traz uma diversidade de conceitos
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tericos sobre fenomenologia, sociologia de pequenos grupos, sociologia das atitudes, psicologia
cognitiva, psicologia social e cincia poltica, particularmente sobre comportamento eleitoral.
Todas estas reas de conhecimento contribuem para entender o processamento das mensagens e
da conseqente formao da preferncia. No entanto, como lembra Campbell (1964), a utilizao
dos diversos conceitos da sociologia e da psicologia no deve obscurecer o carter poltico da
discusso, afinal o comportamento eleitoral tem um grande significado para o sistema poltico. O
processo eleitoral traz conseqncias para a poltica como um todo. A escolha dos eleitores
determina que indivduos tero poder de deciso e influencia as aes destes depositrios de
poder.
A postura metodolgica adotada neste trabalho baseia-se no pressuposto desenvolvido
pelo socilogo Theodore Mills (1968) de que a pesquisa do grupo pequeno uma eficiente
maneira de pensar sobre os sistemas sociais em geral. Para Mills (1968), os pequenos grupos no
so microssistemas isolados, so essencialmente microcosmos de sociedades maiores.
Apresentam em miniatura, caractersticas societrias: diviso do trabalho, cdigo de tica,
governo, meios de troca, classificaes de prestgio, ideologias, etc. Por isso, atravs do exame
cuidadoso desses microssistemas, pode-se construir modelos tericos. Isso quer dizer claramente
que, ao se tratar de um grupo de eleitores de Juiz de Fora, busca-se criar possibilidades para o
entendimento do comportamento poltico de um eleitor generalizvel para outros contextos;
porm, essa generalizao depende de estar ancorada ao novo contexto emprico de referncia,
que ir criticamente adapt-lo. De acordo com Glase & Strauss (1967), a liberdade para conduzir
tais adaptaes possibilita a elaborao de teorias empricas, teorias que no podem ser
completamente refutadas ou substitudas na medida em que esto baseadas em dados, estando
assim destinadas a durar ainda que venham a sofrer uma srie de modificaes e reformulaes.
Para terminar esta introduo, faz-se necessrio dizer como o trabalho est estruturado.
Um pressuposto central desta tese que a formao da preferncia eleitoral acontece a partir do
processamento de informaes polticas, sobre as quais o eleitor raciocina e decide o seu voto,
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sendo elementos fundamentais deste processo a predisposio dos indivduos e o estmulo ao
qual esto submetidos. O indivduo tem o poder de selecionar o que assiste e o que ouve. Mas
existe uma questo de visibilidade e este ponto nos remete anlise da propaganda poltica. Para
dar conta do processo de formao da preferncia abordando as variveis predisposio e
estmulo, o trabalho demandou trs partes.
A primeira parte da tese se refere varivel predisposio e tem por objetivo conhecer a
ideologia poltica do eleitor comum. Este item comea com a descrio do esteretipo do homem
comum e com a apresentao dos homens e mulheres que participaram desta pesquisa. A seguir,
temos a definio do conceito ideologia poltica a ser adotado. No segundo captulo so
analisadas as principais idias polticas dos homens comuns pesquisados e a origem das mesmas
em suas experincias de vida. Tambm interessa o conhecimento poltico que possuem sobre o
funcionamento do governo e da prtica poltica.
A segunda parte da tese se refere varivel estmulo e analisa os discursos de campanha
veiculados pelo Horrio Eleitoral de Propaganda Gratuita. Esta parte comea com uma discusso
a respeito da importncia e das particularidades do espao gratuito na televiso enquanto canal
para o debate poltico. O passo seguinte analisar as estratgias eleitorais adotadas pelos trs
principais candidatos da disputa: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Incio Lula da Silva e Ciro
Gomes. O estudo das estratgias visa identificar como cada um dos candidatos: 1) descreveu o
contexto poltico naquele momento de disputa, 2) construiu a sua imagem de presidencivel, 3)
criou um mundo futuro possvel caso eleito, e 4) buscou dar garantia da concretizao do mundo
futuro proposto.
A terceira parte se refere ao efeito do estmulo sobre a predisposio, ou seja, como o
eleitor comum, a partir de sua ideologia poltica, processa os discursos da poltica veiculados
pela propaganda eleitoral para avaliar o cenrio poltico atual, os candidatos e partidos em
disputa, a fim de tomar uma deciso sobre o voto. Nesta parte, busca-se construir um modelo de
processamento da propaganda poltica. O modelo consta de duas etapas. A primeira fase est
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centrada no processamento individual que o eleitor realiza diante da TV. A segunda etapa
acontece quando o eleitor expe o conhecimento resultante do processamento individual das
mensagens polticas ao seu grupo. A exposio dos argumentos adotados no processamento
individual para o grupo e a reao das pessoas aos mesmos tm relevante valor na aceitao ou
no da mensagem. neste momento que o processo persuasivo pode se concretizar.
Ainda nesta etapa, a inteno descrever o raciocnio do eleitor comum ao elaborar a sua
preferncia sobre o voto e, particularmente, em que medida a propaganda eleitoral interfere neste
processo de deciso. Percorridas todas as etapas, a expectativa que a concluso do trabalho
responda de maneira clara como a propaganda eleitoral influencia o processo de deciso do voto.
Por razes operacionais de transcrio, os membros dos grupos foram identificados por um
cdigo composto de uma letra e um nmero. A letra designa o grupo com uma data especfica e
o nmero, a posio do participante na mesa de debates em relao debatedora. A data ao final
das citaes indica o dia e o ms de realizao do grupo. A fim de garantir o anonimato dos
participantes das entrevistas em profundidade, os mesmos tiveram seus nomes verdadeiros
substitudos por outros fictcios. As citaes das entrevistas em profundidade so identificadas
apenas com os nomes fictcios dos participantes.
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PARTE 1 - A IDEOLOGIA POLTICA DO HOMEM COMUM
INTRODUO O HOMEM COMUM
Se o objetivo estudar a ideologia e o comportamento poltico do homem comum,
comecemos por eles: pelos homens e mulheres comuns. Os homens comuns podem ser descritos
estereotipadamente como aqueles indivduos que acordam cedo, vo para o trabalho e, ao final
do dia, retornam para casa onde encontram a famlia. As mulheres comuns so as donas-de-casa
que permanecem no lar cuidando dos filhos, da famlia, ou ainda, as mulheres que trabalham fora
e cumprem essa dupla tarefa. Todos os dias essas pessoas seguem trabalhando para que ao final
do ms recebam um rendimento que varia de dois a cinco salrios mnimos, com o qual pagam
as compras e as contas da casa. Homens e mulheres, donas-de-casa ou no, gente comum
pressionada entre os problemas do trabalho e os problemas da vida privada, isolados das
preocupaes e atividades extrafamiliares, com baixa disponibilidade para a poltica. So
pessoas com baixo nvel de escolaridade, que no ultrapassa oito anos de estudo, e que
demonstram possuir um conhecimento funcional adquirido no dia-a-dia, como nas conversas
com os colegas de trabalho na hora do almoo, nas conversas com a famlia e com os amigos, no
porto de casa em um bate-papo com a vizinha. Assim, a vida social deve ser vista como uma
contnua interao de conhecimento.
O homem comum assim descrito o objeto de anlise desta pesquisa. Foram analisados
218 homens e mulheres comuns. Duzentas pessoas participaram das discusses em grupo. Eram
pedreiros, mecnicos, manicures, balconistas, vigilantes, motoristas, empregados domsticos,
porteiros, telefonistas... Outras 18 pessoas comuns participaram de uma srie de cinco
entrevistas individuais (ver quadro 1).
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Quadro 1 Participantes das entrevistas em profundidade de acordo
com idade, sexo e atividade
Idade Homens Mulheres inseridas no
mercado de trabalho
Mulheres donas-de-
casa
18 a 25 anos Pedro, vendedor
RICARDO, servente de
pedreiro
CLAUDIA, empregada
domstica
BEATRIZ, recepcionista
ILDAMARA
LUSA
25 a 35 anos DIRCEU, operador de
mquinas
ANTNIO, confeiteiro
VILMA, contato/atendimento
ALINE, balconista
LAS
MARCELA
35 a 45 anos JLIO, pintor de paredes
EDUARDO, carteiro
CARMEM, copeira de
hospital
CONCEIO, cozinheira
ANGLICA
NAIR
Embora todos apresentassem limitaes simblicas e culturais, sendo assim facilmente
classificveis como homens comuns, era possvel encontrar entre eles diferentes tipos analticos.
Entre os entrevistados, aqueles que no chegaram a cursar a quarta srie possuam um arsenal
cognitivo diferente daquele que chegou oitava srie. A idade tambm influenciava muito a
atitude dos entrevistados.
Desta maneira, possvel subdividir os participantes em trs grupos. O primeiro seria
composto pelos entrevistados que apresentavam maior conhecimento sobre os assuntos em geral
e conseqentemente a respeito da poltica. Estes mostravam muita desenvoltura durante as
entrevistas e nas entrelinhas percebamos que estvamos diante de pessoas com certo esprito de
liderana entre os seus pares, possuam capacidade de influenciar. Neste grupo podemos citar:
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Eduardo, Dirceu, Antnio e Jlio. Estes entrevistados, dentro da limitao imposta pelo carter
do homem comum, mostraram-se mais universalistas.
Um segundo grupo era composto por participantes que apresentavam menor engajamento
social e poltico, demonstrando ateno aos assuntos da poltica apenas no momento eleitoral.
Em suas entrevistas, costumavam reproduzir trechos de conversas com amigos que gozavam de
certa autoridade e de notcias de televiso como orientaes da atitude. Este grupo era formado
basicamente por mulheres: Nair, Conceio, Vilma, Claudia, Marcela, Lusa, Las e o rapaz
Pedro. O terceiro grupo de participantes era arredio poltica, os entrevistados no tinham
qualquer tipo de informao ou ao sobre o assunto. Apresentando pouqussimos recursos
cognitivos e baixssimo engajamento poltico, a conversa com eles no desenvolvia, parecendo
ser-lhes um verdadeiro enfado. Em seus depoimentos percebe-se muita hostilidade e indiferena.
Este grupo era formado basicamente pelos entrevistados de recursos cognitivos mais escassos
como: Aline, Ildamara, Ricardo, Bianca, Carmem e Anglica.
Contudo importante frisar que, embora possam ser divididos em subgrupos, os
participantes formam um conjunto socialmente delimitado. So pessoas que repartem
experincias de vida comuns, como ser possvel verificar no terceiro captulo.
Esta primeira parte do trabalho tem a funo de analisar a ideologia poltica do homem
comum, de modo a subsidiar com informaes pertinentes a elaborao de um modelo de
processamento de mensagens polticas e eleitorais, objetivo final desta tese. A primeira premissa
do modelo que est sendo elaborado aponta que os homens comuns selecionam e processam as
mensagens polticas e eleitorais a partir de sua ideologia poltica.
A parte I est subdividida em dois captulos. No primeiro captulo, a inteno
apresentar o conceito de ideologia poltica que ser adotado nesta pesquisa. O segundo captulo
consta de uma anlise das principais idias polticas apresentadas pelos homens comuns ao longo
das entrevistas em profundidade. Nesta introduo, o objetivo apresentar os homens e mulheres
comuns entrevistados, abordando aspectos da vida privada e idias polticas.
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Vamos primeiramente apresentar as mulheres comuns. Anglica dona-de-casa. Tem
quarenta e cinco anos, um filho, uma filha e o marido, porteiro, ento desempregado. Mora em
uma casa pequena, de fundos, mas prpria. Ela filha de pai militar. A me morreu em
decorrncia de problemas de parto, quando ela e seus quatro irmos ainda eram crianas.
Estudou at a oitava srie. Nesta ocasio, o pai dispensou a empregada para que a menina
assumisse as responsabilidades do lar. A austeridade do pai vista como algo a ser admirado,
homem que nunca casou de novo e criou todos os filhos. Anglica ajudou na criao dos
irmos, se casou e cumpriu o destino que o pai lhe traara na adolescncia. possvel perceber
ressentimento em relao aos limites que lhe foram impostos, mas existe tambm um sentimento
de prazer, de realizao em relao ao passado.
A trajetria de vida de Nair muito parecida com a de Anglica. Nair tem 43 anos, um
filho de 22 anos, uma filha de 14 anos e o marido, motorista de nibus. O pai tinha uma
carvoaria e a me era dona-de-casa. Parou de estudar ainda na quarta srie. Meu pai era daquele
tipo que achava que mulher tinha que casar e fazer almoo, jantar, trabalhar em casa. O
relacionamento de Nair com seus pais de rejeio. A minha me era to bobinha, coitadinha.
Meu pai nunca se preocupou se a gente tinha roupa, se a gente tinha sapato. E o danado do velho
era patro, tinha empregado, ento tinha dinheiro. Hoje, Nair mora em uma casa pequena, de
fundos, a qual denomina de barraco. Contudo, em curto prazo, o seu futuro parece ser mais
promissor que o de Anglica. Com a ajuda do filho, tambm motorista de nibus, Nair e o
marido compraram um terreno e comearam a construir uma casa maior.
Pertencentes mesma classe social e com trajetrias semelhantes, as duas mulheres so
conservadoras em relao aos seus princpios. Quando o assunto era eleio, as duas
manifestaram temer a desordem em um possvel futuro governo de Lula. Contudo, apresentavam
intenes de voto diferentes. primeira vista, a deciso do voto das mulheres colocava em
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xeque a teoria econmica satisfacionista do voto2. Anglica tem um marido desempregado e
vota em Fernando Henrique. Nair acabou de comprar um terreno com o qual sempre sonhou e
no vota em Fernando Henrique.
Marcela a terceira dona-de-casa do grupo. Ela tem 32 anos, um filho de cinco anos, e
divorciada. Em seu ltimo emprego, trabalhou em uma imobiliria. Contudo, h um ano tem se
dedicado criao do filho e casa. Na ocasio, morava com o filho em um apartamento
alugado. Mas seu ex-marido, funcionrio pblico, deixou atrasar uma srie de mensalidades da
escola do menino. Sob presso da direo do colgio, Marcela pediu que seu patro a demitisse
de modo que, com o dinheiro levantado, pudesse pagar o colgio. Assim o fez. O passo seguinte
foi colocar o menino em uma escola pblica, depois entregou o apartamento e voltou a morar
com os pais. Hoje, acorda pela manh, arruma a casa da me, cuida de seu filho, faz o almoo,
leva a criana ao colgio. Seu sonho voltar a trabalhar, mas no acredita que isso seja possvel
a curto ou mdio prazo. Sua me no se dispe a cuidar da criana e no permite que se contrate
algum para a empreitada porque no quer desconhecidos em sua casa. A soma do aluguel mais
empregada e outros custos necessrios para o seu retorno ao trabalho supera o possvel futuro
salrio.
Marcela emotiva, sonhadora, parece estar ainda espera de um prncipe. Em relao
poltica, partilha da idia de que poltico s faz para si mesmo. Contudo, acredita que Collor era
um presidente bem intencionado e que foi vtima de um compl. Acha que o governo Fernando
Henrique tem causado danos para a economia brasileira, dificultando inclusive o dia-a-dia das
pessoas. No entanto, estava assistindo o Horrio Eleitoral em busca de um candidato, quando
ficou comovida ao ver Fernando Henrique falar queles que ainda no tinham se beneficiado
com o Plano Real. Eu gostei muito, parecia que estava falando para mim.
2 A teoria econmica satisfacionista do voto sugere a regra de deciso a partir do desempenho passado dos governantes. Os eleitores avaliam a situao econmica e social e ento decidem pela permanncia ou no dos governantes. Quando a avaliao positiva, o eleitor vota no candidato do governo. Quando a avaliao negativa, o eleitor vota na oposio. (Kramer, 1971)
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Las tem 28 anos e dois filhos, de 6 e 8 anos, e vive com o marido, vendedor. Las perdeu
o pai ainda muito criana, vtima de um erro mdico. A me era do lar e sempre fez questo que
a nica filha estudasse para ter uma vida melhor. Mas Las interrompeu os estudos na oitava
srie, preferiu trabalhar e ganhar dinheiro logo. Era vendedora de uma loja de roupas at
engravidar e se casar. Como todas as demais donas-de-casa entrevistadas, Las demonstra-se
insatisfeita com sua rotina voltada para casa. Mas acredita que este seja um estgio temporrio e
que logo, com seus filhos j maiores, possa retomar o trabalho. Planeja fazer um curso no SESC
de organizao de festas infantis e trabalhar em casa mesmo, porque ainda precisa estar com os
filhos.
Em relao poltica, Las defende uma redistribuio de renda que seja feita por
instituies no-governamentais, para evitar a corrupo. Tambm fazendo ressalvas, defende os
sindicatos que devem reivindicar, desde que sem baguna. Acredita que o que vivemos no um
momento de liberdade, mas de libertinagem. Vota e gosta de Fernando Henrique, presidente
seguro que no se atm a detalhes fteis de aparncia, usa inclusive meia furada.
Lusa tem 25 anos, um filho de dois anos, e casada. O marido trabalha com a me em
uma pequena empresa familiar de refeies. Lusa filha de pai ferrovirio e me dona-de-casa.
Assim como Las e tantas outras de sua idade, estudou at a oitava srie, parou para trabalhar no
comrcio era vendedora em uma loja de bicicletas , comeou a namorar, engravidou e casou.
Namorava, me engravidei, graas a Deus meu marido assumiu a criana, e vim ser dona-de-
casa, este lindo papel. Tem gratido pelo marido, amor ao filho e uma saudade grande do tempo
em que sua vida se resumia a ganhar dinheiro na loja e gastar no salo de beleza, na academia de
ginstica e com lingeries. Para o futuro, Lusa pensa em colocar o filho no colgio, voltar a
trabalhar e a estudar.
Assim, como todas as demais mes, Lusa se orgulha da boa alimentao que pode
oferecer a seu filho. Acha muito bom poder oferecer iogurte, gelatina e carne criana. Remete
parte deste xito ao Plano Real. Lusa vota em Fernando Henrique e condena Lula por falar
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mal do presidente, a autoridade do nosso pas. Conclui ainda que isso s acontece porque o
nosso pas liberal demais.
Ildamara tem 23 anos, uma filha de um ano, e o marido funcionrio pblico. A moa
filha de pai vigia e de me dona-de-casa. Esta famlia ocupa o limite entre o que Darcy Ribeiro
(1995) chama de classe subalterna e classe oprimida, marginal. A renda familiar de dois
salrios mnimos, tendo ainda que descontar o INSS. No recebe qualquer ajuda dos pais porque
estes j criam um sobrinho, filho de uma irm que se encontra escondida do ex-marido,
presidirio que j tentou mat-la. Ildamara era empregada domstica at engravidar, agora quer
colocar a filha em uma creche para voltar a trabalhar. S o Willian (o marido) trabalhando no
d para comprar o que precisa, um guarda-roupa, um fogo melhor.
A moa acha que o governo tinha que cobrar mais impostos dos ricos para ajudar os mais
pobres. Acredita que a classe trabalhadora aquela que trabalha muito e no tem valor. Voc d
ali um duro, acorda cedo, vai trabalhar, chega em casa cansado e no tem valor. Ganha pouco.
Ildamara gosta de assistir o Horrio Eleitoral, gosta muito do programa do Lula, identificando-o
como um representante dos interesses dos mais pobres. Contudo, vai seguir o voto do marido,
optando por Fernando Henrique.
Apresentando muitas semelhanas com Ildamara no que se refere posio scio-
econmica e percepo da poltica, aparece Carmem, 44 anos, copeira da Santa Casa de
Misericrdia da cidade. A renda familiar de Carmem a soma do salrio mnimo que recebe com
a penso do marido do mesmo valor. O marido afastado por invalidez, pois sofreu um srio
acidente no frigorfico em que trabalhava. Carmem tem trs filhos e uma neta que moram com
ela em uma casa muito humilde. As entrevistas foram realizadas no hospital a pedido de
Carmem, que no se sentia vontade (por vergonha) de ser entrevistada em sua casa. Carmem
temia que sua filha mais velha engravidasse ainda menina, o que aconteceu. Agora teme que seu
filho, que no estuda e no consegue arrumar emprego, caia na rua, onde s tem coisa ruim.
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Carmem acredita que os pobres so de fato muito pouco valorizados. , tem aqueles que
faz pouco caso, que passam perto da gente e nem falam oi, nem bom dia, parece que esto
passando perto de um pedao de pedra. Gosta e confia em Lula, acredita que um candidato
que olha para os mais pobres. Acha que o governo atual no ajuda os mais precisados. Eu no
sei, tudo o Governo desconta. Igual INPS, pra eles descontarem tem que dar mais coisas pra
gente, no ?
Conceio quando deixa sua casa rumo ao trabalho, leva com ela as mesmas
preocupaes que Carmem possui em relao aos filhos. Os dois adolescentes freqentam a
escola, mas no demonstram grande interesse pelo estudo. Ela fica incomodada com os filhos na
rua. Sente no acompanh-los e control-los melhor. O seu marido era pedreiro, mas agora com
esta modernizao e exigncia na hora de arrumar trabalho s consegue arrumar funo de
servente de pedreiro. Contudo, na avaliao de Conceio, a sua vida vai bem. Recorda os
tempos difceis em que vivia na roa e s comia o que plantava. Lembro da minha me dando
manga para gente para matar a fome. Ao contrrio de Anglica e Nair, Conceio no foi
formada para o casamento, ainda criana comeou a trabalhar para ajudar a famlia. Com oito
anos a gente foi trabalhar fora e o dinheiro que a gente recebia nem punha a mo. A minha me
pegava e comprava o que precisava.
Conceio at a ltima entrevista no sabia em quem votar. O Fernando Henrique est
tirando a prioridade do povo. Eu prefiro o Lula, pelo menos gente da minha gente. A eu tenho
dois pensamentos, eu penso que quem sabe uma gente humilde poderia resolver alguma coisa e
pensando do outro lado ser que ele tem instruo, no ?
Vilma tem 34 anos e contato de uma fbrica de etiquetas. Ela solteira e sem filhos.
Experimenta uma trajetria de ascenso profissional. Eu na verdade sempre trabalhei com coisa
muito bruta, sabe? Trabalhei quase dez anos na Facit (antiga indstria de mquinas de escrever e
calculadoras) na montagem de mquinas de escritrio, depois entrei aqui na fbrica e trabalhei
seis anos na impresso de etiquetas, servio superpesado. Tinha dia que eu chorava, menina,
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um servio de homem, no tinha mulher que fizesse aquilo, minha mo fedia de gasolina por
mais que eu lavasse, minhas unhas eram pretas. Eu parecia mecnico... Depois me deram
oportunidade e fui para o atendimento a clientes. Eu adorei a idia de trabalhar mais limpa e
poder conversar com mais gente.
No campo da poltica, Vilma diz ser a favor do fechamento do Congresso, o que
representaria uma grande economia para o pas. Sobre a inteno de voto, decidiu votar em
Lula, argumenta j ter a princpio uma grande simpatia pelo PT, partido que pensa no
trabalhador.
Aline tem 32 anos, divorciada e mora com a filha de nove anos na casa da me. Ela
gerente de uma papelaria pequena que fica no bairro onde mora. Aline estava pensando em votar
em Lula, por eliminao. Descartava Fernando Henrique porque estava insatisfeita com sua
gesto, descartava Ciro e os demais candidatos porque coitados, estes no chegam l.Queria
mesmo era votar no Mrio Covas porque recentemente viu pela televiso que o governador
estava entregando centenas de casas populao carente. Ela, que sente muito no ter uma casa
sua para morar, disse ter ficado emocionada com a alegria das pessoas ao receberem as chaves.
Claudia tem 18 anos e um namorado com quem pretende se casar. H dois anos
empregada domstica; antes trabalhava em uma fbrica de sapatos. Alm de trabalhar, ela estuda
noite. Est terminando o primeiro grau. Tem muitos planos para o futuro. Pretende fazer um
curso de enfermagem e trabalhar em um hospital. Claudia avalia os candidatos a partir dos
valores que recebeu da me. Eu no sei, porque l em casa a minha me ensinou a gente a ser
de muita educao e respeito. Um homem como o presidente chamar os aposentados de
vagabundos, ele magoa as pessoas assim.A partir do mesmo princpio descarta Lula, cuja
imagem foi vinculada aos saques aos supermercados da regio Nordeste naquele perodo de seca.
Assim, Claudia acabou envolvida pelo discurso da tica na poltica apresentado por Ciro Gomes.
O discurso pela tica na poltica tambm fez com que Beatriz mudasse sua inteno de
voto. Ela a princpio votaria em Fernando Henrique, mas decidiu por Ciro Gomes. Beatriz tem
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21 anos, estudou at a oitava srie e foi trabalhar em uma loja de roupas. Recentemente fez um
curso de telefonista no Senai e agora espera ser convocada para uma empresa. Beatriz mora com
os pais e um irmo na casa da av paterna desde que sua me perdeu o emprego e no tiveram
condies de pagar mais o aluguel. Beatriz no faz planos para o futuro.
Pedro um rapaz de 21 anos, solteiro e sem filhos. Mora com os pais e trabalha com o
irmo mais velho, alugando caixas de som para festas. Porque no gostava de estudar,
interrompeu os estudos sem terminar o primeiro grau. Acha que, de modo geral, o estudo faz
falta, mas acredita que vai conseguir vencer sem ele. Demonstra-se realizado com a sua profisso
e planeja a longo prazo poder construir uma casa para morar com sua futura mulher e filhos.
Pedro no gosta do PT. Acha as invases de terra promovidas pelo MST um desrespeito
propriedade alheia. A princpio, sempre vota nos partidos PSDB e PFL. Mas desta vez o seu voto
para presidente vai para Ciro Gomes, pelo mesmo motivo manifestado por Beatriz e Claudia.
Ricardo tem 18 anos e servente de pedreiro, profisso que foi escolhida a partir do
exemplo do pai. Ricardo mora com a me e o irmo mais novo em uma casa recm-construda,
em um bairro considerado violento na cidade. Tem uma namorada com quem gosta de sair nos
fins de semana para tomar uma cerveja ou para danar nos bailes. Gosta de comprar tnis de
marca, calas com muitos e grandes bolsos e bons. Rapaz tmido, calado, mas bem humorado.
Por vezes fazia um comentrio sagaz, principalmente quando o assunto era poltica.
Ricardo no gosta de poltica, acredita que todo poltico seja corrupto. No pretende
votar em Lula, pois no gosta do candidato e nem de seu partido. Acha que Fernando Henrique
fez um bom governo, mas no o bastante que justifique sua reeleio. Por fim, decidiu votar em
Enas. Sabe que ele no vai ganhar, ento uma maneira de no se comprometer.
Antnio tem 42 anos, casado e tem dois filhos adolescentes. A mulher seu brao
direito na fabricao de tortas e salgados para festas. Antnio um sujeito de bem com a vida.
Conta que j trabalhou como servente de pedreiro e que certa vez causou espanto ao dono de
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uma obra que o viu cantando enquanto quebrava pedras. Antnio conta ainda que teve srios
problemas de relacionamento com seus pais e por isso dedica-se muito aos filhos.
Com esta postura positiva em relao vida, acha que tudo de ruim temporrio.
Acredita que o quadro poltico brasileiro marcado pela corrupo e pela ineficincia devido
falta de conscincia dos polticos e dos eleitores. Contudo, este problema comea a ser
solucionado na medida em que o povo est ficando mais educado. Acha tambm que o
desemprego um remdio amargo que estamos tomando para a estabilizao da moeda, mas
logo vai acabar e a economia retomar o seu crescimento. Antnio rejeita Lula e o PT, Brizola e
o PDT, e admira a seriedade e competncia que v em Fernando Henrique.
Dirceu tem 34 anos, casado e tem um filho de quatro anos. H 14 anos operador de
mquinas de uma empresa de pavimentao que presta servios prefeitura. Entrou no trabalho
indicado pelo seu tio que tambm era operador de mquinas. Conta que ficou constrangido
quando saiu para a rua com a mquina de distribuir asfalto, mas precisava trabalhar. Achou que
seria temporrio e est l at hoje.
Dirceu no se conformava com a idia de que o PMDB, um partido to grande, no
tivesse lanado candidato presidncia da repblica. Estava inconformado ainda com os
deputados que aprovaram o projeto que permitia a reeleio de Fernando Henrique, um projeto
que, segundo sua avaliao, em nada representava o interesse do povo. Dizia-se indeciso sobre o
voto. Dirceu no confiava em Lula, considerava-o despreparado para a funo de presidente.
Tambm no confiava em Ciro Gomes, que de certa maneira lembrava o Collor. Para presidente,
queria mesmo era poder votar em seu conterrneo Itamar Franco, cuja candidatura foi vetada
pelo seu partido PMDB.
Jlio est com 45 anos, separado e tem um filho. Mora em uma casa que foi construda
por ele no mesmo terreno em que mora quase toda a famlia. Assim tambm a casa de muitos
outros entrevistados. Jlio pintor de paredes. Nas horas de descanso, gosta de ficar
conversando e bebendo no bar perto de casa.
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Jlio acredita que a pobreza em nosso pas somente se justifica pela falta de polticas
sociais srias. Aposta no estado intervencionista ele e quase todos , que deve incentivar as
pequenas e mdias empresas via poltica fiscal. Acredita que somente desta maneira o governo
pode incentivar a gerao de emprego para os mais pobres. Teme o desemprego que pode
ocorrer com as privatizaes das estatais. Apesar de srias crticas poltica econmica do
governo Fernando Henrique, vota no presidente. Acredita que o Plano Real tambm teve um
lado bom. Hoje ele tem casa, que antes s rico tinha.
Eduardo est com 43 anos. Ele carteiro e sua mulher, Maria, lavadeira. Tm duas
filhas. A filha mais velha tem 17 anos e est terminando o segundo grau. Ela quer fazer
faculdade de Educao Fsica. A outra menina tem 14 anos e quer ser advogada. Eduardo
incentiva as filhas e segue o exemplo dos pais que o apoiaram quando decidiu deixar a vida rural
para buscar oportunidade na cidade. O primeiro emprego foi como vigia. A famlia mora em uma
casa grande e confortvel, ainda em construo, em um bairro afastado do centro da cidade.
Eduardo, assim como Dirceu, Antnio e Jlio, est entre aqueles entrevistados mais bem
informados sobre poltica. Eduardo no defende o fechamento, mas sim uma reforma no
Congresso Nacional. Deputado devia ser igual senador. No existe um senador s para cada
estado? Ento, poucos deputados. Porque aquilo um cabide de emprego, onde as pessoas
ganham rios de dinheiro e fazem pouco. Quando fazem, ainda fazem cachorrada, porque coisa
que sria vira brincadeira. Seriedade caracterstica chave para um poltico na avaliao de
Eduardo. Ele no encontra tal caracterstica em Lula, acredita que ele tenha passado por um
processo de desvirtuamento desde a poca das greves do ABC at hoje. Reclama que Fernando
Henrique no aprovou o aumento aos funcionrios pblicos e, assim, o seu salrio est hoje
muito defasado. Contudo, vai votar no presidente. A mim ele no ajudou, at atrapalhou, mas
ele trouxe a classe pobre para o consumo.
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Esta etapa teve a inteno de descrever os homens comuns e apresentar ao leitor alguns
aspectos da postura poltica dos mesmos, destacando inclusive algumas incongruncias. A
seguir, o objetivo ser apresentar o conceito de ideologia a ser adotado nesta tese.
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CAPTULO 1 O CONCEITO DE IDEOLOGIA POLTICA
O intuito deste captulo no abordar todo o debate intelectual que envolve o tema
ideologia, mas recuperar uma faceta especfica do conceito, que seja til para a interpretao do
comportamento dos homens e mulheres comuns analisados. Para isso, foram selecionados alguns
autores que podem trazer contribuies para uma definio de ideologia que atenda aos
propsitos deste trabalho.
Ao definir o conceito de ideologia poltica a ser adotado nesta pesquisa, faz-se necessrio
afastar um importante aspecto da tradio marxista, que pode conduzir a equvocos quanto ao
presente trabalho. A interpretao do conceito que cabe afastar a noo de ideologia como
falsa conscincia, ou seja, a produo de uma teia de idias que impedem os indivduos de
enxergarem a realidade de dominao na qual eles se encontram. Essa perspectiva v a ideologia
como algo que obscurece avaliaes objetivas da realidade, envolvendo debates insolveis sobre
a definio do que a realidade, que est sendo ocultada pela ideologia. Esse tambm
conhecido como o significado forte do conceito de ideologia (Stoppino, 1986). No interessa
fazer aqui qualquer julgamento sobre a realidade fundamental no percebida pelos eleitores
estudados. Ao contrrio, o objetivo do captulo precisamente identificar como eles constroem a
realidade poltica.
Na dcada de 60, desvendar a ideologia poltica dos eleitores despertou a ateno de uma
srie de autores norte-americanos, gerando verdadeiros clssicos para a literatura sobre
comportamento eleitoral. Todo este interesse se justificava pela adoo de certos pressupostos
como aquele descrito por Hyman, de que a imagem que os eleitores possuem do mundo poltico
a matria-prima da poltica (Campbell, 1964). Desta forma, analisar esta imagem passava a ser
considerado a chave para o entendimento do comportamento poltico do eleitor.
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Data desta poca uma obra de Robert Lane que influenciou muito a presente tese:
Political ideology(1962). Neste estudo, Lane investigou precisamente os tipos de crenas e
atitudes que o homem comum apresentava frente vida poltica da nao. Seu mtodo foi
marcadamente qualitativo. Entrevistou em profundidade 15 americanos, homens comuns, de uma
cidade de 100 mil habitantes, Eastport (EUA). Para o autor, ideologias so sistemas de crenas
que justificam o exerccio do poder, explicam e julgam os acontecimentos histricos, definem as
relaes entre a poltica e outros campos de atividade e fornecem uma orientao para a ao
poltica.
Lane argumenta que as ideologias so adquiridas por identificao com os grupos sociais
e que apresentam forte relao com o contexto no qual interpretada pelos eleitores. Questes
gerais da poltica s podem ser pensadas a partir de exemplos e problemas vividos pelo eleitor.
Desta forma, Lane avana na discusso e defende que no se pode dizer que o homem comum
seja distante ou passivo tal como proposto por Schumpeter (1957) e outros autores elitistas
(sobre o eleitor do regime democrtico na obra de Schumpeter, ver captulo 4). Ele ativo nas
esferas que respondem s suas demandas. Assim, as suas relaes polticas so mais ativas para
mobilizar os usos dos recursos do poder pblico em suas necessidades imediatas, do que em um
momento eleitoral, no qual o uso da poltica representativa lhe parece desconectado do seu
mundo.
Vou demonstrar mais tarde, ao analisar o material emprico, que o homem comum
analisado neste trabalho tambm significativamente ativo nas esferas da poltica que aparecem
vinculadas s muitas demandas que o mesmo apresenta em relao ao servio pblico; no
entanto, dada a relao que possui com os polticos, distante, a poltica representativa no lhe
parece em nada conectada do seu mundo.
Desde a dcada de 60, o estudo do sistema de crenas polticas tem se mostrado muito
importante para a pesquisa em cincia social. A corrente psicossociolgica veio sanar as
limitaes impostas pela corrente sociolgica de explicao dos comportamentos polticos e
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eleitorais. A corrente psicossociolgica prope a abordagem baseada na atitude poltica dos
eleitores e critica as limitaes das explicaes sobre as decises polticas baseadas apenas em
anlises dos meios sociais. Embora reconheam que os estudos sociolgicos possuem grande
valor prognstico, os autores da corrente psicossociolgica chamam a ateno para a
impossibilidade da corrente sociolgica explicar por que em determinados momentos os
indivduos contrariam as regras determinadas pelo seu meio. Acreditam que a anlise puramente
externa tende tambm a negligenciar o raciocnio desenvolvido pelo indivduo em uma tomada
de deciso, podendo presumir que duas pessoas, ao adotarem o mesmo comportamento em uma
dada situao, estejam respondendo identicamente. Porm, do ponto de vista dos indivduos, as
foras que os motivam podem no ser similares. Por exemplo, Lane (1965) mostra que pessoas
identificadas como autoritrias em uma escala de atitudes comparecem s eleies na mesma
proporo que aquelas identificadas como igualitrias. As igualitrias respondem a um senso de
dever cvico, enquanto as autoritrias respondem a uma presso do grupo social que valoriza o
comparecimento s urnas e, possivelmente, ao desejo do exerccio de um pequeno grau de poder
poltico.
Assim, somente quando a varivel psicolgica explorada e introduzida na anlise,
alguns problemas podem ser controlados. Por isso, aqui, como em Political ideology, procurar-
se- analisar os modelos de persuaso da mensagem poltica a partir do indivduo em seu
contexto social e cultural, reconhecendo ser a comunicao um processo interativo em que os
significados das mensagens variam dependendo da predisposio e experincia dos membros da
audincia.
Converse e Campbell foram uns dos fundadores da corrente psicossociolgica que estuda
o comportamento eleitoral. Converse (1964) elaborou o seu clssico modelo dos sistemas de
crenas de massa, nome que deu ao conjunto de conhecimentos e opinies sobre poltica dos
eleitores.Converse(1964) preferiu no adotar o termo "ideologia", este considerado muito
ambguo pelo autor. Em The nature of belief systems in mass publics, definiu sistema de crenas
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como uma configurao de idias e posturas na qual os elementos estariam amarrados atravs de
alguma forma de constrangimento ou interdependncia funcional. Este constrangimento em um
sistema de crenas poderia ser mensurado, variando de acordo com o grau de sucesso em
predizer outras idias e comportamentos de um indivduo a partir do conhecimento de uma
postura inicial. Para ilustrar, Converse cita o caso de uma pessoa que se manifesta oposta
expanso da seguridade social: muito provavelmente trata-se de um indivduo conservador e
tambm oposto a qualquer nacionalizao de indstrias privadas.
Para Campbell (1964), o comportamento do eleitor coerente com a maneira como
percebe o mundo da poltica, embora ele possa parecer em alguns momentos mal informado.
Campbell apontou para a necessidade de considerar o esforo individual dos eleitores para dar
ordem e coerncia a imagem que fazem da poltica. Ao misto de cognio e valores a partir do
qual os eleitores elaboram suas decises sobre a poltica, Campbell denominou de mapa
cognitivo e afetivo da poltica. Na obra de Campbell, o termo ideologia difere do conceito de
mapa cognitivo e afetivo da poltica, na medida em que se refere ao abstrato contnuo que parte
da esquerda para a direita no espectro poltico.
Os autores adeptos da corrente psicossociolgica acentuam que as lealdades partidrias e
tambm as imagens e percepes que se formam dos partidos e candidatos so determinantes na
deciso do voto. Contudo, ao longo dos anos, esta mesma equipe de pesquisadores deparou com
um problema. Os resultados a que chegaram mostravam que a identificao ideolgica/partidria
de fato guardava uma forte correlao com o voto; no entanto, era irrelevante a relao
encontrada entre identificao ideolgica/partidria e as percepes e avaliaes dos partidos,
candidatos e temas polticos.
O trabalho de Converse (1964) j indicava a existncia de apenas uma ligeira relao
entre as vrias atitudes polticas sustentadas pelo pblico em geral. Algumas pessoas podem ter
pontos de vista liberais numa questo econmica e no os ter em uma outra questo econmica,
o que apontava para uma baixa estruturao ideolgica. Assim, uma questo estava presente: Em
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que extenso as atitudes polticas esto significativamente estruturadas de maneira que o
conhecimento de uma preferncia permita predizer com sucesso outras preferncias e poder ser
esta predio realmente realizada a partir de alguma ideologia poltica? A soluo para o
problema foi encontrada pela prpria escola psicossociolgica com a elaborao do modelo de
centralidade. Em suma, o modelo prope que aquele ator que ocupa uma posio mais central em
termos de experincia urbana; em termos da situao scio-econmica ou de classe (medida por
variveis como renda, profisso, grau de escolaridade, de consumo), e em termos mais subjetivos
e psicolgicos (a percepo de estar no centro dos acontecimentos, o crescimento do horizonte
intelectual-psicolgico resultante da maior exposio a informao de todo tipo) apresenta um
maior grau de estruturao ideolgica. Estruturao ideolgica deve ser entendida como a
relao que o eleitor faz entre as opinies sobre as diversas questes em discusso na arena
poltica e a deciso do voto. 3
Andr Singer em seu livro Direita e esquerda no eleitorado brasileiro (2000) chama a
ateno para a grande influncia do quadro terico estabelecido pela escola de Michigan na
dcada de 60, o qual enfatiza a desestruturao cognitiva do eleitorado, na Cincia Poltica
brasileira, onde ainda de acordo com o autor predomina uma certa mitologia de que o povo,
particularmente os mais pobres, seria uma vtima constante de demagogos e carreiristas polticos,
independentemente do seu partido e da sua ideologia. Utilizando-se do conceito clssico de
ideologia, Singer se empenha em identificar uma lgica cognitiva no raciocnio do eleitor. De
acordo com o autor, o eleitor possui uma identidade ideolgica partidria, que deve ser vista
como um dos componentes na orientao do sufrgio.
Em seu livro Os brasileiros e a democracia (1995), Jos lvaro Moiss busca se
desvencilhar deste mito e prope que as imagens que de modo geral traduzem a cultura poltica
clientelismo, populismo, manipulao, apatia poltica, antipartidarismo e antiinstitucionalismo
3 Pesquisas realizadas no Brasil na dcada de 1970 corroboraram os resultados apresentados pela Escola de Michigan (ver discusso sobre persuaso eleitoral na Parte 3).
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no estariam imunes s transformaes econmicas, sociais e polticas verificadas nas dcadas
de 70, 80 e 90. Para isso, Moiss utiliza-se de questionrios aplicados em 1989, 1990 e 1993
para analisar a adeso aos valores democrticos, a avaliao de governos e instituies, os
modos de participao poltica e os alinhamentos partidrios. Os resultados apontam para a
formao de uma opinio pblica mais atenta aos processos polticos e evidenciam a adeso dos
pblicos de massa democracia.
Paralelamente ao desenvolvimento da corrente psicossociolgica de explicao do
comportamento eleitoral ocorria o surgimento da corrente da escolha racional do comportamento
poltico. Downs (1957) com base em sua teoria individualista e racional trabalha com o carter
utilitrio da ideologia. Para Downs, as ideologias, as identidades polticas e culturais e de valores
so reduzidos a sistemas de interesses codificados com a funo instrumental de simplificar a
aquisio e o processamento das informaes a serem utilizadas na deciso do voto.
A pesquisa apresentada neste trabalho recupera o ponto colocado por Campbell (1964), j
mencionado acima, de que preciso considerar o esforo individual dos eleitores para dar ordem
e coerncia imagem que fazem da poltica. Desta forma, embora reconhea e at mesmo
comprove as limitaes cognitivas dos homens comuns, o trabalho tem por objetivo constatar e
identificar este esforo que os eleitores fazem ao processar a propaganda poltica e ento
decidir sobre o voto.
O trabalho busca mostrar que homens comuns apresentam uma inter-relao lgica entre
suas idias e atitudes polticas que compem seu sistema de crenas. O processo do raciocnio
lgico, porm o pensamento realizado a partir de poucos conhecimentos, assim como
argumenta Popkin (1991). Popkin descreve um eleitor que utiliza as informaes recebidas
atravs da mdia e das suas experincias cotidianas para, atravs de um raciocnio prtico
baseado em informaes fragmentadas, avaliar o mundo da poltica e tomar a deciso do voto.
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Silveira (1998), ao fazer uma reviso crtica da literatura sobre comportamento eleitoral
nega a verso de racionalidade a partir de pouca informao desenvolvida por Popkin. Na
construo de seu argumento, Silveira apoia-se em Schumpeter (1957) que acredita que para o
eleitor ser considerado racional deve ser capaz de interpretar corretamente os fatos, selecionar
criticamente as informaes, relacion-las com pontos de vista e vontades politicamente
definidas e alcanar concluses claras, utilizando-se de inferncias lgicas. Silveira defende
ainda que o homem comum adota um carter associativo e afetivo quando aborda os assuntos da
poltica.
Este debate que envolve ideologia e ao racional foi profundamente abordado por
Raymond Boudon, em A Ideologia: a origem das idias recebidas (1989). O autor discute os
fundamentos de uma deciso racional que baseia-se em idias falsas ou duvidosas. Boudon
resiste postura demonstrada por Schumpeter e Silveira de atribuir aos homens comuns atitudes
que, por se fundarem em crenas e imagens fragmentadas da realidade, seriam chamadas de
irracionais. Seguindo Weber, Boudon argumenta que compreender um processo social dar
razes adequadas que expliquem as aes envolvidas em um campo de anlise.
O grande esforo de Boudon consiste no empenho em mostrar que explicaes que a
princpio levam a uma viso irracional de uma atitude, podem na verdade, encobrir
comportamentos compreensveis e racionais. Boudon argumenta que os comportamentos
individuais no so fruto de indivduos desencarnados ou de raciocnios abstratos, mas de
indivduos encontrados socialmente, membros de uma famlia e de outros grupos sociais,
dispondo de recursos econmicos e culturais. Para Boudon, necessrio reconstruir o
comportamento individual, tornando-o compreensvel e somente em ltimo caso interpret-lo
como efeito de foras irracionais.
Para Boudon, ideologia uma rede de idias que funcionam para orientar perspectivas de
escolha racional e, no entanto, podem operar a partir de premissas falsas ou duvidosas. Ao
elaborar o conceito de ideologia adequado aos conhecimentos e crenas demonstrados pelos
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homens comuns, parece importante adotar a idia de que muitas das escolhas realizadas pelos
mesmos so fundamentadas em premissas falsas e duvidosas. As idias recebidas que entram na
composio das ideologias podem emergir normalmente em seu esprito sem que sejam fruto de
insensatez ou de foras obscuras. Com muita freqncia, a adeso s idias recebidas pode ser
explicada como um ato compreensvel.
Assim, Boudon sustenta que quando um comportamento estranho nos provoca espanto
porque o abordamos com disposies que tornam este comportamento ininteligvel para ns.
Neste caso, diz ser preciso tomar conscincia daquilo em ns mesmos que impede a
compreenso do outro. Para Boudon, o estgio de pr-saber do pesquisador pode conduzir a
respostas errneas, mesmo no que tange a questes extremamente elementares sobre o seu objeto
de pesquisa.
Ao elaborar sua teoria sobre ideologia, Boudon chama ateno para trs diferentes efeitos
que devem ser considerados no estudo de fenmenos ideolgicos. O primeiro efeito ele
denomina de efeito de posio e disposio ou efeito de situao. A resultante de tal efeito
implica que o ator social tende a perceber a realidade no como ela , mas de maneira parcial. A
partir de sua localizao social o homem elabora a sua percepo dos fatos. Este efeito de
situao importante por ser capaz de explicar em muitas situaes por que um ator aderiu a
uma idia falsa ou duvidosa.
Deste modo, um banqueiro tem possibilidade de perceber os fenmenos monetrios de maneira distinta de um professor de grego e os interpretar sem dvida diferentemente caso tenha estado ou no exposto s idias de Keynes (Boudon, 1989, pp95-96)
Os efeitos de comunicao representam uma segunda categoria de efeitos essencial para a
analise dos fenmenos ideolgicos. Boudon argumenta parecer racional que aquele que no seja
fsico deva tratar as idias da fsica como caixas pretas que sero consideradas como verdadeiras
ou falsas, no porque reproduziu em si mesmo os procedimentos que permitem julg-las
verdadeiras ou falsas, mas porque as pessoas competentes neste domnio as tm por verdadeiras
ou falsas. Desta maneira, Boudon prope que, segundo a posio que ocupamos no espao
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social, trataremos certas idias como caixas brancas ou caixas pretas. claro que poderamos,
em vez de ouvir o especialista, nos dedicar a qualquer assunto de nosso desconhecimento para
chegar caixa branca, mas tal atitude no seria racional. Talvez seria se a assimilao do
conhecimento fosse um processo de rapidez infinita, o que no real. Desta forma, Boudon
conclui que em todos os casos em que aparece uma relao de comunicao de mo nica entre
uma idia e um pblico, e em que o pblico em questo no dispe de recursos de forma
oportuna e competente para tratar a teoria como uma caixa branca, um efeito de autoridade se
desenvolver normalmente.
Em resumo, podemos endossar uma teoria assim como escolhemos um eletrodomstico. Para comprar um aparelho de televiso, nenhum consumidor teria a idia de sond-lo para verificar se as peas so de boa qualidade e se esto corretamente montadas. mais provvel que se contente em verificar se a imagem boa.Talvez tambm interprete a marca como sendo uma garantia de qualidade. Evidentemente, estas verificaes e garantia no bastam para lhe dar a certeza de que o aparelho funcionar segundo o seu desejo, durante longos anos. Mas uma verificao mais cuidadosa e metdica no somente seria muito cara, mas suporia um saber que o consumidor muito provavelmente no domina. (Boudon, 1989, p.110)
A abordagem que Boudon faz do efeito de comunicao remete obra de Schutz (1974).
Para Schutz e para toda a fenomenologia, o mundo social criado e reproduzido pela repetio
dos cursos de ao, que se sedimentam atravs da rotinizao. Nas experincias cotidianas
vividas e transmitidas pelo e para os agentes sociais se forma o estoque de conhecimentos. Este
o conhecimento que cada um dispe para compreender o mundo e dirigir suas escolhas. No
entanto, existem situaes nas quais o estoque de conhecimento incapaz de decodificar a
situao, mas a vida social se desenvolve na crena de que se o conhecimento falhar, existe
sempre outro agente capaz de interpretar e lidar com o problema. Neste momento, o ator social
lana mo do recurso ao especialista. Trata-se de um procedimento usual para enquadrar
fenmenos estranhos ao nosso quadro cognitivo. Desta forma, a rotina opera de forma a
minimizar os custos da ao.
A proposio principal dessa vertente que a atitude natural o elemento que rege todos
os procedimentos cognitivos dos agentes. Isso significa que os agentes sociais procuram sempre
enquadrar os fenmenos do mundo ao seu universo de experincias rotinizadas. Caso isso no
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seja possvel, o agente procurar resolver a explicao dos fatos recorrentes experincia de
outro agente ou rejeitando o fenmeno.Ao evocar os efeitos de posio e disposio, assim como
os efeitos de comunicao, Boudon cria um tipo de ator social que pode ser resumido na noo
de racionalidade situada.
Para concluir a sua teoria de ideologia restrita, Boudon trata ainda de um terceiro efeito
que denomina de efeito epistemolgico. Diferente dos dois primeiros que esto voltados para os
receptores das idias recebidas, este efeito est centrado nos produtores das idias.
A partir dos trs efeitos descritos acima, Boudon elabora um esquema a fim de explicar
porque idias falsas ou duvidosas podem ser produto de comportamentos racionais Em sua teoria
de ideologia restrita, Boudon prope que a relao do produtor de idias em matria econmica e
social com a realidade uma relao de observao, estando sujeita apario de efeitos
epistemolgicos, efeitos de posio e disposio. J a relao do pblico com a realidade uma
relao de observao estando submetida a efeitos de posio e disposio. A relao do
produtor e do pblico das idias uma relao de comunicao, portanto sujeita ao efeito de
autoridade, mas tambm a efeitos de situao.O autor lembra que os efeitos apresentados no
dizem respeito a fenmenos sociais excepcionais, mas a fenmenos corriqueiros da vida
cotidiana.
Ao longo da apresentao dos conceitos de ideologia que parecem contribuir para a
anlise deste estudo, tenho proposto um momento inicial microscpico da anlise, buscando
identificar as lgicas individuais do comportamento, que em um segundo momento devem ser
agregadas no nvel macroscpico.
Quando adoto o conceito de ideologia poltica neste trabalho, me refiro a conjuntos de
noes, crenas e conhecimentos, que possuem um carter utilitrio na medida em que
possibilitam o processamento do mundo da poltica pelos homens comuns. Adoto a idia de que
tais conjuntos so a matria-prima que o homem comum utiliza para processar as informaes
sobre a disputa eleitoral e decidir o voto. A origem de tal ideologia est vinculada a duas fontes.
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As idias que integram o conjunto podem ser criadas pelo homem comum ao observar, decifrar e
viver a realidade a partir de seu prprio esprito. A vida cotidiana deve ser vista como a ncora
da realidade. As idias podem ainda ser recebidas de outros atores seja dos integrantes do seu
grupo social, mdia, propaganda poltica , estando submetidas aos efeitos de comunicao e aos
efeitos de situao, tal como descrito por Boudon.
Antes de passar anlise do material emprico, que se encontra no captulo seguinte,
gostaria de abordar ainda um conceito que tem interface com as idias de disposio (Boudon,
1989) e de estoque de conhecimento (Schutz, 1974). Trata-se do conceito de habitus
desenvolvido por Bourdieu em sua obra Economia das trocas simblicas (1992). Bourdieu usa
as mesmas noes de Boudon de posio (posio de classe) e disposio ( a definio de um
modo de vida simblico, vale dizer, de um modo de falar e agir). O habitus sobretudo a
disposio para estabelecer um campo de diferenas, por meio de uma linguagem que reconstri
a distino social, que estruturadora dos bens simblicos.
Bourdieu, no entanto, deve ser adotado com ressalvas neste trabalho, na medida em que o
autor aposta na preponderncia da estrutura sobre os agentes. A postura metodolgica adotada
neste trabalho diferente. Embora reconhea que a racionalidade e a liberdade do homem
comum so contingenciadas por inmeras estruturas que tolhem as escolhas, considero que tais
problemas so instrumentos de uma racionalidade e no de seus supressores.
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CAPTULO 2 A CONSTRUO DA IDEOLOGIA POLTICA DO HOMEM COMUM.
Este captulo est baseado nos depoimentos dos participantes das entrevistas em
profundidade. Ao longo de cinco meses, os 18 homens e mulheres comuns se dispuseram a falar
sobre suas idias polticas. Falaram sobre democracia, igualdade, liberdade, justia e governo.
Utilizaram nas suas respostas o conhecimento poltico que possuam sobre o funcionamento do
governo e a prtica da poltica.
As entrevistas foram realizadas a partir de questionrios semiestruturados de modo a
assegurar liberdade de resposta ao entrevistado e ao mesmo tempo garantir que a conversa no
perdesse o rumo (ver anexo 2). As perguntas abordadas nas entrevistas foram tiradas de dois
outros questionrios, utilizados em trabalhos anteriores. Do trabalho de Robert Lane (1962),
Political ideology, utilizamos questes capazes de abordar o conjunto de idias e valores que
orienta o comportamento poltico do homem comum. As perguntas se referiam: 1) s qualidades
pessoais do indivduo (a imagem que faz de si, como comporta-se em determinadas situaes
concretas, quais so seus valores pessoais, como se relaciona socialmente); 2) sua histria e s
suas experincias de vida (a famlia, a escola, a profisso, o dinheiro); 3) s suas idias polticas
(o que democracia, igualdade, liberdade, justia social, governo).
Utilizamos ainda algumas perguntas do questionrio para survey elaborado por Angus
Campbell para o trabalho American voter(1964). O questionrio sofreu algumas alteraes para
se adequar ao mtodo qualitativo. Neste momento interessava abordar a viso que o homem
comum possui dos candidatos, dos partidos e dos temas da disputa. Para isso, foi necessrio
sondar: 1) o nvel de exposio do indivduo mdia; 2) as presses polticas s quais est
submetido; 3) o conhecimento poltico que possui sobre o funcionamento do governo e a prtica
da poltica, e sobre os acontecimentos polticos.
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A aplicao da tcnica de entrevista em profundidade resultou em um material emprico
muito rico: noventa entrevistas, 140 horas de gravaes em fitas cassetes e mais de 1000 folhas
de transcries dos encontros. O primeiro passo foi categorizar todo o material emprico.
Ao categorizar o material emprico, foi possvel constatar a proposio de Schutz (1974)
segundo a qual os agentes sociais procuram sempre encaixar os fenmenos do mundo ao seu
universo de experincias rotinizadas. Os temas abordados nas entrevistas relacionados com
valores pessoais, experincias de vida, relao com a mdia e com o seu grupo social foram
muito desenvolvidos ao longo dos encontros. Os entrevistados no demonstraram o mesmo
desempenho ao tratarem das regras de funcionamento do governo e da prtica poltica. Mas isso
no implica que tenham tido um desempenho ruim, pelo contrrio, o material levantado aponta
que o homem comum possui um significativo estoque de conhecimento sobre os assuntos da
poltica e uma grande habilidade de vincular o tema ao seu cotidiano.
Assim como Lane (1962) verificou entre os depoimentos dos moradores de Eastport, as
respostas dos homens e mulheres pesquisados sobre os temas da poltica apresentaram forte
relao com o contexto dos eleitores. Questes gerais da poltica s podem ser pensadas a partir
de exemplos e problemas vividos pelo eleitor. Desta forma, Lane defende que no se pode dizer
que o homem comum seja distante ou passivo. Ele ativo nas esferas que respondem s suas
demandas. Assim, as suas relaes polticas so mais ativas para mobilizar os usos dos recursos
do poder pblico em suas necessidades imediatas, do que em um momento eleitoral, no qual o
uso da poltica representativa lhe parece desconectado do seu mundo.
Parece importante ressaltar que, neste trabalho, a teoria tomada como um processo, uma
matria em desenvolvimento que, gradativamente, vai tornando-se mais rica, complexa,
mostrando-se cada vez mais fcil de ser compreendida. Partindo deste princpio, a inteno
adotar