tese joao geraldo martins da cunha

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2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA JOÃO GERALDO MARTINS DA CUNHA Juízo moral, história e revolução em Kant e Fichte São Paulo 2007

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Tese

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  • 2UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    JOO GERALDO MARTINS DA CUNHA

    Juzo moral, histria e revoluoem Kant e Fichte

    So Paulo2007

  • 3UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO FILOSOFIA

    Juzo moral, histria e revoluoem Kant e Fichte

    Joo Geraldo Martins da Cunha

    Tese apresentada ao Departamento de

    Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras

    e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo para obteno do ttulo de

    Doutor em Filosofia.

    rea de Concentrao: FilosofiaOrientador: Prof. Dr. Jos Arthur Giannotti

    So Paulo2007

  • 4Aos meus pais...

  • 5AGRADECIMENTOS

    Este trabalho no poderia ter sido realizado sem a colaborao de algumas pessoas e instituies aos

    quais deixo aqui meu agradecimento.

    Ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade

    de So Paulo pela oportunidade de realizao do doutoramento.

    FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pela concesso da bolsa de

    doutorado e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.

    Ao Prof. Dr. Jos Arthur Giannotti que, em vez de apenas me orientar, preocupou-se em me fazer

    pensar sobre a natureza do trabalho filosfico; e cuja convivncia, intelectual e culinria, me tornou outra pessoa,

    pelo que sou eternamente grato.

    Ao Alberto R. Barros e Cassiano T. Rodrigues pela assistncia tcnica em assuntos de lngua inglesa.

    Aos amigos Alberto Rocha Barros, Luciano Codato e Roberto de O. Preu que, de uma forma ou outra,

    leram e discutiram este trabalho comigo.

    Minha eterna gratido aos meus pais que, mesmo distantes geogrfica e culturalmente, nunca deixaram

    de estar prximos, me apoiando no que fosse necessrio.

    Letcia, companheira de tantos anos, que alm de suportar a convivncia comigo, ainda teve

    pacincia para revisar meu texto e tentar o impossvel: tornar minha tortuosa escrita minimamente clara e

    distinta.

  • 6Em 1808, Napoleo convocou uma assemblia de

    prncipes em Erfurt, onde Goethe teve ocasio de

    conhec-lo. Na conversa, Goethe fala sobre a tragdia e a

    representao do destino a partir da idia alem de que o

    esprito o destino. Ento Napoleo responde: as

    tragdias pertencem ao passado, a uma poca mais

    sombria. Quem se ocupa hoje do destino? O destino a

    poltica. L embaixo [em Paris], a compreenso do mundo

    mais vasta.

    Heidegger

  • 7RESUMO

    CUNHA, J. G. M. Juzo moral, histria e revoluo em Kant e Fichte. 2007. 250 f. Tese(Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 2007.

    Como julgar um evento poltico? Com o advento da Revoluo Francesa duas

    perspectivas se abriram aos intelectuais alemes diante dessa pergunta: uma em nome da

    prudncia, fundada na histria emprica; outra em nome da liberdade, fundada na moral. Na

    primeira perspectiva, A. W. Rehberg, inspirado em E. Burke, acusou os revolucionrios de

    aplicarem uma teoria pura prtica poltica e, por isso mesmo, confundirem a vontade de todos,

    conceito emprico, com a vontade geral, conceito terico e puro. Na segunda perspectiva, dois

    filsofos se opuseram, Kant e Fichte, assumindo como pressuposto comum que a poltica deve ser

    julgada luz do sentido moral da histria. Para tanto, partiram de uma ligao estreita entre

    vontade e razo a partir da qual os conceitos de liberdade e finalidade deveriam ser pensados

    juntos numa espcie de escatologia moral. Mas, ao transporem a poltica da Historie para a

    Weltgeschichte, do plano dos eventos empricos para o plano do sentido necessrio da histria,

    uma segunda questo se ps: a poltica deve ser corrigida em nome da moral por meio de reforma

    ou por meio de revoluo? Embora Kant tenha visto a Revoluo Francesa como signo histrico

    do progresso moral da humanidade, isto no o impediu de conden-la juridicamente em nome do

    princpio da publicidade que, segundo ele, toda revoluo contra o poder constitudo acaba por

    violar. Fichte, por outro lado, ora defende o direito de revoluo dos indivduos contra o estado

    desptico, ora defende certo despotismo estatal, no que diz respeito ao funcionamento da

    economia, tolhendo o arbtrio individual dos cidados. Posies contraditrias e ao sabor das

    circunstncias? No creio. Sustento que a diferena entre estes dois juzos polticos de Fichte no

    impede que eles mantenham certa identidade de base. Mas se sempre em nome da liberdade que

    a poltica deve ser julgada, certamente no a liberdade dos indivduos que conta do ponto de

    vista da razo, e sim a libertao da espcie porquanto cada indivduo s pode assumir sua

    identidade no confronto e reconhecimento recproco com os outros. Ao pretender erigir um

    sistema da liberdade, fundar a razo numa atividade livre de autodeterminao, a Doutrina-da-

    cincia abriu caminho para que a liberdade moral se transformasse em libertao social e para que

    o reino dos fins chegasse Terra mediante uma escatologia da imanncia que operou uma

    reforma da revoluo.

    Palavras-Chave: Kant, Fichte, Filosofia poltica, Filosofia da histria, Juzo moral.

  • 8ABSTRACT

    CUNHA, J. G. M. Juzo moral, histria e revoluo em Kant e Fichte. 2007. 250 f. Tese(Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 2007.

    How can one judge a political event? The French Revolution opened up two perspectives

    for the German intellectuals of the period to answer such question: one under the token of prudence,

    grounded on empirical history; the other brandishing the flag of liberty, grounded on morals. From

    the former,A. W. Rehberg, inspired by E. Burke, charged the revolutionaries of applying a "pure

    theory" to political practice, and, due to the same reason, of confusing the will of all, an empirical

    concept, with the general will, a pure and theoretical concept. From the latter perspective, Kant and

    Fichte, mutually opposed, assumed as a common premise that politics ought to be judged under the

    light of the moral meaning of history. In order to accomplish this, they both started from a close

    link between will and reason from which the conceptions of liberty and finality ought to be thought

    in connection in a kind of moral Eschatology. However, when they transposed politics from

    Historie to Weltgeschichte, that is, from the domaine of empirical events to the one of the necessary

    meaning of history, a second question had to be answered: should politics be corrected for the sake

    of morals by means of a reformation or of a revolution? Even though Kant saw French Revolution

    as a historical sign of the moral progress of humanity, such a fact didn't prevent him from issuing a

    legal condemnation of it in defense of the principle of publicity a principle which, in his view,

    every revolution fledged against established sovereignty comes to violate. Fichte, on the other hand,

    sometimes defends the right of individuals to rise revolutionarily against the despotic state, but also

    seems to approve of certain forms of despotic guidance, concerning the working out of the

    economy, in the restriction of the individual will of the citizens. Could these be contradictory

    postions, suggested only by the vicissitudes of the circumstances? I don't believe so. I maintain that

    the difference that lie between these diverse Fichtean political judgments does not hinder the fact

    that they maintain a certain fundamental identity. But if it is always for the sake of liberty that

    politics ought to be judged, from the standpoint of reason it certainly is not the liberty of the

    individuals that counts, but rather the liberation of the species - for each individual can only assume

    his or her identity in contrast with and through reciprocal recognition of the others. By intending to

    build up a "system of liberty" and to ground reason on an activity free of self-determination, the

    Doctrine of Science opened up the road for the transformation of moral liberty into social liberation

    and for the "kindom of ends" to come to Earth - by means of a "Eschatology of immanence" that

    operated a reformation of the revolution.

    Palavras-Chave: Kant, Fichte, Political Philosophy, Philosophy of History, Moral Judgement.

  • 9SUMRIO

    1. INTRODUO 1

    2. A INVENO DA LIBERDADE 122.1. Juzo moral e crena 122.2. A natureza incondicional do dever 192.3. As modalidades dos imperativos 262.4. Autonomia: o vnculo entre razo e vontade 342.5. A humanidade como fim em si 442.6. O Reino dos fins entre a histria e a antropologia 522.7. Balano e Perspectivas 67

    3. JUZO POLTICO, OPNIO E REVOLUO 753.1. Espontaneidade e autodeterminao 753.2. Histria e Propriedade em A. W. Rehberg 813.3. Jacobinismo e correo moral do juzo poltico 893.4. Como julgar as revolues (Staatsverdenungen)? 943.5. Propriedade, ocupao e idealismo jurdico 1163.6. Reforma e Revoluo 136

    4. SOCIALISMO OU BARBRIE 1454.1. Poltica e reconhecimento do outro 1454.2. O direito como mediao entre natureza e liberdade 1474.3. Deduo metafsica e transcendental do conceito do direito 1514.4. Fenomenologia da liberdade e corpo prprio 1614.5. A poltica como tpica jurdica 1644.6. A motivao filosfica para o fechamento comercial do Estado 1784.7. Balano 186

    5. A LIBERDADE COMO FORMA E CONTEDO DA RAZO 1945.1. Introduo 1945.2. Tathandlung e o jogo entre interior e exterior 1975.3. Entre o cogito e a liberdade absoluta 2055.4. Juzo ttico 2215.5. Balano 228

    6. CONCLUSO 230

    REFERNCIAS 245

  • 10

    1. INTRODUO

    Quando Rosa Luxemburgo chegou a Berlim, E. Bernstein ento uma liderana

    importante no SPD (Sozialistische Partei Deutschland) publicara alguns artigos defendendo

    que o socialismo poderia ser alcanado mediante uma srie de reformas graduais dentro do

    prprio capitalismo. Entre setembro de 1898 e abril de 1899, Rosa Luxemburgo responde s

    teses de Bernstein em escritos que depois seriam editados sob o ttulo: Reforma ou

    Revoluo1. Seu argumento bsico, nestes textos, consistia em mostrar que o revisionismo

    de Bernstein significava um abandono dos princpios do socialismo cientfico (die Grundstze

    des wissenschaftlichen Sozialismus), pois com suas teses ele deixava de pensar a contradio

    bsica entre capital e trabalho (Widerspruch zwischen Kapital und Arbeit) ao sugerir, aoinvs disso, uma acomodao (Anpassung) do capitalismo s exigncias socialistas. Para

    Berstein, a economia capitalista, apoiada em um sistema de crdito, meios de comunicao e

    organizaes patronais, no caminhava em direo uma anarquia; anlise que o levou a

    rejeitar a teoria do colapso (Zusammenbruchstheorie) do capitalismo. Rosa Luxemburgo

    problematizou a anlise de Bernstein na medida em que esta a de encontro tese fundamental

    do socialismo cientfico - que pregava a necessidade da descoberta de pontos de partida

    para a realizao do socialismo nas relaes econmicas da sociedade capitalista (der

    Ansatzpunkte fr die Verwirklichung des Sozialismus in den konomischen Verhltnissen der

    kapitalistischen Gesellschaft). Nesta medida, sua crtica defendia que a teoria da acomodao

    de Bernstein pretendia fundar o socialismo no conhecimento puro (reine Erkenntnis) e, que

    por isso mesmo, no passava da retomada de uma fundao do socialismo mediante um

    conceito moral de justia (die Begrndung des Sozialismus durch moralische

    Gerechtigkeitsbegriffe), em vez de fund-lo na luta contra o modo de produo.

    Mas se estas teorias (morais) do socialismo foram verdadeiras em seu tempo,

    segundo Rosa Luxemburgo, sua retomada seria um retorno aos chinelos gastos da

    burguesia. Assim, naquele momento impunha fortemente o seguinte dilema: ou o

    revisionismo de Bernstein era correto e, ento, a transformao socialista da sociedade era

    1 Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke, vol.1, Dietz Verlag, Berlin, 1982, p.369-445. As citaes foramretiradas da verso eletrnica www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1899/sozrefrev/index.htm, autorizadapelo editor.

  • 11

    uma utopia; ou o socialismo no era uma utopia e, ento, a teoria da acomodao estava

    errada. Proferia, Rosa Luxemburgo, na poca, em tom dramtico: That is the question.

    Enquanto isso, do outro lado do Reno, outro autor, Jean Jaurs defendia a sua tese

    latina (secundria), De primis socialismi germanici lineamentis apud Lutherum, Kant, Fichte

    e Hegel (1891). Nela, destacava a existncia de uma linha de continuidade no pensamento

    alemo de Lutero a Marx e Lassalle, cujo trao caracterstico seria uma certa idia de

    liberdade, no como uma abstrata faculdade de poder escolher entre contrrios, como uma

    hipottica independncia de cada cidado tomado individualmente, mas como a verdadeira

    base da igualdade dos homens e de sua comunicao 2. Assim, segundo ele, enquanto os

    franceses tm o hbito de pensar cada vontade abstrata e isolada da ordem dos fatos, os

    alemes (desde Lutero!) vinculam a vontade individual ordem universal das coisas divinas

    e humanas3. Como os alemes sobrepem a liberdade civil e a lei civil, confundem a

    liberdade moral com o dever, elaborando uma concepo de liberdade que em economia

    poltica se tornar o socialismo4. Por conseguinte, ainda segundo Jean Jaurs, a Reforma e

    seus desdobramentos vo impregnar o gnio alemo de tal forma que enquanto os franceses

    opem a razo e a f, a liberdade individual e a fora coletiva, os alemes vo conjugar a

    religio crist com a razo, e afirmar que a liberdade de cada um s pode ser estabelecida e

    garantida graas ao poder e direito do Estado5.

    segundo este traado geral que J. Jaurs apresenta as teses de Kant e Fichte sobre a

    autoridade poltica. Assim, enquanto Bossuet, segundo J. Jaurs, ainda definia o rei como

    Deus ele mesmo sobre a terra, Kant e Fichte se alinhavam uma concepo moderna do

    poder segundo a qual, vrias vontades fracas fazem uma vontade forte6. Desta maneira, o

    pacto social seria constitudo por um contrato que existe na razo, mas no no tempo. Pelo

    fato de que todos os poderes existentes se apiam sobre a base dissimulada do contrato, Kant

    deduziu que a rebelio contra estes poderes sempre um crime, pois material e moralmente a

    potncia dirigente tira sua origem de alguma forma do povo7. Em todo caso, a rebelio seria

    um suicdio na medida mesma em que o poder poltico no reside na justaposio de vontades

    individuais, mas numa vontade ntima e racional. Se Kant de alguma forma conciliou o

    individualismo e o socialismo, segundo J. Jaurs, por conta deste modo alemo de pensar a

    2 Jean Jaurs, Les orgines du socialisme allemand, trad. Adrien Veber, Paris, Les crivans Runis, 1927, p.13-4.3 Ibid., p.22.4 Por isso j em Lutero encontramos a idia de que a fecundao do dinheiro uma coisa contra a natureza,ibid., p.27.5 Ibid., p.35.6 Ibid., p.42.7 Ibid., p.46.

  • 12

    liberdade e a vontade, Fichte teria conciliado a anarquia e o socialismo, na medida mesma

    em que no separou a economia da poltica8.

    Mutatis mutandis, cerca de cem anos antes das publicaes de Rosa Luxemburgo e

    Jean Jaurs, o debate filosfico e poltico motivado pela Revoluo francesa opunha dois

    importantes filsofos alemes: Kant e Fichte. Embora suas filosofias prticas de fato estejam

    em certa linha de continuidade como afirma, em termos gerais, a tese de Jaurs , elas se

    afastam significativamente em 1793 acerca da da reforma ou da revoluo da sociedade em

    vista da realizao do conceito de reino dos fins. Entendo que as diferenas entre Kant e

    Fichte no plano jus-filosfico do direito de revoluo no impede que ambos estejam, de certo

    modo, uma mesma distncia do debate posterior entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein.

    Assim, entre a virada do sculo XIX e a virada do sculo XX, vai a distncia da reforma na

    idia de revoluo. Tanto o revisionismo de Bernstein, quanto a teoria do colapso do

    capitalismo, defendida por Rosa Luxemburgo, supem que o reino dos fins como

    formao social e poltica justa est num futuro, mais prximo ou mais distante, da histria

    humana. Ao passo que as posies de Kant e Fichte afirmam, respectivamente, ou que a

    rebelio um crime, ou que o direito de revoluo um direito inalienvel do homem; de

    qualquer maneira, sempre um posicionamento poltico em nome de uma idia reguladora da

    histria no sentido preciso que Kant d a este termo9.

    Nesta tese, pretendo defender que um passo na transformao do escopo da vida

    poltica, de idia reguladora para resultado da histria, foi dado por Fichte quando radicalizou

    a vinculao estabelecida por Kant entre vontade e razo (num sentido bastante prximo da

    indicao genrica de J. Jaurs). Como afirma Droz, de todos os escritores alemes que

    especularam sobre a revoluo francesa, Fichte , sem dvida, o nico que refletiu sobre o

    assunto como fato histrico: a revoluo francesa que determinou a sua vocao

    intelectual10. S posso entender esta afirmao no sentido dado por M. Gueroult, segundo o

    qual a revoluo francesa no foi um amontoado de doutrinas cambiantes, mas, sobretudo,

    uma vontade de libertao que as doutrinas filosficas tiveram por misso expressar de modo

    tcnico. Neste sentido, a caracterstica essencial do fato revolucionrio, que constituiu a

    8 Ibid., p.51 e 53.9 Neste sentido sintomtica a leitura de L. Goldmann, segundo a qual (diante da questo, h algum meio para ohomem emprico atingir o incondicionado, o soberano bem?), Em seus principais representantes, Fichte,Schelling e Hegel, do mesmo modo que em seu herdeiro materialista, Marx, o idealismo alemo foi umatentativa de responder positivamente a essa questo, Origem da dialtica, a comunidade humana e o universoem Kant, Trad. Haroldo Santiago, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.251.10 Jacques Droz, Histoire gnrale du socialisme, t. 1, Paris, PUF, 1972, p.411. Cf. Martial Gueroult, Fichte etla Rvolution franaise, in: tudes sur Fichte, Paris, Aubier, 1974, p.153.

  • 13

    motivao filosfica fundamental de Fichte, foi a idia de que o poder prtico da liberdade

    permite a converso imediata da especulao poltica em Vorbild da realidade11.

    bem verdade que a avaliao da relao entre o pensamento alemo e a revoluo

    francesa, pelo menos para certa tradio (de Rosa Luxemburgo e Jean Jaurs e mesmo

    Jacques Droz) gira em torno da clssica afirmao de Marx e Engels, segundo a qual os

    burgueses alemes, presos aos seus mesquinhos interesses locais, ficaram entre seu

    provincianismo econmico e sua presuno cosmopolita12. No juzo de Droz, que apenas

    ratifica a afirmao geral de Rosa Luxemburgo acerca do socialismo moral, a Revoluo

    aparecia como um fato metafsico, e quando os alemes encararam os princpios da liberdade

    e igualdade, fizeram-no no plano tico, e no no da poltica efetiva13. Mais ainda, escritos

    como as Consideraes de Fichte, as Cartas estticas de Schiller (entre outros), demonstram

    a impotncia da intelectualidade alem em apreender o contedo da revoluo francesa e

    plasm-lo na vida, limitando-a to somente esfera do pensamento14. E para expressar a

    nostalgia de uma gerao que foi incapaz de formar uma ptria terrestre, Droz cita Hlderlin:

    Alemes, converte-os em gregos e obtereis uma ptria alem. Neste cenrio, qual foi o juzo

    poltico de Fichte diante da Revoluo francesa? E at que ponto suas anlises, tanto

    especulativas quanto polticas, permitiram que o reino dos fins chegasse Terra? Podemos

    encontrar, nos anos de Iena, em particular, um denominador comum em suas posies

    polticas que possa ter contribudo para a transformao do socialismo moral em

    socialismo cientfico? E, caso Fichte tenha contribudo de alguma forma para tanto, at que

    ponto no foi influenciado por Kant? Dito de outro modo, at que ponto um deslocamento na

    relao estabelecida por Kant entre vontade e razo no foi determinante para a transformao

    da poltica em filosofia da histria? Eis as questes gerais que norteiam este trabalho.

    * * *

    As mudanas na posio poltica de Fichte podem ser explicadas por fatores externos

    invases napolenicas, por exemplo bem como por fatores imanentes ao percurso de sua

    produo filosfica; neste segundo caso, temos de supor certa correlao entre as variaes de

    sua filosofia poltica e aquelas de sua filosofia terica para dar um sentido s primeiras. Para

    11 Martial Gueroult, idem, p.154.12 Marx & Engels, Die Deutsche Ideologie, I. Feuerbach, in: Werke, vol.3, Berlim, Dietz Verlag, 1958, p.177.13 J. Droz, LAllemagne et La Rvolution Francaise, p.9, apud, Ricardo R. Terra, Passagens, estudos sobre afilosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p.102.

  • 14

    alguns, como X. Leon, por exemplo, tais transformaes poderiam ser alinhadas numa

    seqncia de continuidade e explicadas por razes estruturais inerentes ao sistema filosfico

    em questo; para outros, como A. Philonenko e seus seguidores, a obra tanto especulativa

    quanto poltica de Fichte s pode ser vista e compreendida a partir de uma ruptura entre as

    posies de juventude dos anos 1793-1797 e a produo de 1800 em diante. De fato, no que

    diz respeito ao plano poltico, difcil ver como a posio libertria de 1793, presente nas

    Contribuies para retificar o juzo pblico sobre a Revoluo francesa, possa ser

    aproximada da exaltao do maquiavelismo dos anos 1806-7 para ficarmos em dois casos

    extremos de sua reflexo poltica. Alm do mais, a compreenso do Estado a partir de uma

    anlise do direito natural entre os anos 1796-1800, tanto no Fundamento do direito natural

    quanto no Estado comercialmente fechado, no parece se coadunar com nenhuma destas

    posies extremas. Por outro lado, apesar destas discrepncias, Fichte sempre insistiu que no

    havia mudado de posio, nem em poltica nem no que diz respeito aos princpios

    especulativos de seu sistema, quando de seu intenso debate com Schelling. Como

    compreender esta distncia entre as prprias declaraes de Fichte e seus intrpretes mais

    cticos no que diz respeito ao seu posicionamento poltico? Esta questo no nada marginal

    num autor como Fichte que pretende ter erigido o sistema da liberdade, ter feito da liberdade

    o centro do sistema especulativo na exata medida em que a supe no ncleo da prpria

    racionalidade.

    Penso poder contribuir para este debate, no que diz respeito filosofia poltica, a partir

    da explicitao do voluntarismo subjacente aos juzos polticos de Fichte entre 1793 e 1800.

    Neste sentido, pretendo mostrar que tais mudanas, nada desprezveis, tm como

    denominador comum uma compreenso muito peculiar da vontade como poder de

    autodeterminao da razo. Neste sentido, o vetor que indicaria a direo geral das posies

    polticas de resto certamente influenciadas pelas circunstncias polticas da Europa de ento

    est numa forma de voluntarismo de base, muito peculiar, assumido implcita ou

    explicitamente por Fichte. Mais ainda, o compromisso com uma concepo kantiana de

    vontade, como poder da razo em determinar por si mesma o querer, a despeito das posies

    polticas do prprio Kant, vai implicar uma espcie de negao da esfera poltica. Assim, seja

    na posio libertria de 1793, seja na doutrina do fechamento comercial do Estado de 1800, o

    juzo poltico que expressa estas diferentes posies est atravessado de uma racionalidade

    que se pe como vontade para a qual o estado apenas meio de efetivao da liberdade do

    14 J. Droz, La formacin de la unidad alemana,1789-1871, trad. Miguel L. Remedios, Barcelona, Ed. Vincens-vives, 1973, p.28.

  • 15

    homem. Em outras palavras, suponho que possvel mostrar como, de diferentes maneiras, a

    prudncia sempre acaba por perder espao na considerao do estatuto do juzo poltico do

    juzo que tem por tema a poltica para uma filosofia da histria ou para uma deduo

    jurdica do Estado. No que Fichte parece seguir, a seu modo, algumas lies da filosofia

    prtica de Kant.

    Esquematizando, sob o risco de apresentar apenas uma caricatura, posso dizer que a

    poltica em Fichte vista exclusivamente sob o ngulo do estado, praticamente reduzida ao

    estado, e nisto est exatamente sua negao como esfera prpria de jogo e disputa pelo poder,

    separada tanto da sociedade civil quanto do estado organizado juridicamente15. Como a

    compreenso da poltica se limita ao estado, a especulao filosfica sobre a primeira acaba

    por se restringir a uma anlise do segundo: seja por meio de uma deduo a priori de seu

    conceito a partir do direito natural, e neste caso a poltica aparece como tpica jurdica, seja

    pelo foco de uma filosofia da histria (como discurso sobre o sentido necessrio da histria)

    que pretende eliminar as vicissitudes circunstanciais da histria em vista da consumao da

    liberdade, e, neste caso, a poltica substituda pela histria em nome da moral. De qualquer

    forma, o juzo poltico sempre parece manter como fundamento um a priori transcendental

    que o torna impermevel s consideraes de prudncia. Nesta medida, o juzo poltico fica

    submetido a um critrio moral de regulao. Pode-se ver a, na esteira de Hegel, apenas uma

    considerao abstrata e formal do estado e da prpria poltica. Mas o que particularmente me

    interessa nas posies polticas de Fichte (e de Kant, na medida em que podem esclarecer os

    esquemas conceituais de Fichte), o voluntarismo de base que alimenta essa negao da

    esfera poltica e que pode indicar o que h de constante nos diferentes juzos polticos

    proferidos por ele.

    Caso esta hiptese venha a se confirmar, as diferenas de Fichte em relao s

    posies polticas de Kant me parecem significativas de um deslocamento que foi operado na

    filosofia poltica entre o final do sculo XVIII e meados do sculo XIX. Neste sentido, posso

    dizer que os marcos conceituais mais amplos, o horizonte no qual minhas anlises se inserem,

    a questo de saber como o advento do Reino dos fins pde ser posto e pensado como fim

    realizvel neste mundo. Quais deslocamentos conceituais foram necessrios para que o

    projeto de uma sociedade justa deixasse de ser uma idia reguladora da histria, como o

    15 Rosanvallon, analisando o quadro histrico geral da poltica francesa desde 1789, mostra como a democracia uma espcie de projeto inacabado na medida em que as solues para os conflitos acabam por constituir umaespcie de negao da poltica. Caso suas analises estejam corretas, no difcil pensar que Fichte representa, noplano filosfico e especulativo, uma tentativa de superao dos impasses em torno da soberania e da

  • 16

    caso em Kant, para se tornar o resultado do jogo de foras poltico-econmico, como alguns

    textos de Marx deixam entrever? Evidentemente que a amplitude histrico-filosfica desta

    questo impediria seu tratamento adequado no doutoramento e destarte me vi obrigado a

    limit-la de algum modo. Assim, penso que o processo de uma reforma da revoluo passou

    necessariamente pela filosofia poltica de Fichte. Afinal, para que a revoluo deixasse de

    designar uma mudana moral do carter, como pensava Kant, para designar uma ruptura do

    processo scio-econmico marcando um fim da pr-histria e um comeo da histria da

    liberdade, em outras palavras, para que o Reino dos fins chegasse terra, a poltica teve de

    ser pensada sob a influncia de um conceito peculiar de vontade.

    Ainda no plano histrico mais geral de considerao, o clssico trabalho de R.

    Koselleck, Crtica e Crise, pode dar uma indicao sugestiva acerca deste horizonte que

    minhas anlises de alguma forma pressupem. Sua tese geral afirma que o processo crtico

    do Iluminismo conjurou a crise na medida em que o sentido poltico dessa crise permaneceu

    encoberto. A crise se agravava na medida mesma em que a filosofia da histria a

    obscurecia16. Nesta linha, Kant e Fichte podem ser vistos como a cristalizao, no final do

    sculo XVIII, deste movimento pelo qual a histria alienada pela filosofia da histria, no

    qual a crise desencadeada por conta do processo que a moral se empenha em mover contra a

    histria.

    * * *

    Como foi Kant o autor do conceito de vontade como poder de auto-determinao da

    razo, e, alm disso, quem apresentou a formulao mais completa do Reino dos fins na

    filosofia moderna, cabe saber em qual direo precisa Fichte radicalizou a filosofia crtica.

    Certamente Fichte no se afasta muito de Kant no que respeita ao tema de uma idia

    reguladora a funcionar como telos da histria, mas nem por isso deixa de ser significativo o

    voluntarismo que ele imprime ao seu sistema filosfico, fazendo da razo prtica a matriz de

    qualquer racionalidade, por meio de uma dialtica da determinao recproca, como terei

    ocasio de mostrar no ltimo captulo. nisto, a meu ver, que reside sua contribuio para

    aquela mudana de registro do pensamento poltico afirmada acima, afinal, com a Doutrina-

    representao no mesmo sentido desta indicao histrica geral. La Dmocratie Inacheve, Paris, Gallimard,2000

  • 17

    da-cincia no s o conceito de vontade vai ser inteiramente determinado por aquele de

    liberdade, como esta ltima torna-se o eixo a partir do qual toda a filosofia se articula. O

    compromisso de se pensar uma liberdade total, que desde o ncleo da razo deve plasmar a

    totalidade do mundo, faz de Fichte um captulo considervel daquele horizonte, que aqui s

    posso indicar distncia, de uma reforma na compreenso da revoluo. Por outro lado,

    certamente a filosofia prtica de Kant a referncia a partir da qual poderei realar as

    articulaes entre o pensamento poltico de Fichte e seu sistema especulativo. Consoante a

    este horizonte geral, portanto, procurei mostrar como a relao entre vontade e razo em Kant

    acaba por influir no projeto filosfico e poltico de Fichte.

    * * *

    No primeiro captulo, pretendo mostrar o que considero ser um tema importante que

    Fichte incorpora da filosofia kantiana, a saber, o vnculo entre vontade e razo; e,

    paralelamente, a relao entre liberdade e finalidade. Alm disso, apresento o padro de

    incidncia do conceito de reino dos fins, tal como este figura na segunda formulao do

    imperativo categrico da Fundamentao da Metafsica dos Costumes, sobre a concepo de

    histria dos escritos polticos de Kant, notadamente na Idia de uma histria universal de um

    posto de vista cosmopolita e em paz perptua. Para tanto, comeo por uma anlise acerca

    do estatuto do discurso sobre a histria, entre o juzo apodctico da cincia e o juzo

    problemtico da opinio. Desta forma, creio poder indicar as principais chaves de leitura

    para a compreenso da filosofia poltica de Fichte que vo se seguir nos captulos posteriores.

    No segundo captulo, apresento a tese geral de A. W. Rehberg, como representante do

    pensamento reacionrio na Prssia de ento, tendo em vista sua posio estratgica entre Kant

    e Fichte. Depois discuto a defesa feita por Fichte do direito de revoluo contida nas

    Consideraes de 1793 como resposta aos argumentos de Rehberg. Deste debate ressalta as

    diferenas entre Kant e Fichte acerca de trs conceitos bsicos da filosofia poltica: estado de

    natureza, contrato e propriedade.

    No terceiro captulo, para mostrar como o voluntarismo se manifesta de mais de uma

    maneira em Fichte, apresento a deduo do conceito do direito e de seu objeto a

    comunidade poltica no Fundamento do direito natural de 1796, como contraponto s

    posies polticas de 1793. Desta vez o voluntarismo da filosofia poltica de Fichte depende

    16 Reinhart Koselleck, Crtica e Crise, trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco, Rio de Janeiro, Contraponto,1999, p.13.

  • 18

    da idia de um reconhecimento recproco entre os indivduos, que expresso nas anlises do

    corpo como fenmeno sensvel da liberdade. Esta fundao do direito e, por conseguinte,

    transformao da poltica em tpica jurdica, ser refletida na elaborao das teses acerca do

    fechamento comercial do estado em 1800.

    No quarto e ltimo captulo, mostro como a razo entendida na Doutrina-da-cincia

    de 1794 em relao estreita com a vontade e, alm disso, em qual sentido podemos falar numa

    liberdade total em Fichte. Uma vez que pretendo defender que h um denominador comum

    que perpassa as diferentes posies polticas de Fichte, entre 1793 e 1800, e este denominador

    est numa compreenso da vontade como poder de autodeterminao da razo, ento

    preciso mostrar que este elemento est presente desde os primeiros escritos especulativos de

    Fichte. Neste sentido, se justifica a escolha da primeira exposio mais sistemtica e completa

    da idia de uma liberdade total, uma liberdade como forma e contedo da conscincia que o

    escrito de 1794 sobre os princpios da Doutrina-da-cincia.

    * * *

  • 19

    2. A INVENO DA LIBERDADE

    O que o autor pede aqui a Kant uma liberdade no

    escamoteada, uma liberdade para agir e para animar

    a prxis histrica.

    Se a empresa como toda empresa filosfica

    permanece incerta, a culpa no a do jovem filsofo

    de hoje, mas da velha Esfinge, toda sugestes e

    reticncias, que jamais foi at o fim das direes que

    indicava e tornou assim possvel... o ps-kantismo.

    Lebrun

    O compromisso com a idia de uma liberdade total, que desde o ncleo da razo deve

    plasmar a realidade do mundo, faz de Fichte um herdeiro direto do projeto crtico de Kant.

    Antes de apresentar este compromisso nos textos do prprio Fichte, pretendo mostrar qual a

    herana kantiana que ele carrega, i.e., os pressupostos que incorpora e os problemas que

    assume. Por isso mesmo, o tema deste captulo mostrar a conexo entre os conceitos de

    vontade e razo na filosofia prtica de Kant e, paralelamente, o vnculo entre liberdade e

    finalidade, a partir de uma anlise das formulaes do imperativo categrico. Basicamente,

    pretendo defender a idia geral segundo a qual uma das conseqncias de se pensar a vontade

    como autonomia, i.e., como autodeterminao da razo17, a submisso da doutrina poltica

    ao juzo moral e, por meio deste, a uma filosofia da histria que subsume o processo histrico

    idia de totalidade. Para tanto, a noo de reino dos fins vai constituir o elemento central de

    minha anlise para o qual meus argumentos vo confluir na medida em que pode articular

    a trama entre moralidade e escatologia.

    A questo que vai guiar meu comentrio a de saber o que difere a vinculao crtica

    entre moralidade e finalidade, em relao a uma posio, por assim dizer, dogmtica, que

    supe uma ordenao teleolgica do mundo a partir da qual o dever moral poderia se impor.

    17 bem verdade, como bem mostrou Myriam Bienenstock que Kant reserva, preferencialmente, a noo deautodeterminao (Selbstbestimmung) para o campo terico. No campo prtico, em geral ele utiliza apenas anoo de autonomia (Selbstgesetzgebung), Lthique fichtenne: autonomia ou autodtermination, in:Recherches sur la philosophie et la langage, 2003, nmero 22, p.96 ss. Mas o que pretendo destacar ainterpretao que Fichte faz da autonomia (como autodeterminao). Neste caso, a autora tem razo em afirmarque Fichte tambm diferencia os conceitos na Sittenlehre de 1798 (fundando a autonomia na autodeterminao).

  • 20

    De sada, podemos lembrar a operao crtica de inverso desses fatores quando, por

    exemplo, Kant afirma na Religio que a moral no tem nenhuma necessidade em se apoiar

    na religio, nem objetivamente, no que diz respeito ao querer, nem subjetivamente, no que

    concerne ao poder 18. Alm disso, do ponto de vista crtico, a moral no precisa da

    representao de um fim para a determinao da vontade, ainda que tenha uma referncia

    (Beziehung) necessria a um fim19. No que se segue, cabe investigar o teor desta distino (a

    saber, entre a determinao da vontade por um fim e a referncia da vontade a um fim) e ver

    exatamente o que a inverso na relao entre moralidade e finalidade pode implicar para a

    doutrina poltica de Kant. Em suma, pretendo apresentar os argumentos que possam justificar

    trs asseres fundamentais: (i) a vinculao entre liberdade e finalidade deriva do conceito

    de vontade como autonomia; (ii) desta vinculao resulta a submisso da doutrina poltica

    moral e filosofia da histria; (iii) a relao entre moralidade e finalidade pode ser

    esclarecida pelo conceito de reino dos fins (e, portanto, podemos pensar que no prprio

    funcionamento do juzo moral em Kant temos uma considerao escatolgica que configura a

    raiz a partir da qual histria e poltica se entrelaam). Assim, caso estas trs asseres possam

    ser confirmadas pelos textos de Kant, como pretendo mostrar, poderemos entender melhor o

    juzo deste filsofo acerca dos eventos polticos de seu tempo, notadamente, quanto

    Revoluo Francesa. Parece-me, pois, por fim, que estas asseres constituem os pressupostos

    e problemas fundamentais herdados por Fichte quando tenta pensar a noo de uma liberdade

    total como ncleo da razo tema que terei ocasio de analisar nos captulos posteriores20.

    2.1. O juzo moral e a crena.

    Mas no plano especulativo a liberdade pensada como autodeterminao, e o conceito moral de autonomia no seno a aplicao do primeiro ao tema do dever.18 Os textos de Kant sero citados, salvo indicao em contrrio, a partir da edio W. Weischedel, Werke inzehn Bnden, Darmstad, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983; e referidos paginao da Academia. Astradues, quando utilizadas, sero citadas conforme o caso. Die Religion, Vol. 7, BA III-IV (Prefcio).19 Idem, BA IV.20 M. Gueroult, Lvolution et la structure de la doctrine de la science chez Fichte, Paris, Les belles letters, 1930,Tomo 1, p.8-9. Afirma que Leibniz que est na origem do tema da finalidade para se pensar a histria noidealismo alemo: De fato, a partir de Leibniz que se v desenvolver na Alemanha estas idias de histria doesprito humano, nas quais cada poca aparece como um momento de revelao a si mesmo do Esprito.... Deoutra maneira, no artigo Fichte et la Rvolution francaise, afirma que o princpio de continuidade de Leibniz lembrado como elemento decisivo para a interpretao filosfica da Revoluo francesa, in: tudes sur Fichte,p.159.

  • 21

    Ainda no plano geral de considerao da questo acerca da relao entre moral,

    poltica e filosofia da histria, podemos perguntar sobre a legitimidade do juzo poltico que

    faz referncia a um telos da histria. Em outras palavras, podemos indagar o que significa

    julgar um evento emprico, um fato qualquer dos fenmenos polticos, em nome de uma regra

    cujo estatuto dado por um sentido supostamente necessrio da histria. Ainda que este

    sentido seja derivado da doutrina moral e no sirva de fundamento desta, como indica a

    passagem acima tirada da Religio, a armao conceitual que se desenha aqui, com influncia

    direta sobre Fichte, ao mesmo tempo em que faz da histria um tema privilegiado da filosofia

    prtica, reduz a doutrina poltica a um caso particular da reflexo mais ampla daquela na

    medida em que pensa a prpria histria por meio da idia de totalidade.

    Esta relao entre poltica e moral por meio da histria, nos coloca uma dificuldade

    inicial acerca da diferena do estatuto lgico e conceitual das noes a serem equacionadas.

    Em vista disto, vou retomar algumas lies tiradas da Lgica de G. B. Jasche a fim de

    esclarecer a diferena entre um juzo propriamente moral, uma crena racional e uma mera

    aposta no futuro. De acordo com o pargrafo nove da Introduo da Lgica de Jasche, acerca

    da perfeio lgica do conhecimento segundo a modalidade, h trs modos de julgar algo

    como verdadeiro (Fhrwahralten), cada um deles vinculado a uma categoria modal: a opinio

    (Meinen) um julgar problemtico; a crena (Glauben) um julgar assertrico; e o saber

    (Wissen) um julgar apodctico21. Enquanto na opinio no temos uma razo de

    conhecimento (Erkenntnisgrund) nem subjetiva nem objetivamente suficiente, na crena

    temos uma razo de conhecimento subjetivamente suficiente, embora objetivamente

    insuficiente; e, por fim, no saber, temos uma razo de conhecimento tanto subjetiva quanto

    objetivamente suficiente. Interessa-me nesta tripartio entre opinio, crena e saber,

    particularmente, a nota de Kant acerca da crena22. Tendo em vista que os objetos do

    conhecimento emprico e aqueles do conhecimento racional a priori (terico ou prtico) no

    so objetos (Sachen) de crena, resta que o juzo moral, a saber, aquele que tem por tema os

    objetos do conhecimento racional prtico (i.e., os direitos e os deveres) acompanhado de

    certeza (Gewissheit). Portanto, quando falamos do dever moral e de seu fundamento no

    lidamos com crena; e, por isso mesmo, diz Kant a ttulo de exemplo, um juiz no pode

    simplesmente crer que o acusado seja culpado pelo crime, ele tem de saber (juridicamente)

    para agir corretamente.

    21 Kant, Lgica, trad. Guido A. Almeida, Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 2003, p.83 ss. (Ak 66 81).22 Ibid., p.87 (Ak 70).

  • 22

    Por outro lado, o juzo que parte da pressuposio necessria do objeto da vontade

    (Willen), i.e., o sumo bem, e afirma sua realidade objetiva, tem como correlato subjetivo uma

    crena moral e no uma certeza. Esta crena moral, sendo mais que uma mera afirmao

    no contraditria (opinio) e menos que uma certeza acompanhada de necessidade (saber),

    uma convico subjetiva quanto realizao do sumo bem (e, por conseguinte, quanto s

    condies de possibilidade para tanto Deus, imortalidade e liberdade), mas no diz respeito

    propriamente ao conceito deste objeto, extrado de uma anlise do funcionamento da vontade.

    Nesta direo, diz Kant:

    A disposio da vontade (Gesinnung) segundo leis morais leva a um objeto do arbtrio

    (Willkr) determinvel pela razo pura. Admitir a factibilidade desse objeto e, por

    conseguinte, tambm a realidade da causa disso uma crena moral ou um

    assentimento (Fhrwahralten) livre e necessrio na inteno moral de consumar seus

    fins23.

    Portanto, preciso cuidado na considerao da relao entre os conceitos de liberdade e

    finalidade, os quais esto na base da articulao sistemtica entre as esferas da razo prtica, a

    saber, a moral, a poltica, o direito, a histria e a religio. Afinal, a crena moral julgar

    como verdadeira a factibilidade do sumo bem (bem como, a realidade de sua causa Deus,

    imortalidade da alma e liberdade da vontade) e de maneira nenhuma um assentimento acerca

    do prprio dever. Se a realizao do objeto da vontade uma crena, no menos verdade

    que seu conceito determinvel pela razo pura e, por conseguinte, o assentimento que

    acompanha o juzo sobre sua realizao mais que uma opinio; pois, neste caso, temos uma

    razo de conhecimento subjetivamente suficiente e no apenas uma assero que relaciona

    dois termos sem contradio.

    bem verdade que ser apenas na terceira Crtica que poderemos encontrar os

    elementos chaves para a considerao da finalidade em Kant. No entanto, do que podemos

    depreender destas lies de lgica, desde logo podemos ver que a dificuldade bsica em

    articular os conceitos de liberdade (lei moral) e finalidade24 est no fato de que lidamos com

    noes situadas em patamares bastante distintos quanto ao seu estatuto lgico e

    epistemolgico. Da se segue a importncia da noo de reino dos fins, que do interior mesmo

    23 Ibid., p.86 (Ak 69).

  • 23

    da anlise moral, indica, mesmo que distncia, a implicao escatolgica do funcionamento

    da moralidade na filosofia crtica. Antes de passarmos sua anlise, cabe insistir no paralelo

    entre a tripartio opinar, crer e saber, e a modalidade dos juzos. Seno por outras razes,

    pelo fato mesmo que Kant vai recuperar estes modos de adeso (Fhrwahralten), de tomar

    algo como verdadeiro, quando tratar do tema da finalidade na terceira crtica25.

    A dificuldade no caso reside em compreender exatamente como a opinio, a crena e o

    saber se vinculam s formas modais do juzo. Pois, segundo o pargrafo 30 da Lgica de

    Jasche, com as formas modais temos uma determinao meramente possvel, ou real, ou

    necessria 26 da verdade do juzo. Ora, que a opinio esteja para o possvel como o saber

    est para o necessrio algo que, por plausvel, parece no exigir maiores explicaes;

    porm, que a crena tenha como correlato modal o real (Wirklich) no algo claro de

    imediato. Penso que duas consideraes podem esclarecer este ponto, uma extrada da prpria

    Lgica de Jasche e outra da anlise transcendental sobre a modalidade do juzo na Crtica da

    Razo Pura.

    Na mesma passagem citada acima, Kant define a modalidade como a maneira pela

    qual algo afirmado ou negado no juzo, e acrescenta que esta determinao (possvel, real

    ou necessria) concerne ao juzo ele prprio e de modo algum coisa sobre a qual se julga.

    Por outro lado, como a opinio, a crena e o saber so modos de assentimento (conforme o j

    citado pargrafo 9 da Introduo da Lgica de Jasche), podemos inferir qual seja a relao

    pretendida por Kant. Sendo assim, como no da coisa que se trata, mas do tipo de

    assentimento (Fhrwahralten), i.e., do modo pelo qual consideramos o juzo como

    verdadeiro, aos trs modos do juzo (atravs do qual algo representado como

    verdadeiro27) temos trs formas de assentimento (Fhrwahralten) como o lado subjetivo de

    tais juzos28: o juzo problemtico, alma do homem pode ser mortal, teria como correlato

    subjetivo a opinio; enquanto o juzo apodctico, a alma tem que ser imortal, o saber; e, por

    fim, o juzo assertrico, a alma humana imortal, a crena.

    Importa notar que do ponto de vista da modalidade do juzo nada aferimos sobre o

    objeto em questo, nestes exemplos no divagamos sobre a alma, apenas expressamos em

    cada forma modal do juzo um modo de assentimento subjetivo especfico. Embora esta

    24 Para todos os efeitos, a ttulo de moral provisria, vou considerar a liberdade como conceito correlato ao de leimoral. Mais tarde vou mostrar as dificuldades desta identificao e sua possvel soluo. Para meu propsito,esta identificao no implica em maiores problemas.25 Notadamente no # 91 intitulado: Da espcie de adeso mediante uma f prtica. Kant, Kritik derUrteilskraft, Werke, vol. 8, B454ss / A448ss. (Doravante indicada por apenas como KU).26 Kant, Lgica, p.128, Ak 109.27 Ibid., p.83 (Ak 66).

  • 24

    ressalva ainda no explique inteiramente a relao entre o assentimento de crena e o juzo

    modal assertrico (e, por meio deste, determinao real da verdade), somada a dois

    esclarecimentos tirados da primeira Crtica, ela vai permitir uma melhor compreenso da

    questo. Mas de fato, at aqui, a relao entre assentimento subjetivo e juzo, por meio das

    formas modais deste ltimo, parece mesmo nos levar a um impasse, caso tenhamos em mente

    a prpria definio de juzo oferecida por Kant no importante pargrafo 19 da Analtica

    Transcendental da primeira Crtica. Ali podemos ler que o juzo no seno a maneira de

    trazer unidade objetiva da apercepo conhecimentos dados, e, mais abaixo, que um juzo

    uma relao objetivamente vlida (...) 29. Como, ento, vincular uma relao

    objetivamente vlida e um assentimento subjetivo? Ao que parece, se o ato transcendental do

    juzo caracteriza uma maneira especfica de vincular as representaes, que se diferencia de

    uma vinculao apenas subjetiva (como, por exemplo, quando esta vinculao deriva de leis

    de associao), no s o assentimento da crena parece se achar em oposio com a definio

    de juzo, mas tambm qualquer uma das duas outras formas de assentimento a opinio e

    mesmo o saber. A dificuldade no desprezvel tendo em vista a importncia deste ponto para

    o projeto crtico como um todo. O exemplo dado por Kant pode revelar esta importncia:

    quando seguramos um copo, sentimos uma presso de peso, mas no que o copo seja pesado.

    Assim, para que as representaes de copo e peso possam ser ditas ligadas no objeto,

    indiferentes ao estado do sujeito, no devemos buscar um fundamento na percepo, por

    muito repetida que ela seja, mas no juzo; exatamente porque nele se opera uma vinculao

    objetivamente vlida de representaes por meio da apercepo.

    Ainda que no seja o caso de ponderar aqui todas as implicaes lgicas e

    epistemolgicas presentes nesta passagem, o fato decisivo para meu argumento que o

    fundamento para a vinculao objetiva das representaes, cuja necessidade fora matizada e

    circunscrita ao domnio da percepo pelo mais engenhoso de todos os cticos30,

    recuperado criticamente no plano do juzo (em sua relao com a apercepo). Como, ento,

    pensar as formas modais do juzo em sua relao com os respectivos assentimentos

    subjetivos? E, mais especificamente, qual o exato significado da relao entre a crena e a

    modalidade assertrica do juzo?

    28 Na passagem citada lemos: o juzo (...) subjetivamente o assentimento.29 Kant, Kritik der reinen Vernunft, Werke, vol. 3, B141 (doravante citada apenas como KrV). Para uma anlisedesta definio de juzo e da deduo das formas lgicas do mesmo a partir dela, Klaus Reich, The completenessof Kants table of judgements, trad. J. Kneller e M. Losonsky, Stanford, Stanford University Press, 1992, Cap. 5:Outline of the systematization of the Primary Functions, p.47-59.30 Lebrun, Hume e a astcia de Kant, in: Sobre Kant, So Paulo, Iluminuras, 1993, p. 9.

  • 25

    Uma segunda considerao deve ser somada a esta primeira, acerca da natureza geral

    do juzo. Trata-se, pois, da definio mesma da modalidade:

    A modalidade dos juzos uma funo bastante particular destes, cujo

    carter distintivo consiste em no contribuir em nada para o contedo de um

    juzo (pois, fora da quantidade, da qualidade e da relao, no h nada que

    constitua o contedo de um juzo), mas somente diz respeito ao valor da

    cpula em reao ao pensamento em geral31.

    Deste modo, sem nada decidir sobre o contedo do juzo, o valor da cpula tomado como

    possvel no juzo problemtico, real no juzo assertrico e, por fim, como necessrio no juzo

    apodctico. Que o juzo seja, portanto, uma relao objetivamente vlida entre representaes

    (por meio da unidade objetiva da apercepo como forma lgica de todos os juzos) em nada

    interfere na sua funo muito particular que a modalidade. Como esta no modifica em

    nada o contedo do juzo, sua funo expressa o valor da cpula em relao ao pensamento

    em geral32, e no retomando as lies de lgica em relao ao objeto que ele toma por

    contedo, i.e., ao x do juzo. Por conseguinte, em vista do pensamento em geral, tomamos a

    cpula como uma relao ou possvel, ou real, ou necessria. E este tomar por verdadeiro

    (Fhrwahralten) que Kant caracteriza como o lado subjetivo do juzo no pargrafo nove da

    Lgica de Jasche.

    Na mesma direo aqui indicada, encontramos a interpretao de B. Longuenesse

    segundo a qual a determinao da ordem fenomenal pelo primado da forma significa uma

    redefinio do que preciso entender por possvel em Kant33. Por primado da forma, a autora

    entende a chave para a crtica do racionalismo clssico de Leibniz presente na Anfibolia; de

    tal sorte que, caso Leibniz tivesse razo, se o pensamento procedesse por puros conceitos, sua

    matria seria anterior e determinante em relao forma, i.e., os conceitos seriam anteriores

    e determinantes em relao s ligaes operadas nos juzos 34. Kant, porm, inverte a relao

    entre matria e forma e, fato mais decisivo aqui, desta inverso resulta uma redefinio da

    noo do possvel e, paralelamente, das modalidades do juzo. Assim:

    31 Kant, KrV, Werke, vol. 3, B99/100.32 Em outro contexto Kant afirma em relao com a faculdade de conhecimento (Erkenntnisvermgen), KrV,Werke, A219/ B266.33 B. Longuenesse, Kant et le pouvoir de juger, Paris, PUF, 1993, p. 198.34 Ibid., p. 196.

  • 26

    O que possvel determinado como tal no porque sua matria pertena (...)

    matria de toda possibilidade da qual o ens realissimum seria o fundamento (verso

    do nico fundamento); menos ainda porque pertena, como essncia possvel, ao

    entendimento infinito de Deus (verso leibniziana); mas somente porque pode ser

    representado, i.e., que seu conceito est de acordo com a forma universal da

    intuio sensvel, e por a com a forma da experincia. Os mundos possveis de

    Leibniz e a sua prpria [de Kant] matria de toda possibilidade pr-crtica foram

    substitudos por Kant pela experincia possvel. O registro do possvel no a

    determinao de um ser, mas de um ato de representao35.

    Segundo esta interpretao, de uma noo mais lgica que ontolgica do possvel, sintetizada

    na expresso experincia possvel, decorreria tambm uma outra tonalidade para as formas

    modais.

    Podemos entender agora a fonte de nossa dificuldade acima apresentada, ramos

    racionalistas sem o saber. Na medida em que tomvamos as formas modais como gradaes

    do ser, no podamos entender, de maneira geral, como o juzo podia significar uma relao

    objetivamente vlida (segundo a Crtica) e, ao mesmo tempo, ter a forma subjetiva do

    assentimento (segundo a Lgica de Jasche); e tambm no podamos compreender, mais

    especificamente, a relao entre o assentimento de crena e a modalidade assertrica do juzo.

    Agora podemos ver a fonte do erro: tomar as relaes entre essncias como o que configura as

    diferentes modalidades das ligaes entre os conceitos que so os juzos. Enquanto que, para

    Kant, segundo Longuenesse, as modalidades do juzo so determinaes lgicas inseridas

    no quadro geral do primado da forma na designao da ordem fenomenal36. De tal sorte que:

    possvel um estado de coisas que pode ser enunciado na proposio no contraditria com os

    princpios universais de possibilidade da experincia (o ter dos fsicos, seres em outro

    planeta, etc...); efetivo um estado de coisas suscetvel de ser enunciado numa proposio

    suficientemente fundada por ligaes empricas de nossas percepes (a realidade do sumo

    bem como objeto da vontade moral); , enfim, necessrio um estado de coisas tanto

    empiricamente atestado quanto dedutvel de uma proposio universal (o dever de agir

    respeitando o outro como fim em si dedutvel da forma universal de legislao da razo)37.

    35 Ibid., p. 199.36 Ibid., p. 200.37 Ibid., p. 206 (nota). Paralelamente, na Analtica dos princpios, no Esclarecimento acerca dos Postulados dopensamento emprico em geral, podemos ler que a possibilidade das coisas exige que seu conceito esteja deacordo com as condies formais da experincia em geral (KrV A220); que a realidade das coisas no exigepropriamente a conscincia imediata do prprio objeto, mas o acordo desse objeto com qualquer percepo real,segundo as analogias da experincia (KrV A225); e que, finalmente, a necessidade no se aplica existnciadas coisas como substncias, mas s relaes dos fenmenos (KrV A 228).

  • 27

    Finalmente, no que me interessa mais diretamente, a crena na realidade efetiva do

    sumo bem o assentimento subjetivo que acompanha o juzo assertrico que toma por tema o

    objeto de uma vontade moral; mas agora sabemos, a modalidade do juzo assegura no

    propriamente a existncia do x sensvel do juzo, o objeto do juzo nos termos da Lgica de

    Jasche, mas expressa o valor da cpula, o que nele afirmado, embora no objetivamente

    necessrio, tomado em relao ao pensamento em geral como subjetivamente necessrio

    no caso, poderamos dizer, ao pensamento moral em geral. Isto porque, a relao que ele

    exprime no dedutvel de uma proposio universal (nem empiricamente atestado), mas

    nem por isso deixa de ser conforme as ligaes pelas quais vinculamos nossas percepes. Por

    outro lado, no expressa a mera relao no contraditria entre dois conceitos. Mais que uma

    mera possibilidade lgica e menos que um saber necessrio, a crena moral que d sentido

    histria se inscreve numa chave epistemolgica muito particular. O conceito de sumo bem

    (como idia reguladora que totaliza e d sentido histria) no exige uma espcie de realismo

    fantstico, sua realizao pensada em conformidade com as leis que regem nossa

    experincia sensvel e, por isso mesmo, dados os elementos vinculados em seu conceito

    (virtude e felicidade), que ele exige a postulao prtica (Deus, imortalidade e liberdade).

    Apenas porque ele deve ser pensado como mundo possvel que a postulao exigida.

    Deste ngulo, o conceito de reino dos fins vai assumir uma colorao intrigante.

    Inscrito na ordem moral como correlato de uma das formulaes do dever, que deve poder ser

    tomado por tema de um juzo moral apodctico, ele aponta para uma dimenso escatolgica da

    moral. Por isso, como disse acima, ele o elo que, vinculando liberdade e finalidade, faz o

    trao entre a moral e a poltica passar pela histria. Mas seguindo esta chave epistemolgica

    acerca das formas modais do juzo, o discurso sobre a histria no se reduz nem a uma

    descrio emprica, por um lado, nem se esteriliza em romance, por outro. Com a doutrina da

    autonomia e o absoluto prtico a ela vinculado, sua espessura poder ser melhor definida.

    2.2. Natureza incondicional do dever.

    Tendo em vista as consideraes iniciais acerca dos tipos de assentimentos que

    acompanham as formas modais do juzo, e melhor caracterizada a natureza da crena, que se

    apresenta como o lado subjetivo do juzo, acerca da realidade efetiva do sumo bem como

    objeto da vontade, posso agora retomar as trs asseres que enunciei no incio quanto ao

  • 28

    tema deste captulo. A saber, (i) que a vinculao entre liberdade e finalidade deriva do

    conceito de vontade como autonomia; (ii) que desta vinculao resulta a submisso da

    doutrina poltica moral e filosofia da histria; (iii) que a relao entre moralidade e

    finalidade pode ser esclarecida pelo conceito de reino dos fins. Pretendo justificar (i) por meio

    de uma anlise da natureza incondicional do dever e das modalidades dos imperativos; e

    depois, fundamentar (ii) e (iii) por uma anlise da autonomia e do reino dos fins. Em ltima

    anlise, preciso entender o estatuto quid juris de uma dimenso escatolgica imanente ao

    funcionamento da razo prtica, i.e., entender por qual direito estamos autorizados a vincular

    liberdade e finalidade sem prejuzo para a autonomia.

    O movimento bsico da argumentao de Kant na Fundamentao metafsica dos

    costumes articulado em trs passos sucessivos que vo do conhecimento moral da razo

    comum crtica da razo pura prtica. De modo geral, a estratgia perguntar, a cada passo,

    pelas condies de possibilidade do juzo moral, de tal forma que a seqncia de seus

    argumentos apresenta o movimento mesmo de fundamentao do discurso tico em torno da

    autonomia como princpio supremo da moralidade38. Neste quadro, meu interesse pensar a

    insero do conceito de reino dos fins, a necessidade prtica que o exige e a implicao

    escatolgica que dele decorre, no interior do funcionamento do juzo moral; sem cuidar

    especificamente das dificuldades em torno de uma possvel deduo da lei moral por certo o

    tema mais central deste texto. Para tanto, proponho uma interpretao das formulaes do

    princpio da moralidade (a saber, a frmula da universalidade da mxima, da humanidade

    como fim em si e de um possvel reino dos fins) balizada na afirmao de Kant de que as

    trs maneiras indicadas visam, respectivamente, a forma, a matria e a determinao completa

    das mximas. Por outro lado, pretendo pensar tambm a terceira formulao do princpio da

    moralidade, a frmula da autonomia conectada ao reino dos fins, a partir da distino entre as

    formas, hipottica e categrica, dos imperativos. Mediante estas duas ordens de considerao,

    pretendo mostrar que a conexo entre liberdade e finalidade recebe um tratamento sistemtico

    j com a idia de um mandamento categrico ou incondicional e, por meio deste, com a

    formulao do conceito do reino dos fins.

    Respeitando o mtodo analtico de exposio, Kant parte do juzo moral da razo

    comum para chegar ao seu fundamento na autonomia. Neste sentido, pode extrair o conceito

    38 Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Werke, vol. 6, BA XV (doravante citada como Grundlegung):A presente fundamentao nada mais , porm, do que a busca e fixao do princpio supremo da moralidade,

  • 29

    de boa vontade por uma anlise do juzo moral comum, como primeiro conceito na ordem das

    razes pelas quais podemos atribuir sentido moral s aes a partir de um princpio

    supremo39. Tudo o mais que pode eventualmente ser tido por bom, alm da vontade, ser

    sempre relativamente bom, i.e., ser julgado como bom em vista de algo, de algum propsito

    e, por conseguinte, ser apenas condicionalmente bom; em contrapartida, a vontade (pelo

    menos em princpio) pode ser tomada como boa sem restrio. Afastando, portanto, qualquer

    considerao de ordem utilitria, resta que a boa vontade se realmente algo irrestritamente

    bom possa ser pensado no boa pelo que promove ou realiza (...), mas to somente pelo

    querer, i.e., em si mesma (...)40. Com isso podemos dizer apenas que se o juzo moral comum

    tiver sentido racional, ele deve se referir ao conceito de vontade boa como seu princpio ou

    fundamento como o valor fundamental que lhe serve de padro de medida na sua avaliao.

    Cabe saber se este conceito pode ser concebido racionalmente ou se no passa de uma

    quimera (hochfliegende Phantasterei). Como no faz sentido que a razo se incline ao uso

    prtico em vista da satisfao das necessidades e da felicidade humanas, pois para isso o

    instinto natural muito mais eficaz, resta que sua funo seu verdadeiro destino (wahre

    Bestimmung) como faculdade prtica, i.e., como faculdade que deve exercer influncia sobre

    a vontade , deve ser o de produzir uma vontade absolutamente boa, i.e., incondicionalmente

    boa.

    A anlise do conceito de vontade boa, a ser produzida pela razo em seu uso prtico,

    vai explicitar seu contedo mediante trs proposies fundamentais. A primeira proposio

    afirma que o conceito do dever contm o de vontade boa, a segunda, que uma ao praticada

    por dever tem seu valor moral na mxima que a determina e no no propsito com que feita,

    a terceira define o dever como a necessidade de uma ao por respeito lei41. O argumento

    e BA XVI: O mtodo que adotei (...) percorrer o caminho analiticamente do conhecimento vulgar para adeterminao do princpio supremo desse conhecimento (...).39 Mesmo que de passagem, vale dizer que est pressuposto, bem entendido, que apenas um fundamento absolutopode dar sentido moral s aes qui sentido tout court; pressuposto rico em conseqncias quando pensamosa relao entre moral e poltica, veremos o partido que Fichte vai tomar, a partir desta idia e a despeito de Kant,frente Revoluo francesa.40 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 3.41 Para uma interpretao distinta da primeira proposio, que no explicitamente enunciada por Kant, verMarco Zingano, Razo e histria em Kant, So Paulo, Brasiliense, 1989, p.42: Na anlise que Kant faz da aomoral, ele descobre trs proposies: a) o que bom sem restries a vontade boa, etc.. Acontece que Kant,neste contexto, no faz uma anlise da ao moral propriamente seno indiretamente , mas da noo devontade boa como pressuposto necessrio do juzo moral comum. O que interessa para ele apresentar ocontedo disto que deve ser produzido pela razo em sua funo prtica. Assim podemos ler: Para desenvolvero conceito de vontade boa (...) vamos encarar o conceito de dever que contm em si o de vontade boa (...),Grundlegung, Werke, vol 6, BA 8. Alm disso, Kant afirma que a terceira proposio, que define o dever como anecessidade de uma ao por respeito pela lei, a concluso das proposies anteriores. De qualquer maneirano imediatamente claro como Kant pretende extrair semelhante concluso. Para meu argumento importaapenas estabelecimento do carter incondicional do dever por eliminao dos princpios materiais do querer.

  • 30

    que justifica a primeira o de que um ser que fosse dotado de uma vontade irrestritamente

    boa faria necessariamente o que deve ser feito; apenas para um ser com restries subjetivas e

    sensveis, o que absolutamente bom se impe como um dever diante de suas limitaes42.

    Para o homem, portanto, ser dotado de razo e sensibilidade, o que absolutamente bom se

    apresenta como dever ser diante de suas inclinaes sensveis. Somente para ele o conceito

    de dever ganha sentido, fosse ele um ser dotado de vontade santa, sem afeces sensveis, ou

    de um arbtrio bruto, se a razo no tivesse nele um uso prtico, no haveria nenhum dever

    para ele. Com isso podemos entender o que Kant pretendia indicar ao dizer que a razo tem

    por funo, em seu uso prtico, produzir uma boa vontade: a sobreposio entre racionalidade

    e moralidade cujo resultado, ao final da anlise, ser o conceito de autonomia. Certamente,

    podemos imaginar outros modos pelos quais a razo teria um uso prtico, os quais Kant

    designaria de pragmticos, mas a opo pela idia de uma determinao da vontade pela razo

    que ser expressa no conceito de autonomia j indica uma direo escatolgica para a

    moral que ser confirmada, como veremos, por meio da frmula que exprime a determinao

    completa das mximas. De qualquer modo, a idia de uma tarefa moral da razo nos adianta a

    dimenso teleolgica inscrita na moral da qual Fichte saber tirar o mximo proveito.

    Operando a distino entre as aes feitas por dever (aus Pflicht) e aes feitas

    conforme ao dever (pflicht-mssig), Kant vai mostrar que a condio de possibilidade de

    uma vontade boa ultrapassa a mera conformidade das aes ao preceito moral. No basta,

    portanto, a no-contradio entre a ao e o valor que ela pretende expressar para que

    possamos julgar esta ao boa em sentido moral. preciso que ela tenha sido feita por

    dever, i.e., que a mxima que a animou, seu princpio de determinao, seja a expresso

    mesma do dever. Desta operao, Kant pode extrair as duas outras proposies que exprimem

    o contedo do conceito de vontade boa como condio sine qua non do juzo moral fundado

    racionalmente. A segunda proposio afirma que o valor moral no pode ser medido pelo

    propsito que se quer atingir, mas no princpio do querer, i.e., na mxima deste querer para

    que ao possa ser realmente feita por dever. Somando a primeira proposio segundo a

    qual o conceito de dever contm o de vontade boa com esta segunda, Kant pretende concluir

    o argumento definindo o dever pela idia de respeito e, por conseguinte, determinar

    exatamente o procedimento pelo qual a razo pode efetivamente produzir uma boa vontade.

    De tal sorte que lemos:

    42 Kant, op. cit., BA 8.

  • 31

    Dever a necessidade de uma ao por respeito pela lei. Pelo objeto da ao em

    vista, posso na verdade sentir inclinao, mas nunca respeito, na medida mesma em

    que um simples efeito e no a atividade de uma vontade43.

    A razo pode produzir uma vontade boa determinando-a mediante a idia do dever. Excluda

    a determinao da vontade por qualquer objeto, por conseguinte, por um princpio material,

    resta a sua determinao objetivamente pela prpria lei e, subjetivamente, pelo respeito pela

    lei, mesmo que o contedo desta lei ainda no tenha sido explicitado. Assim, a determinao

    da vontade pela razo pelo que, esta ltima pode produzir uma boa vontade mediada

    pelo conceito do dever como respeito pela lei. Havendo, pois, um princpio supremo de

    fundamentao do juzo moral, sua condio restritiva a excluso de uma determinao

    material da vontade, porquanto esta sempre condicionada. Resta ento apenas a

    determinao formal como contedo para a lei moral, e como a forma da razo a

    universalidade, apenas a universalidade das mximas (como princpio subjetivo do querer)

    pode ser, por enquanto, tomada como contedo da lei moral.

    Pelo que se v deste rpido resumo da articulao geral da primeira Seo da

    Fundamentao, a condio de possibilidade de fundao racional do juzo moral uma

    atividade de determinao da vontade pela razo em vistas de produzir a vontade boa. Eis o

    conceito limite que serve de valor incondicional para a partio operada no juzo moral entre

    o que moralmente bom e o que moralmente mau. Nesta formulao ao gosto de Fichte,

    podemos ver que se trata de uma anlise do juzo moral segundo a qual a condio de

    possibilidade deste, antes de ser propriamente um conceito, mais exatamente a atividade de

    formao deste conceito, no caso, a atividade pela qual vontade e razo so sintetizadas no

    conceito de vontade boa mediante a idia do dever.

    A lei referida pela definio do dever (como necessidade de uma ao por respeito

    pela lei) pode servir como fundamento da obrigao apenas sob a condio de conter em si

    uma necessidade absoluta e, portanto, ter validade incondicional. Esta condio restritiva,

    que, segundo Kant, ressalta da idia comum do dever 44, elimina qualquer contedo

    material para ela, no lhe restando seno a pura forma da universalidade. Antes de ver a o

    signo mais claro do rigorismo moral de Kant (bem como de seu formalismo), importa

    notar a direo geral do argumento. Como o dever impe mais que a conformidade do

    comportamento lei, diz Kant, simplesmente impossvel encontrar na experincia, com

    43 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 14.44 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA VIII

  • 32

    inteira certeza um nico caso em que a mxima da ao tenha sido puramente fundada em

    motivos morais45. Mas a questo agora no a de saber se isto ou aquilo acontece, mas se a

    razo por si mesma e independentemente de todos os fenmenos ordena o que deve

    acontecer 46. Portanto, importa saber sob que condies a razo pura pode ser prtica, no

    sentido de determinar a vontade, sem cuidar agora de saber como a lei se aplica ao caso

    particular da natureza humana, coisa que ser tema da Antropologia47.

    Paralelamente ao encadeamento das trs proposies prticas da primeira seo desta

    fundamentao do juzo moral, onde a relao entre vontade e razo mediada pela noo de

    dever como acabei de mostrar , tambm na transio da filosofia moral popular para a

    metafsica dos costumes, i.e., na segunda Seo da Fundamentao, o descompasso entre o

    que a razo determina e o que a vontade acata preenchido pela forma obrigatria do

    imperativo48. Antes, partimos do conceito de vontade boa, como aquilo que absolutamente

    bom, para chegar ao conceito de dever, ressaltando as restries sensveis que operam a

    passagem de uma a outro; agora, partimos da lei objetiva representada pela razo para chegar

    ao imperativo, como forma desta lei para uma vontade imperfeitamente racional. No primeiro

    caso, importava saber se h sentido no juzo moral porquanto, pelo menos para Kant, ele

    pressupe um valor absoluto (como vimos, ou o dever incondicional ou no propriamente

    dever), no segundo, se a razo pode determinar a vontade por motivos a priori49 (ou se aquela

    idia de uma vontade boa no passa de uma quimera).

    A estratgia de Kant derivar a noo de imperativo da definio da vontade como

    capacidade de agir segundo a representao de leis, conforme a conhecida passagem segundo

    a qual cada coisa da natureza age segundo leis. S um ser racional tem a capacidade de agir

    segundo a representao de leis, i.e., segundo princpios; o que significa, para Kant, que

    apenas ele tem uma vontade50. Assim, a capacidade de agir mediante a representao das

    leis e, paralelamente, a capacidade em derivar aes de leis, faz com que as noes de razo

    e vontade se imbriquem sistematicamente. Como, porm, nem sempre o que representado

    pela razo como bom tambm acatado como motivo bastante suficiente pela vontade, a

    relao entre elas mediada pela forma do imperativo51.

    45 Ibid., BA 26.46 Ibid., BA 28.47 Ibid., BA 35.48Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 37: a determinao de uma vontade, que no em si plenamentecoincidente com a razo, conforme leis objetivas, a obrigao (Ntigung).49 Ibid., BA 28.50 Ibid., BA 36.51 Cf. Paton, The categorical imerative, New York, Harper, 1967: Estar sob leis morais significa reconhecer oimperativo categrico, mas no necessariamente obedecer-lhe, p.213.

  • 33

    Por isso mesmo, a razo pode desempenhar o papel ambguo de ser tomada como a

    condio de possibilidade da vontade boa a qual, por sua vez, a condio, como vimos

    acima, de fundao do juzo moral e, ao mesmo tempo, como o conceito limite em vista do

    qual a tarefa moral se apresenta. Em outras palavras, se perguntamos qual a condio ltima

    de possibilidade do juzo moral, cabe responder, nesta altura da argumentao de Kant, que

    o conceito de vontade boa cujo contedo a idia de uma determinao da vontade pela

    razo. Como a vontade humana imperfeitamente racional, i.e., no adere necessariamente

    quilo que reconhece como racional, ao que deveria de todo modo aderir, a condio de

    possibilidade do juzo moral no um dado ou fato natural, mas um fim para o qual a razo

    nos impele. Embora, por um lado, esta ambigidade entre o conceito de razo como

    capacidade de regras (e, por conseguinte, de dar regras para a vontade) e como potncia

    efetiva para determinar a vontade por si mesma, certamente possa deixar os mais cticos

    desconfiados da completude desta fundamentao52, por outro lado, no poderamos esperar

    um dado como condio para o juzo moral, pois, no fundo, a idia de liberdade que est em

    jogo; uma vez que, sem liberdade, o juzo moral no poderia ter qualquer sentido. Assim, a

    sobreposio entre racionalidade e moralidade, a vontade no outra coisa seno razo

    prtica 53, embora fundamental, pois nela radica a possibilidade do conceito de vontade boa

    (a qual, por sua vez, condio do juzo moral), no ainda total. A atividade de

    determinao da vontade pela razo em vistas de produzir a vontade boa uma

    possibilidade inscrita em ns pelas faculdades de que somos dotados, vontade e razo, e s

    nesta medida uma atividade propriamente livre. Depois veremos o partido que Fichte vai

    tirar acerca desta sobreposio entre vontade e razo, por enquanto importa apenas notar que

    o carter imperativo da lei moral no ameaa em nada a idia de liberdade, mas antes a

    constitui.

    Disse mais acima que gostaria de defender a idia segundo a qual uma das

    conseqncias de se pensar a vontade como autonomia, i.e., como autodeterminao da razo,

    a submisso da doutrina poltica ao juzo moral e, por meio deste, a uma filosofia da

    histria. Agora j posso indicar uma das razes de minha suspeita: no preciso esperar pela

    doutrina do juzo teleolgico da terceira crtica para comear a pensar a escatologia em Kant,

    ela desponta j na finalidade moral da razo em determinar a vontade. E, exatamente porque a

    52 Ver Guido de Almeida, Liberdade e moralidade segundo Kant, in: Analtica, vol.2, n0 1, 1997: Adificuldade para Kant, pois, que a fundamentao do imperativo categrico parece depender de uma suposioque no pode ser validada. Para fugir a essa dificuldade, Kant ensaiou ao longo de sua obra trs tentativas desoluo, p.176. De onde podemos inferir que a tentativa da Fundamentao no foi inteiramente bemsucedida. Cf. Henri E. Allison, Kants theory of freedom, Nova York, Cambridge University Press, 1990, p. 201.

  • 34

    razo fica entre dois plos, a capacidade de dar regras e o poder de determinao da vontade,

    a escatologia implcita no funcionamento do juzo moral extravasa para a filosofia da histria

    na doutrina poltica coisa que espero poder mostrar mais adiante. Por outro lado, esta

    afirmao de uma finalidade moral da razo em determinar a vontade dever ser completada

    pela anlise da noo de reino dos fins. Mas antes de seguir este fio que tece a trama entre

    moralidade e escatologia, voltemos ao carter imperativo da lei moral no intuito de evitar um

    possvel mal-entendido entre esta escatologia da razo prtica e a determinao heternoma

    do querer.

    2.3. As modalidades dos imperativos

    O imperativo a frmula, segundo Kant, de determinao da ao que tida como

    necessria para uma vontade ser boa em algum sentido54. Segundo a modalidade, podemos

    classificar os imperativos em trs espcies: ou bem a ao tida como boa em vista de um

    propsito (Absicht) real, ou bem em vista de um propsito possvel (e nestes casos a

    necessidade das aes apenas hipottica); ou bem a ao tida como boa em si mesma (e

    neste caso a sua necessidade categrica). J se duvidou desta oposio entre as formas

    hipotticas e a forma categrica dos imperativos mediante a afirmao de que a ao sempre

    boa em vista de algo, mesmo que seja em vista da liberdade, do interesse da razo, ou

    qualquer outro nome que se queira dar para a conformidade entre razo e vontade como

    propsito ltimo do ser racional finito55. Mas penso que a aplicao das formas modais ao

    imperativo visa mais a natureza da necessidade da ao, do que qualificar essa ltima como

    meio para outra coisa ou fim em si mesma56. Em outras palavras, a bondade da ao funo

    da necessidade que a determina: a ao necessria para certo fim boa para a consecuo

    do mesmo, portanto, boa apenas relativamente a ele; por outro lado, a ao necessria em si

    mesma absolutamente boa. Em todo caso, a dificuldade mostrar a modalidade categrica

    desta necessidade e a bondade implicada na ao por dever.

    53 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 36.54 Ibid., BA 40.55 Cf. Philippa Foot, Morality as a System of hypothetical Imperatives, in Virtues and Vices, Los Angeles,University of Califrnia Press, 1981, p.157-173. Para uma crtica desta posio, Henry Allison, Kants theory offreedom, p.101-106.56 Cf. Pierre Aubenque, A prudncia em Kant in: A prudncia em Aristteles, trad. Marisa Lopes, So Paulo,Discurso Editorial, 2003, p.307: Kant no visava a relao entre meios e fim na distino entre imperativosproblemticos e assertricos, mas o modo de existncia do fim.

  • 35

    De qualquer modo, certo que uma das conseqncias do argumento de Kant, sem

    dvida relevante, distinguir a natureza obrigatria do dever moral da mera relao tcnica

    entre meios e fins. Afinal, enquanto esta ltima sempre analtica, quem quer os fins, deve

    querer os meios para tal 57, a relao entre a vontade e o dever incondicional uma sntese

    fundada na liberdade. Mas este resultado s pode ser alcanado por meio do esclarecimento

    do estatuto da necessidade contida em cada ao, da a estratgia de Kant em pens-la por

    meio da modalidade dos imperativos. Proponho uma interpretao pela qual a fora

    obrigatria da ao moral est imediatamente conectada ao carter prtico da razo, i.e., ao

    poder da razo em se fazer mbil para o arbtrio no intuito de destacar a relao entre

    vontade e razo.

    Assim como a modalidade, no caso terico, uma funo que no acrescenta nada ao

    contedo do juzo, conforme mostrei acima, mas diz respeito ao valor da cpula em relao

    ao pensamento em geral 58, penso que aqui a modalidade do imperativo incide sobre a

    necessidade da ao em questo e, apenas indiretamente, sobre seu carter de meio para algo

    ou fim em si mesma, i.e., sobre a ao ela mesma. Lembremos que para Kant, conforme j

    indiquei antes, a natureza de nossa vontade tal que sempre vamos perguntar pelo fim de

    nosso agir, para onde vai este agir, por conseguinte, ele mesmo quem assume uma direo

    teleolgica das aes ao afirmar a referncia necessria da vontade a um fim. Assim, a tese

    segundo a qual todos os imperativos so hipotticos talvez sobreponha a natureza teleolgica

    das aes, reconhecida por Kant, e a forma dos imperativos. Mas a classificao dos

    imperativos, no meu entender, no tem por base uma diferena das aes, caso contrrio Kant

    incorreria em grosseira contradio; por isso mesmo vimos na Primeira Seo da

    Fundamentao que o valor da ao est na mxima que a determina e no no propsito

    com que feita. Mas isto no significa, sobretudo, que para Kant possamos dividir com

    proveito as aes em aes com propsito e aes sem propsito, mas to somente que o

    propsito no conta na sua determinao moral59. Ademais, todo o texto gira em torno disto:

    sabemos que muitas aes tm como nica determinao o propsito pelo qual elas so feitas,

    resta saber, para que o juzo moral possa ter fundamento, se h ou no aes determinadas de

    outra forma. Esta possibilidade pensada por Kant em dois passos, primeiro pelo conceito de

    dever, como necessidade da ao por respeito lei, depois (j na segunda Seo) pela idia

    57 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 46.58 Kant, KrV, Werke,vol. 3, B99/100. Em outra formulao, tambm j citada, em relao com a faculdade deconhecimento A219 / B266.59 Kant, ber den Gemeinspruch; Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis, Werke,vol.9, A205 (doravante citado como ber den Gemeinspruch).

  • 36

    de uma determinao da vontade pela razo. Ora, esta determinao aparece na forma

    imperativa para seres que no so exclusivamente racionais. Em suma, as modalidades e as

    formas correspondentes (hipottica e categrica) os imperativos no constituem uma

    classificao das aes em aes com propsito e aes sem propsito, mas uma anlise da

    necessitao exigida pela idia de uma determinao da vontade pela razo60. Nesta direo,

    diz Kant:

    O querer segundo estes trs princpios diferentes distingue-se tambm claramente

    pela diferena da obrigao imposta vontade. Para tornar bem marcada esta

    diferena, creio que o mais conveniente seria denominar estes princpios por sua

    ordem, dizendo: ou so regras da destreza, ou conselhos da prudncia, ou

    mandamentos (leis) da moralidade. Pois s a lei traz consigo o conceito de uma

    necessidade incondicionada, objetiva e conseqentemente de validade geral (...)61

    Como se v, as modalidades dos imperativos diferenciam a necessitao por eles exigida, e

    desta diferena que resulta a idia de a ao ser boa nela mesma ou boa como meio para

    qualquer outra coisa. Acentuando-se a natureza da necessidade da ao ordenada pelo

    imperativo, tambm podemos melhor compreender a diferena interna dos imperativos

    hipotticos em problemticos e assertricos. A necessidade da ao em vista de um fim

    meramente possvel, que caracteriza os imperativos da destreza, apenas problemtica,

    porquanto a ao, por definio, se vincula a um propsito possvel para o ser racional finito.

    Ao passo que a necessidade da ao em vista de um fim real deste mesmo ser (que a

    felicidade) assertrica, fim que ele tem de qualquer modo como ser natural. , portanto,

    significativo que Kant caracterize os imperativos em funo das formas modais, pois isto

    permite melhor expressar a fora obrigatria vinculada ao imperativo categrico: sua

    necessidade no depende de um propsito ou finalidade que o ser racional finito possa ter

    (i.e., no problemtica), tambm no depende de um propsito ou finalidade que ele tenha

    como necessidade natural62 (i.e., no assertrica), mas necessria por si, sem qualquer

    outra finalidade (i.e., ela apodctica). Mas, podemos perguntar, que sentido pode ter esta

    necessidade incondicional? Para responder a este ponto, Kant tira partido da vinculao geral

    60 Por analogia com a formulao presente na primeira Crtica, podemos dizer que as modalidades dosimperativos exprimem a relao da ao ordenada com a faculdade de desejar em geral.61 Kant, Grundlegung, Werke, vol. 6, BA 43 (os grifos so de Kant).62 Cf. Pierre Aubenque, A prudncia em Kant, p. 304-5 (Apndice III). Note-se o motivo pelo qual a felicidade um fim real do homem, ela consiste na unidade das inclinaes sensibilidade requerida pela razo, porconseguinte, deriva da imbricao peculiar entre a razo e a sensibilidade no homem (Cnon da razo pura,A800/B828).

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    estabelecida entre vontade e razo na primeira Seo, o que significa que a fora obrigatria

    da ao moral est conectada ao carter prtico da razo. A necessidade em cumprir uma ao

    moral incondicional na medida em que ela deriva da razo faculdade que de modo geral

    pensa o incondicionado. Neste sentido, penso que sem o vnculo entre razo e vontade,

    estabelecido desde o incio da Fundamentao, Kant teria grandes dificuldades em justificar o

    carter incondicional da lei moral.

    Alm disso, quando Kant corrigir a terminologia da Fundamentao na Introduo

    da Crtica do juzo (Primeira edio), ele vai esclarecer a natureza das proposies prticas

    indicando exatamente a diferena da fora obrigatria entre as proposies prticas que so

    tericas e aquelas que so propriamente prticas. De tal forma que proposies prticas que

    apenas enunciam imediatamente a possibilidade de um objeto por nosso arbtrio, pertencem

    parte terica da filosofia (o problema: com uma linha dada e um ngulo reto dado construir

    um quadrado, uma proposio prtica). Apenas aquelas que apresentam a determinao de

    uma ao como necessria meramente pela representao de sua forma (segundo leis em

    geral)...tm princpios prprios63. O que foi corrigido, portanto, a terminologia e no o

    conceito, pois o modo de necessitao expresso