tese ironias da desigualdade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAINSTITUTO DE SADE COLETIVAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

FERNANDO DONATO VASCONCELOS

IRONIAS DA DESIGUALDADE:POLTICAS E PRTICAS DE INCLUSO DE PESSOAS COM DEFICINCIA FSICA.

Salvador - BA 2005

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FERNANDO DONATO VASCONCELOS

IRONIAS DA DESIGUALDADE:POLTICAS E PRTICAS DE INCLUSO DE PESSOAS COM DEFICINCIA FSICA.

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva, Instituto de Sade Coletiva, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Sade Coletiva.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Paes Machado.

Salvador - BA 2005

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Vida e sua indecifrvel poesia. doce lembrana de me Lia.

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AGRADECIMENTOS

s pessoas que iluminaram este estudo com seus depoimentos sobre a deficincia; Ao professor orientador Eduardo Paes Machado (UFBA), que acolheu meu propsito de estudar a deficincia sob a tica das cincias sociais em sade, jornada cujos xitos tm sua marca; acadmica de Psicologia Yunna-War Bamberg, pela seriedade e competncia com que participou da pesquisa; A Nena, minha mulher, pelo companheirismo, carinho e apoio nas horas mais difceis, me encorajando a seguir adiante; Aos professores Ordep Serra (UFBA), Inai Carvalho (UFBA) e Valdelcia Costa (UFF), pelas oportunas crticas ao meu projeto de tese; profa. Debora Diniz (UnB), pelas sugestes e crticas a uma verso preliminar; s professoras Edin Costa e Eliane Sales, incentivadoras de primeira hora, assim como aos professores do ISC/UFBA Jorge Iriart, Vilma Santana e Ceci Vilar Noronha, pelas sugestes bibliogrficas e/ou comentrios; Ao prof. Carlos Tadeu, pela solidariedade e apoio bibliogrfico; pedagoga Ftima Regina Souza Oliveira, pelos relevantes dados sobre deficincia na Bahia; profa. Maria Lcia Amiralian, que me forneceu cpia da edio portuguesa da ICIDH; profa. Lgia Assumpo Amaral (em memria), pelas importantes referncias bibliogrficas; aos professores Sueli Dallari e Messias Pereira Donato, meu tio, pelo estmulo ao estudo do direito sanitrio e do trabalho; Aos meus familiares, em especial Henrique e Fernanda, meus filhos, que tanta alegria e renovao me trazem; meu pai, Nilton Vasconcelos, exemplo de generosidade e perseverana; Jane Vasconcelos, irm de todas as horas; A tanta gente especial que me ajudou nesta caminhada: ris Silva, Rubia Fadul, Viviane Barroso, Cllia Parreira, Nilton Vasconcelos Jnior, Jorge Solla, Denise Rodrigues, Alexia Ferreira, Maria Edmilza da Silva, Socorro Lemos, Adson Frana, Erwin Hunter, Paulo Csar de Andrade e Edilma Drea; A Sheila Miranda e rika Pisaneschi, da rea de Sade da Pessoa com Deficincia (DAPE/SAS); A Izabel Maior, da CORDE; Ao Ministrio do Trabalho e Emprego, pela liberao do acesso s bases estatsticas de emprego;

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Ao Sr. Josenildo Sales e aos Correios, pelo significativo apoio a este estudo;

Aos colegas da Ps-Graduao em Sade Coletiva da UFBA, em especial Jos ngelo Ges, Mnica Lima, Feizi Milani, Ana Licks, Mirela Figueiredo Santos, Vldia Juc e Jane Wolff. s bibliotecrias do Cremeb, Rita Botelho Vieira e Snia Maria Silva; s funcionrias do Instituto de Sade Coletiva da UFBA; Aos professores de Sade Coletiva da Escola Baiana de Medicina e Sade Pblica.

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No do destino a ironia de transformar diferena em desigualdade

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RESUMO O autor analisa polticas e prticas de incluso da pessoa com deficincia fsica no mercado de trabalho em Salvador, Bahia. Considerou como hipteses que o modelo biomdico no adequado para orientar polticas de incluso das pessoas com deficincia, uma vez que a deficincia , acima de tudo, um produto social; o suporte familiar e a classe social so fundamentais nas chances de incluso social das pessoas com deficincia; e que as estratgias de incluso no trabalho adotadas no Brasil so insuficientes e, para que tenham xito, precisam estar associadas a outras medidas polticas, sociais, culturais e econmicas que levem em conta a complexidade do mundo do trabalho e dos sujeitos envolvidos. Foram entrevistados, utilizando questionrios semi-estruturados, 22 deficientes fsicos, dentre os quais trabalhadores de banco, supermercado, terceirizados numa empresa estatal, dois comerciantes, uma juza, um professor e uma psicloga. Foram ainda entrevistados 6 chefes e colegas desses trabalhadores com deficincia, assim como e 7 tcnicos e dirigentes de instituies relacionadas deficincia, totalizando 35 entrevistas. Foi feita reviso da legislao, analisados dados censitrios e estatsticas de emprego, alm de realizadas visitas a instituies dedicadas capacitao e/ou incluso de deficientes no mercado de trabalho, onde foram entrevistados tcnicos ou dirigentes. O autor concluiu que as hipteses iniciais foram confirmadas, destacando a importncia do modelo social na explicao da deficincia. Constatou ainda que o sistema de cotas de emprego, ainda que seja uma poltica afirmativa que estimula a criao de vagas de trabalho informal e cria novas oportunidades de trabalho formal, no suficiente para garantir um nmero de vagas suficientes para as pessoas com deficincia. Verificou que a formao profissional no assumida no Brasil como uma tarefa essencial do Estado, repassada s suas entidades de defesa, que o fazem de modo precrio. Para viabilizar sua incluso de deficientes, algumas dessas entidades chegam a assumir a terceirizao de trabalhadores deficientes, passando a enfrentar conflitos como patres daqueles que querem defender. Analisa que, para o senso comum, de difcil compreenso a idia de que os socialmente excludos devam ter direitos especiais. Identificou que as estratgias e prticas de incluso esto marcadas por situaes que denomina de ironias da desigualdade, que ocorrem tanto no mbito da famlia, quanto no trabalho e na sociedade, como por exemplo, a discriminao da deficincia congnita em relao deficincia adquirida; a ameaa de chefes a empregados, obrigando-os a tratar os deficientes como normais; a viso da deficincia como virtude, por facilitar o acesso ao emprego; a desvantagem racial superando a desvantagem fsica; a utilizao do deficiente como exemplo de bom trabalhador e fator de disciplinamento, em razo da sua superao de limites; a vitimizao do deficiente que submetido s mesmas condies de risco dos demais trabalhadores e termina por ser excludo do trabalho atravs da demisso ou aposentadoria. destacada a importncia de novos estudos e polticas de incluso das pessoas com deficincia no Brasil. Palavras-chave: Deficincia Desigualdade Incluso Social Modelo Social Trabalho Identidade Sade do Trabalhador Direitos Humanos.

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ABSTRACT

The author had studied politics and practical of inclusion of people with physical disablement in the work market in Salvador, Brazil. He had considered as hypotheses that the biomedical model is not adjusted to guide politics of inclusion of the disabled people, once disablement is, above all, a social product; the familiar support and the social classroom are basic factor in the possibilities of social inclusion of the people with disablement; the strategies of inclusion in the work adopted in Brazil are insufficient and need to be associates to other measures politics, social, cultural and economic that take in account the complexity of the world of the work and the involved individuals. 35 people have been interviewed: 22 physical disabled workers, 6 other people among their heads and colleagues, and 7 professionals and leaderships of institution of disabled people. Specific legislation and statistics of employment were analysed, beyond carried through visits the dedicated institutions to the qualification and/or inclusion of disabled in the job market. The author confirms the initial hypotheses, emphasizing the importance of model the explication of disablement. He had evidenced that the system of social on quotas of job, in spite of stimulates new chances of formal and informal work, is not enough to guarantee an enough number of jobs for the disabled workers. He had verified that the professional formation of the disabled is attributed by the State to its associations, activity that they carry through in precarious way. Some of those nongovernmental institutions also have assumed the condition of employer of disabled workers to make possible its inclusion, incorporating a contradictory situation. The author had identified that strategies and practical of inclusion marked for situations that calls of ironies of the inequality, that occur in such a way in the scope of the family, in the work and the society, as, for example, the discrimination of the congenital disablement in relation to the acquired disablement; the fact of heads compelling workers to treat disabled people as the normal ones; the vision of the impairment as a virtue, for facilitating the access to the job; the fact of race is cause of more disadvantage than the physical impairment; the use of the disabled as example of good worker, in reason of its overcoming of limits; the exposure of the disabled worker to the same conditions of occupational risks and diseases, what results in exclusion from the work through the resignation or retirement. The author considers the importance of new studies and politics of inclusion of the deficient in Brazil. Keywords: Disability Inequalities Social Inclusion Social Model Work Identity Worker s health Human Rights.

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SUMRIO

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

INTRODUO DEFICINCIA E INCLUSO OBJETIVOS E MTODOS PROTEO LEGAL AO TRABALHO PESSOAS COM DEFICINCIA E EMPREGO MOVIMENTO SOCIAL , DEFICINCIA E TRABALHO VIVER COM DEFICINCIA NASCER COM DEFICINCIA DEFICINCIA E FAMLIA ISOLAMENTO E IDENTIDADE ACESSIBILIDADE E DEFICINCIA

10 25 39 49 60 77 91 92 96 104 116 120 132 137 142 151 160 164 174 185 194

7.1. 7.2. 7.3. 7.4. 8. 9.

CORPO E IDENTIDADE TRABALHO COMO MEIO DE INCLUSO

9.1. INGRESSO NO MERCADO DE TRABALHO 9.2. COTAS, MRITOS E VIRTUDES 9.3. TRABALHO, INTERMEDIAO E CONFLITOS 9.4. O BOM TRABALHADOR DEFICIENTE 9.5. O PREO DA INCLUSO 10.CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS APNDICES

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1. Introduo

Atuando como mdico, conheci duas pessoas que reforaram meu interesse em estudar em que medida pessoas com deficincia conseguem ingressar, permanecer e progredir no mundo do trabalho e como se d seu processo de incluso. Quando nos encontramos, meu papel era verificar se eram realmente deficientes, pois foram aprovados em vagas especiais de um concurso, e opinar se estavam aptos, do ponto de vista mdico, para o cargo que concorreram.

Assim como atribu pseudnimos a todos que entrevistei neste estudo, a estes chamei de Suzana e Ccero. Em relao Suzana, recordo, em nosso primeiro dilogo, a correo que me fez da expresso portadores de deficincia : estou portando no nada, eu sou uma pessoa . Lembro que no tinha como aferir o peso daquela candidata que, numa cadeira de rodas, mal conseguira entrar na sala de exame, em razo do espao exguo. Nossa conversa rumou rapidamente para o despreparo da sociedade, inclusive das empresas e dos profissionais de sade, para lidar com pessoas que apresentam deficincia.

O contato com Ccero foi mais tumultuado, pois, apesar da evidente deficincia fsica que apresentava minha avaliao, recebeu um parecer posterior, de outro mdico, de que no era deficiente. Logo ele, que nunca aceitara tal condio, sempre atuando como normal . Disse-me quela poca que me considero uma pessoa deficiente, no

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mas como as pessoas sempre acharam que sou defeituoso, eu concorri, passei e agora estou pronto a brigar por essa vaga .

Como que buscando se tornar socialmente mais aceitvel, construra uma imagem de sujeito disciplinado, praticante de ciclismo, que carregava consigo revistas de armas, quase como se fosse uma carteira de identidade. Aps ingressar com um recurso administrativo, veio a ser admitido pela empresa, mas a situao inusitada reforou em mim a inquietao sobre quais so os limites entre o normal e o deficiente que e at ponto a deficincia est nas pessoas ou na sociedade.

O protesto de Suzana contra a expresso portadores de deficincia usei para me , que referir a esse conjunto heterogneo de pessoas que apresentam alguma leso ou incapacidade, sugere que h uma denominao consensual. Na verdade, h grande divergncia e comum o uso de expresses portadores de deficincia , pessoas com deficincia , deficientes ou pessoas com necessidades especiais sempre com , mas relativa insegurana quanto a um possvel esteretipo ou uma excessiva generalizao que nos levaria a ignorar a situao especfica que enfrentam.

A expresso pessoas com necessidades especiais exemplo, embora preferida por , por muitos, por no enfatizar aspectos tidos como negativos, criticada por tantos outros, por ser genrica demais (DAJANI, 2001), sendo mais aplicvel a uma situao especfica, como por exemplo, uma necessidade educacional especial .

H quem prefira o termo deficiente afirmar a identidade na deficincia, tal como , para se opta pelo termo negro referncia s pessoas de cor preta ou parda, destacam em Medeiros e Diniz (2004).

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Teperino (2001) lembra que, at a metade do sculo XX, quando o Estado passou a tutelar o direito das pessoas com deficincia, prevalecia uma conotao de menos valia, e termos como aleijado, surdo, cego, leproso eram utilizados para denominar pessoas que necessitavam da piedade de outrem que precisavam curados ou ser . Tais termos ainda so muito ouvidos em dilogos informais nos dias de hoje1.

claro que as palavras so datadas e variam de acordo com contextos e interesses. Por exemplo, a palavra cretino de "cristo": numa regio isolada da Sua, havia veio indivduos com vrias deformidades e inteligncia reduzida e para que a populao os tratasse com compaixo, os padres locais lembravam sempre que aquelas infelizes criaturas tambm eram filhos de Deus, "cristos" - em francs, "chrtien" e no dialeto da regio, "cretin". Tempos depois e num diferente contexto, tornou-se uma forma de insulto (MORENO, 2002).

Dentre as expresses atualmente correntes, utilizarei com mais freqncia pessoas com deficincia explicitar que h uma diferena, sem, todavia, caracterizar essas por2 pessoas como se fossem eternos portadoresum de problema .

A Organizao Mundial de Sade (OMS), no documento International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (WHO, 19803), utilizou a denominao portadores de deficincia , definidos como pessoas com necessidades especficas resultantes da perda ou anormalidade de uma estrutura ou funo psicolgica,1

relevante registrar desde logo que a questo da deficincia ainda freqentemente tratada no territrio da piedade e da compaixo e no dos direitos e da cidadania. 2 A identificao da deficincia enquanto um problema ouvida no discurso de pessoas ligadas diretamente ainda questo como, por exemplo, numa recente reunio que participei, numa entidade de pais e amigos de deficientes, em que vrios pais se referiam ao fato de poder estar conversando sobre o problema tm, convivendo com que famlias que tinham o mesmo problema casa. em 3 Aprovado na assemblia da OMS de maio de 1976.

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fisiolgica ou anatmica, temporria ou permanente . Denominava de incapacidade a restrio da habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal pelo ser humano.

O mencionado documento tinha o subttulo de Manual de classificao das conseqncias das doenas que j deixa evidente que, embora inclusse fatores , o sociais na descrio das desvantagens (handicap 4), o social tido como mero agravante da leso, sendo esta a verdadeira causadeficincia. da

Tal impresso confirmada quando examinamos como o manual (OMS, 1989) apresenta as classificaes nos seus quatro captulos: no primeiro, trata das conseqncias das doenas e a aplicao dos conceitos; no captulo 2, apresenta a classificao das deficincias (intelectuais; outras psicolgicas; de linguagem; da audio; da viso; dos outros rgos; msculo-esquelticas; estticas; das funes gerais, sensitivas e outras); no captulo 3, trata da classificao das incapacidades (no comportamento; na comunicao; no cuidado pessoal; na locomoo; no

posicionamento do corpo; na destreza; face s situaes 5; outras restries da atividade); e, no captulo 4, classifica as desvantagens (na orientao; na independncia fsica; na mobilidade; na capacidade de ocupao; na integrao social; na independncia econmica; outras desvantagens).

Aps intensas crticas de movimentos de deficientes, a OMS passou a caracterizar que qualquer dificuldade ou limitao corporal, permanente ou temporria, pode levar a uma4

Nos pases de lngua inglesa, o conceito de handicap (que, numa traduo literal, significaria chapu na mo , sugerindo a idia dos deficientes como pedintes) sofre grande rejeio (DINIZ, 2003). 5 Inclui dependncia de equipamentos ou procedimentos especiais que assegurem a sobrevivncia, assim como a incapacidade perante fatores ambientais, como temperatura, clima, rudo, poeira e stress.

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deficincia, a depender da relao corpo-sociedade. Ao unificar e padronizar, na Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade - CIF, um sistema de descrio da sade e de estados a ela relacionados, definindo os componentes da sade e alguns componentes do bem-estar relacionados sade , passou a destacar a capacidade efetiva das pessoas (CBCD, 2001; CIF, 2003), sejam idosos, gestantes ou pessoas com alguma leso permanente, incorporando parcialmente que a deficincia e a incapacidade esto relacionadas a processos sociais e contextos culturais (CHAPIREAU; COLVEZ, 1980; AMIRALIAN, PINTO e outros, 2000; JOHNSTON; POLLARD, 2001).

Dada a importncia do documento em relao mudana de paradigma operada na OMS, destacamos como a CIF (2003) est estruturada:

-

oito captulos sobre as funes do corpo (funes mentais; funes sensoriais e dor;

funes da voz e da fala; funes dos sistemas cardiovascular, hematolgico, imunolgico e respiratrio; funes dos sistemas digestivo, metablico e endcrino; funes geniturinrias e reprodutivas; funes neuromusculoesquelticas e

relacionadas ao movimento; funes da pele e estruturas relacionadas); oito captulos relativos s estruturas do corpo (estruturas do sistema nervoso; olho,

ouvido e estruturas relacionadas; estruturas relacionadas voz e fala; estrutura dos sistemas cardiovascular, imunolgico e respiratrio; estruturas relacionadas aos sistemas digestivo, metablico e endcrino; estruturas relacionadas ao sistema geniturinrio e reprodutivo; estruturas relacionadas ao movimento; pele e estruturas relacionadas);

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-

nove captulos relativos s atividades e participao (aprendizagem e aplicao de

conhecimento; tarefas e demandas gerais; comunicao; mobilidade; cuidado pessoal; vida domstica; relaes e interaes pessoais; reas principais da vida6; vida comunitria, social e cvica); cinco captulos sobre fatores ambientais (produtos e tecnologia; ambiente natural e

mudanas ambientais feitas pelo ser humano; apoio e relacionamentos; atitudes; servios, sistemas e polticas).

Esta classificao reflete o relativo consenso de que a deficincia exacerbada por conta de fatores scio-culturais e que no , necessariamente, resultante de uma doena ou deva o indivduo ser considerado doente. Todavia, a CIF no acolhe a concepo que a prpria existncia da deficincia ou pode ser um produto sciocultural, tema que aprofundaremos.

Ainda que fossem utilizados apenas critrios biomdicos, seria impossvel no reconhecer que as pessoas com deficincia representam um conjunto de grande complexidade, pois, alm da sua diviso pelos tipos gerais de leso ou incapacidade fsica, mental, sensorial e suas combinaes, existe um grande nmero de especificidades: deficincia congnita7 ou adquirida; mais ou menos rara; ocorrendo uma patologia, pode ser incurvel, crnica, letal, etc.; os graus de incapacidade, como j referido anteriormente, podem variar no contexto e no tempo; por tipo de atividade produtiva desenvolvida ou ausncia dela; pela existncia de vnculo empregatcio; se6 7

Inclui Educao; Trabalho e Emprego; e Vida Econmica. Uma estatstica de leses congnitas no mundo, foi publicada pela OMS no Atlas of Birth Defects World (WHO, 2003). Os dados do Brasil, referentes ao perodo 1993-1998, destacam como de maior prevalncia as seguintes patologias: Hidrocefalia (19,28); Sndrome de Down (15,01); Lbio leporino, com ou sem fenda palatina (11,93) e Espinha Bfida (11,39), para cada grupo de 10 mil nascimentos (vivos ou mortos).

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existe suporte familiar ou no; se h acesso habilitao ou reabilitao; por gnero; segundo etnia; conforme idade; por status social; conforme escolaridade, etc.

Sabe-se que outras variveis podem demonstrar uma diversidade ainda maior no grupo, em especial aquelas que caracterizam a condio de pobreza, situao em que pessoas com deficincia se tornam mais vulnerveis (WHITE; INGSTAND, 1995), como, por exemplo, pelo limitado acesso educao e servios de sade, ou pela maior exposio violncia, uma das causas principais de deficincia fsica (ONU, 1992). O fato de ser deficiente e pobre faz com que a pobreza seja acentuada e, em razo disto, a alta prevalncia de deficincia numa sociedade considerada um indicador de pobreza (GROCE, 2003).

Por terem algumas caractersticas comuns, tais como diferenas corporais, limitaes em atividades da vida diria e excluso pela sociedade, Fougeyrollas8 (2003) define como artificialmente fragmentadosseguintes grupos de pessoas: da terceira idade; os com deficincia depois de um problema fsico ou sensorial; com dficit intelectual; traumatizadas depois de uma ferida de guerra, de um acidente do trabalho, de trnsito, domstico; que tm um problema de sade mental; que tm uma doena crnica; e mesmo os que no querem ser identificados como portadores de deficincia.

Ao se fazer tal reconstituio universo das pessoas com algum grau de do incapacidade ou leso, h um grande aumento da populao denominada como deficiente, o que, em tese, d a esse grupo uma maior influncia sobre as polticas

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Informao pessoal de Patrick Fougeyrollas em Conferncia realizada em Salvador, Bahia, em jul. 2003, com o tema Identidade, Diferenas Corporais e Funcionais e Processo de Produo da Deficincia no Plano da Participao Social .

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pblicas que viabilizem, por exemplo, melhor acessibilidade. Em contrapartida, pode diluir aspectos mais especficos do que at agora se considerou deficincia.

So elementos de uma afirmao de identidade, de classificatrias lutas , disputandose o monoplio de impor a definio legtima da diviso do mundo social em busca de espao poltico-social e fora simblica (BOURDIEU, 1996) e definir quem ou no deficiente uma prtica social que envolve exerccio desigual de poder (WENDELL, 1996).

So ainda hegemnicos em nossa sociedade, discursos e formulaes de que a deficincia uma questo individual e tm alguns elementos em comum: abordam a deficincia como um campo de expertise profissional; utilizam um paradigma positivista; enfatizam a preveno primria, nesta incluindo condies biolgicas e ambientais; caracterizam deficincia como incapacidade em relao aos no deficientes; geralmente tratam da incluso de pessoas com deficincia como uma responsabilidade privada; destacam as condies individuais como o ponto primrio de interveno (RIOUX, 2002).

Todavia, como ressaltam White e Ingstand (1995), tem crescido a conscincia de que a deficincia algo que pode ocorrer a qualquer um, ainda que temporariamente, e que preciso estudar questes como a relao entre deficincia, organizao social, posio social e os diferentes contextos histricos e culturais.

Dentre vrios exemplos que mencionaremos de estudos no baseados em classificaes biomdicas, est uma investigao feita numa populao tamashek (tuareg), na frica, que desenvolveu outras noes de deficincia, tais como a velhice

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(causando dependncia fsica), a feira (dificultando o casamento) ou o nascimento ilegtimo (prejudicando o reconhecimento social), o que ressalta uma viso distinta de cultura e personalidade (WHITE; INGSTAND,1995).

Groce e Zola (1993) destacam que a maior parte da literatura sobre reabilitao trata apenas dos pases considerados desenvolvidos e opta quase sempre por um enfoque dos fatores biomdicos, ao invs dos scio-culturais.

Um estudo dos mais relevantes para a definio da deficincia o que Groce (1985) fez numa comunidade dos Estados Unidos em que boa parte da populao era surda, sendo por isso comum que a populao em geral falasselinguagem dos sinais. a Mostra como importante conhecer alm dos aspectos biomdicos, pois, ainda que eles existam de forma marcante, podem no representar efetiva desvantagem.

Com base num argumento culturalista e a idia de que a surdez apenas uma variao humana, algumas Comunidades Surdas Estados Unidos e Reino Unido se dos comparam s comunidades imigrantes - que no falam a lngua dominante por limitao de aprendizado, enquanto que eles, por uma limitao fsica, falam a sua prpria lngua, dos sinais, que seria base de uma cultura especfica. A defesa da sua identidade to radical que, diante da possibilidade de exercer sua autonomia reprodutiva e selecionar embries, preferem aqueles que apresentam o trao de surdez, de modo a ter filhos que melhor se harmonizem com sua famlia e a Cultura Surda que questo , o biotica das mais relevantes (DINIZ, 2003a).

De outro modo, em muitas comunidades nativas norte-americanas, a deficincia e a doena crnica vista como manifestao da desarmonia entre o indivduo, a famlia, a

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comunidade e o universo, o que s pode ser modificado pelo retorno harmonia e no atravs de intervenes clnicas e de reabilitao sobre o indivduo (THOMASON, 1994).

Murphy (1990, 1995), antroplogo que apresentou doena crnica incapacitante progressiva, relatou sua prpria experincia de adoecimento progressivo, em que foi percebendo mudanas no seu crculo social, passando a uma condio de quasehumano , medida que a deficincia fsica tratada como se fosse uma coisa distante, que no acontece s pessoas respeitveis .

Tratando da sua situao, de algum que estava entre as pessoas normais e passou condio de deficiente ou incapaz, o autor destaca os seus ritos de passagem: um primeiro momento, de isolamento e instruo sobre a gravidade do diagnstico que recebera; um segundo momento, de ressurgimento para a sociedade; e um terceiro, de reincorporao social com uma nova identidade.

A autobiografia de Murphy (1990, 1995) ratifica o escreveu Goffman (1963) a respeito do estigma e da manipulao da identidade deteriorada relao complexa entre o -a estigmatizado e a sociedade, envolvendo novas iniciativas e comportamentos tanto do desacreditado ou desacreditvel , quanto dos normais seu rito de passagem, . No Murphy observa que comum se ensinar a uma criana que ela no deve olhar para um deficiente e essa seria uma das formas mais eficazes de segregao.

Noutro estudo que procura captar o olhar da pessoa com deficincia, Monks e Frankenberg (1995) analisam histrias de vida a partir de livros escritos por oito pacientes que tiveram diagnstico de esclerose mltipla, uma doena incapacitante

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progressiva. Nos textos, elas encontram trs momentos tpicos: o comeo - quando recebem o diagnstico e a vida se desorganiza, passando a existir uma exclusiva concentrao na doena e no corpo, com de estranhamento do prprio corpo sinais ;a fase intermediria - quando a vida tende a se equilibrar da melhor maneira possvel, no havendo padro; e a parte final, quando os relatos variam muito no confronto de dois grupos - os que so e os que no so profissionais de sade, com aqueles tendendo a uma maior aceitao, ajuste e reproduo de condutas esperadas.

Discutindo o controle da informao que pode levar uma pessoa a ser estigmatizado numa sociedade, Goffman (1963) chama de acobertamentosituao em que a a pessoa est pronta a admitir que tem um estigma (em muitos casos, porque seu defeito conhecido ou imediatamente visvel), mas, no obstante, pode fazer um j grande esforo para que no aparea muito, de modo a facilitar sua convivncia, evitar constrangimento para si e para os outros, alm de evitar um maior isolamento. Isso tanto pode valer para um idoso que busque uma aparncia mais jovem, ainda que todos saibam sua idade, como no caso de um cego, que utilize culos escuros e encare seu interlocutor, como estivesse a enxerg-lo.

Murphy (1995), contudo, procura ressaltar que a estigmatizao muito mais um subproduto da deficincia do que sua substncia e contextualiza a condio de ser deficiente fsico numa sociedade como a estadunidense, que cultua o corpo perfeito como imperativo esttico e mais ainda como imperativo moral. Isso chama novamente nossa ateno para o fato de que o problema est na sociedade e no nas pessoas estigmatizadas.

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Neste particular e em contraposio ao modelo biomdico sido desenvolvido, , tem desde a dcada de 1960, um modelo social da deficincia da opresso (ou teoria social partir de movimentos sociais vinculados s causas das pessoas com ), a deficincia e experincia de pesquisadores que tm deficincia.

Um dos pioneiros deste modelo social da deficincia e liderana do movimento das pessoas com deficincia na Inglaterra, Oliver (1996, 1998) considera que a deficincia uma questo scio-poltica, ressaltando que o modelo biomdico pode ser interessante para definir tratamentos e traar algumas polticas de educao ou bem-estar, desde que no se perca de vista que o esforo principal a ser feito no o de curar incapacidades ou restaurar uma dita normalidade, mas sim estabelecer polticas sociais e econmicas que desafiem a excluso das pessoas rotuladas como deficientes.

Criticando a da normalizao oferece s pessoas com deficincia a teoria , que oportunidade de assumirem certos valores sociais mais privilegiados numa sociedade desigual, Oliver (1999) defende uma social materialista asseguraria s teoria que pessoas com deficincia a oportunidade de mudar suas prprias vidas, num processo de transformao social que eliminaria os privilgios para certos papis e valores 9.

9

Ao revisar a contribuio das diferentes teorias para os estudos da deficincia, Oliver (1998) considera que o positivismo tem dominado os estudos nessa rea, com pesquisas geralmente buscando, atravs de mtodos estruturados, conhecer variveis objetivas, mas desprezando a subjetividade dos que vivem a experincia da deficincia ou incapacidade; critica a influncia da teoria funcionalista nos estudos e intervenes do modelo biomdico, que visaria curar e manter dentro do funcionamento normalindivduos e a sociedade, confundindo os incapacidade e deficincia com doenas, assim como tratando as pessoas com deficincia como um grupo homogneo; d nfase, no chamado construcionismo social, ao fato de antroplogos e historiadores mostrarem como diferentes sociedades produzem certos tipos de doena, incapacidade ou deficincia, mas critica o fato de ainda abordarem as pessoas com deficincia em abstrato, como se fosse distinto do resto da raa humana; diz que os psmodernistas procuram ver a sociedade sem nfase nas classes sociais, mas em outros tipos de diferenas sexo, etnia, sexualidade e deficincia, opinando que, embora poucos, os estudos especficos sobre deficincia tm tido o mrito de relativizar o conceito de corpo saudvel, permitindo que se veja que apresentar uma incapacidade no significa, necessariamente, no ter sade; reserva o autor, todavia, destaque para a denominada teoria crtica, que v

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Os estudos que analisam a deficincia como uma questo social, tm caractersticas comuns: assumem que a deficincia no inerente ao indivduo independentemente da estrutura social; do prioridade a aspectos polticos, sociais e ambientais; reconhecem a deficincia mais como uma diferena do que como uma anomalia; tratam da incluso das pessoas com deficincia como uma responsabilidade pblica; destacam as condies sociais, ambientais e econmicas como ponto primrio de interveno (RIOUX, 2002).

Analisando as semelhanas entre os movimentos estadunidenses feministas, antiracistas e das pessoas com deficincia, Asch (2001) vale-se de elementos tericos da denominada racial crtica se desenvolveu em meio luta pelos direitos teoria , que civis nos EUA, e destaca as similaridades entre as trs situaes (relativas a gnero, etnia e deficincia). A autora, que faz questo de destacar sua condio de mulher, judia e cega, recusa, todavia, o modelo minoritrio tenderia a isolar as grupo , que pessoas com deficincia. Defende o que chama de modelo da variao humana , argumentando que preciso que a sociedade assimile as pessoas com deficincia assim como assimila, por exemplo, as pessoas com corpos de diferentes tamanhos, do que resulta a fabricao de diferentes tamanhos de vesturio.

Francis e Silvers (2000) tambm abordam a questo da deficincia no escopo dos direitos civis, destacando desde o simples direito de estar no mundo que se , sem considere que a deficincia uma tragdia, at o direito igualdade.

a deficincia e a incapacidade como produto de uma sociedade desigual que oprime, prejudica e discrimina as pessoas mais do que a deficincia em si, disseminando uma ideologia que perpetua barreiras e excluso.

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So muitos os pesquisadores que apresentam deficincia e so referncias importantes, possibilitando-nos compreender melhor a complexa situao da pessoa identificada ou identificvel por uma deficincia ou outra condio que a exponha ao estigma social, inclusive para aquele que assume uma condio de liderana grupal (GOFFMAN,1988).

Foram pesquisadores com deficincia, tais como Anita Silvers, Adrienne Asch e Michael Oliver, que redirecionaram os estudos sobre deficincia, antes fixados na reabilitao mdica e na pedagogia.

Sabemos que viver a experincia uma condio privilegiada para o olhar antropolgico sobre uma dada questo, ainda que levando em conta que toda comunidade fala com mltiplas vozes, algumas delas detendo maior domnio do uso da cincia que outras. Por isso, devemos sempre ter em conta que, se a experincia elimina grande parte da condio de estrangeiro o pesquisador tem, pode trazer que consigo um envolvimento que no o permita escutar outras vozes e experincias (BIBEAU, 1992).

De fato, foram vozes e experincias de pesquisadoras no deficientes, que estudavam o papel da mulher enquanto cuidadora, que chamaram ateno para o fato de que nem toda deficincia pode ser superada com a eliminao de barreiras sociais, demonstrando que no pode haver uma sobrevalorizao da independncia (DINIZ, 2003b) tal como havia originalmente no modelo social j referido.

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Para Wendell10 (1996), assim como a anlise feminista de gnero foi socialmente construda levando em conta as diferenas entre homens e mulheres, preciso desenvolver a compreenso sobre a deficincia considerando a sociedade como um todo e no apenas as pessoas com deficincia.

No Brasil, as pesquisas da deficincia, em sua quase totalidade, esto centradas na viso biomdica e pedaggica. Ainda que o modelo social citado, persiste a seja superposio de leso e deficincia.

Isso ocorre, possivelmente, porque o prprio movimento das pessoas com deficincia em nosso pas, diferentemente dos Estados Unidos e Inglaterra, recente e as aes de incluso escolar e mesmo de obteno do direito assistncia sade so conquistas elementares ainda por fazer, de modo a ultrapassar a fase em que as pessoas com deficincia eram segregadas da vida social.

A conquista de alguns direitos relativos ao trabalho um dos sinais de que mudanas comeam a ocorrer na sociedade brasileira, ainda mais se consideramos o grande potencial de incluso social que o trabalho tem, enquanto fator de afirmao da criatividade e da capacidade produtiva de todas as pessoas.

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Filsofa e feminista que desenvolveu uma doena incapacitante (encefalomielite milgica) aos 45 anos de idade. Seus estudos foram essenciais para inscrever as doenas crnicas incapacitantes no leque das deficincias.

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2. Deficincia e incluso

A afirmao do conceito de pblico uma herana do Iluminismo. Num foi primeiro momento, a esfera pblica estava restrita segurana pblica e alguns poucos bens, como estradas e servios sanitrios, mas sua abrangncia progressivamente foi ampliada, at que se tornou indistinguvel das polticas e programas de bem estar social (DRACHE, 2002).

Por vrias dcadas, aps a segunda guerra mundial e a consolidao da Unio Sovitica, o mundo ocidental, em particular a Europa, conviveu com os conceitos de estarjustia social bem e enquanto bem pblicos, a serem garantidos pelo Estado. No estado do bem estar social conceito de cidadania era central, moralmente , o fundado na noo liberal de Justia, a partir da qual era obrigao do Estado assegurar necessidades bsicas de sobrevivncia e autonomia.

Todavia, a crise econmica e ideolgica que se seguiu dcada de 1970 interrompeu este perodo. A concepo neoliberal, que passou a orientar os governos desde ento, fez reduzir a abrangncia das aes do Estado, em especial nas reas sociais, impondo o preceito de que o mercado que deve regular as relaes sociais.

Cada vez mais, as necessidades sociais passaram a ser vistas de forma restritiva, na variedade e destinao. Muitas das funes sociais do Estado passaram a ser atribudas ao mercado, considerado mais eficiente, numa tendncia de privatizao do bem estar socialideologia da eficincia do mercado e o monetarismo se associam .A

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poltica de limitao de direitos sociais. Os critrios de elegibilidade para obteno de benefcios sociais j no so mais os de cidadania, voltando a prevalecer os critrios de caridade, por meio dos quais se afirma a suposta prioridade aos idosos, deficientes e incapazes (RIOUX, 2002).

A concepo da sociedade enquanto um mercado de trabalho um dos elementos centrais da crescente excluso social (DRACHE, 2002), que atinge expressivos segmentos da sociedade, geralmente com pouca representao poltica e raras oportunidades de acesso ao trabalho. Tal excluso expressa-se, ainda, em barreiras culturais, educacionais, tnicas, econmicas, arquitetnicas, etc., criando restries por classe, gnero, raa, religio, ideologia e capacidade fsica ou mental.

Ademais, a globalizao agravou as condies de acesso ao mercado de trabalho, ao estabelecer a flexibilidade das relaes como regra a ser seguida, tornando-o mais moldvel aos interesses do capital que transita de pas a pas. Temos hoje um mundo que aprofunda a oposio entre a liberdade global de movimentos, indicativa da promoo social, progresso e sucesso, e o mundo dos excludos, confinados no medo, acesso a locais que outros facilmente freqentam, exploram e desfrutam sem (BAUMAN, 1999).

O modelo hegemnico preconiza indivduos competentes e eficientes, de modo a serem competitivos no mercado e na vida, o que torna bastante limitado o espao para as diferenas individuais e faz predominar a intolerncia (BASTOS, 2002).

A sociedade dos dias atuais alterna excluso com incluso, de modo a definir um padro de consumo e de vida, bem como para estabelecer certo equilbrio para que no

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haja total excluso ou o inverso. Alguns tipos de incluso podem existir como forma de justificar novas excluses (YOUNG, 2001).

O desafio posto desviar a balana para o lado da incluso, ou mais especificamente, da igualdade, signo que marcou o nascimento da cidadania e do prprio Estado moderno, a quem caberia garantir que todos os cidados pudessem ter um acesso igualitrio a um conjunto de direitos e deveres11.

Origina-se de Aristteles (1979) a formulao do princpio de "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam", recuperado entre ns por Ruy Barbosa (1949), completando que com tratar desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e no igualdade real ideal de igualdade, em verdade, muito mais antigo que . O qualquer lei de qualquer pas, remetendo-nos ao chamado direito natural, ou seja, direito essencial prpria condio humana12.

A concepo de direito natural firmou-se como um ideal de justia acima das leis dos homens. Inicialmente, como um libelo contra os tiranos, depois, paradoxalmente, usada como a expresso da vontade de Deus (tudo que o ditador ou o "homem de Deus" fazia

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A Constituio do Brasil ressalta, no seu art. 3, que os objetivos fundamentais da Repblica so a construo de uma sociedade livre, justa e solidria e a promoo do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminao, bem como reafirma o direito igualdade, no seu art. 5, dentre as garantias individuais prprias do Estado de Direito.12

A primeira referncia ao direito natural foi feita por Sfocles (494-406 AC) na tragdia de Antgona, filha de dipo e Jocasta, que, mesmo sabendo da proibio do rei Creonte de que fosse dada sepultura ao seu irmo Polinice, decide sepult-lo, enfrentando o tirano com firmeza, ainda que sabendo que tal atitude lhe vai trazer uma condenao terrvel: ordens no valem mais do que as leis no-escritas e imutveis dos deuses, que no so de hoje, nem de tuas ontem, mas de todos os tempos que existem e ningum sabe qual a origem delas. E no seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por viol-las."

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era em obedincia a princpios superiores, considerados acima dos homens e garantia ao bem comum).

Para Espinoza, o direito natural , na poltica, aquilo que chamou, no estudo da essncia humana, de conatus, a potncia interna de agir ou esforo de autopreservao existncia (CHAU, 1995). Na era moderna, todavia, deixou de ter na significao acima da ordem jurdica escrita passou a ser um conjunto de princpios bsicos dos quais o direito positivo teria se derivado. Tais princpios seriam considerados vlidos mesmo se fosse admitido que Deus no existia.

A era do racionalismo foi de proliferao das leis, com a razo humana elevada condio de divindade que deveria reger todas as instituies jurdicas e sociais.

Essa idealizao da razo humana, com caracterstica individualista e abstrata, levou idia de uma ordem jurdica acima das leis ento existentes. Para o racionalismo, o homem no considerado parte integrante da sociedade, mas a sociedade que construda pela vontade do homem, proveniente de um estado primitivo de natureza, anterior sociedade.

No pensamento de Hobbes, medida que considera que inexiste no homem o instinto de sociabilidade, ele no passa de lobo do prprio homem. Para Locke, todavia, o homem seria, naturalmente, um ser socivel e o prprio estado de natureza um estado social, j que no existe homem, nem estado natural sem sociedade. Nesse estado primitivo de natureza, logram os homens certos direitos, notadamente, os direitos referentes liberdade e ao trabalho. Faltar-lhes-ia, porm, uma autoridade, que lhes garantisse o exerccio e a coexistncia de tais direitos. Da, a organizao poltica,

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obtida mediante um contrato social, visando expressamente garantia dos direitos individuais. A origem e a finalidade do Estado decorrem do mesmo princpio: os direitos primordiais ou naturais do homem. Em troca, ele aceita, no contrato social, determinadas limitaes a seus direitos (SANTOS, 2000).

Ressalta Dumont (1992) que Rousseau, no Contrato Social, define igualdade como norma poltica - o pacto fundamental substitui, por uma igualdade moral e legtima, aquilo que a natureza criou de desigualdade fsica entre os homens. Seu primeiro mrito teria sido o de distinguir entre a desigualdade natural e a desigualdade moral, ou desigualdade de combinao, que resulta da valorizao com fins sociais da desigualdade natural. A desigualdade seria inevitvel em certos domnios e o homem introduziu o ideal de igualdade para compensar este fato - o homem s poderia ser livre se fosse igual, se surgisse uma desigualdade entre os homens se findaria a liberdade.

Bobbio (1992) chama ateno para o fato da Declarao dos Direitos Humanos em 1948 ter representado um terceiro momento no reconhecimento dos direitos essenciais13. Este seria marcado por uma afirmao de direitos universal e positiva universal no sentido de que os destinatrios dos princpios nela contidos no so apenas os cidados deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que pe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem devero ser mais que proclamados ou idealmente reconhecidos, pois sero efetivamente protegidos, at mesmo contra o prprio Estado. No final desse processo, os direitos do cidado tero se transformado, realmente, em direitos do homem.13

O primeiro momento marcado por Locke (que diz que no estado da natureza todos os homens so livres e iguais, mas no h garantia real de tais direitos) e o segundo, na Revoluo Francesa (em que todos os cidados tm direitos).

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certo que, como verificamos nos dias atuais, os direitos liberdade e igualdade so obtidos medida que se luta por eles. E tais lutas apontam, por outro lado, para o que Bobbio chama de multiplicao de direitos busca de proteo s diferenas dos a seres humanos concretos e no apenas ao ser humano em abstrato mulher a diferente do homem; a criana, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporrio, do doente crnico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes (BOBBIO, 1992, p. 69).

Quando emergem movimentos sociais como o de mulheres, tnicos ou de deficientes, reivindicando seus direitos especiais, buscam seu direito diferena de serem tratados desigualmente para que possam obter igualdade real, com conquistas especficas e no direitos humanos abstratos.

Sabe-se que pensar uma sociedade mais inclusiva tanto mais difcil quanto avana a era da globalizao, em que minguam os investimentos sociais e enfraquecida a noo de cidadania.

De todos os problemas colocados pela globalizao, o desemprego atual, denominado de estrutural, dos mais preocupantes, pois uma verso mais profunda e duradoura que as ondas de desemprego havidas at ento. Alm disso, o surgimento de novas tecnologias provoca o crescimento de empregos acessveis apenas queles poucos que conseguem qualificao especfica, o que cria nova rea de excluso.

Para Srgio Costa (2002), as polticas sociais, o desemprego estrutural e a acelerao das possibilidades de aquisio de novas habilidades colocam desafios inditos. Se os direitos sociais foram pensados como prestao temporria e transitria de garantia a

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quem estivesse circunstancialmente alijado do mercado de trabalho, chega-se a um dilema quando a maior parte de uma populao sistematicamente alijada. E se aprofunda o desafio de garantir treinamento e capacitao profissional para segmentos que, em muitos casos, no tero chance de experimentar a relao assalariada regular em toda sua vida.

Ao estudar a insero de pessoas com deficincia no trabalho, Valdelcia Costa (2001a) afirma que a condio humana duplamente negada a este trabalhador, pois, antes mesmo de acessar o mercado de trabalho, lhe so criados obstculos para se inserir no mundo do trabalho, pois, supostamente, lhe faltariam a competncia e habilidade consideradas imprescindveis pelo capital.

freqente que o adolescente ou o jovem com deficincia trace projetos de futuro menos ambiciosos, ao se deparar com as restries de ingresso no mercado de trabalho (BASTOS, 2002), o que particularmente importante nessa fase da vida, pois o trabalho pode ser um meio da pessoa com deficincia desenvolver um sentimento de pertencimento sociedade, aumentando sua auto-estima e segurana no

enfrentamento das barreiras sociais (COSTA, 2001b).

Tratando da questo de salrio e emprego em geral, Castel (1998) critica certas polticas de incorporao de populaes excludas que no consideram caractersticas especficas de cada segmento que objetiva incluir. Argumenta que as polticas de discriminao positiva devem ter em conta que as populaes que dependem de regimes especiais sofrem com uma situao de incapacidade para acompanhar a dinmica da sociedade, seja porque so afetadas por alguma desvantagem, seja

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porque dispem de poucos recursos para se adaptarem ao ritmo do progresso (p. 538).

Paradoxalmente, assinala Castel (1998), indispensvel que, neste perodo caracterizado pelo fortalecimento do liberalismo e pela celebrao da empresa , o Estado intervenha para garantir polticas sensveis realidade especfica desses segmentos, que no sero normalmente beneficiados pelas polticas baseadas num padro populacional homogneo.

Por outro lado, um caminho essencial para construir um processo de incluso recuperar o sentido de pblico para alm dos governos, abrangendo interesses pblicos, espaos pblicos, cultura pblica e instituies pblicas, de modo a desafiar a sociedade civil e o governo a destacarem a incluso como prioridade, tanto na agenda econmica, quanto poltica e social.

Drache (2002) destaca trs segmentos pblicos como fundamentais para promover a incluso e prevenir a excluso: 1) acesso a servios bsicos como sade, educao, habitao, etc., eliminando barreiras no apenas arquitetnicas, mas tambm atitudinais; 2) garantia de segurana, com prticas e polticas que no exponham a populao a riscos ou situaes de vulnerabilidade; 3) acesso aos meios de informao e comunicao.

Uma sociedade que se prope a ser inclusiva pode adotar muitas prticas para eliminar processos de excluso, mas isto nunca ser fcil se a eliminao de barreiras incluso no estiver no topo das prioridades, enfatiza Drache (2002), que sistematiza trs opes polticas que as sociedades escolhem: ignorar as polticas de incluso e ser

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indiferente s novas formas de excluso; deixar por conta dos indivduos fazer o melhor que podem e adotar apenas algumas poucas medidas para mudar as condies sociais para sua incluso; ou adotar um caminho de mobilizao e conscincia das pessoas e instituies, que d contas das medidas complexas e persistentes para viabilizar processos de incluso.

No Brasil, de um modo geral, podemos afirmar que fazemos as duas primeiras opes em relao s pessoas com deficincia, visto que a mobilizao ainda restrita a alguns centros e com pouco envolvimento do conjunto da sociedade e do Estado.

Tratando da incluso das pessoas com deficincia, Rioux (2002) afirma que a globalizao reforou a idia de que a abordagem da deficincia situa-se mais no campo do domnio privado do que do pblico, numa espcie de privatizao da deficincia e chama a ateno que esta uma rea em que no se pode prescindir da responsabilidade pblica, uma vez que no basta que haja desenvolvimento tecnolgico e interesse do mercado - preciso que a questo da deficincia seja tratada como uma questo pblica, tanto na eliminao de barreiras ambientais, culturais e econmicas, quanto no desenvolvimento das polticas sociais.

As polticas sofrem grande influncia do modelo utilizado na abordagem da deficincia. O modelo biomdico enfoca o indivduo e suas incapacidades, enquanto o modelo social enfoca as barreiras que o deficiente enfrenta no dia a dia, tanto individual, quanto coletivamente. Em outras palavras, a primeira distino crucial a fazer saber onde est centrado o problema deficincia. Segundo, em funo do modelo escolhido, da definir a abordagem da deficincia centrando no que as pessoas no podem fazer ou

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ou no que precisa ser modificado na sociedade para permitir a participao social, cultural e econmica.

A diferena da natureza da deficincia repercute nas proposies a serem feitas: no modelo mdico, no vai alm de buscar meios de ajuda aos indivduos para que consigam se adequar a uma vida com deficincia, abrangendo desde medidas teraputicas at apoio para obteno de emprego; no modelo social, prope mudar instituies, estruturas e formas de organizao social que criam desvantagens e barreiras para as pessoas com deficincia, abrangendo mudanas mais abrangentes na sociedade (ZARB, 1995).

Tais mudanas, de acordo com o modelo social, a exemplo da remoo de barreiras fsicas e culturais, beneficiariam a todos e no apenas aos deficientes. Asch (2001) ressalta que as transformaes sociais tm que ser mais amplas que a simples integrao pessoas com deficincia, o que no se faz apenas com leis, mas com das mudanas culturais profundas, exemplificando que a lei contra discriminao no d conta de uma srie de tratamentos inadequados e discriminatrios que as pessoas com deficincia cotidianamente sofrem.

Durante muito tempo, a nica estratgia scio-cultural para os deficientes foi sua segregao, de modo a oferecer-lhes, em escolas especiais, o estmulo s suas habilidades (METZEL; WALKER, 2001). A proposta de incluso rompe com a segregao, mas no se restringe a criar situaes de integrao e convvio social para esses indivduos, buscando, mais que isso, assegurar-lhes direitos de cidados.

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Sistematizando a relao da pessoa deficiente com o mercado de trabalho, Sassaki (1999) identifica quatro fases, opinando que estaramos na transio entre as duas ltimas: 1) excluso quando se considerava uma crueldade que deficientes trabalhassem, prevalecendo o protecionismo e a viso de que os deficientes no tinham capacidade laborativa; 2) segregao quando as pessoas com deficincia ficavam internadas em instituies e ali trabalhavam, com remunerao baixa e sem vnculo de emprego, ainda prevalecendo o elo paternalista; 3) integrao quando as pessoas j obtm vnculo de emprego, mas no se faz qualquer adaptao nas empresas, salvo pequenos ajustes nos postos de trabalho e com freqncia so criados setores exclusivos de deficientes; 4) incluso que o mundo do trabalho tende a considerar em os dois lados, o da pessoa com deficincia e o da empresa, que precisam ser preparados para uma nova relao de convvio, uma situao de incluso.

Na verdade, possvel identificar no Brasil exemplos de todas essas quatro situaes, embora, no que se refere s polticas pblicas, estejamos situados principalmente na situao de estmulo integrao.

Para desenvolver tais polticas, preciso contar com um bom sistema de informao. Contudo, a qualidade dos dados relativos a emprego de pessoas com deficincia geralmente no boa, ou porque so mal registrados ou devido a diferentes definies de emprego. Em pases em desenvolvimento, freqentemente, estes dados no existem. Todavia, h evidncias de que as taxas de desemprego de pessoas com deficincia so altas em todo o mundo, especialmente em pases em desenvolvimento.

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Nos EUA, apenas 14,3 milhes de uma populao estimada em 48,9 milhes de deficientes eram empregados em 1991-1992. Na ustria, 69% dos deficientes registrados foram relatados como empregados em 1994. Em 1996, foi estimado que no mais de 30% das pessoas com deficincia na Blgica estavam empregadas. Apenas 48,2% das pessoas com deficincia no Canad estavam empregadas em 1991. Na Comunidade Europia, dados oficiais admitem que as pessoas com deficincia tm nveis de desemprego duas a trs vezes maior que o resto da populao (METTS, 2000).

O trabalho, enquanto trao constitutivo do prprio ser humano, capaz de antever o que produz14, e condio necessria da sua sociabilidade (MARX, 1987), tem sido questionado nas ltimas dcadas.

Para alguns autores, o trabalho teria deixado de ser uma categoria sociolgica central (OFFE, 1989) e a produo de riqueza desvincula-se cada vez mais do uso da fora de trabalho, na seqncia da revoluo microeletrnica, ou seja, que alcanamos uma era do fim do trabalho (GRUPO KRISIS, 2003)15. Todavia, embora a inovao tecnolgica reduza a necessidade de trabalho humano em muitos postos, termina por criar outros, nem sempre diminuindo o volume global de empregos.

sabido que o trabalho assalariado cada vez mais precarizado, empregos se

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distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la O que em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador (MARX, 1987, p. 202). 15 O Manifesto contra o trabalho, publicado na Alemanha em 1999, pelo Grupo Krisis, um libelo contra a sociedade do trabalho e conclama formao de unies mundiais de indivduos livremente associados, para que arranquem da mquina de trabalho e valorizao que gira-em-falso os meios de produo e existncia tomando-os em suas prprias mos , fazendo da crtica ao capitalismo e ao neoliberalismo um ataque s concepes marxistas de transformao social (GRUPO KRISIS, 2003).

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desintegram,

se

amplia

a

terceirizao,

os

trabalhadores

so

socialmente

desvalorizados e a explorao das suas capacidade fsicas e intelectuais se intensifica. Estes so fenmenos das transformaes do sistema capitalista aps a revoluo tecnolgica da segunda metade do sculo XX e do processo de internacionalizao do capital.

A tese do fim do trabalho e da perda da sua essencialidade termina, ao nosso ver, por servir de argumento ao neoliberalismo, pois normaliza a idia de que no h alternativa de proteo ao trabalho, muito menos caminho para os trabalhadores libertarem o trabalho.

A ampliao de oportunidades para as pessoas com deficincia envolve, alm da normal complexidade do mundo do trabalho, polticas adequadas de habilitao e reabilitao, incentivos financeiros, polticas educacionais e a promoo de relaes positivas, o que no uma tarefa simples, exigindo planejamento, negociao e mobilizao (SCOTT-PARKER, 1998; SHREY, 1998; TRAIFOROS; PERRY, 1998).

Para promover a incluso no mercado de trabalho, Sassaki (2002) prope cinco linhas de ao: 1) modificao das instituies especializadas e das empresas comuns prope que as instituies se preparem melhor e que as pessoas com deficincia tenham maior poder16 de escolha e autonomia, enquanto as empresas, precisariam viabilizar condies essenciais de acessibilidade arquitetnica, atitudinal e

programtica; 2) planejamento da interveno para curto, mdio e longo prazo; 3) atualizao dos servios educacionais e profissionalizantes realidade do mercado de16

O que tem sido chamado de empoderamento , traduo direta de empowerment, termo muito utilizado pelos movimentos sociais nos EUA.

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trabalho; 4) fomento transio entre a escola e o mundo do trabalho, de modo a viabilizar a efetiva incorporao no trabalho das pessoas qualificadas e/ou reabilitadas; 5) envolvimento da escola no processo de transio do aluno para o mercado de trabalho, desenvolvendo tambm aes especiais que envolvam empresas e17 comunidade para a realizao de programas de emprego apoiado durante o tempo

que for necessrio para alunos com deficincias mltiplas ou mais severas.

A realidade brasileira, entretanto, particularmente adversa, pois as relaes de trabalho se estruturaram com elevada instabilidade no emprego, grande rigidez na definio dos postos de trabalho e um frgil elenco de aes sociais compensatrias por parte do Estado. Por outro lado, destaca-se o grande dficit de educao, resultando na baixa escolaridade da nossa populao e no sucateamento da rede escolar pblica, fatos agravados pela compreenso de que o sistema de formao profissional no assumido como prioritrio pelo Poder Pblico (GUIMARES, 2002).

Nesse contexto, surge a necessidade de aes afirmativas, tais como o chamado sistema de cotas essencial que trataremos adiante. , tema

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Com apoio individualizado e contnuo.

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3. Objetivos e mtodos

Neste estudo, busquei analisar em que medida as polticas de obteno, garantia e progresso no emprego de pessoas portadoras de deficincia fsica as tem includo no mundo do trabalho, reservando ateno especial ao sistema de cotas enquanto estratgia principal de incluso preconizada nas polticas pblicas.

Para isso, procurei conhecer e analisar a trajetria dessas pessoas at obterem um trabalho, suas relaes familiares e as modificaes de identidade trazidas com a deficincia; quis conhecer e analisar os valores, crenas e conceitos relacionados com as pessoas com deficincia fsica nas suas famlias e nas empresas em que trabalham.

Busquei ainda conhecer e analisar como se d a seleo, incorporao, manuteno e progresso no trabalho e quais as medidas adotadas para adequao das barreiras fsicas, sociais e culturais que dificultam a incorporao das pessoas com deficincia.

Por outro lado, procurei conhecer e analisar as relaes das pessoas com deficincia fsica e as entidades de defesa dos deficientes, assim como a opinio de suas lideranas em relao s polticas de incluso no trabalho.

Considerei como hipteses neste estudo que: a) o modelo biomdico no adequado para orientar polticas de incluso das pessoas com deficincia, uma vez que a deficincia , acima de tudo, um produto social; b) o suporte familiar e a classe social so fundamentais nas chances de incluso social das pessoas com deficincia; c) as estratgias de incluso no trabalho adotadas no Brasil so insuficientes e, para que

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tenham xito, precisam estar associadas a outras medidas polticas, sociais, culturais e econmicas que levem em conta a complexidade do mundo do trabalho e dos sujeitos envolvidos.

Meu anteprojeto original propunha realizar uma tese no campo do chamado direito sanitrio , estudando polticas, normas e experincias de incluso de pessoas com deficincia no trabalho, por certo influenciado pelo fato que a relao entre norma e sade foi objeto da minha dissertao de mestrado, assim como pelo natural conflito interdisciplinar resultante da minha formao em medicina e direito.

Todavia, ao passar a trabalhar com um antroplogo como meu orientador, tal propsito no se sustentou, ante as novas possibilidades de explorar a deficincia, percorrendo histrias de vida e conhecer mais a fundo a questo da deficincia na sociedade, o que s vira superficialmente nas minhas experincias profissionais, em particular enquanto mdico de um hospital pblico de reabilitao e mais recentemente na admisso de pessoas com deficincia em um banco pblico.

Para o estudo da incluso no trabalho, devido ao contato que tinha com o mencionado banco pblico, desenvolvi uma proposta de estudar esta instituio e a trajetria de vidas dos trabalhadores residentes em Salvador e Feira de Santana18 que ingressaram atravs de vagas para deficientes de concurso realizado em 1999, que admitiu na Bahia nove pessoas (quatro na regio metropolitana de Salvador, dois na regio de Feira de Santana, um na regio oeste e dois na regio sul da Bahia).

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Cidade que dista pouco mais de 100 quilmetros da capital baiana.

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A essa altura, j percebera que era necessrio conhecer mais sobre as instituies que lidam com deficincia em Salvador, de modo a verificar o grau de mobilizao das pessoas com deficincia e o processo de capacitao para o trabalho. Foram realizadas visitas Associao Baiana de Cegos (ABC), Associao de Pais e Amigos de Deficientes Auditivos do Estado de Bahia (APADA), Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais de Salvador (APAE), a Associao Baiana de Deficientes Fsicos (ABADEF), Centro de Reabilitao e Preveno de Deficincias (CRPD), Instituto

Pestalozzi da Bahia e Coordenadoria de Apoio ao Portador de Deficincia da Prefeitura Municipal de Salvador (CODEF). Nessas instituies foram entrevistados seis tcnicos e dirigentes. Posteriormente, foi entrevistado um dirigente de entidade de deficientes visuais, para complementar dados sobre o mercado de trabalho, uma vez que atuava em projeto do Ministrio do Trabalho.

Em seguida, aps realizar algumas entrevistas no banco, avaliei que conhecer a realidade de uma s empresa no ampliaria muito a viso do objeto que buscava, pois conheceria apenas a aplicao da poltica de emprego em uma empresa pblica. Ampliei, ento, meu campo de estudo para uma rede de supermercados de Salvador, que chegou a ter 44 pessoas portadoras de deficincia no ano de 2002. No tinha contato prvio com este supermercado, que procurei atravs da sua gerncia de Recursos Humanos, obtendo boa acolhida para o estudo proposto.

A programao das entrevistas no supermercado precipitou uma deciso sobre que tipo de deficincia iria estudar, uma vez que ali havia deficientes fsicos e auditivos, enquanto no banco havia apenas deficientes fsicos. A opo de fixar a populao de estudo dentre as pessoas com deficincia fsica foi tomada pela maior quantidade de

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trabalhadores empregados com este tipo de deficincia, o fato de no ter tido contato ainda com deficientes visuais ou mentais trabalhando e a necessidade de intrprete para entrevistar os deficientes auditivos, o que acrescentaria uma dificuldade importante para a minha anlise.

Por outro lado, ao estudar a populao de duas empresas, uma pblica e uma privada, fui levado a concluir que seria preciso ir alm da comparao entre duas empresas e seus empregados, que deveria conhecer outras situaes de vnculo empregatcio, o que me levou a buscar um grupo de empregados terceirizados nos Correios 19, cujo contato foi feito atravs de uma assistente social que recm conhecera.

Ao mesmo tempo, percebi que no eram apenas as polticas pblicas e as prticas das empresas que objetivava estudar, mas tambm as estratgias das pessoas com deficincia na busca do trabalho e da incluso. Surgiu, ento, a possibilidade de incluir uma juza, ocupante de uma carreira diferenciada do Estado e, aps concluir que seria preciso conhecer a realidade de trabalhadores sem a intermediao de uma organizao, inclui um casal de comerciantes e profissionais liberais, escolhidos segundo facilidade de acesso.

Afinal, a populao de estudo foi constituda de 35 pessoas: 22 trabalhadores com deficincia, seis chefes ou colegas de trabalho desses deficientes e os referidos sete tcnicos e dirigentes de instituies relacionadas deficincia.

19

Optei por explicitar o nome dos Correios pelo fato de ser de conhecimento pblico o seu projeto social Cidadania em Ao , voltado a pessoas com deficincia e pessoas cumprindo pena.

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O processo de coleta foi realizado com a colaborao de uma estudante de Psicologia, com experincia e devido treinamento e utilizamos roteiros de entrevista semi estruturada (em apndice), desenvolvidos a partir de modelo elaborado por Costa (2001b). No decorrer da coleta, passamos a flexibilizar mais o uso do questionrio, o que permitiu um maior enriquecimento dos depoimentos, medida que as pessoas no se sentiam presas a uma determinada pergunta. As seis entrevistas com tcnicos e dirigentes realizadas nas instituies foram baseadas em um roteiro especfico sobre as atividades e caractersticas dessas entidades.

As entrevistas foram gravadas ou anotadas. Os seguintes tpicos foram abordados na entrevista com os deficientes: a) nascimento e infncia (data de nascimento, nmero de irmos mais velhos ou mais novos, idade dos pais, onde passou a infncia, brincadeiras, amigos, escola); b) adolescncia (amigos, escola, namoros); c) famlia (maiores vnculos, situao financeira, apoios); d) trabalho (profissionalizao, experincias anteriores); e)deficincia (se adquirida, principais mudanas na vida, nos projetos pessoais, nas relaes sociais e afetivas, participao em movimentos sociais); f)experincia de trabalho atual (mudanas na vida, relao com amigos e colegas, anlise crtica e acessibilidade).

Foram obtidos termos de consentimento, aps explicitao dos objetivos e a garantia de sigilo e o direito de desistncia do consentimento dado. Para assegurar a confidencialidade das informaes, no feita referncia ao nome das empresas e

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todas as pessoas tiveram seus nomes modificados, salvo as excees mencionadas no texto20.

A seguir (quadro 1), mostrado um resumo de dados pessoais, ocupacionais e de deficincia das pessoas com deficincia entrevistadas. A idade mediana das pessoas com deficincia entrevistadas foi 33 anos, variando de 24 a 53 anos.

Integraram este grupo de deficientes, 13 mulheres, das quais 6 casadas (2 sem filhos, 2 com 1 filho e 2 com 2 filhos); 1 divorciada (sem filhos) e 6 solteiras (sem filhos). Alm delas, foram entrevistados 9 homens com deficincia: 3 casados (2 com 1 filho) e 6 solteiros (2 com 1 filho).

V-se que as leses sofridas e/ou os fatos que a geraram foram principalmente relacionadas a acidentes (5 acidentes com veculos, 1 queda, 1 em mergulho, 1 no especificado) e poliomielite (7 casos). No se buscou aprofundamento das informaes mdicas em relao natureza das leses.

exceo de um bancrio que trabalha e mora na regio de Feira de Santana, todos os entrevistados residem em Salvador e seus locais de trabalho so lojas de uma rede de supermercados, agncias de um banco pblico, na agncia central dos Correios, o Poder Judicirio, uma faculdade privada, um consultrio ou uma pequena loja.

20

No foi colhido termo de consentimento dos 6 tcnicos entrevistados nas instituies.

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Quadro 1 - Resumo de dados pessoais dos entrevistados com deficincia fsica

Estado Civil

Idade

Sexo

Pseudnimo ADEMAR ANA MARIA BEATRIZ CARLA M F F F

N de filhos Ocupao 0 0 0 1 Escriturrio Aux. Administrativo Operadora de Caixa Auxiliar administrativo

Vnculo Banco Correios Supermercado

26 29 31 30

S S C C

Leso Seqela de poliomielite com menos de 1 ano de idade Seqela de poliomielite com menos de 1 ano de idade Seqela de febre reumtica

CCERO CINTIA DANIELA DJALMA EGDIA ELIANA ERALDO IVANA JOS AMRICO

M F F M F F M F M

40 53 43 33 36 29 49 34 25

S D C C C S C S C

0 0 1 0

Escriturrio Juza

Leso em cabea de fmur Supermercado na infncia Hipotrofia de membro inferior e p eqino congnito Banco Governo Federal Pequeno empresrio

0 0 1 0 1

JUSSARA LARISSA

F F

52 46

S C

0 2

NELMA OSCAR PAULO SANDRO SRGIO

F M M M M

46 28 38 24 33

C S S S S

2 0 1 1 0

SILVANA SUZANA

F F

31 32

S S

0 0

Seqela de poliomielite com menos de 2 anos de idade Tetraplegia aps acidente de Comerciante carro aos 33 anos Op. de Encurtamento de membro computador Supermercado inferior Aux. Seqela de poliomielite com Administrativo Correios menos de 2 anos de idade Operadora de Seqela de infeco na Caixa Supermercado medula aos 21 anos Pequeno Tetraplegia aps acidente de Comerciante empresrio carro aos 39 anos Operadora de Seqela de poliomielite com Caixa Supermercado menos de 2 anos de idade Aux. Leso na cabea do fmur Administrativo Correios aps acidente aos 19 anos Perda de um brao em acidente de nibus quando Psicloga Autnomo ia para o trabalho Aux. Seqela de poliomielite com Administrativo Correios 1 ano de idade Op. Caixa Seqela de poliomielite com (aposentada menos de 3 anos de idade por invalidez) Supermercado Paralisia cerebral no Escriturrio Banco nascimento Tetraplegia aps acidente Psiclogo Professor num mergulho aos 18 anos Aux. Encurtamento de perna aps Administrativo Correios acidente aos 8 anos Aux. Paraplegia aps ato mdico, Administrativo Correios aos 2 anos Leso em joelho e brao Auxiliar aps queda com menos de 1 Administrativo Correios ano Tetraplegia aps acidente de Escriturria Banco carro aos 19 anos

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As atividades profissionais que exercem so: 4 escriturrios em banco pblico; 8 auxiliares administrativos (7 como terceirizados nos Correios e 1 num supermercado); 1 professor universitrio; 4 operadoras de caixa de supermercado, uma das quais recmaposentada por invalidez; 1 operador de computador (em supermercado); 2 comerciantes (pequenos empresrios); 1 psicloga (autnoma); 1 juza.

Distribuindo as pessoas quanto ao momento em que a deficincia fsica ocorreu, encontramos 7 pessoas que apresentaram deficincia aps acidente ou doena na adolescncia; 12 pessoas que apresentaram deficincia aps acidente ou doena na infncia; 2 que nasceram com deficincia e 1 pessoa que apresentava apenas o que poderia se chamar de pequena variao da normalidade e que foi considerada pela empresa como deficiente para efeito de cumprimento da cota legal.

Essas pessoas entrevistadas expuseram uma parte das suas vidas no trabalho, permitindo-nos aprofundar o que buscamos nos documentos polticos e normativos e nas visitas s instituies que lidam com pessoas com deficincia, ou seja, analisar em que medida as polticas de obteno, garantia, progresso e manuteno no emprego de pessoas portadoras de deficincia as tem includo no mundo do trabalho.

Entre os chefes ou colegas dessas pessoas se encontram 4 homens (2 do banco e 2 do supermercado) e 2 mulheres (ambas do banco). Suas funes eram 2 assistentes de negcios e 2 gerentes de contas, no banco, enquanto no supermercado, um era chefe dos caixas e o outro chefe de Recursos Humanos. Nenhum desses chefes ou colegas referiu ser portador de deficincia.

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Nem sempre foi fcil realizar as entrevistas, no apenas porque se trata de revelar aspectos da vida privada, como tambm porque expe estigmas, discriminao e preconceitos. Houve situaes de maior dificuldade, como ocorreu no supermercado, em que uma supervisora censurou o contedo de uma das entrevistas21 ou mesmo no caso de um bancrio que marcou e desmarcou mais de uma dezena de vezes, evidenciando, indiretamente, que no queria ser entrevistado. Com muita freqncia, os trabalhadores empregados procuravam saber se a empresa permitira que eles concedessem entrevista.

Por outro lado, a maioria, quando percebia que se buscava dar voz a eles e a suas experincias de vida, demonstrou vontade de ser ouvido e falava das suas relaes familiares e de aspectos ntimos, permitindo em quase todos os casos que as entrevistas fossem gravadas.

Aps um captulo de introduo, no qual foram destacados conceitos bsicos de deficincia e dos seus modelos explicativos, foi desenvolvido o captulo 2, que tratou sobre as polticas pblicas de incluso e a centralidade do trabalho.

Apresentada a metodologia e os objetivos, desenvolvemos o captulo 4, que sintetiza a norma jurdica de proteo aos trabalhadores com deficincia. No captulo 5, revisamos os dados do Censo referentes populao brasileira com deficincia e as estatsticas organizadas pelo Ministrio do Trabalho e Emprego.

No captulo 6, analisamos dados e entrevistas feitas em instituies para insero de pessoas com deficincia em Salvador. Nos captulos 7, 8 e 9 analisamos as entrevistas21

Essa entrevista foi excluda porque a manifestao livre da operadora de caixa foi prejudicada.

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com as pessoas com deficincia, ressaltando os aspectos gerais da vida em famlia e sociedade; a questo do corpo e da identidade; e a questo do trabalho da pessoa com deficincia.

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4. Proteo Legal ao Trabalho

Em 1975, a ONU aprovou a Declarao dos Direitos das Pessoas Deficientes, afirmando o direito das pessoas com deficincia, que devem ser respeitadas em sua dignidade humana, independente da origem, natureza e gravidade de suas deficincias, tendo, pois o direito de desfrutar uma vida to normal e plena quanto possvel. O documento tambm estabeleceu que o planejamento econmico e social deve levar em considerao o direito das pessoas com deficincia e suas necessidades especiais.

Aps essa declarao de direitos, a ONU (1992) aprovou em 1982 o Programa de Ao Mundial para as Pessoas com Deficincia22, recomendando a adoo de medidas para a preveno da deficincia e para a reabilitao, enfatizando a busca da igualdade e participao plena das pessoas com deficincias na vida social e no desenvolvimento.

A igualdade de oportunidades vista no programa como o processo mediante o qual a sociedade - o meio fsico e cultural, a habitao, o transporte, os servios sociais e de sade, as oportunidades de educao e de trabalho, a vida cultural e social, inclusive as instalaes esportivas e de lazer - torna-se acessvel a todos (ONU, 1992).

Predominava no texto uma superposio entre leso e deficincia, tal como vimos nos documentos da OMS poca. Isso se verifica, por exemplo, em vrias das aes de preveno propostas: supresso de guerras e reduo da violncia; melhoria da situao econmica, social e de educao dos grupos menos favorecidos; identificao

22

Aprovado pela Resoluo 37/52 da Assemblia Geral da ONU de dezembro de 1982.

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dos diferentes tipos de deficincia e das suas causas dentro de zonas geogrficas definidas; preveno de acidentes na indstria, na agricultura, no trnsito e no lar; introduo de medidas especficas de interveno graas a melhores prticas de nutrio, melhoria dos servios sanitrios e do diagnstico precoce; atendimento pr e ps-natal; educao sanitria; planejamento familiar; legislao e regulamentao; modificao dos estilos de vida; educao quanto aos perigos da contaminao ambiental e estmulo a uma melhor informao e ao fortalecimento das famlias e comunidades.

Todavia, h certo reconhecimento, no citado documento, de que a sociedade contribui para o agravamento da deficincia pois a experincia tem demonstrado que, em grande medida, o meio que determina o efeito de uma deficincia ou de uma incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa (ONU, 1992). O programa reconhece, em relao invalidez, que as pessoas so levadas a essa condio quando lhe so negadas oportunidades e direitos fundamentais em quase todos os campos, inclusive a vida familiar, a educao, o trabalho, a habitao, a segurana econmica e pessoal, a participao em grupos sociais e polticos, as atividades religiosas, os relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso s instalaes pblicas, a liberdade de movimentao e o estilo geral da vida diria" (ONU, 1992).

evidente que as declaraes dos organismos internacionais no so suficientes para alterar o processo de excluso-incluso, alm de terem sido elaboradas num momento em que crescia a onda neoliberal em todo o mundo. Entretanto, ainda que sejam apenas declaraes compensatrias em relao s polticas pblicas restritivas de

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direitos sociais em todo o mundo, representam referncias importantes para a defesa dos direitos das pessoas com deficincia.

Em 1986, sob influncia de crescente mobilizao nacional e internacional de entidades de defesa das pessoas com deficincia, o governo brasileiro editou o decreto n 93.481, que criou, no Gabinete Civil da Presidncia da Repblica, a Coordenadoria para Integrao da pessoa Portadora de Deficincia CORDE23, visando, como diz a norma, dar tratamento prioritrio e adequado aos assuntos relativos s pessoas portadoras de deficincias assegurar-lhes , para o pleno exerccio de seus direitos bsicos e a efetiva integrao social .

A Constituio de 1988 repercute fortemente essa mobilizao e amplia as normas vigentes, destacando-se a proibio de qualquer discriminao no tocante a salrio e critrios de admisso do trabalhador portador de deficincia (art. 7, XXXI); a definio de que a lei reservar percentual de cargos e empregos pblicos para as pessoas portadoras de deficincia e definir os critrios de sua admisso (art. 37, VIII); e a garantia de habilitao e reabilitao das pessoas portadoras de deficincia e a promoo de sua integrao vida comunitria (art. 203, IV), dentre outros direitos24

.

23 24

Atualmente vinculada Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. A Constituio de 1988 inclui ainda, nas competncias da Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios, o cuidado com a sade, assistncia pblica, da proteo e garantia das pessoas portadoras de deficincia (art. 23, II); quanto competncia de legislar, diz que compete Unio, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteo e integrao social das pessoas portadoras de deficincia (art. 24, XIV); obriga o Estado a criar programas de preveno e atendimento especializado para os portadores de deficincia fsica, sensorial ou mental, bem como de integrao social do adolescente portador de deficincia, mediante o treinamento para o trabalho e a convivncia, e a facilitao do acesso aos bens e servios coletivos, com a eliminao de preconceitos e obstculos arquitetnicos (art. 227, 1, II); e diz que a lei dispor sobre normas de construo dos logradouros e dos edifcios de uso pblico e de fabricao de veculos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado s pessoas portadoras de deficincia (art. 227, 2).

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Nos dois anos seguintes, foram aprovadas, em nosso pas, leis que definiram como crime o preconceito contra a pessoa com deficincia, punvel com recluso de um a quatro anos, e multa; disciplinaram as aes civis pblicas destinadas proteo de interesses coletivos ou difusos das pessoas com deficincia, que podem tambm vir a ser propostas por organizao de proteo das pessoas deficientes; e estabeleceram que o Ministrio Pblico intervir obrigatoriamente nas aes pblicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados deficincia das pessoas 25.

No mesmo perodo, o Brasil incorporou ao seu ordenamento jurdico, atravs do decreto legislativo 129/91, a Conveno 159 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) sobre Reabilitao Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes, aprovada em 1983, em Genebra.

Esta norma internacional considera deficientes as pessoas cujas possibilidades todas de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficincia de carter fsico ou mental devidamente comprovada e recomenda que os pases signatrios devero ter como base o princpio de igualdade de oportunidades entre os trabalhadores deficientes e dos25

A Lei n 7.853, de 24/10/89, depois alterada pela lei 8.028, de 12/04/90, dispe sobre o apoio pessoa portadora de deficincia, sua integrao social, sistematiza as atribuies da CORDE, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos e difusos e define o crime contra o preconceito contra o portador de deficincia, punvel com recluso de um a quatro anos, e multa. Ao disciplinar a atuao do Ministrio Pblico, a norma diz que, no art. 3, que as aes civis pblicas destinadas proteo de interesses coletivos ou difusos das pessoas portadoras de deficincia podero ser propostas pelo Ministrio Pblico (MP), pela Unio, Estados, Municpios e Distrito Federal; por associao constituda h mais um ano, nos termos da lei civil, autarquia, empresa pblica, fundao ou sociedade de economia mista que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteo das pessoas portadoras de deficincia art. 5, . No ressalta que o MP intervir obrigatoriamente nas aes pblicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados deficincia das pessoas. A lei n 7.853 foi parcialmente regulamentada pelo decreto n 914, de 06/09/93, que instituiu a Poltica Nacional para Integrao da Pessoa Portadora de Deficincia, definindo como seus principais instrumentos a articulao interinstitucional, o fomento formao de recursos humanos para atendimento aos portadores de deficincia e a aplicao das normas que asseguram reservas de mercado de trabalho pessoas portadoras de deficincia, alm do investimento em tecnologia de equipamentos e a fiscalizao da legislao protetora, cabendo CORDE a coordenao das aes.

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trabalhadores em geral, ressaltando que as medidas positivas especiais a com finalidade de atingir a igualdade efetiva de oportunidades e de tratamento entre trabalhadores deficientes e os demais trabalhadores, no devem ser vistas como discriminatrias em relao a estes ltimos (OIT, 1983).

Ampliando a proteo do trabalho das pessoas com deficincia no Brasil, foi aprovada, em dezembro de 1991, a Lei 8.213, que tratou dos benefcios da previdncia social, e incluiu, no seu artigo 93, que as empresas com 100 ou mais empregados passavam a ser obrigadas a preencher de 2 a 5% dos seus cargos com beneficirios reabilitados ou pessoas com deficincia habilitadas. Foi assim, introduzido o sistema de cotas26 para reserva de mercado de trabalho para as pessoas com deficincia27. Entretanto, somente em 1999, o decreto 3.298, em seu artigo 4o, definiu quais condies mdicas28 permitem enquadrar uma pessoa como portadora de deficincia,26

A lei 8.213/91 estabeleceu que a empresas de 100 a 200 empregados reservaro 2% das suas vagas; de 201 a 500 empregados, a reserva cresce para 3%; de 501 a 1000 empregados, se destinaro 4% das vagas; e acima de 1000 empregados, atinge-se 5% das vagas. 27 O sistema de cotas estabelecido no Brasil resulta num novo tipo de estabilidade provisria, uma vez que a empresa s poder despedir o trabalhador admitido na cota se admitir outro trabalhador com deficincia e, mesmo assim, se a cota mnima estiver preenchida (OLIVEIRA, 2001), o que uma garantia importante, mas tambm um fator de resistncia sua aplicao. 28 Art. 4 do decreto 3298/91 - considerada pessoa portadora de deficincia a que se enquadra nas seguintes categorias: I - deficincia fsica alterao completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da funo fsica, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputao ou ausncia de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congnita ou adquirida, exceto as deformidades estticas e as que no produzam dificuldades para o desempenho de funes; II - deficincia auditiva parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e nveis na perda forma seguinte: a) de 25 a 40 decibis (db) surdez leve; b) de 41 a 55 db surdez moderada; c) de 56 a 70 db surdez acentuada; d) de 71 a 90 db surdez severa; e) acima de 91 db surdez profunda; e f) anacusia; III - deficincia visual acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho,aps a melhor correo, ou campo visual inferior a 20 (tabela de Snellen), ou ocorrncia simultnea de ambas as situaes;

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chamando ateno o fato de ser conservadora em relao s deficincias fsicas e mentais, mas ter includo situaes de perda auditiva leve nas quais o prejuzo comunicao relativamente pequeno.

O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficincia (CONADE), vinculado Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, aprovou em 8/10/2003, a Resoluo no 17, que considera a necessidade de alterao do mencionado artigo, vista do inadequado dimensionamento das deficincias auditiva em e visual .

Tal norma, alm de permitir a muitas empresas registrarem, como deficientes, trabalhadores que apresentam perda auditiva sem qualquer prejuzo comunicao, privilegiou o diagnstico de leses e patologias, ao invs de considerar a avaliao da capacidade e funcionalidade, o que faz com que se reforce a identificao de deficincia com doena.

A legislao tambm atribui aos mdicos do trabalho e mdicos peritos uma grande autoridade na deciso sobre quem ou no deficiente ou incapaz, e, na sua aplicao prtica, o que as empresas buscam identificar o trabalhador que se adapte ao

IV - deficincia mental funcionamento intelectual significativamente inferior mdia, com manifestao antes dos dezoito anos e limitaes associadas a duas ou mais reas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicao; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilizao da comunidade; e) sade e segurana; f) habilidades acadmicas; g) lazer; e h) trabalho; V - deficincia mltipla associao de duas ou mais deficincias.

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trabalho e jamais o inverso, ou seja, admitir mudanas no trabalho para adapt-lo ao ser humano.

O papel do mdico est, pois, relacionado normalizao das condies em que se d a produo e se organiza o trabalho, seja na admisso de um deficiente, seja na definio quanto ao retorno de um trabalhador mutilado ou adoecido ao trabalho (VASCONCELOS, 1994).

Revendo as polticas internacionais de emprego para deficientes, vimos que as primeiras datam das dcadas de 1920 e 1930. Em parte da Europa, tomaram a forma de cota e nos EUA, Canad, Sucia, Finlndia e Dinamarca a opo foi por investir em reabilitao vocacional, estratgias de treinamento e polticas antidiscriminatrias. Na Unio Sovitica, adotou-se o emprego reservado pelo Estado em determinadas empresas.

A reserva de cotas para deficientes surgiu primeiro na ustria, Alemanha, Frana e Itlia, para atender acordos ps - I Grande Guerra e recomendaes da OIT, assegurando certa percentagem de postos de trabalho para veteranos de guerra deficientes e havia um sistema de penalidades para aqueles que no as cumprissem. Posteriormente, as cotas passaram a incorporar pessoas acidentadas no trabalho e, aps a II Grande Guerra, Reino Unido, Holanda, Irlanda, Blgica, Grcia e Espanha adotaram sistemas de cotas mais amplos, abrangendo outros tipos de deficincia (METTS, 2000).

Tal ampliao trouxe tambm desgaste para o sistema, porque cresceu muito a demanda por esse tipo de emprego protegido e muitas empresas no tinham condies

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de absorver todos os tipos de deficincia sem o apoio do Estado, em razo do que as penalidades passaram a ser desacreditadas. Outro problema tambm referido em relao ao sistema de cotas foi o fato de trabalhadores bem qualificados, porm deficientes, serem discriminados por terem ingressado atravs da cota.

Na ltima dcada, o Reino Unido deixou o sistema de cotas, enquanto Holanda, Portugal, Irlanda, Blgica, Alemanha e Frana reformaram seus sistemas. Atualmente, contudo, o sistema de cotas ainda persiste em metade da Unio Europia e muitos pases emergentes em todo o mundo passaram a adot-lo (METTS, 2000; PASTORE, 2000).

Os

Estados

Unidos

no

adotam um sistema

de cotas,

mas

sua

norma

antidiscriminatria ADA (American with Disabilities Act), criada h quase 25 anos, abrange outros aspectos dos direitos civis al